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O processo de expansão mundial

do capital, permeado de crises


e solavancos, propiciou grandes
transformações econômicas e
políticas, principalmente nas últimas
décadas. Surgiram - decorrentes
dessas mudanças - linhas de
pensamento que buscaram interpretar
a sociedade e o seu desenvolvimento
a partir da negação da centralidade
do trabalho no mundo atual, tendo
ADEMAR BOGO
a identidade - construção apenas
cultural - como o ponto de referência
com a individualidade se sobrepondo
à coletividade e ao paradigma das
classes sociais.
IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES
Este trabalho procura, a partir
da teoria marxista, centrada nas
principais leis da dialética, analisar
as mudanças que o capital impõe à
sociedade nesta época. As várias
identidades - de gênero, de idade,
de etnia, de cultura, de subjetividade,
vistas pelos pós-modernos como
fundamentais - são compreendidas
aqui como particularidades da
totalidade, submetidas ao antagonismo
e à luta entre as classes sociais. O
movimento dessas contradições faz
com que a unidade de contrários em
luta carregue consigo a possibilidade
da superação do sistema do capital,
colocando a humanidade em outra
ordem, justa, segura e solidária entre os
seres humanos e as demais espécies
colaboradoras para o desenvolvimento
da humanidade.
O desenvolvimento do projeto do
capital no campo e como ele modifica
o modo de vida dos camponeses e
suas identidades culturais, tornando-as
semelhantes a de seus opositores,
é outro ponto importante do livro.
Porém, ao mesmo tempo que ele
ADEMAR BüGO

IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES

2• edição

EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo - 20 1O
Copyright© 2008, by Editora Expressão Popular

Revisão: Geraldo Martim de Azevedo Filho e Miguel Cavalcanti Yóshida


Para
Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design
Celi Tajfarel e
Impressão e acabamento: Cromosete
Heloisa Fernandes

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Bogo, Adernar
B675i Identidade e luta de classes/ Adernar Bogo-- 2.ed.- São
Paulo : Expressão Popular, 2010 .
264 p.

Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem .br.


ISBN 978-85-7743-053-6

1. Cultura 2. Identidade camponesa . 3. Lutas de classes.


2. Classe operária. 1. Título .

coo 301 .2
301 .36
Bibliotecária: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

2ª edição: dezembro de 2011


1ª reimpressão: setembro de 2013

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


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SUMÁRIO

1NTRO DUÇÁO ...... ............................................................... .. ..................... 9


As contradições do capital ............. .. .... ..... ... .............................. ................ 11
A resistência e a busca de alternativas .. .. ... ......... ... ... ... ..... ............... .. ..... .. .. 20
A necessidade do rompimento com a exploração ........ ....... ... ... .. .......... ...... 24

A IDENTIDADE PARA ALÉM DA CULTURA ........................................... 27


Como se desenvolve o conceito de identidade .... ....... ....... .... ...... .............. 31
Identidade biológica ...... ... .... .... ..... .. ... ...................................... .......... .. ..... 37
Identidade histórica ... .... ... .. .... ..... ........ .... .. ... ... .... .. .. ... ..... ..... .......... .. ......... 41
Identidades ameaçadas ............. ... .. ... .. .... .... .. ... ..... .... .. ... .... ... .... ......... ........ 53
Identidades feridas ..... ...... .... .... .... ............ .. ......... ............ ............ ... .. ...... ... 60
Identidades modificadas .. .. .. .................. .. ....... ... .... .... .... ...... .. ...... ........ .... .. 7 4

AMEAÇAS À CULTURA E À IDENTIDADE CAMPONESA. .................... 91


Dissolução e afirmação da história ... ... ... ....... ..... .... .. .. ... ...... ..... ......... .... ..... 97
Dissolução e afirmação da identidade ...... .... .................................. .... ... ..... 101
Dissolução e afirn;iação do equilíbrio cultural .. ...... ... .. ...... ............... .... ... ... 106
Dissolução e afirmação da tradição .... ... ....... ..... ... .. ... ... ..... ..... .... ..... ..... ...... 108
Dissolução e afirmação da consciência ... .............. ........... ..... ... ... ... .. .......... 112

A RECONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES ................ ..................... ..... ..... 117


Da luta de resistência para a identidade de projeto ..... .. .. ....... .... .. ... ..... ...... 119
Do combate ao revisionismo para a identidade revolucionária ..... .............. 124
A coragem de investir-se e inventar-se como identidade de luta .... ..... ..... ... 136
A construção coletiva da identidade e da classe ...... ... ... .... ....... ... ... ..... .... .... 138
A causa como identidade educadora ... .. .......... .. ......... ........ ..... ..... ... ........... 147

O PODER COMO CULTURA E IDENTIDADE DE CLASSE ............ ... .. . 151


A cultura é um cultivo de alto risco .. .... ..... ..... ...... ....... ..... .... ....... :.... ... ...... 155
A cultura popular é também a construção do poder .............. ...... .. .. ........ .. 159
As características do poder de natureza proletária ..... .. .. ... .......... ... ... ........ .. 168
Quais são as tarefas fundamentais da luta pelo poder? ......... .... .......... ... ..... 174
A IDENTIDADE DA MILITÂNCIA DO SÉCULO 21... ........................... .. 179
A organização é a base da transformação .................. ..... ... .. .. ... ..... .... .. .... ... 180
INTRODUÇÃO
. • · ......... ....... .............. ..... .. ... . 182
A estrutura orgânica para envo 1ver a m il1tanc1a
O objetivo faz a organização ............. ............ .. .... ...... .... ....... ..... ..... .. .. ..... ... 184
Homens e mulheres, militantes de nosso tempo .... ... .. ............. ..... ...... .... ... 186
Características que deve ter a militância deste século ........ ..... .. ... .. ...... ... .. .. 188

OS DESAFIOS DA FORMAÇÃO DEQUADROS ................................. ... .. 193


Atualização na forma permanente e no conteúdo da organização ............... 199
Combater a espontaneidade .... .... .. ......... ... ...... .... .... ..... ..... ........ ... ... ... ..... .. 201 ( )s PÓS-MODERNOS, INDUZIDOS pelo processo de individualiza-
Tornar a ética, a moral e os valores referências da prática .... .... ...... .. ...... ... .. 206 ,, o humana cada vez mais crescente no capitalismo apegam-se
,to onceito de identidade com a clara intenção de colocá-lo em
RELAÇÕES ENTRE MÍSTICA, IDEOLOGIA E UTOPIA ......................... 211
ckscaque, sobrepondo-o ao conceito de classe social. Sem dúvida, é
As raízes históricas da utopia ... .............. .... .. ..... ... .. .. •· ••••· •••••••••· •••••·· ··· ··· ··· · 212
11 ma maneira sutil de reavivar o revisionismo metafísico, político e
A ideologia corno conteúdo da causa ..... ........ .. ... ........ ..... . •• ••• ••·•·•••··•·· •••· ··· 214
A mística, força que liga o que é com o que ainda será ..... ... ...... ... ......... ... .. 218 ld sófico do final do século 19, quando ocorreu a primeira crise de
'.~cagnação do capitalismo. Naquele período (1873-1898) bastaram
duas décadas e meia para que as várias correntes de pensamento,
11r então alinhadas ao marxismo, rompessem com ele e passassem

., defender a via da luta político-institucional pacífica, como meio


para a transformação da sociedade capitalista.
AAFETMDADE: UM PRINCÍPIO REVOLUCIONÁRIO ... .................... 237 Ao contrário daqueles, este trabalho assume a tese da teoria mar-:-
ista centrada nas leis fundamentais da dialética, principalmente a da
CONCLUSÃO ..... ......... .. ... ................................................................... ......... 249 n gação da negação, quantidade e ualidade, unidade e luta dos con-
u:ários, abstrato e concreto etc. que nos possibilita ver as identidades
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................. .. .................... ..................... 255
de gênero, de idade, de etnia, de cultura, a subjetividade e quantas
utras possam ser privilegiadas nas discussões atuais, no processo de
transformação da sociedade - relacionadas e submetidas à identidade
de classe - de exploradores e de explorados - e pela oposição e luta
entre elas - de um lado as forças que impõem a ordem e de outro
as que se colocam contra ela, procurando subvertê-la, negando-a,
e ao mesmo tempo, como forma de superação, afirmando outra
ordem. As identidades de classe possuem uma conexão estreita que
possibilitam passar de um estado para outro através do movimento
das contradições. A negação da negação coloca as contradições em
A DEMAR B oGo 11
10 1DENTI DA DE E LU TA DE CLASS ES

estágios mais elevados de qualidade, quando as identidades trocam , :ONTRADIÇÓES DO CAPITAL


de condição como é o caso da classe trabalhadora que, ao negar a 1~verdade que a reprodução histórica ampliada do capital exi-
classe burguesa dominante, através do conflito e da não concilia- 1\ 11 1 riação e a expansão permanente de um mercado mundial
ção, assume o lugar de dominante com novas contradições tendo NO locou em movimento contínuas e constantes inovações
o Estado também como instrumento, mas, colocando acima dele a I" ndu oras da acumulação capitalista, que levaram a crises e
"ditadura do proletariado", ou se quisermos, a ordem democrática 1 i1•nações, mas que não significa o fim das contradições e das

da maioria contra a minoria. 11 •1•1· n ias teóricas e práticas. Há reações e lutas que vão gerar,
A tese da afirmação da existência fundamental da classe é que 111110 no passado, rupturas.

orienta esta nova identidade. E não como fazem os revisionistas () avanço desenfreado do capital, permeado de crises e sola-
quando afirmam que: "A nova filosofia da História tem seu cerne 111 ·os, propiciou grandes transformações econômicas e políticas,

na substituição da luta de classes pelo amor para o tempo como I" ild paimente nas últimas décadas; estas foram acompanhadas por
motor da história moderna (... )". A "nova metodologià' não vai 11111lundas m udanças ideológicas que afetaram a cultura e os valores
além da substituição do que denominam de objetivismo de O ca- 1 1 os morais também das classes exploradas. Diferentemente do
1 p u a r ditavam os pós-modernos, que o "Estado mínimo" neo-
pital, por um subjetivismo por eles proposto. A "nova éticà' nada
mais é que a proposta de uma revolução passiva a partir da redução 11, ·1·:1 1 ampliaria as formas de democracia na sociedade civil, isso
do comunismo a um estilo de vida alternativo que se pode afirmar 11 ln o rreu; ao contrário, se acelerou ainda mais o processo de

no interior do capital (... )" .1 Isto porque, para que os dominados se , 11111·•d ização e controle do poder, elevando com isso a qualidade
emancipem, precisam formar e organizar a sua classe, reconhecer a 1l I onsequências, demonstrando mais profundamente a necessi-
1l 1 1• la classe trabalhadora de romper com a ordem estabelecida
existência de seu oposto que é a classe dominante, e, a partir disso,
procurar, através da luta, ocupar o seu lugar, ultrapassar a natureza da ht11, ar a formação da ordem oposta, pois, sem a organização
dominação burguesa, minoritária, e instituir a democracia da maioria 1 1,1 para o enfrentamento da luta dos contrários, eleva-se ainda

para a maioria, pondo em movimento a lei dialética da quantidade 1111 grau de exploração e as consequências da dominação da
e quali9-ade. Uma classe é a condição para a existência da outra na , l,1\~ • ~xploradora.
luta da própria superação. Como não pode haver capitalismo sem A primeira consequência a ser notada é que a sociedade orga-
classes, ao estabelecer a luta contra a classe dominante atual, a classe 11 t.1da pelo Estado-nação foi profundamente atingida na forma

trabalhadora pretende ser vitoriosa, tornando-se dominante. Neste ,I, p1·oduzir a sua existência. As empresas transnacionais criaram
sentido, há, a partir da ruptura entre as duas grandes classes, um , , ru próprio regime político e estabeleceram o domínio absolu-
aprimoramento na organização, elevação do nível de consciência e 11 obr os governos locais, determinaram a função do Estado e
2
melhora nas relações sociais e de solidariedade entre os componentes 111 1 tarizaram as relações de trabalho por meio da ordem rígida e

da classe, que mais adiante deverá também ser extinta. .1 ~l lplinada. Com isso, nasceu o totalitarismo das empresas, que

1 LESSA, S. Para além de Marx? Crítica da teoria do trabalho imaterial, p, 78. \A N' r S, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
A DEMAR 8 0GO 13
12 I DENTIDAD E E LUTA DE CLASS ES

nas relações de produção e consumo, não apenas criam os objetos m vendo-os para lugares onde nem sempre querem ir. Os hábitos
para os sujeitos, mas também sujeitos para os objetos criados.
3 pr cisam ser alimentados diariamente. A publicidade encarrega-se
1 I • seduzir, convencer e diminuir as resistências. Ataca através da
O poder da técnica é, também, o poder dos grupos econo-
micamente dominantes 4 de planejar e comandar o processo de visão, da audição, do olfato, do paladar e do tato. O mercado exige
qu as pessoas se dediquem a satisfazer as suas ansiedades consu-
descaracterização das categorias clássicas dos trabalhadores, da
cultura e da identidade dos povos. No mundo dominado pelo mi tas - é a consciência dominada pelo feitiço da mercadoria.
consumo e, mais ainda, pelo consumo supérfluo de mercadorias, A segunda consequência é a perda da capacidade de perceber
1.~ diferenças, tanto para questioná-las quanto para aceitá-las, ela
originadas em necessidades abstratas, pensadas pelas empresas, os
objetos, não os seres humanos, se apresentam como sujeitos nas 1 •presenta a crescente incapacidade de estabelecer referências de
1 m idade - estas necessitam da percepção das diferenças con-
relações sociais. Soma-se a isto a velocidade com que circulam as
1r. rias. E a perda ou erosão das referências de identidade, como
informações, ultrapassando em muito a capacidade de seleção, de
crítica, de rejeição ou de assimilação, levando a que, parte delas, 11de classe, afeta profundamente as possibilidades de avançar em
se perca na circulação e outra parte se projete no imaginário social ,lireção à emancipação humana.
tornando-se prática sem reflexão - é o momento em que alguns Pela propaganda, as mercadorias colocam-se em "desfile", es-
1lmulando os vícios que elas já estão disponíveis para o encontro
impõem suas próprias intenções aos outros, seja na produção seja
om o dinheiro. "Desfilar", tornar-se visível, é o tempo necessário
no consumo de tais inventos.
As mudanças no controle das relações sociais, nas relações de pnra que o feitiço produza a ansiedade no "consumidor", como
trabalho e no modo de funcionamento do Estado que marcam 11m mediador entre a mercadoria na forma de valor de uso e a
o modo de produção capitalista contemporâneo, não poderiam 111 ercadoria, na forma dinheiro.
ter ocorrido se não fosse a força do mercado. É através dele que O ato de comprar transforma-se num verdadeiro prazer a
as empresas se "intrometem" na vida privada e coletiva dos seres s r satisfeito pelo grande "bordel" em que se tornou o mercado.
humanos e, em nome da "liberdade", vão desmanchando todas as ; mo se estivessem numa festança, os consumidores potenciais
11

resistências. Porém, "o que se chama de 'mercado livre' leva em seu ·mbriagam-se" e aceitam comprar aquilo que, de fato, querem e
5 tnmbém aquilo que se arrependerão de terem aceitado comprar.
seio a serpente da contradição: uma nova forma de barbárie ( ... )",
pois é com ele e graças a ele que a mais-valia, na produção, ganha .,om isso, as pessoas vão se tornando mais deprimidas, mais an-
sentido, e se converte em novas aquisições e investimentos. ~ustiadas e mais violentas; estas são as doenças epidêmicas dos
L mpos atuais obcecadas pelo dinheiro.
Os hábitos desenvolvidos pelos consumidores no mundo do
consumo ganham status de criaturas com novas formas de com- O dinheiro tem um valor abstrato e, por isso, detém o poder
portamento e novos vícios, que se apoderam dos seres sociais, le encobrir todas as demais relações existentes nas mercadorias.
s seres humanos transformam-se em meros serviçai~ do capital;
3 MARX, K. "Para a crítica da economia política'', p. 9. na verdade, eles se tornam objetos mediadores entre o dinheiro e
4 ADORNO, T. Indústria cultural e sociedade, p. 9. s objetos a serem comprados.
5 BUEV, F. F. Marx (sem ismos), p. 20.
14 I DE NTI DADE E LUTA DE CLASS ES
A DE MAR 8 DGO 15

Esse mundo das mercadorias não poderia existir sem o "teatro" 111odernidade, passou-se da imaginação e do conhecimento para o
do mercado. Ali, a moda, na qual não só se realizam as novas mer- 1 f)
0
o da alucinação fetichizada do consumo, no qual as relações
cadorias, mas também se impõe um sentimento especial, alimenta olldárias são substituídas pelas relações monetárias; mas, agora,
o desejo do consumo e ameniza o arrependimento após a sua aqui- 1v,1nça-se rapidamente para a negação da comunidade social, na
sição. Contudo, em seguida, tenderá a ser descartada por outra, 1p1al o indivíduo se basta, iludindo-se de que tudo o que precisa
mais moderna. Eis como se origina, se mantém e se renova o ciclo 1 !:, ao alcance da mão.

do consumo. Não foi à toa que, há três séculos, os comerciantes A possibilidade de adquirir uma mercadoria da moda, facilitada
fizeram a afirmação de que eles seriam "o embrião do homem do l' ·1 crediário, em qualquer loja, por qualquer ser que seja possui-
futuro". De todo modo, não se deram conta de que eles próprios dor de renda suficiente, induz a pensar que "todos somos iguais"
seriam submetidos ao capital e que, o "homem do futuro", se tor- 1 om os mesmos direitos e deixando a impressão de que as classes
naria um mero objeto de uso "nas mãos" das mercadorias. o •iais foram desfeitas e eliminadas. Bastaria, então, apenas realizar
O mercado se dinamiza pelas relações que as mercadorias 111t1.d anças no campo da ética e o mundo capitalista seria melhor.
estabelecem entre si, tendo as pessoas apenas como mediadoras. !' ra as pessoas são tratadas como clientes ou consumidores e não
As mercadorias inventam e impõem sua própria linguagem que 1 orno sujeitos da história e de classes específicas.
entrelaça os mais diversos idiomas, como se os objetos negociados ob o capitalismo tardio, vivemos o tempo da inutilidade e
guardassem dentro de si, o poder da fala. "( ... ) As pessoas, aqui, só d.is substituições de mercadorias supérfluas, as empresas existem
existem reciprocamente, na função de representantes de mercadorias para substituir o velho pelo novo. Mais adiante, quando já quase
e, portanto, de donos de mercadorias". 6 É o mundo das relações entre l' apagaram da memória os traços dos objetos antigos, eles retor-
as mercadorias, isto é, entre as coisas, sob o mercado. A unidade e luta 11:lm, como se fossem novos, e, atraídos pelo estímulo afetivo da
dos contrários mostra-nos aqui que, para produzi-las, primeiro o ser 111 mória, são adquiridos e consumidos. O "ridículo" do passado,
humano tem de tornar a própria força de trabalho uma mercadoria 1c di tado, torna-se a moda do presente. Como nos disseram Marx
e vendê-la a um explorador, que, após empregá-la na produção de • •ngels:
objetos separa-os e, liberando-os para que estabeleçam novas relações (...) As relações rígidas e enferrujadas, com suas representações e concepções
sociais, deixando para trás uma quantidade de proletários com uma tradicionais, são dissolvidas, e as mais recentes tornam-se antiquadas antes
qualidade de consciência ainda mais alienada. que se consolidem. Tudo o que era sólido desmancha ri.o ar, tudo que
O
De certo modo, a sociedade capitalista atual pode ser vista era sagrado é profano e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com
como uma grande indústria de produção de débeis mentais. Esta- serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.'' 7
mos entrando no terceiro estágio da negação humana. Fomos da Chegamos, assim, ao inevitável. A sociedade de consumo,
ignorância para a imaginação, isto é, para a capacidade de conceber moldada pela lógica do capital, torna-se consumição de si própria,
antecipadamente os objetos a serem produzidos pelo trabalho; na ora exaurindo a natureza, ora diluindo-se na barbárie. Viver neste

6 1
Idem, p. 95. MARX, K. e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunista", p. 88.
16 IDE NTIDADE E LU TA DE CLASS ES
A DEMA A B OGO 17

modo de produção está se tornando um ato de alto risco. A civi- A necessidade de mercados sempre crescentes para seus produtos impele
lização está criando o seu próprio contrário: a barbárie. 1 burguesia a conquistar todo o globo terrestre. Ela precisa estabelecer-se,
A terceira consequência no atual estágio do capitalismo é a per- ·xplorar e criar vínculos em todos os lugares. 9
da dos direitos. O capital impõe a ordem dos direitos do mercado: Mas, ao mesmo tempo em que se expande, cria novas contradi-
quem tem condições de comprar tem acesso aos direitos, quem não 1, •s que se desenvolvem como forças contrárias, assim, a burguesia
tem, deve sujeitar-se, aceitando a ideia de que as oportunidades pie <luz a sua própria negação.
existem, mas não são para todos. Seria o preço a pagar pela maioria Foi também assim que o mercado e suas inovações chegaram
para levar a prosperidade para a minoria. ,t ~ric ultura e à produção dos alimentos. Ávidas de lucro, as
Os planos políticos e os sonhos utópicos são diluídos e engoli- 1 mpresas avançam sobre culturas e identidades milenares; terra,
dos pela ansiedade do encontro imediato com os objetos oferecidos. i·111 ntes, pessoas, hábitos, ciclos de produção e, até, códigos ge-
Os desejos inúteis8 comandam as escolhas. Assim, alimenta-se o 11 "ti os de algumas espécies, como se tudo pudesse ser invadido
fetiche, pelo qual a mercadoria adquire uma força que lhe é es- ,. 1 truído.
tranha, misteriosa, uma força sagrada, digna de devoção, é como Estas empresas atuam articuladas pelo modelo econômico em
se ela estivesse possuída de uma vontade própria, que passa a 11· s frentes no meio rural: a) agronegócio: exploração e comércio
comandar a vida na sociedade capitalista. Mas o poder, as leis e as ,111 rícola; b) hidronegócio: privatização dos rios e reservatórios natu-
alianças políticas também são aprovadas e sustentadas pela força 1,1is para o comércio da água; c) eco negócio: privatização e concessão
do dinheiro. Compra-se e vende-se apoio político. 11' uso para a iniciativa privada das florestas e recursos naturais.
O velho etnocentrismo, que no passado mantinha os países As mudanças genéticas realizadas nas sementes, árvores e
colonialistas europeus como irradiadores de civilização, tornou-se, 1nimais são formas de dominação violenta do mapa biológico
agora, imperialismo com mercado militarizado, graças ao qual são das espécies, pois obrigam o acasalamento forçado de vidas que
exportados mundialmente os preceitos, os vícios, as exigências ju- P rdem as suas identidades originais e modificam o equilíbrio
rídicas e as ordens. Assim, a cultura local sofre intenso bombardeio 1m biental. Rompe-se, assim, o desenvolvimento natural das
e destruição para ceder seu lugar à cultura transitória do consumo, pécies vivas.
que representa a imposição dos interesses do capital. Embora a transgenia não esteja apenas na produção de alimen-
Enquanto tudo se torna mercadoria, os poderes públicos ar- tos, é neles que se concentrarão as mudanças culturais mais per-
ticulam as reformas para satisfazer os interesses do imperialismo, versas. Nesta área, ela não prejudicará somente os seres humanos,
gerando mais miséria e descontentamento social. mas todos os seres vivos.
A quarta consequência é a exaustão da natureza e a ameaça Aquilo que para a ética é risco, para as empresas e para o mer-
da identidade das espécies. Os últimos tempos confirmaram a ado são apenas possibilidades de elevar lucros e amenizar as crises
previsão de Marx de que: riadas pelo próprio sistema do capital.

8
EPICURO, Carta sobre felicidade. '
1
MARX, K. e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunista", p. 88.
ADE MAR B OGO 19
18 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES

É neste sentido que se torna importante compreender e ampliar A quinta consequência é a perda da soberania. É verdade
o conteúdo do conceito de identidade, submetendo-o sempre q ue os modelos econômicos internacionais moldam as socie-
às diferenças entre as classes, mas estendendo-o para além delas dades locais segundo identidades planejadas como se o jogo de
e examinar também a cultura, de modo a considerar as demais interesses fosse o parâmetro do equilíbrio da ordem. É a cultura
espécies, mesmo que elas não tenham consciência disso. Embora exploradora da minoria que se impõe. A tão falada globalização
não tenhamos identidade cultural com outras formas de vida, afirma uma identidade territorial imposta pelo mercado impe-
mantemos forte proximidade na identidade biológica, pois temos rial, sobre identidades culturais locais que resistem e defendem
as células compostas pelos mesmos elementos, viemos da natureza os seus interesses para não se tornarem o seu oposto. Tudo é
e continuamos sendo natureza como humanos, cada vez mais, movido por ele. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca)
porém, agregando em nós, através do trabalho e da convivência a e os Tratados de Livre Comércio (TLC) feitos entre o império
e cada país bilateralmente, ou outros acordos, são verdadeiros
consciência e a cultura.
Ao mesmo tempo em que a identidade expressa simbolicamente atentados contra as identidades das nações, já tão fragilizadas
a cultura, esta é a expressão material da identidade, isto porque a pela exploração de séculos.
simbologia não se reproduz se não houver o objeto. k plantas e os O atual bloco econômico da América do Norte (Nafta), que
animais, embora tenham história não têm consciência, mas partici- engloba o Canadá, os Estados Unidos e o México, quer mais do que
pam da cultura humana e, a partir disso, mudam suas características a ampliação do mercado. Criado em 1994, ele representa 88% do
físicas e biológicas, levando-nos a estabelecer uma relação direta Produto Interno Bruto (PIB) dos 34 países que os Estados Unidos
no movimento dessas modificações. Por isso, afirmamos que, por da América pretendem anexar e controlar como grande região para
termos as células compostas pelos mesmos elementos, tanto nós, a exploração e dominação capitalista.
humanos, quanto as demais espécies de vida, nos diferenciamos Por que pretendem tal façanha se apenas 12% do PIB está com
enquanto gêneros, mas nos identificamos na constituição biológica, os outros 31 países? O interesse não é apenas com o potencial de
consumo, mas com o que ainda vai ser produzido para elevar a
e, por isso, somos interdependentes.
A cultura etnocêntrica nasceu nos tempos da colonização, acumulação, pelo controle da biodiversidade, da água doce, dos
quando os habitantes dos territórios recém-descobertos e ocupados minérios, da madeira e das sementes fartamente distribuídas por
pelos países europeus foram considerados inferiores e atrasados. toda a América Latina.
Agora, o desdém é ainda maior, pois somos considerados não ape- Os Estados Unidos da América, o maior interessado na
nas inferiores, mas também ameaçadores dos interesses do capital. implantação desse modelo, quer abrir espaços para que as suas
Por isso, a "cultura do centro" pretende se sobrepor às demais, como empresas possam colocar livremente os seus produtos, controlar a
se, de fato, o mundo fosse apenas uma grande e única aldeia, na matéria-prima e enfraquecer os governos locais, de modo que, na
qual o poder concentra-se em um único local, a partir de onde eventualidade de precisar recorrer à força militar, tenha facilidade
comanda, não só as relações sociais de produção, mas também a de penetração em nossos territórios.
linguagem, os desejos e o pensamento.
A DEMAR 80GO 21
20 IDENTI DA DE E LUTA DE CLASS ES

A RESISTÊNCIA E A BUSCA DE ALTERNATIVAS Pelo que sabemos, o ser humano é o único dos seres dotado do
Por outro lado, presenciamos uma revitalização das práticas po- p der de sentir vergonha. É' mais uma característica da identidade
líticas de resistência e oposição ao modelo dominante e já podemos d · gênero perante as demais espécies que deverá ser superada
perceber que o século 21 não pertencerá ao capital, como vinha 1uando forem eliminadas as razões para isto. Coramos o rosto
sendo anunciado. A militância, essa prática milenar das pessoas m mentaneamente, como se o sangue quisesse escapar pelos poros
que acreditam em uma ordem social igualitária, não pereceu com 1ln face quando nos damos conta de algum feito que nos constrange
aqueles que negam ou renegaram seus antepassados. di ante daqueles que conosco convivem. Por essa razão, também
As raízes da identidade revolucionária, seguindo a lei da ne- 1 o uímos a virtude oposta, que é a capacidade de nos arrepender
gação da negação, enquanto avança mantêm a mesma resistência 1· voltar atrás naquilo que decidimos fazer e não deu certo. "O

contra as raízes da contrarrevolução, embora precisemos retirar-lhes p sadelo", se estamos mesmo vivendo-o, é o de não termos levado
o limo do tempo, fortalecê-la pelo estudo, pela força da juventude t sério o que nos ensinaram as gerações passadas, que continuam

organizada e por todas as {orças sociais de oposição, que reinventam vivas, porque sentimos que "oprimem nossos cérebros" com os
os próprios meios de luta, dando-lhes características atuais do novo ·us questionamentos.
projeto revolucionário. Conhecer é o primeiro passo para decidir, diziam eles. "Uma
As utopias se cruzam e se misturam em busca de realizações in- lorma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar
terrompidas, seja pela incapacidade humana, seja pelas circunstâncias ~ tber como se trabalha, como se ama e como se morre nelà'. 12 As
históricas, 10 que não permitiram que as gerações passadas legassem i fras nos mostram que em nosso país, por ano, para cada 100
às gerações futuras todos os seus desejos realizados. Mas os desejos mil pessoas, 28,5 são assassinadas. A situação para onde o capital
continuam atuais. Sente-se, pela mística militante, que as ideias estão 11 s empurra é a do desespero e abandono da própria percepção

vivas, pois nelas, nós fomos imaginados e sonhados por aqueles que 1. realidade. A alienação impede a interpretação real daquilo que
nos anteviram como sucessores das suas próprias intenções materia- V ·mos. Ainda bem que nem tudo o que vemos nos convence!

lizadas em relações sociais e de produção igualitárias. A frenética disputa de interesses talvez já impeça a percepção
Embora Marx tenha dito que a "tradição de todas as gerações 1 s pequenos detalhes e do todo da vida cotidiana. Mas reto-
mortas oprime como um pesade1o o cere ' bro dos vivos
· " , 11 ven•fica- mar o controle sobre os próprios movimentos da sensibilidade,
mas que, quando lemos os seus próprios escritos e os confrontamos l m ando-os impulsos, para forjar as mudanças necessárias, é
com as experiências desenvolvidas por uma infinidade de homens 1m prescindível.
e mulheres neste longo peregrinar histórico, nos encontramos neles Talvez tenhamos que retomar o desafio colocado por Nietzsche,
e descobrimos que, quando eles se reportavam às futuras gerações, no século 18, "torna-te quem tu és"; afinal, o ser humano não é
era de nós que estavam falando. penas esse ser dominado pelo fetiche da mercadoria - viveu antes
dela e a ela sobreviverá, quando nem mesmo a propriedade e o

10 MARX, K O J8 brumário e cartas a Kugelmann, p. 17.


11 CAMUS , A. A peste, p. 9.
11
Idem , p. 17.
22 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES
A DEMAR B oGo 23

dinheiro existirão. O grande retorno, portanto, não é retroceder t 1 ·ve ser combatido. As revoluções não serão iguais; cada povo terá
e voltar para as cavernas, mas emancipar-se como gênero de tudo d · fazer a sua, mas todos os povos terão que fazê-las inventando
aquilo que impede a convivência igualitária e solidária entre os 11:is táticas e estratégias, mobilizando as maiorias contra a minoria
humanos. ,1pitalista ou não haverá libertação. Todos os caminhos que apon-
O socialismo é o começo do retorno, em nova dimensão e 1.tm para outro rumo, que não sejam a revolução e o socialismo,
qualidade, do que foi o comunismo primitivo no princípio da . o revisionistas. Isto porque como disse Engels:
humanização, como nos esclarece o materialismo histórico ao O modo capitalista de produção, ao converter mais e mais em proletários a
descrever os modos de produção na história. É claro que não se imensa maioria dos indivíduos de cada país, cria a força que, se não quiser
pode comparar o que era a sociedade nos primórdios com o que é perecer, está obrigada a fazer a revolução. 13
na atualidade. Mas a convivência, a solidariedade, a gratuidade, a Qualquer tentativa que venha a tirar esta responsabilidade do
honestidade, a atitude de respeito perante a vida continuam sendo 1 r letariado como tarefa histórica é desviar a atenção do objetivo
referências em vigor. •stratégico e dispersar as atenções para deixar nascer as opções opor-
A formulação do projeto popular de natureza socialista é o t li nistas. Logo, ou o proletariado, aliando-se às outras forças sociais,
caminho para nos levar ao poder. Popular, no sentido de tudo o 1:ii a revolução e se emancipa, ou perecerá na barbárie. Nesse caso,
que se opõe à elite ou à classe dominante, ao Estado e ao capital e o grande retorno seria para a barbárie, fase do desenvolvimento
que, todas as forças sociais populares que estão próximas da classe humano que existiu entre o estado selvagem e a civilização. 14 Neste
proletária possam participar. O projeto socialista é a única maneira ~ •ntido, o movimento da unidade e luta dos contrários não conse-
de reconstruir as identidades destruídas, superar as que oprimem puiria elevar a humanidade ao grau emancipatório, ao contrário,
e propor a emancipação das novas identidades. l rebaixaria ao grau da violência inócua.
Neste caminho encontramos muitas contradições que se É nesse sentido que a luta pelo poder deve se tornar parte da
apresentam como forças repressivas ou revisionistas, no sentido ·ultura popular, em que a classe é a referência principal para a
da negação de aspectos essenciais das lutas e da organização das definição dos aliados e dos inimigos da transformação. É a práxis
classes. r volucionária que institui o poder revolucionário e o desenvolve
O revisionismo contrarrevolucionário é perverso porque cum- · mo revolução. É desse modo que a entendemos. Ela não é um
pre um papel complementar nas trincheiras da contrarrevolução. momento, mas um movimento que, apesar dos possíveis recuos,
Imaginando ser apenas um elemento da crítica, é um forte aliado l nde a seguir para frente. Uma força que não pode estagnar. Se
das forças do capital, pois confunde o pensamento das gerações parar deixa de ser revolução.
mais jovens que perdem as referências anteriores e tornam-se segui- As tarefas a serem realizadas surgem no decorrer do próprio
doras de insinuações teóricas, formuladas por caprichosos agentes movimento para frente. Revolução derrotada é aquela que retira
do abstrato. O marxismo não é um dogma com todas as verdades
definidas que nada mais se possa criar, mas também não é o seu 11
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo cientifico, p. 72.
contrário, em que tudo é renegado, o seu oposto é o idealismo que ii ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p 21.
24 IDE NTIDAD E E LUTA DE CLASS ES
A DEMA R B oGo 25

das massas o direito de pensar e de fazer. O estalinismo procurou ip ·nas sobre os fundamentos das forças produtivas e do controle
impor às gerações que viveram o período do socialismo de Estado do l•stad~. _Ele será mais amplo e atingirá as consciências, tornará
a ideia de que "tudo deve ser decidido pelos quadros" e que, "o 1 11l111 ra a ettca e a moral revolucionárias; fortalecerá as identidades
partido sempre tem razão". Não é verdade, a história é uma cons- , 11 I<rá para não exaurir a natureza e tampouco inventará projeto;
trução coletiva. Há circunstâncias formadas pela história e história ,I'' . oloque~ em risco a vida do planeta. Prezará pela igualdade,
feita pelas circunstâncias criadas pela intervenção das forças sociais ll~!i a_e afetividade, e tudo aquilo que os seres sociais deste tempo
organizadas. Há no seu oposto quem diga que, "é preferível errar 11 11v . tlverem con~içõe~ objetivas e subjetivas para aperfeiçoarem
com o povo do que errar sozinho"; melhor é não errar, ou cuidar 1 < tedade que aJudarao a construir.

para que os erros não comprometam a marcha. Para tanto, é ne- , P~ecis~os f~er uma sociedade que nos faça ser melhores; que
cessário que a organização mantenha-se atenta à experiência feita t11,.~ d~ funçao social e política; que nos permita amar intensamente
e aberta aos sussurros dos novos tempos. i 1'11 lt1var a dignidade como parte da cultura e da nova identidade.

Paras~ re~izar~a utopia, se impõe a necessidade de novas prá-


A NECESSIDADE DO ROMPIMENTO COM A EXPLORAÇÃO 1 < is que s1gmficarao um novo existir. A opressão tem seus limites

O século 21 pode ser encarado como uma fabulosa promessa. , 111 rop~ça nos seus próprios passos e chegará o momento em qu~
11 1 ornp1mento será inevitável. •
Embora o capital e seus admiradores cultuem o lucro a qualquer
preço, a duração da sua energia é menor do que o alcance de . e utopia é a abertura para o futuro que se torna possível 15 neste
seu desejo. Nem o planeta, nem a humanidade aceitarão os seus • tm mhar ~ara frente, temos a necessidade de pensar quem são e
caprichos. 1 omo precisam ser os homens e as mulheres militantes deste século

A utopia socialista que aqui recolocamos, não é metafísica e 111 contraposição ao ser social consumidor. É a identidade desse;
sem fundamentos, ou mesmo de desprezo pelos conhecimentos novos seres sociais e políticos naquilo qu , . .
. . , , , e e pecu11ar ao proJeto
científicos. Marx e Engels combateram o socialismo utópico justa- o t~1sta, que tornara poss1vel a aproximação entre o imaginado
mente porque ele apresentava limitações e ilusões idealistas e, por 111 pico e o acontecer concreto.

isso, se tornava uma mera fantasia. A utopia socialista deste século A necessidade de uma sociedade justa sem exploradores nem
é a cobrança política que se faz às ciências para que elas revelem i·x plorados conjugar-se-á com as inúmeras utopias particulares, de
e atualizem as contradições e conduzam para a ruptura que dará 1,11 modo que, a atuação político-organizativa não será apenas um
início à construção da nova ordem. Se à utopia cabem as perguntas, d ·ver, mas um prazer. A mística alimentará as consciências com
às ciências cabem as respostas, para que não haja estagnação do tod~s_as esperanças e a convivência política será fraterna, pois a
projeto socialista, que não terá um ponto de conclusão, mas será .t t1v1dade aproximará e manterá a unidade entre os militantes e
um constante movimento para frente, tendo a continuidade da its f~r~as re~olucionárias, embora continue existindo novas con-
luta dos contrários em outras dimensões. 1l'adiçoes cnadas na própria convivência social.
O socialismo que queremos, será científico no que diz respei-
to ii.s leis do desenvolvimento da sociedade, mas não se firmará 11 MENEGAT, M . O olho da barbárie, p. 3 16.
26 IDENTIDADE E LUT A DE CLASS ES

A formação política e a organização de todas as pessoas se A IDENTIDADE PARA ALÉM DA CULTURA


tornarão prioridade. O fazer político será acompanhado do pen-
samento crítico para que o rumo do destino da humanidade não
seJ· a teleguiado apenas por algumas cabeças. "Fé na vida, fé no
,f ·1 '" 16 ,
homem, fé no que virá( ... ) vamos la azer aqm o que sera e o
belo e atualizado convite que nos faz o tempo presente.

IDENTIDADE PARA ALÉM DA CULTURA centra-se no ser das coi-


1 e nas perspectivas que apontam as mudanças para frente. As

t oisas são o que são mais aquilo que virão a ser, delineado pelo

lll vimento de suas contradições internas, pois ao se fazerem ,


,111tecipam em si as características daquilo que serão. É a ação
1 onsciente do ser humano através do trabalho ou de outra ati-

vidade cultural, como a arte, a educação e a pesquisa, que nos


p rmite passar de seres biológicos para seres sociais. Negamos o
t·scado de natureza pura para nos tornarmos humanos, por meio
do trabalho como base da formação da cultura sem deixarmos
de ser totalmente natureza.
A questão da identidade está primeiramente ligada à categoria
1ialética "unidade e luta dos contrários". Uma coisa não pode
1·xistir sem que haja o seu oposto, e somente pode se chegar à
v ' rdade, quando se conseguir encontrar o seu contrário assim
mo vida e morte, senhor e escravo, burguesia e proletariado etc.
1,: tas são contradições que se enfrentam, por isso, uma, mesmo
•ndo oposta à outra, depende dela para existir com suas próprias
aracterísticas, num intenso processo de superação, quando as
ontradições adquirem outras características, novos contrários
,,parecem interligados. Vejamos como nos explica este processo
Mao Tse-tung.
(...) em determinadas condições, por um lado, eles se opõem um ao outro,
por outro lado, estão ligados mutuamente, impregnam-se reciprocamente,
16 GONZAGUINHA. Sementes do amanhã.
28 IDE NTIDADE E LUTA DE CLAS SES A DEMAR B oGo 29

interpenetram-se e dependem um do outro; é a esse caráter que se chama por consequência, igualmente diferentes os respectivos métodos de
identidade (.. .) 17 resolução. 18
É verdade que a identidade no seu específico sempre se contra- O proletariado, ao se organizar se constitui enquanto classe,
põe a outra identidade que é o seu oposto, porém com contradições onfronta-se com a classe dominante para derrotá-la e tornar-se
antagônicas e não antagônicas. Quando são antagônicas, temos 1:imbém classe dominante. Neste sentido nega-se na condição de
a contradição principal no processo, uma parte quer eliminar a 11ft proprietário dos meios de produção, pois passará a possuí-los.
outra para se afirmar como força dominante. O proletariado é a A diferença, e, portanto a qualidade da negação, é que não será
força antagônica à burguesia, precisa derrotá-la para ocupar o seu 11m proprietário individual; o proletário deixa de existir enquanto
lugar na propriedade dos meios de produção. Porém ocupará o V ·ndedor de força de trabalho. A propriedade dos meios de pro-
seu lugar com outra qualidade, superará a qualidade individualista dução não é mais privada, mas coletiva, assim como o resultado
anterior com a cooperada e solidária. Quando são contradições d:t produção. Por sua vez não desaparecem as contradições entre
não antagônicas, como é o caso de camponeses pobres e proletá- o proletariado e camponeses ou mesmo com a pequena burguesia
rios, elas se dão em outra dimensão, relacionadas também com a m geral.
propriedade individual da terra, em oposição à coletivização, mas N esse sentido é que aparece a outra lei da dialética para dar
estas serão superadas não pelo enfrentamento das classes, mas pelo 1un damento a este processo de negação que é a quantidade e a
desenvolvimento das forças produtivas. Compreende-se então qualidade. As mudanças ocorridas representam quantidade, pois
que as contradições são qualitativamente distintas e necessitam ' avolumaram no desenrolar das negações, mas ganham também
também de métodos distintos e momentos distintos, para que qualidade pois o proletário agora é proprietário, mas não do mesmo
sejam resolvidas. 1 ito que eram os seus opositores. Ocupou o seu lugar, mas age
Em segundo lugar, a identidade se relaciona com o movimento d outra forma; produz, mas não se apropria individualmente, -
das negações constantes seja na sua contradição principal seja nas •liminou a contradição principal da exploração do homem pelo
demais contradições. Na sua constituição interna cada realidade h mem. Mas significa que se extinguiram as contradições? Não.
específica está em intensa negação em vista da superação do que Agora elas ganham novas características e os seres sociais fazem
é. O adolescente é a negação da criança, o jovem a negação do surgir uma nova cultura com qualidades também diferentes, seja
adolescente e o adulto a superação de todas as fases anteriores sem, ·ncre o próprio proletariado, seja na sociedade em geral.
contudo, deixar de carregar em si e no geral, novas contradições. É na realidade presente que se abre a possibilidade das nega-
Negar não significa eliminar os aspectos no seu todo, mas imprimir \' es presentes. Se observarmos mais atentamente, veremos que o
novas características em contraposição às anteriores. tvanço do capitalismo globalizado desde sua origem transformou
Os processos mudam, os antigos processos e as antigas contradições > mundo segundo os padrões do mercado numa grande indústria
desaparecem , surgem novos processos e novas contradições, sendo, <lc produção, circulação e consumo de mercadorias. Esta indústria,

11
17 TSE-TUNG , M. Sobre a prática e sobre a contradição, p. 82. Idem, pp. 55 e 56.
30 IDENTI DADE E LU TA DE CLASS ES
A DEMAR B oGo 31

além de tudo, produz uma cultura predatória da vida material e l111111ano, não pode nos colocar como seres antagônicos às demais
humana, que nos torna 1 p ies, apesar de continuarmos evoluindo. Se acrescentamos à
reféns de um tipo de crescimento material que atende às necessidades apenas 11.1 1 ireza primitiva, a cultura, sabemos que sem a natureza pura
de uma parte da humanidade - os países industrializados - deixando os 1110 há cultura. Em suma, podemos dizer que, numa sociedade
demais na carência, quando não, diretamente na fome e na miséria. 19 1li • obrevive da natureza e ao mesmo tempo é subdividida em
É uma cultura que ameaça levar ao extermínio da humanidade 1 l,1sses, a identidade é biológica, histórica, cultural e, quando as
e da biosfera, o que torna ainda mais urgente nossa responsabilida- 1wrspectivas apontam na direção das mudanças estratégicas, é tam-
de frente à necessidade de defender e iniciar a construção de uma lI tn política, articulada em torno de um projeto de poder, em que
nova ordem, a partir da velha, com uma nova perspectiva, capaz 1 I, sse proletária, organizada nas suas diversas forças , opondo-se
de "cuidar da vida e da casa comum, a terra." 20 ·lasse burguesa, torna-se o sujeito histórico das transformações,
O universo, a Terra e os ecossistemas não precisaram do ser humano para 11hjetivando ocupar, com uma nova ordem, o lugar da velha,
se organizarem e elaborarem sua majestática beleza. Se nós entramos na 1 oi cando-a em um novo patamar de negações.
evolução, foi para sermos um elo a mais na cadeia da vida, um elo singular,
pois temos uma missão específica: cuidar de todas as coisas, ser guardiões , MO SE DESENVOLVE O CONCEITO DE IDENTIDADE
delas e ajudar para que continuem a existir e a evoluir como já estão evo- Na cultura ocidental, o primeiro a abordar o tema da identidade
luindo há milhões de anos. 2 1 foi Parmênides, na metade do século 5 a.C. , segundo o qual "tudo
E não para destruí-las, como tem sido o desígnio da cultura 22
o q ue é, é". Para este filósofo, o ser, como identidade e funda-
capitalista dominante. Este "elo a mais" é formado pela identidade ,n nto, é quem dá origem a cada ente, diferentes uns dos outros.
de gênero que nos caracteriza como seres capazes de transformar m não é o outro, mas, precisamente, só o ser é, ou, se quisermos
a natureza em objetos previamente imaginados, sem exauri-la implificar, só o ser é; o não ser não é. Como para Parmênides,
totalmente. ,1 única realidade era o ser, imutável, infinito e imóvel, definiu a
Cuidar da vida aquém ou para além da identidade exige reco- <lentidade como algo presente e estático. Era ·o início da reflexão
nhecer e adquirir a consciência do pertencimento ao sistema como • dos preparativos para tudo o que ainda viria a ser.
gênero e sistema, ou como identidade biológica. Reconhecer é Aristóteles, que viveu mais de um século depois, para desen-
saber que há semelhanças e diferenças na composição das célulâs v lver a sua lógica partiu do conceito de identidade de Parmênides
da maioria dos seres vivos, que, ao longo do tempo, sofreram · sem superar sua visão metafísica, incluiu mais dois princípios
profundas modificações, não só na aparência, mas também em ttue se complementaram: o da "contradição", segundo o qual uma
sua composição. Sair do estado de natureza para tornar-nos gênero oisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo, pois, se dissermos
que um objeto é e, ao mesmo tempo, que não é, uma das duas
19
BOFF, L. A força da ternura, p ensam entos p ara um mundo igualitário, solidário, pleno e afirmações está errada; e o princípio do "terceiro excluído", sig-
amoroso, p. 15.
20
Idem, p. 16.
21 2
Idem, p. 13. i NERIC I, G . 1. Introdução à lógi-ca.
32 I DENTID ADE E LU TA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 33

·nificando que toda coisa deve ser ou não ser, pois não existe uma 1,: p cialmente a partir do século 16, o princípio de identidade
terceira possibilidade. 1l1 ristóteles serviu à Igreja católica e ao colonialismo europeu para
Posteriormente, o conhecimento avançou com a constatação li I t ri ar a conquista dos novos continentes. Tomaram o princípio
de que a afirmação aristotélica sobre o ser (o que é, é) não era es- 111 1) • da lerra: "so' o ser e,,, - no caso, o europeu - e, "o não ser,

tática, nem imutável, como ele pensava. Tudo o que existe tende li h, ~• - no caso, o indígena latino-americano, desconhecido na

para um vir a ser, mesmo que não saibamos o que será. Do mesmo l t11(>pa e incivilizado para os invasores.
modo como muitas coisas que agora são, não dependem do nosso A partir dessa posição de superioridade da etnia do centro
conhecimento para existirem - como já havia dito Demócrito de (1 1110 entrismo) , o colonialismo europeu justificou a destruição

Abdera, nascido em 460 a.C., quando descobriu o átomo como 1 111. • . mpl:cência dos seres nativos aqui encontrados, por julgá-los

a menor parte da matéria -, a causa do vir a ser é o movimento 11( ·nores . Na verdade, para explorar a terra, fizeram o mesmo
dos átomos que os recoloca de outra maneira e, por isso, o "ser" 1
11 111 todas as espécies nativas, a justificativa foi sempre a mesma:
ganha outra forma cada vez que os átomos se movem. Para ele, a 11 nutro "inferior", "não era humano", e o seu destino estava nas

terra, a alma e, até mesmo, os deuses constituíam-se de átomos; e 111 10s dos humanos "superiores".

não eram imortais, justamente porque estavam "sob a fatalidade Mais tarde, Hegel (1770-1831), retomou a questão, afirmando
. d. . ,
do movimento, que associa e 1ssoc1a os atomos .
" 23
11·xi tência de duas naturezas, pois entedia que a natureza tinha
O que seria essa recolocação dos átomos? Imaginemos que o 11111a história e o homem outra, mas sem se diferenciar em classes
átomo seja um grão de feijão. Se colocarmos vários grãos juntos, 1111agônicas: a primeira, originada pela própria criação espontânea
eles formam uma figura física, mas toda vez que movimentarmos , 1111 natureza e a segunda, criada pela intervenção humana, a cultura.
1
os grãos, a figura que eles formam se modifica. Demócrito imagi- 1,1 1·:i. ele, a descoberta de Parmênides, "o que é, é", dizia respeito à
nou que todos os seres tinham os mesmos átomos, mas estavam 111 1meira natureza, mas havia, ainda, uma segunda, um elemento

colocados em ordem diferente, por isso os seres tinham formatos 1I lt'l"enciador, que era a própria consciência humana.

diferentes. Em bora conseguindo ir além da lógica aristotélica, trazendo


O que diriam nossos antigos filósofos se soubessem que, num 1 li ção de consciência humana para o centro da filosofia, Hegel

futuro distante, tudo aquilo "que é, é", mas não mais por conta pró- lll'rmaneceu preso à ideia de uma separação entre o mundo material
pria e sim por força da manipulação tecnológica, em que podemos 1 o da consciência sem perceber as contradições nas relações sociais.

recombinar os átomos e os genes dentro das células, artificialmente? l 1.i ra ele, a segunda natureza se desenvolveu graças à capacidade de
Eis que, agora, o vir a ser do ser, já pode ser determinado dentro nrervenção humana sobre a primeira, Hegel, porém, não conse-
das células, segundo a vontade humana nos grandes plantios de 11uiu perceber a amplitude e a complexidade das contradições pois
monocultivos, nos quais as plantas se desenvolvem com as mesmas ,irhava que o capitalismo era a sociedade ideal.
características físicas. Para Marx, as ideias de Hegel, ao se confundir com concepções
·spirituais, colocavam a fantasia no lugar da produção real dos
23 MONDIN, B. Curso de filosofia, p. 35. meios de vida e da própria vida. Refletia a posição nacional dos
IDE NT IDADE E LUTA DE CLASS ES
A DEMAR BO GO 35
34

alemães que viam as coisas como passagem direta"( ... ) do reino 1d ficam que o homem faz parte da natureza com suas particulari-
. do hornem"24
de Deus para o remo . il11d • de gênero e, ao mesmo tempo, por ter necessidades humanas
Coisa semelhante ocorria com Feuerbach, também filósofo 1 o ·iais, transformam-na, transformando-se a si próprios.

alemão, contemporâneo de Marx, que via o mundo sensível e não uando um marceneiro toma um pedaço de madeira para fazer
o mundo real. 11111 l mesa, transforma não só a madeira em mesa, mas uma ideia
Ele não percebe que o mundo sensível que o envolve não é algo dado 11111 sa; e transforma-se asi próprio porque aprende. Tanto assim
imediatamente por toda a eternidade, uma coisa sempre igual a si mesma, •111 •, ao terminar a mesa, nem a madeira, nem a sua ideia e nem
mas sim O produto da indústria e do estado da sociedade; isto, na verdade, 11 11róprio marceneiro são a mesma coisa - o marceneiro elevou as

no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda 11,1~ habilidades, num processo de intensas negações.
uma série de gerações (... )25 1 ·la dialética materialista, empregando categorias que facilitam
Se, por um lado, a visão ampla da filosofia abria caminhos t q r ensão da realidade, combinando categorias opostas - sen-

para a compreensão do desenvolvimento da vida, por .º~tro la~~, 111 ,d e racional, abstrato e concreto, lógico e histórico, absoluto
deixava escapar os detalhes do movimento das contrad1çoes sociais 1 •lativo, provável- e autêntico, profundo e superficial, objetivo e
que somente as ciências e um esforço diferenciado da filosofia 1d j ·civo, conteúdo e forma, essência e aparência, geral e particu-
poderiam captar. . r
l 11 , ·ausa e efeito etc. -, Marx e Engels chegaram à compreensão
A partir dos conhecimentos científicos e com a reorgamzaçao 1l 1 1·is de funcionamento de cada sistema e também das leis de

da dialética como fundamento teórico para entender o movimento li 111.~ i ão de um sistema para o outro.
das contradições foi que Karl Marx (1818-1883) e Friedrich En- ~ pelo movimento dialético que o homem para satisfazer as
gels (1820-1895) avançaram na elaboração, compreendendo que 111 ~ necessidades, empenha a força física vinda de sua própria
as coisas estão em constante transformação pelo movimento das 11 1111reza animal, na realização de uma ideia, de origem social,

contradições existentes na matéria e na história da sociedade, onde • 11 ,l terizando assim uma só natureza e não duas como afirmava
ocorrem os conflitos entre as classes sociais. Ultrapassaram o princí- 111 (\ 1. O elemento diferenciador entre um e outro é a consciência,
pio de identidade - "o que é, é", puramente isolado e estático - pelo 111 ,~ ·sca não se forma por acaso e, sim, por meio do trabalho (da
aprofundamento das categorias de totalidade e de relação recíproca, 111 ,10), que leva à produção dos meios de existência:

ou seja, as coisas são e, ao mesmo tempo, não são mais puramente, A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência
pois decorrem de processos anteriores. A dialética através do movi- d indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, portanto, a
mento dos contrários relaciona nesse processo a particularidade e a organização física desses indivíduos e a relação que por isso existe com o
universalidade da contradição. Elas evoluem por meio de constantes 1"Sto da natureza (... ) 26
modificações; mantêm características e apresentam outras novas. ponto de partida da história humana é a existência de seres
l111111anos que, produzindo seus meios de vida, produzem não

24 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 59.


ldrm, pp. 14-15.
25 Idem, p. 67.
A DEMAA B OGO 37
36 I DEN TIDA DE E LUTA DE CLASSES

só os instrumentos de trabalho, mas também sua capacidade de q1n111 idade e qualidade nas características estruturais do modo
produtores como e enquanto seres sociais; ou seja, criam a própria il, produção, fazendo com que, da unidade e luta dos contrários
identidade, por meio dos objetos que produziram e se diferencia- 111) 1m novas identidades com capacidade de compreenderem e
ram dos demais seres pela capacidade criativa tanto em quantidade 111 1 •rv i.rem conscientemente e com responsabilidade nos processos
quanto em qualidade. De uma forma ou de outra, obrigatoriamen- 1l I n gações futuras.

te, continuamos ligados ao restante da natureza, pois sem ela não


há como suprir as necessidades físicas da humanidade. li H•:NTIDADE BIOLÓGICA
A identidade, por sua vez, manifesta-se pela unicidade entre 1, ·onardo Boff nos diz que, além das várias lógicas, inclusive
natureza e cultura em oposição à outra identidade. A existência 1 d I identidade, há a da complementariedade/reciprocidade, que

física é reconhecida por certas características próprias de cada ser, 111111 >nga a dialética. Ela é encontrada nos físicos quânticos da
forjadas pelo movimento da matéria e, no caso dos seres humanos, 1 1 ola de Copenhague (Bohr, Heisenberg), que analisaram a com-

pela capacidade de ação e imaginação. plt• Idade do mundo subatômico, no qual encontramos matérias e
Essas manifestações de características em movimento permanente I' 111 ( ulas, energia positiva e negativa, numa intensa relação entre
podem ser estendidas às pessoas e suas etnias, mas, também, às demais 1111 1. de e luta dos contrários:

espécies e, essencialmente, à terra e à água quando a estas é acrescido, pela lógica da complementariedade/reciprocidade que se estabelecem
pela intervenção humana, um atributo qualquer que influi no mo- rdações criativas entre os sexos, as raças, as ideologias, as religiões e se
vimento das contradições internas. Dizer que "terra é terrà' não tem Vttlorizam os diferentes ecossistemas num mesmo nicho ecológico. 27
significado algum, mas dizer que a "terra está fracà' ou que a "água A vida humana e a social fazem parte e se relacionam com a
está sujà', são detalhes que despertam reações, devido aos elementos 1111,didade da existência do planeta e para além dele. Os astros em
que lhe foram acrescentados pelos desequilibrios da cultura social. 111ovimento, assim como as ações humanas, têm muita-influência
Cada vez mais as mudanças no mundo das espécies são ace- 11hr • a terra. Os problemas e as soluções cada vez mais se interli-

leradas de alguma forma pela ação humana e é, por isso, que as ' 11n. Como nos diz Lessa:

coisas adquirem novas características que mudam suas composições S mos, hoje, para além de um gênero biológico, um gênero socialmente
biológicas. As identidades estarão presentes, neste século, nas lutas ·onstruído: a história de cada indivíduo, de cada nacionalidade, de cada
sociais, nas lutas de classes, nas lutas entre "os povos" e na formu- ·ontinente é cotidianamente partícipe da história universal do gênero
lação do projeto para a superação do capitalismo. Eliminando a humano. 28
exploração do homem pelo homem, as diferenças serão reafirmadas que não podemos negar é que, mesmo nos elevando como
com o propósito de serem ultrapassadas. 11 ro humano, não perdemos as proximidades biológicas com

O socialismo, como modo de superação do capitalismo, não 11111 r s seres vivos.


será nem ecológico, nem humanista, mas simplesmente socialismo,
que, para chegar a sê-lo, terá de combinar mudanças, nos aspec- li FF, L. Ecologia: grito da terra grito dos pobres, p. 44.
tos principais das contradições (através da luta de classes), com !,ESSA, S. "Identidade e individuação", p 3.
38 IDENTID ADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B OGO 39

Os avanços no estudo da biologia tornam cada vez mais entre os diversos órgãos do corpo chama-se sistema, como o que
transparentes as relações de interdependência entre as espécies temos para a digestão (formado pela boca, esôfago, estômago,
distribuídas nos cinco reinos existentes: monera, protista, fungi, intestino etc.). O conjunto dos sistemas dos órgãos constitui um
vegetal e animal. A matéria química que forma as células é cons- organismo; poderíamos dizer, de outro modo, que formam uma
tituída por átomos formados pelos mesmos elementos: carbono, pessoa.
hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e, em menor quantidade, fósforo Uma péssoa não pode viver isolada; obrigatoriamente, em
e enxofre. algum nível, ela precisa das outras pessoas para sobreviver. Essa
Dentro das células dos seres vivos - com exceção dos vírus, reunião passa a se chamar população, que nada mais é do que uma
agentes patogênicos, que são os únicos que não possuem célu- espécie reunida; mas, uma espécie não vive isolada da outra, elas
las -, os átomos ligam-se por substâncias químicas conhecidas precisam se reunir no mesmo ambiente e, portanto, constituem
como proteínas, glicídios, lipídios e os ácidos nucléicos. Essas uma comunidade biológica (ou biocenose), que não é formada
substâncias, de características gelatinosas, reúnem os átomos para somente por pessoas, mas ·por todo o ambiente do qual fazem
formar as moléculas. Esses mesmos elementos encontrados nas parte os animais, as plantas, as bactérias e os vírus, ou seja, os cinco
células de uma pessoa também serão encontrados numa árvore reinos, convivem e colaboram uns com os outros.
ou num grão de. feijão. A interação das diversas espécies no mesmo ambiente (biótopo)
A formação de um ser vivo passa por uma sequência de níveis é influenciada por fatores comuns, como temperatura, umidade,
de articulação, formam-se os átomos, que se agrupam para formar luminosidade etc. Portanto, se, por exemplo, ocorrer a elevação
as moléculas. A quantidade de átomos necessária para formar uma da temperatura, todos os seres vivos sofrem: plantas, animais e
molécula pode chegar a milhões. As diversas moléculas se reúnem seres humanos.
para formar organelas, que possuem diversas funções dentro das O conjunto das comunidades com a diversidade de espécies
células; várias organelas formam a célula. forma o ecossistema; e os diversos ecossistemas espalhados pelo
Esta é assim chamada desde que, em 1663, Robert Hooke, mundo: a biosfera.
cientista inglês, apresentou o microscópio capaz de aumentar em Eis porque podemos entender a identidade como a presença
milhares de vezes uma molécula. Ao examinar um pedaço de corti- dialética da unidade e da luta dos contrários. Ao mesmo tempo em
ça, descobriu pequenos compartimentos semelhantes à construção que as coisas são, elas admitem a alteridade e, por isso, encadeiam
dos conventos, divididos em inúmeras pequenas celas, cada qual a complementariedade entre si. Umas dependem das outras seja
habitada por um monge. Hooke batizou aqueles compartimentos para se alimentar ou para se proteger.
da cortiça de células. A questão da luta dos contrários deve ser aqui entendida na
Nos animais e nas plantas, as células reunidas formam tecidos, relação do homem com a natureza no sentido de extrair dela
como os que encontramos em nossos músculos; os diversos tecidos soluções para as suas necessidades, ao mesmo tempo em que
reunidos originam um órgão, como o coração. Mas os órgãos nada deve desenvolver a consciência de sua exploração precisa prever
seriam se não funcionassem interligados. Essa relação existente a preservação. Por outro lado, no sentido da luta de classes, na
40 IDE NTIDADE E LU TA DE CLASSES
ADEMAR B oGo 41

medida em que o capital avança descontroladamente sobre a na- Para chegar ao que somos hoje, o desenvolvimento da humani-
tureza, devastando-a, modificando a sua composição genética ou dade se deu por meio da síntese de subsistemas: mecânico, físico,
transformando-a em mercadorias conflitando as identidades, cabe químico, biológico e psicossocial. Como diz Dieterich:
à classe explorada o dever de insurgir-se em defesa da natureza que as bases bioquímicas e elétricas da identidade são comuns a todos os sistemas
está sendo exterminada. biológicos; porém, o que diferencia a identidade humana das demais é que
É em relação ao conjunto das comunidades que a identidade seu componente cultural é incomparavelmente maior do que o dos mamí-
humana não pode desconsiderar a identidade das coisas; ao con- feros mais avançados, o que lhe dá maior grau de liberdade de atuação. 29
trário, é em relação a esse conjunto que nos elevamos além do que Mas, a cultura humana não se desenvolve e não se sustenta sem
é particular, para chegarmos àquilo que "somos" coletivamente, a participação de todos os subsistemas. Como isso se dá, depende
numa combinação articulada entre o particular e o universal. de cada época. O que distingue as diferentes épocas, levando-se
Quando dizemos "esta terra é boà', ou "esta terra é fracà', es- em consideração os aspectos da produção econômica,"( ... ) não é
tamos identificando que tipo de terra temos em nossa frente, por o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz" 30 Este é
comparação com a terra que conhecemos de outro lugar, ou de o grande dilema que produz os avanços tecnológicos.
como gostaríamos que ela fosse. Nada teria de interessante nisso É a relação entre semelhança e diferença que forma o equilíbrio
se as características atribuídas não fossem humanas. É o poder de na natureza. Nesse caso, embora as contradições estejam presentes,
nomear e classificar as coisas que nos possibilita também desenvol- as relações não se fundamentam nem na força, nem na ideologia,
ver a capacidade de explicá-las e melhorá-las. O mesmo acontece mas na dependência e na cooperação.
em relação à água, ela pode estar limpa ou contaminada por de-
tritos e venenos; da mesma forma o ar. Isso significa que todas as IDENTIDADE HISTÓRICA
coisas possuem características e identificações interligadas e que, A principal referência que forjou a identidade do gênero
no passado, tiveram outra qualidade, mas foram modificadas pela humano está no trabalho, ou, se preferirmos, na atividade social
intervenção humana, através de instrumentos e práticas abusivas. em que as pessoas desempenharam e desempenham suas funções
Continuarão a se modificar de todas as formas e em todas ases- sociais para produzirem seus meios de vida. Como disse Marx:
pécies de vida. Por isso, o que "é" continua end " que é", mas Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião
não só, porque "o que é", por estar mistu rad • demais seres, ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos
está cada vez mais se tornando parte daqui! qu s rá. Mas o que animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo esse que
será daquilo que hoje é? é condicionado por sua organização corporal. Produzindo seus meios de
O mesmo humano que destrói pod pr · •rvar u inventar vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material - para
uma substituição. Os diferentes pod m onviv ·r I a ificamente, ele, o que os homens são - coincide com sua produção, tanto com o que
isto ocorre quando nos falta a consciên i <la 11lradi çáo. A indi-
vidualização das soluções é também a d ·s ara t ·riza ã do dever 29
STEFFAN, H . D. Fim du capitalismo global, p. 145.
coletivo da intervenção. 30
MARX, K. O capital. Vai 1, p. 204.
!1111111111,111 1 11111, Ili CIA L A DEMA R B OGO 43

produzem , quanto com o modo como produzem. O que os indivíduos são, árdua, repulsiva e desumanizadora, uma atividade que se faz por
portanto, depende das condições materiais de sua produção. 3 1 obrigação, pela mera necessidade de sobreviver. Dessa forma, está
Desde o surgimento da divisão social do trabalho, especial- mo ntado e deriva daí o tripé das "perversidades do capital": a
mente aquela entre trabalho material, de um lado, e espiritual, do exploração, a dominação e a alienação.
outro, o trabalho passou a ser distribuído e "cada um dispõe de Sob o comando do capital, o trabalhador e a trabalhadora,
uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta despojados de todos os meios de subsistência, estão obrigados a
e da qual não pode sair; o homem é caçador, pescador, pastor ou vender a única mercadoria que possuem, sua força de trabalho. 35
crítico crítico". 32 Divisão do trabalho e propriedade privada são Estão submetidos ao capital que lhes impõe características na iden-
duas faces da mesma moeda, determinam a divisão da sociedade tidade de subordinação e de alienação. Como afirmou Marx:
em classes sociais distintas cujos interesses são contrários e anta- Quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem de consumir; quan-
gônicos. Divisão do trabalho e propriedade privada determinam to mais-valor cria, tanto mais sem valor e mais indigno se torna; quanto
porque "a história de todas as sociedades que existiram até nossos mais refinado o produto, tanto mais deformado o trabalhador; quanto
dias tem sido a história das lutas de classes". 33 Deve-se a que um mais civilizado o produto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais
grupo minoritário se apossa do trabalho alheio e de seu resultado na poderoso o trabalho, tanto mais impotente se torna o trabalhador; quanto
forma de mais-valia para investi-la na melhora das forças produtivas mais brilhante e pleno de inteligência o trabalho, tanto mais o trabalhador
e para garantir sua existência enquanto classe dominante. diminui em inteligência e se torna servo da natureza. 36
Na sociedade burguesa moderna, dividida em duas grandes
classes opostas, a burguesia e o proletariado, as relações de produ- A rejeição e a especialização da força de trabalho
ção, ao mesmo tempo que se modificam, aumentam ainda mais a Há, sem dúvida, na atualidade, uma parcela significativa de
extração da mais-valia da força de trabalho. trabalhadores cuja força de trabalho o capital não tem mais interesse
Com a expansão da maquinaria e da divisão do trabalho, o trabalho dos em comprar, perdem assim a identidade com a organização da clas-
proletários perdeu toda a autonomia e deixou, assim, de interessar ao tra- se. As tecnologias precarizam cada vez mais o mundo do trabalho,
balhador. Ele se torna um apêndice da máquina, dele se exige o trabalho ampliando não mais o "exército de reservà', mas o "exército" de
manual mais simples, monótono e fácil de aprender. 34 excedentes que não terão lugar onde possam oferecer sua força de
Deixou de ser um prazer produzir os próprios meios de vida. trabalho para a venda. Mas, isso não significa o fim do trabalho.
Com o capitalismo, o trabalho - a atividade graças à qual O que move o ser humano e a sociedade são as necessidades
os homens passaram a produzir seus próprios meios de vida, concretas que dependem do processo de objetivação para serem
distinguindo-se dos animais - transformou-se numa atividade atendidas, ou seja, a necessidade obriga o ser humano a imaginar
soluções concretas aos problemas colocados. Este exercício de
3
' MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, pp. 27-28.
32
Idem, p. 47.
33 35
MARX, K. e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunistà', p. 84. MARX, K. Manuscritos Econômicos e Filosóficos, p. 102.
34 36
Idem, p. 92. Idem, p. 161.
lllt N I lllAIII 1 1 UI A DO CLASS ES A o EMAR B oGo 45

ideação leva a escolha de uma alternativa que induz o ser humano valor de troca. Há, porém, a luta dos contrários que afirma a
a executar a ação de realização, chegando ao topo da objetivação Identidade do conflito entre as classes quando o proletariado ao
com a ideia transformada em objeto. Como a sociedade terá cada s insurgir, se afirma enquanto classe, para negar a si e, ao mesmo
vez mais necessidades, cada vez mais será necessário encontrar so- 1 ·mpo, o seu contrário.
luções através do trabalho. O que sofrerá mudanças serão os meios O s avanços tecnológicos também não levam ao fim do trabalho.
que exigirão menos esforço humano e a velocidade das respostas 'em ele, a exploração de um ser social sobre o outro não seria mais
dadas aos problemas. possível, as classes sociais e a propriedade privada dos meios de
Cada vez mais, a produção de bens de consumo sofrerá, por um produção perderiam o sentido. O Estado se tornaria inofensivo e
lado, a aceleração de sua produção pelas inovações tecnológicas em . revolução desnecessária.
grandes fábricas com poucas pessoas; e, por outro lado, o trabalho, Isso não significa, por um lado, que todos os seres sociais terão
sem deixar de gerar valor a mais, crescerá em forma de prestação função social ou serão contemplados com postos de trabalho no
de serviços, fora dos espaços regulados pelo emprego tradicional apitalismo. O capital ao aplicar as leis da acumulação, entra em
exercidos num mesmo lugar. rise como ocorreu, em 1870, quando houve uma superprodução
Logo, em vez de diminuir, o trabalho aumentará, pois a sua de mercadorias, ou em 1929, com a cri~e financeira e com a queda
natureza exploradora se alimenta do valor a mais que é produzi- brusca da Bolsa de valores de Nova York na qual muitos capitalistas
do pela força de trabalho, podendo ser tanto na transformação fo ram à falência. Ou ainda, a partir de 1970, quando houve a "crise
em mercadoria da matéria-prima vinda da natureza, quanto na do petróleo" e os preços das mercadorias subiram exageradamente.
prestação de serviço através do trabalho assalariado numa escola De outra forma, a tecnologia permite que uma certa quantia de
privada, por exemplo, em clubes e no comércio em geral. Sem o proletários consiga colocar no mercado todos os produtos necessários
professor, seja presencial ou à distância, não há aula; sem aula não para o consumo de toda a sociedade, levando, portanto, o capital a
há mensalidade paga pelos estudantes e sem mensalidades, não há considerar como inútil um grande contingente de pessoas que nada
mais-valia. possuem, a não ser a força de trabalho para vender.
Diferente dos modos de produção passados (...) a burguesia conseguiu, com Nesse sentido é que verificava Marx: para a Economia Políti-
o capitalismo, uma fonte de riqueza muito mais ampla e dinâmica, pois ca, o burlão, o ladrão, o pedinte, o desempregado, o faminto, o
agora consegue acumular capital não apenas do trabalho que transforma a miserável e o criminoso são figuras inexistentes. Só existem para
natureza, mas também de uma enorme gama de atividades. 37 outros olhos como os do médico, do juiz, do coveiro etc.
A unidade e luta dos contrários nos permite perceber que a A força do capital, que se nega a pensar no humano, produz a
identidade de um e de outro no caso das classes, burguesia e pro- identidade da alienação. Numa sociedade subordinada à lógica do
letariado, no capitalismo obriga a quem tem a força de trabalho, capital, produção e deformação são duas faces da mesma moeda.
apenas, vendê-la ao capital. Sem ele, a força de trabalho não tem Os seres excedentes para o capital são abandonados ou entregues ao
Estado, obrigando-o a criar mecanismos de assistência, vigilância
37
LESSA, S. Serviço social e trabalho: porque o serviço social não é trabalho, p. 71. e punição para evitar a perturbação da "ordem de direito".
46 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR 8 0GO 47

Organizado nas indústrias, no comércio e nos bancos, o capital da, as pessoas ficam insatisfeitas com seu tipo físico, com a forma
produz as diferentes identidades, seja a de produtores, seja a de lo seu rosto e com os sinais de envelhecimento - submetem-se
consumidores. Para ele, a massa excedente - desempregados, sub- a rigorosos regimes alimentares e a inúmeras cirurgias estéticas,
empregados, doentes, inválidos, idosos - não é vista senão como •wmentando a necessidade de nutricionistas e esteticistas.
ameaças, medida pelas reações e pelos gestos que desempenham. A mídia divulga um padrão de beleza humana, praticamente
Por estes últimos, deciframos o grau de valorização ou de de- Inexistente, produzido pela propaganda e que, portanto, precisa
cepção dos seres sociais. Na convivência social, o gesto de erguer ~ r fabricado. A indústria da estética corporal cria sua própria ética
o braço com o punho fechado, apenas com o polegar levantado, para forjar uma identidade física que só o dinheiro pode comprar.
significa dizer: "tudo bem?" Estendemos a mão para cumprimentar Alguns modelos de beleza são transformados em mito. O avanço
nossos semelhantes, oferecendo-a com confiança, mas há os que ·i ntífico e tecnológico é colocado a serviço desse verdadeiro
repetem o mesmo gesto para pedir esmola, estendendo-a como 1 scontrole social. Os filósofos já apontam a necessidade de uma
uma concha vazia, com o polegar deitado para o lado, indicando " tica do corpo" que se coloque questões novas sobre a imagem
que o destino deixou de ter um rumo. O capital faz o futuro es- · rporal como, por exemplo, se é correto que adolescentes, ainda
perar por seres derrotados, há portanto, identidades vitoriosas e e mo físico em formação, modifiquem cirurgicamente partes do
há identidades derrotadas. próprio corpo.
fu identidades dominantes são matrizes de preconceitos contra A sociedade socialista terá de pensar como ocupar e valorizar
os seus opostos: os dominados. Os proprietários são respeitados, ns pessoas, sendo que a maior parte dos bens de consumo serão
os que nada têm são rejeitados e lhes atribuem todo tipo de males: produzidos, diretamente, ocupando cada vez menos a força de
são os culpados pela violência urbana, pela existência das grades lrabalho humano. Ao contrário do que ocorre no capitalismo,
nas janelas, pela ampliação das empresas de vigilância e segurança, que desagrega a classe trabalhadora e a própria sociedade, o so-
pela blindagem dos carros, pelos celulares dos filhos cujos passos ·ialismo integrará e elevará o grau de interesse pela coletividade,
precisam ser monitorados etc. O preconceito opera uma verda- na qual cada indivíduo se ocupará de cumprir uma função social
deira inversão causal, graças ao qual a violência social produzida ooperativa.
pela enorme concentração da riqueza nas mãos de uma pequena
minoria, aparece como uma invenção dos pobres! Basta pensar A natureza atual do capitalismo
quantas profissões deixariam de existir se a riqueza fosse distribuí- O capitalismo é o regime econômico do mercado privado e
da igualitariamente. Na verdade, atualmente a divisão social do do lucro, apresenta-se como um enorme, crescente e infatigável
trabalho se multiplica mais para dar segurança ao capital, através mundo das mercadorias. O capital separa uma quantidade de pes-
da vigilância e da prestação de serviços do que propriamente no oas para cuidá-lo, ajudando-o a se reproduzir, e uma quantidade
empenho direto para produzi-lo. infinitamente maior, para alimentá-lo com sua força de trabalho.
Há, ainda, o preconceito que o ser sociª-1 desenvolve contra si Os encarregados de cuidar do capital pensam que o possuem,
mesmo. Cada vez mais e crescentemente, forçadas pela propagan- mas, na verdade, são possuídos e comandados por ele. Vivem
4 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES AD EMAR B oGo 49

a seu serviço. Os que o alimentam pensam que se beneficiam, À sombra dessa presença massiva e maciça do capital, como
quando apenas cumprem o papel de fortalecê-lo com sua força economias locais podem preservar suas identidades? Os países
de trabalho. dependentes têm sido crescentemente colocados a serviço das
Nesse sentido, o capital subordina todas as relações e funções mpresas transnacionais, tornando-se refém dos seus interesses,
sociais aos seus interesses de acumulação e reprodução, seja em onivente com as expropriações das riquezas naturais e com o
nível nacional ou internacional. Karl Marx já previa, em 1848: sacrifício das suas próprias populações.
As diferenças e contradições entre os povos desaparecem cada vez mais O imperialismo não tem pátria a defender, age de dentro para
com o desenvolvimento da burguesia, com a liberdade de comércio, com fora e de fora para dentro em qualquer nação. Usa como referência
o mercado mundial, com a uniformização da produção industrial e das a matriz instalada em algum ponto do globo, mas mesmo essa
condições de vida que lhe são correspondentes. 38 referência já é insignificante. "O sistema do capital é um modo
A expansão do mercado mundial exige a padronização das de controle sociometabólico incontrolavelmente voltado para a
mercadorias e, portanto, a das pessoas pelo consumo e pelo modo expansão". 40 Parece com esses seres vivos capazes de se regenerar,
de viver; ela também produz e reproduz a. uniformização de todas mesmo com algumas partes decepadas e, mais ainda, cujas partes
as relações sociais, do pensar, do falar e do sentir. decepadas são capazes de fazer surgir um novo corpo.
Embora seja de característica expansiva desde sua origem, a O capital apresenta-se como um agente inovador em busca
economia capitalista tornou-se de natureza global somente no final de novas possibilidades de penetração, seja por meio dos investi-
do século 20. Foi quando passou a estar presente em todo o planeta, mentos econômicos diretos ou mistos, seja por meio da ingerência
assumindo o controle de todos os seres em todas as horas, dia e tecnológica, dos acordos bilaterais de tratados de livre comércio,
noite, meses e anos. Hoje, as transações financeiras são fechadas ou, também, cada vez mais frequente, da guerra - essa epidemia
em segundos e podem colocar em risco o funcionamento do pró- contemporânea com a força de alastrar-se em poucos dias por um
prio sistema financeiro em seu conjunto, ou das economias locais. continente todo.
Graças ao elevado nível tecnológico alcançado pelas empresas, as A propriedade privada que teve origem na carência dos meios
transações tornam-se, de fato, globais. de sobrevivência tornou-se, ao longo da história, a razão de ser
É global porque as principais atividades produtivas, o consumo e a circulação, da sociedade. Ela, propriedade, se constitui na forma concreta,
assim como seus componentes (capital, trabalho, matéria-prima, administra- mediadora entre o trabalho e o capital.
ção, informação, tecnologia e mercados) estão organizados em escala global, Este último cada vez mais acelera a sua natureza destrutiva,
diretamente ou mediante rede de conexões entre agentes econômicos. 39 seja no sentido da superação e inovação constante das mercadorias,
É global na forma e imperialista no conteúdo; o espaço da terra seja na sua capacidade destrutiva por meio das guerras e conflitos
tornou-se o território de poucos donos. entre países, cujos interesses econômicos que são os das empresas
capitalistas, mobilizam grandes contingentes de forças humanas,
38 MARX, K e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunisrà', p. 106.
40
39
CASTELLS, M. A sociedade em redes. MÉSZAROS, I. Para além do capital, p. 131.
50 I DENTI DADE E LU TA DE CLASSES ADEM AR B oGO 51

tecnológicas e governamentais para arrasar e intervir sobre os ter- nidense para produzir na agricultura - ironicamente conhecida
ritórios que oferecem potenciais de acumulação. como a "revolução verde" - sem cuidado algum com a devastação
e destruição da vida.
Processos de dominação O terceiro período, conhecido como neoliberal ou de globali-
Nos seus cinco séculos de existência, o Brasil sempre foi dirigido zação da economia e do poder, embora tenha atingido nosso país
pelas elites de fora e de dentro do país; daí porque o avanço do nas últimas duas décadas do século 20, teve origem a partir da
imperialismo dessas últimas décadas não gerou tanta estranheza Segunda Guerra Mundial, quando os países ricos começaram adis-
aos cidadãos comuns: já éramos conhecedores do estado agravado cussão sobre o modelo de desenvolvimento que deveriam assumir
de dependência. para defender o capitalismo das crises futuras e para questionar o
Estudiosos dizem que, grosso modo, podemos considerar a chamado "intervencionismo estatal" dos países socialistas.
existência de três períodos complementares no projeto da classe A partir de 1970, com a crise do petróleo que afetou a econo-
dominante brasileira: o agroexportador, de 1500 a 1930; o da mia de todos os países, aprofundou-se a discussão, especialmente
substituição de importações pela via da industrialização interna, de na chamada escola de Chicago, da proposta de um novo modelo
1930 a 1980; e o período neoliberal, de 1980 em diante. Vivemos econômico. Logo em seguida, os países ricos reuniram-se em Wa-
agora a formação de um novo período que é a predominância do shington e formularam um programa que ficou conhecido como
capital financeiro, produtivo e especulativo. Consenso de Washington, no qual decidem enfrentar as crises
No primeiro, o modelo econômico colonial ou neocolonial este- econômicas por meio da desregulamentação da economia, da
ve voltado para as exportações de produtos primários. Por exemplo, abolição das barreiras para a entrada e saída de capitais, da aber-
dados mostram que, em 1907, o Brasil exportou 68% de tudo o que tura comercial, da valorização do câmbio, da elevação do poder
foi produzido, principalmente produtos agrícolas. Foi esse também competitivo pela livre concorrência, da completa privatização da
o período das derrubadas e das queimadas das florestas. economia, da reforma fiscal e equilíbrio das contas públicas.
O segundo período, o da industrialização, pode ser subdi- A apropriação do patrimônio público por grupos econômicos
vidido em três fases. Na primeira, começam a ser produzidos não é uma invenção recente. Afinal, para que serve o Estado senão
internamente bens de consumo não duráveis, que até então eram para beneficiar aqueles que o comandam? A divisão da sociedade
importados, como tecido, chapéu, corda, calçado etc. Na segunda, em classes permite que a atual burguesia se aproprie da organização
especialmente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial ( 1945), do Estado para dominar e explorar ainda mais os outros membros
começa a instalação da indústria de base (siderúrgicas, hidrelétricas, da sociedade capitalista. Isto se dá por meio das leis que levam à
extração de petróleo, construção de estradas etc.). Nesse período, submissão, mas principalmente pela cobrança de impostos, tributos
tem início a instalação de fábricas para produção de máquinas. e multas que favorecem e sustentam aqueles que também são os
Na terceira, ocorre a instalação da indústria de produção de bens donos do capital.
de consumo duráveis, como carros, televisores, geladeiras etc. É Na fase dominada pelo capital financeiro articulado com a
também o período em que se adota a matriz tecnológica estadu- indústria e o comércio, as empresas buscam extrair seus lucros
52 IDEN TID AD E E LUTA DE CLASSES AD EMAR B OGO 53

através de investimentos improdutivos, na aplicação em juros e Os diversos modelos e variações de diretrizes políticas e ideo-
na especulação nas Bolsas de valores através de commodities, em lógicas, ao longo do tempo, criaram a cultura da solução dos pro-
que, por exemplo, alguns produtos agrícolas são negociados antes blemas econômicos dos capitalistas por meio dos bens públicos,
mesmo de terem sido produzidos. estabelecendo a identidade de subserviência das pessoas e dos
Se considerarmos as referências mundiais na formação e no países dependentes.
desenvolvimento do capitalismo, observamos que os investimen- A identificação da economia mundial se dá, portanto, pela
tos estatais estiveram presentes desde o início. Contudo, ao longo imposição do capital que se estrutura em torno de modelos orga-
desses séculos, ocorreram diversas variações na forma de combina- nizados de acordo com os seus interesses. Esses modelos e essas
ção entre investimentos públicos e investimentos privados. Desde variações entre público e privado podem ocorrer cada vez mais
que se iniciou a formação do capitalismo, essas diversas formas rapidamente. Depende do teor das crises e dos interesses dos
constituíram fases. históricas conhecidas como mercantilismo, grupos econômicos.
liberalismo, keynesianismo e neoliberalismo. Em nosso país, ainda restam muitos investimentos estatais
Dessa forma, nos vários períodos, foi na base da sociedade que para serem privatizados, provavelmente os governos recuperarão
o capital se desenvolveu com investimentos estatais e privados, as estradas e as ferrovias, transporão as águas dos rios para outras
dependendo das condições em que as empresas se encontraram baci.as e depois as entregarão a grupos privados para que ganhem
para acumular cada vez mais capital. dinheiro facilmente. Investirá também em grandes barragens para
Sempre houve o revezamento entre o capital estatal e a inicia- gerar energia elétrica e depois as entregará a empresas especializadas
tiva privada, dependendo da época e das crises. O Estado esteve e para cuidarem do fornecimento de energia em cada casa brasileira e,
está a serviço da iniciativa privada. Quando os investimentos não com isso, se wrnarão também proprietárias dos rios e dos lagos.
interessavam a ela, por se tratar da aplicação de elevadas somas em A pergunta que nos preocupa atualmente é se, a continuar o
investimentos de alto risco, o Estado garantiu. A iniciativa privada capitalismo, o capital permitirá que se use qualquer bem da natu-
obrigou o Estado a aplicar os recursos dos impostos, endividar-se reza sem pagar? No passado, iniciou com a compra do ser humano,
por meio de empréstimos, como ocorreu no Brasil a partir de 1930, tornaµdo-o escravo. Depois, levou a terra para o mercado. Em
quando foram feitos investimentos em indústrias, siderúrgicas, seguida, as florestas e os minérios. Posteriormente, as sementes e,
hidrelétricas, telecomunicações, refinarias, pesquisas agrícolas, por último, a água doce. O calor do Sol já é comercializado pelas
exploração de petróleo etc. para, a partir de 1990, entregá-las a placas de energia solar e o ar, aos poucos, nos vem apresentado
preços irrisórios para empresas nacionais e transnacionais que em botijões de oxigênio.
queriam aumentar seus lucros.
Isso acontece porque o capital e o Estado possuem os mesmos IDENTIDADES AMEAÇADAS
investidores e controladores. Os grupos poderosos revezam-se Apesar de dotado de inteligência, o ser humano tornou-se o
no comando deste para garantir que essas modificações de rumo principal problema e uma grande ameaça ao planeta. Essa amea-
sejam mais rápidas. ça põe em risco a própria existência da vida humana, como um
54 IDENTIDAD E E LUTA DE CLASS ES ADEMAR BD GD 55

grande homicídio coletivo. A sociedade continua fabricando os comam-se ameaças para espécies indefesas, que dela se afastam
ladrões que, a seguir, enforca; 41 disse Tomás Morus, ou educan- deixando enormes áreas desabitadas, formando extensos deser-
do mal as crianças que serão presas quando ficarem adultas por tos sem retorno.
contestarem a ordem. Por outro lado, há uma diferença com o Tão logo uma crise é solucionada, outra inicia, demonstrando
passado, pois, cada vez mais, as eliminações ganham outras di- que uma está ligada à outra, pois, na verdade, são os seres huma-
mensões e se realizam por meio de grandes chacinas, epidemias nos que criam as crises e encontram crescentes dificuldades para
e guerras inconclusas. Segundo estudos do Ipea (Instituto de air delas. Estas são determinadas pela forma como a sociedade se
Pesquisa Econômica Aplicada), as últimas previsões indicam que organiza para produzir a sua existência.
entre 1979 até o final de 2008, terão sido assassinadas no Brasil Com a derrocada do socialismo de Estado, não foram poucos
cerca de 1 milhão de pessoas. os que imaginaram a recuperação instantânea do capitalismo que
É importante notar que a forca do passado ganhou requintes estaria apto a resolver todos os dilemas da humanidade. Mas, não
científicos. Hoje, técnicas suicidas muito mais eficientes, para ata- só não os resolveu, como também os agravou! Desempregou grande
car todas as formas de vida estão sendo inventadas. "Entre 1500 parte dos trabalhadores do bloco socialista que se desfez. A partir
e 1850, foi eliminada uma espécie a cada dez anos. Entre 1850 e de 1989, na Europa do Leste, outrora socialista, faliram 200 mil
1950, uma espécie por ano. No ano de 1990 desapareceram dez empresas, em média, por ano.
espécies por dia. Por volta do ano 2000, uma espécie por hora." 42 O aumento do estado de miséria da população do planeta
Há estudos43 mais atualizados estimando a possibilidade de estarem vem se agravando cada vez mais após a Segunda Guerra Mundial.
sendo extintas 90 mil espécies por ano - isso porque cada espécie Segundo o economista Lester O. Thurow, na década de 1960, a
superior eliminada leva consigo outras 30 que dela dependem, economia mundial cresceu 5% ao ano; na de 1970, essa taxa caiu
como fungos, insetos ou bactérias. para 3,6%; nos anos de 1980, para 2,8%; e, na década de 1990,
Essa grande ameaça inteligente, aos poucos, começa a mudar 2%44 e sabemos que, neste início do século 21, o índice ficou abaixo
a própria identidade da Terra para pior, porque ela também de 3%! Há algumas exceções, mas são marginais e não afetam a
tem suas características físicas. Ao modificar a composição dos tendência geral. Resta saber se o planeta suporta crescer mais do
solos, inserindo neles elementos artificiais e incompatíveis, que esse percentual por ano.
enormes quantidades de espécies são dizimadas (estima-se que, Essa metamorfose decadente está levando à descaracterização
ao longo da história, 20% delas já foram eliminadas) e a terra da sociedade. As inovações desacreditam os modelos instituídos
vai assumindo a própria identidade do ser humano: impotente, e afetam a própria sociabilidade. É o caso da "escola em casà', 45
desinteressada, depressiva, improdutiva etc. Assim, essas terras uma prática crescente nos Estados Unidos; mais de um milhão de
famílias adotaram o sistema em nome da busca de segurança, do
41 MORUS, T. A utopia, p. 35.
42
BOFF, L. Ecologia, mundialização, espiritualidade, p. 22.
.• -MOONEY, P. R. O século 21. Erosão, tramformação tecnológica e concentração de poder
43 44
THIELEN, H. Além da modernidade, p. 25.
·- empresarial, p. 28. 45
A Tarde. Salvador, 19/3/06, p. 27.
56 IDENTIDAD E E LUTA DE CLASS ES ADE MAR B o Go 57

controle sobre os filhos e da maior vigilância ideológica. Da era cidade humana da prévia ideação sobre a necessidade, busca várias
dos enlatados estamos indo para a era dos seres confinados. alternativas e escolhe uma que lhes parece adequada para executar,
Há cientistas que apontam para uma superpopulação do plane- iniciando assim um processo de negação da negação que afeta
ta. Pelo elevado grau de destruição, a Terra suportaria apenas 30% diretamente o ser atual, incitando-o a tomar atitudes e a realizar
dos habitantes que tem. Esse excesso de população já teria levado outras buscas. Em suma, ser "ator social" custa muito esforço e
à morte 300 milhões de pessoas nos últimos 30 anos. 46 vigilância na organização das ações e na qualificação da consciência.
Contudo, a fome que atingiu em 2007, segundo dados da Orga- Por outro lado, a identidade deve ser entendida como inter-
nização das Nações Unidas (ONU), 850 milhões de pessoas, não é relação das espécies descritas nos cinco reinos em confronto com os
gerada pela escassez de alimentos ou pelo estado de extrema pobreza interesses do capital que busca ali, pela exploração, aum~ntar seus
de 2,5 bilhões de pessoas. Ao contrário, o esgotamento dos recursos lucros. Em estado de natureza ou não, elas contribuem e participam
naturais decorre da produção excessiva de bens de consumo e do de uma forma ou de outra na realização da cultura humana. Sem
desperdício que as tecnologias ditas avançadas não têm interesse em a madeira, o escultor não consegue ir do abstrato da imaginação
reduzir. É a concentração da riqueza que gera a fome e a miséria. ao concreto do artesanato, mas, ao retirar a matéria-prima da flo-
Com isso, estamos observando uma permanente mudança de resta, pode deformá-la por completo ou preservá-la. No caso de
identidades no sentido definido por Manuel Castells: destruí-la, não terá, no futuro, onde aplicar as suas habilidades,
No que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o processo pois a irresponsabilidade cultural exauriu a capacidade natural.
de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ain- Enquanto o artesão ainda concebe em sua mente um objeto
da um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) de madeira, a floresta se estende sobre a terra, margeia os rios,
prevalece(m) sobre outras fontes e significados. Para um determinado abriga insetos e animais silvestres. A extensão referida é conheci-
indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas.47 da como "floresta virgem". Na medida em que há a intervenção
É preciso acrescentar que há também contradições múltiplas humana tirando árvores para edificar a sua cultura, seja para
e antagonismos múltiplos. fazer uma cadeira, uma mesa ou uma casa, a floresta perde o seu
Tal qual a afirmação da identidade, é importante perceber, estado de natureza e sofre modificações. Deixa de ser considerada
que há a negação e a morte de outras, como é o caso da trajetória "mata virgem"; aos poucos não terá pássaros e animais; terá de
marcada por experiências feitas ao longo da vida social, em que os aprender a viver sozinha e mutilada. Percebendo essas mudanças,
feitos tornaram-se memória individual ou coletiva, mas que vão se identificamos que a floresta mudou, adquirindo, portanto, outra
apagando aos poucos das consciências das novas gerações. identidade.
Mas, a identidade como ator social pode ir além do presente, As identidades constituídas, de uma forma ou de outra, apre-
graças à afirmação consciente de expectativas, ou seja, pela capa- sentam expectativas de continuidade histórica ainda a ser realizada.
Por isso, a realidade presente é uma sequência que aponta para
46
o futuro. O comportamento social é, em parte, a manifestação
Idem. John Gray. Caderno 2. 27/2/06, p. 3.
47
CASTELLS, M. O poder da identidade, p. 22. daquilo que somos, e, em outra parte, a antecipação daquilo que
58 IDE NTIDAD E E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGO 59

queremos alcançar neste processo de permanente negação das As expectativas concernem não só o que queremos, mas
negações. também o que não queremos. Nesse caso, precisamos agir para
Todo ser social é um ser cultural incompleto. Vive em socie- produzir o contrário daquilo que o presente já apresenta como
dade e nela desempenha funções preestabelecidas ou criadas por inais do futuro. A espécie humana tem essa capacidade de pre-
ele, através de sua imaginação e ação. O seu comportamento é a ver o que poderá ocorrer e, com isso, assumir antecipadamente
expressão da consciência social que adquiriu nessa convivência, mas determinadas posturas que possibilitam mudar o rumo de certos
esse existir não se dá desligado do concreto, como se ele pudesse acontecimentos.
estar desligado do meio em que vive. Até o século 20, os filósofos Obviamente, é a existência da cultura que possibilita o apa-
acreditavam que a função do homem era conhecer a natureza para recimento da identidade. Como observa Castells, "a construção
dominá-la. Em outros termos, a natureza era apenas a base para a ocial da identidade sempre ocorre em um contexto marcado
viabilização da imaginação humana. Hoje, em muitos aspectos, a pelo poder", 50 poderíamos dizer, no capitalismo, de revolução e
natureza foi exaurida e, agora, é necessário continuar conhecendo- contrarrevolução. Daí a sua proposta de diferenciar três formas e
a, não mais para dominá-la, mas para preservá-la, de modo a poder origens de construção da identidade:
preservar a própria humanidade. É nessa relação entre o natural e - identidade legitimadora: produzida pelas instituições domi-
o social que o ser humano deverá encontrar formas de lidar com nantes, com o objetivo de expandir e manter a dominação sobre
as contradições para garantir o desenvolvimento de cultura e a da as forças sociais dominadas;
consciência. - identidade de resistência: produzida pela reação de atores
''A consciência, portanto, é desde o início um produto social", 48 que estão em posições dominadas e que erguem trincheiras de
mas a identidade não se esgota na representação do momento pre- resistência com o objetivo de sobreviver;
sente, porque envolve, também e necessariamente, esse vir a ser, - identidade de projeto: que surge quando os atores sociais
agora não no sentido metafísico que vem do além da história, mas em posições subordinadas lançam mão de alternativas culturais e
no sentido que as expectativas criam para o futuro. Por isso mesmo, constroem uma nova identidade, capaz de redefinir a sua posição
como nos disse Gramsci, ''A história é um contínuo fazer-se (:.. )". 49 na sociedade e, até mesmo, de obter a transformação das estruturas
Na sociedade contemporânea, a preparação para o desempenho soc1a1s.
de uma profissão obriga uma espécie de antecipação pela qual a Portanto, as formas de identidade estão marcadas pela aceitação
pessoa passa a se comportar e a se ver como se já fosse o profissional e manutenção do presente, ou pela resistência a ele, ou pelo desejo
desejado. Para se tornar atleta, médico, jornalista, educador etc. é de destruição e transformação do poder presente.
necessário ser capaz de antecipar, em gestos e atitudes, aquele ser Embora tenha certa lógica o esquema descrito acima, o projeto
que só seremos completados no futuro. mais do que cultural precisa ser político e consciente. Sem alcan-
çar a transformação das estruturas de poder e de dominação na
48 MARX, K e ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 43.
50
49 GRAMSCI, A. Escritos políticos. Vol.1 , p. 260. CASTELLS, M. O poder da identidade, p. 24.
60 ID ENTIDADE E LUTA DE CLASSES ADEM AR B OGO 61

sociedade capitalista, a identidade emancipada não se manifesta, Com as mudanças bruscas, estão sumindo os aprendizados
pois não se configura numa opção real. Os processos espontâneos e as experiências dos povos. As tecnologias assaltam os espaços e
colaboram, mas não vão além da contestação e da revolta cíclica, roubam o direito do cultivo, do pensamento e da atuação correta,
eles não chegam ameaçar o lugar que ocupa a classe dominante. seja na produção de alimentos ou na simples convivência extra-
Em todos os campos de atuação há contradições; estas devem se tivista.
tornar conflitos. As mudanças genéticas e as pesquisas alucinadas, As plantas mudam de nome, passam a atender à voz das em-
como a germinação de sementes no espaço ou em outros planetas, presas, que falam uma única língua, extinguindo 2% ao ano das
podem significar avanços na busca do conhecimento, mas também que são faladas em todo o mundo .
. podem ser um anúncio de que a vida na Terra está comprometida e
uma minoria privilegiada, para salvar a pele, já está pensando na pos- A água doce como fonte de ganância
sibilidade de mudar de endereço! O projeto então é muito maior, visa Apesar de muitas espécies terem o recurso da renovação, a
a totalidade e não apenas partes e aspectos específicos da sociedade. velocidade da destruição é tão rápida que a torna impossível. No
Discutir a questão das identidades também é um modo de século passado, a cada 20 anos, a humanidade dobrava o consu-
propor como salvar o planeta Terra. É necessário denunciar que o mo de água doce. Agora, ele aumenta em muito menos tempo e
modo de produção capitalista está esgotado e que, com ele, o ser o desperdício já atinge o dobro da sua capacidade de renovação.
humano está errando o rumo do futuro. Superar o capitalismo, Se olharmos para os dados que identificam a natureza das águas,
dominar o capital e o Estado, só assim será possível dar à huma- veremos que 97,2% de toda água do planeta, pertence aos mares e
nidade uma alternativa de sobrevivência. oceanos, impróprias para o consumo humano. Apenas 0,633% que
O capitalismo era a fase necessária para se chegar ao socialismo, está nos lagos, rios ou no subsolo pode ser considerada água doce.
mas ele já viveu demais e as condições criadas para a sua superação A parte restante está congelada nas calotas polares, na atmosfera,
já ultrapassaram o limite tolerável. Agora, o modo de vida capita- na umidade do solo e no corpo dos seres vivos. 51 Isso totaliza 2,5%
lista tornou-se altamente destrutivo das coisas; dos bens naturais de água doce.
e dos próprios seres humanos. A apropriação privada, com interesses meramente financeiros,
é a principal ameaça às fontes e aos rios. Com a destruição da na-
IDENTIDADES FERIDAS tureza e a poluição do ar, a camada de ozônio apresenta enormes
Todos os bens da natureza - a terra, a água doce, as florestas, buracos e, com isso, a temperatura está aumentando, derretendo as
as sementes, a biodiversidade - estão sendo afetados pela ação do geleiras dos polos, que deslizam para o mar, aumentando a quan-
capital. tidade de água salgada que avançará sobre a terra. A devastação, a
A terra, considerada como a base do planeta, por intervenção erosão e o calor estão eliminando rios e lagos inteiros de água doce!
humana, vai aos poucos perdendo a sua identidade histórica, de
mãe, ou Gaia, como a chamavam os gregos; o grande ser vivo que 51
A Tarde. "Futuro da terra. Combate ao desperdício. Projeto especial de marketing". Salvador,
gera e alimenta a vida. Bahia, 5/6/07, p. 3.
62 I DENTIDADE E LUTA DE CLA SS ES A DEMAR B OGO 63

Por isso, se continuar assim, as futuras gerações, principalmente r neladas de lixo por hora; em 15 anos, serão 2 mil toneladas
nos grandes centros urbanos, sofrerão enormes dificuldades para por hora! O pior é que 95% do lixo produzido não é tratado,
o acesso e o consumo de água potável. só é recolhido e jogado em lixões, a céu aberto; e algumas va-
Menos de 1O países, dentre eles o Brasil, detém 60% da água riedades desse lixo podem levar até 450 anos, ou mais, para se
do planeta. Os dados das pesquisas mostram que decompor.
a Ásia possui mais ou menos 14 mil km 3 de água, seguida da América do No Fórum sobre o acesso à água, realizado no México em
Sul, com 13 mil; a América do Norte, tem 9 mil; a África, fica só com 4 março de 2006, a ONU fez sérias advertências sobre o problema
mil km3; a Europa, com 3,5 mil e a Oceania com 2,5 mil.5 2 da falta de água no futuro. Destacou-se que 70% de toda a água
O velho mundo europeu é o que mais chama a atenção. For- utilizada hoje é consumida na agricultura, nas lavouras irrigadas,
mado por 41 países, com 800 milhões de pessoas - o equivalente e estima que, em 2030, a humanidade necessitará de 55% a mais
à soma das populações da América do Norte e do Sul - é o que de alimentos. 54 O restante da água utilizada: 20% é destinada
tem menos água doce em reserva, pois seu potencial hídrico é seis à indústria e apenas 10% para o consumo humano. O mesmo
vezes menor que o das duas Américas. Hoje, vários países já estão evento denunciou, também, que 1/ 5 da humanidade não dispõe
sendo obrigados a comprar água de outras nações: a Alemanha de água potável.
compra 51 % da água que consome; a Bélgica, 33%; os Países Bai- A terra que utilizamos hoje é responsável não só pela alimen-
xos, 89%; a Romênia 89%; a Hungria, 95% da água consumida tação, mas também pela garantia da continuidade da existência da
por sua população. 53 água. O desflorestamento é o principal causador do assoreamento
Atualmente, o mercado mundial de água movimenta um tri- dos rios e dos lagos. A cada ano, cerca de 25 milhões de toneladas
lhão de dólares por ano. Os dados denunciam que quase 2 bilhões de húmus 55 deixam de existir por causa da erosão.
de pessoas já sofrem com a falta de água potável. Verificamos o apetite de nossos governantes em ampliarem
A América Latina tem água em abundância, cerca de 52% das a quantidade de plantio de cana-de-açúcar com o objetivo de
fronteiras dos nossos países são de águas de rios e de lagos. Uma for- produzir etanol para mover os carros, quando o espaço deveria
tuna, que é, também, um grande risco, porque, no futuro, os líquidos ser utilizado para manutenção das florestas e para a produção de
como a água e o etanol serão-disputados pelas nações, do mesmo modo alimentos para as gerações que ainda vão nascer. E, por sua vez,
como, hoje, é disputado o petróleo; os países mais fracos servirão de encontrar outras maneiras para o transporte humano que evitasse
bases militares para os mais fortes fazerem as guerras de apropriação não só poluir o ambiente, mas também reduzir a extração de ferro
das riquezas naturais de grandes regiões do planeta. e outros derivados necessários para produzir veículos e motores
Esse patrimônio está cada vez mais ameaçado pela contami- que levarão também ao esgotamento das reservas minerais.
nação e pela degradação da natureza. O Brasil produz hoje mil

52 54 BONALUME, N. R. Folha de S. Paulo. Caderno Mundo. 1O de março 2006, p. Al 1.


BARROS, M . O espírito vem pelas águas, p. 27.
53 55 BOFF, L. Ecologia, mundialização, espiritualidade, p. 22.
Idem, p. 29.
64 IDE NTIDADE E LUTA DE CLASS ES
ADEM AR 8 DGD 65

A terra como possibilidade de reprodução de si própria A terra depende da vida das espécies para continuar viva. A
· Cada pedaço de terra local não representa a totalidade da sua extinção destas, que produzem e decompõem a matéria orgânica,
identidade. No Brasil, por exemplo, há lugares onde a vegetação é também a morte daquela.
é mais densa e as árvores são de grande porte, mas há lugares Os camponeses compreendem muito bem a relação existente
em que a vegetação é esparsa e de pequeno porte. Ademais, a entre fertilidade e produção. Quando a terra é usada por muitos
terra se diferencia pela composição dos solos e, portanto, pela anos para o plantio, percebem que ela se torna "cansadà' e que,
sua fertilidade. por isso, ela precisa, como qualquer ser vivo, descansar. Iniciam,
Mas estas são características de identidade recentes que não então, um longo ciclo de respeito e de preservação.
esgotam toda a verdade. Há, nessa massa que tocamos com os pés No Sul do país, no início da colonização, em ·meados do
e com as mãos, uma infinidade de micro-organismos que se ali- éculo 19, além das preocupações com a acomodação e com as
mentam de restos de vidas, desenvolvidas há milênios pela relação perspectivas da produção, os colonos precisavam ter cuidado com
das diversas espécies que formam a natureza. Elas estão presentes o tamanho da colônia e com a quantidade de terra que cada família
na produção da cultura humana, desenvolvem-se e modificam-se deveria possuir. Na época, os economistas agrários alemães, que
de acordo com os meios que utilizamos para lidar com a terra. orientaram essa acomodação, tinham desenvolvido um conceito
Desaparecem do meio utilizado ou adquirem resistências. conhecido como mínima/e Ackernahrung57 (aplicado aqui por um
Vivemos interligados. Não há uma espécie sequer que viva por senhor chamado Waibel), que determinava a quantidade mínima
conta própria e totalmente isolada. de terra necessária para garantir a sobrevivência de uma família
Os animais dependem da fotossíntese das plantas para atender às suas neces- de sete pessoas.
sidades energéticas; as plantas dependem do dióxido de carbono produzido Os cálculos partiam do princípio de que uma família necessi-
pelos animais, bem como do nitrogênio fixado pelas bactérias em suas raízes; tava de 5 hectares58 permanentes, ou 50 mil metros quadrados de
e, todos juntos, vegetais, animais e micro-organismos, regulam a biosfera lavoura cultivada, para ter um nível médio de vida. Consideravam
e mantém as condições propícias à preservação da vida. 56 que a terra, após ter sido despida da floresta e utilizada com lavouras
A luta dos contrários na composição da natureza produziu se desgastava e que, se deixada em completo descanso, levaria no
as condições para alimentar a terra, permitindo a reprodução da mínimo de 12 a 15 anos para se recuperar. O cálculo era feito da
biodiversidade. Quanto mais fértil a terra, mais matéria orgânica seguinte maneira: 5x12+5 = 65 hectares em terra boa e 5x15+5=
nela foi decomposta. Podemos dizer que a terra, na sua essência, é 80 hectares em terras mais fracas.
produzida e reproduzida permanentemente. Na sua camada supe- Isso significava que, reservados os 5 hectares para a moradia e
rior, ela passou pela existência de milhões de vidas, que formaram pastagens, e levando em consideração que, a cada ano, a família
os solos, onde as plantas, por meio das raízes, fixam sua morada,
dividindo o espaço de que precisam. 57 VALVERDE, O. "Reflexões sobre uma reforma agrária no Brasil (limites máximo e mínimo
da propriedade da terra)".
58 Um hectare mede 10 mil metros quadrados, ou seja, é um quadrado com 100 metros de
56 cada lado.
CAPRA, F. As conexões ocultas. Ciência para uma vida sustentável, p. 23.
66 I DENTID ADE E LUTA DE CLASS ES ADEM AR BoGo 67

desbravaria 5 hectares de terra nova deixando os 5 primeiros des- in imiga dos seus próprios filhos, obrigados pelas cercas, pelas
cansarem por 12 anos, essa família necessitaria de 65 hectares de balas e pelas escrituras a viver longe do seu convívio. O direito de
terra para sobreviver na agricultura. Posteriormente, essas medidas propriedade elimina a possibilidade de a terra cumprir sua função,
foram reduzidas, pois passaram a considerar que a distância entre dando ao proprietário o direito de destruir a natureza e de poluir
as moradias dificultava a convivência e, também, que a qualidade as águas. O egoísmo do latifundiário impõe a identidade do la-
do solo, com os restos das colheitas, se mantinha produtivo por tifúndio: antissocial, antiprodutivo e antissolidário. A terra presa
vários anos. pelas cercas, aguarda o dia da chegada de seus libertadores, que a
Com a superpopulação, 150 anos depois, a tecnologia encon- ajudarão a tirar de cima de si esta carga de perversidades.
trou a saída para a superexploração da terra por meio dos insumos Foi a partir de 1850, com a Lei de Terras, nº 601, de 18 de
químicos. Assim, mesmo cansada, ela mantém a reprodução diri- setembro, promulgada por D. Pedro II que, a terra, um bem da
gida. Com isso, as florestas foram impedidas de se recuperarem e natureza, passou a ter preço. Hoje, podemos achar ridículo alguém
as variedades de árvores diminuíram imensamente e, junto com pretender cobrar pelo uso da água de um rio; pois antes do final
elas, os micro-organismos, bem como aves e animais silvestres do século 19, acharíamos igualmente ridículo cobrar pelo uso da
desapareceram. terra. Sem dúvida, já podemos antever que chegará o dia em que a
Em sua essência, a terra é húmus (terra boa) produzido por água se tornará propriedade, assim como a terra, e alguns poucos
milhões de vidas decompostas. Nele reside a força da fertilidade senhores tornar-se-ão seus donos, que terão o poder total sobre a
por isso dele nasceu o humanus, em latim, homem, aquele que vem própria existência da vida.
da terra e tem a natureza amável, afetuosa, benevolente, clemente, O território brasileiro:
humanitária. possui 600 milhões de hectares cultiváveis, dos quais 250 milhões de
São os restos das espécies de vidas decompostas que fazem o hectares são áreas devoluras 59 e 285 milhões são considerados latifúndios
húmus. Portanto, podemos concluir que o homem é o filho de improdutivos. Centro e trinta e oito milhões de hectares estão nas mãos
todas as espécies. Passou pela barriga dos insetos, tornando-se de 28 mil proprietários. 60
húmus antes de aparecer como humano. Mais tarde, adquiriu o De toda essa terra, em 2003, só 46,6 milhões de hectares foram
hábito de se alimentar do cultivo de plantas juntamente com a utilizados para a produção de grãos, quantidade que saltou para 54
domesticação de animais. Mas isto o levou, através do trabalho, a milhões, em 2006, devido ao ufanismo da agricultura comercial
ter que mexer na natureza, atentando contra milhões de espécies de exportação de soja.
indefesas que ocupavam o mesmo espaço. A elevada concentração da propriedade da terra impossibilita
O grande patrimônio da terra é a quantidade de vidas que o desenvolvimento social e político do "interior" do Brasil com a
sobrevivem nela. Ao enfraquecer a vida das espécies, a terra se
"despatrimonializà', os solos ficam pobres e não conseguem mais 59 São consideradas devolutas as terras sem documentação, pertencentes à União, mas que
fazer germinar as sementes. Não precisa falar da perversidade do foram indevidamente apropriadas por grandes proprietários.
60
MARTINS, H . "Contexto atual da correlação de forças e das lutas sociais no campo",
latifúndio, que macula a identidade da terra, como se ela fosse p. 56.
68 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES ADE MAR BOGO 69

presença de seres humanos, constituindo-se numa afronta à demo- industrial. Agora, na era da eletrônica, a luta se dá em torno da
cracia. "Trocando em miúdos, apenas 40 mil grandes proprietários água doce, para consumo, irrigação e produção de energia elétri-
controlam mais de 400 milhões de hectares de terra, o que significa ca; das florestas para extração de madeira, remédios e controle da
uma média de 1Omil hectares por família." 61 E uma família precisa biodiversidade, e, também, os minérios, que dão suporte às novas
no máximo de 20 hectares para viver! invenções tecnológicas, como a das fibras óticas etc.
Atualmente, os latifundiários são grandes capitalistas, e o lati-
fúndio é explorado por empresas transnacionais, por bancos, pelos A dependência química da terra como parte
donos da indústria e do comércio. Assim sendo, sua identidade é da cultura criminosa
formada por relações basicamente urbanas. Seu interesse econômi- A saída encontrada pelas empresas capitalistas para o "cansaço"
co maior está na cidade e a terra serve de garantia para a obtenção da terra não foi a de revitalizá-la naturalmente, mas sim a de viciá-la
de bons empréstimos que, muitas vezes, nem são investidos na e enfraquecê-la ainda mais, tornando-a dependente de "remédios"
agricultura. Muitos investem na aquisição de florestas e de terras químicos conhecidos pela fórmula de N-P-K, (nitrogênio, fósforo
com grande concentração de água e de outras matérias-primas. e potássio), além disso, modificaram as sementes, tornando-as
A perversidade dessa prática não é apenas a de fazer com que híbridas, para que pudessem se adaptar aos solos desgastados.
a terra fique sem produzir, quando poderia estar ajudando mi- Os analistas sustentam que o N-P-K apenas empobrece ainda
lhares de pessoas a arranjar trabalho, mas também a de condenar mais o solo, porque, para se desenvolver, as plantas necessitam de
o interior do Brasil a viver na miséria. Onde há latifúndio, sua 42 nutrientes encontrados naturalmente, nas devidas proporções,
identidade espalha a pobreza econômica, social e cultural; onde quando as terras são férteis e equilibradas; o aumento artificial de um
entram as empresas as pessoas vão embora, expulsas do espaço desses nutrientes esgota os demais, que não foram utilizados. Assim,
que ocupavam. com o uso dos insumos químicos e dos venenos, os solos ficam cada
Para enfrentar as forças que destroem os bens da natureza não vez mais pobres, doentes e, como qualquer outro organismo vivo,
podemos nos limitar à referência ecológica, porque os mais destru- tornam-se crescentemente dependentes de invenções químicas.
tivos e poluidores são, também, atualmente, os que, publicamente, No caso dos fertilizantes, o governo brasileiro, com a corrida
aparecem como muito preocupados com a educação ambiental, da produção de biocombustíveis, estima que em uma década o
com o reflorestamento ou com a aquisição de grandes áreas de consumo de N-P-K atingirá 25 milhões de toneladas ao ano, 15
florestas para o sequestro de carbono. Trata-se de um novo viés milhões a mais do que se utiliza hoje. As reservas de fósforo, por
da luta de classes, mas sustentado no mesmo referencial de explo- exemplo, estão cada vez mais escassas no mundo. A maior de todas
radores, de um Íado, e de explorados, de outro, se defrontando está no Marrocos com 32%. No Brasil é um fertilizante escasso -
contra ou a favor da produção da mais-valia com as sobras das temos apenas 0,4% das reservas mundiais.
riquezas naturais, como foi o caso do carvão no início da revolução A terra é um ser vivo, alimenta-se daquilo que produz. Com as
colheitas, ela oferece seus grãos a quem plantou, mas exige de volta
6t STEDILE, J. P. "Latifúndio: O pecado agrário brasileiro", p. 197. as folhas e os caules das plantas. As "refeições" da terra são os restos
70 ID EN TIDADE E L UTA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 71

não aproveitados pelos seres vivos que nela habitam. Quando esses v mo brasileiro, em certos casos pelo período de até 60 anos, não
habitantes morrem, a terra os recolhe, dissolve-os e os devolve à na- oferecem garan~ia alguma de que haverá cuidado com as florestas.
tureza de outra forma. Todas as espécies precisam viver para dar mais Atualmente, são devastados por ano, na Amazônia, 25,5 mil km 2
vida à terra. Mas, o "ser humano, especialmente a partir da revolução (2, 55 milhões de hectares) 63 de florestas.
industrial, revelou-se um anjo exterminador, um verdadeiro satã da Soma-se a essa destruição a poluição do ar: diariamente, são
terra ( ... ) " .62 jogados no espaço milhões de toneladas de dióxido de carbono,
Como o filho que se rebela contra a mãe, e, diferentemente produzido, basicamente, pelos meios de transportes e pelos mo-
das demais espécies que transformam o ato de comer em trabalho, tores a combustão. Os Estados Unidos da América são respon-
o ser humano, dotado de inteligência e força física, ataca a terra e sáveis por ¼ dos 27 bilhões de toneladas de CO 2 , gás poluente,
aos que se colocam em sua defesa. lançadas no espaço todo o ano. E já se prevê que - justamente
Ao longo da sua história, a humanidade, formada por seres ele que, pelo Protocolo de Kyoto, de 200 l , deveria ter reduzido
inteligentes, inventou três grandes ameaças contra a terra e contra em 7% o lançamento do CO 2, no espaço - aumentará a emissão,
a vida: o fogo (queimadas), os venenos e as mudanças transgênicas: até 2012, em 35%. 64 A estimativa é que nas próximas décadas
Por isso, hoje, a destruição se acelera cada vez mais. Quanto mais haverá um aquecimento do planeta de 5,5ºC. Atualmente, as
se conhece esse húmus, mais truculento ele - o homem - fica, oscilações na temperatura já estão provocando danos irrepará-
passando a agir por meio das lucrativas invenções que se colocam a veis , seja eliminando espécies menos resistentes ao calor, seja
serviço de algumas poucas empresas. Superar este modelo agrícola diminuindo o rendimento das lavouras de grãos, da produção
é redescobrir e evoluir nas técnicas agroecológicas, em que o ser de leite e de frutas , seja produzindo catástrofes, com furacões,
humano para produzir o seu alimento não precisa desalojar nem enchentes e alagamentos.
violentar outras vidas. O envenenamento pelo uso de praguicidas (herbicidas, fun-
Na verdade, as grandes invenções transformam-se em mitos, gicidas e inseticidas) aumenta a cada ano. Em 1945, o uso desses
pois a maioria dos povos não tem acesso direto a elas e, em vez de produtos era quase zero. Desde o ano 2000, passou-se a despejar
entendê-las, as temem, respeitando-as porque não as conhecem. sobre a terra, no mundo inteiro, cerca de 2 milhões de toneladas
Os meios de comunicação apresentam as invenções como se elas de venenos, por ano,65 processo que leva ao envenenamento de
pertencessem a todos, mas está cada vez mais evidente que seus 6 pessoas por minuto e à morte de 220 mil pessoas por ano. Em
descobridores estão patenteando não só os inventos, mas também termos comparativos, a destruição provocada pela aplicação de
as próprias matérias-primas que lhes dão origem, como é o caso praguicidas equivale ao morticínio que seria produzido por um
das ervas e das plantas medicinais. exército de 2 milhões de soldados atirando contra populações
Vivemos uma época em que as tecnologias são avançadíssimas, indefesas.
mas os métodos ainda são coloniais. As concessões dadas pelo go- 63
MARTINS, H . Contexto atual na correlaçáo de fo rças e das lutas sociais no campo, p. 51.
64
A Tarde. 5/11/2006, p. 31. .
65
62
BOFF, L. Ecologia, mundializaçáo, espiritualidade, p. 25. RIECH MANN , ]. Cultivos e alimentos transgénicos, p. 94.
n IOLNTIOAOE E LUTA DE CLASS ES
ADEM A R BOGO 73

Aplicados diretamente sobre a terra ou sobre as plantas, esses Menos de O, 1% do volume de praguicidas aplicados nas plantações atingem
produtos, de alta periculosidade, seguem destinos incontroláveis realmente seus alvos (as pragas). Os 99,9% restantes contaminam a terra,
e se espalham por três formas: a água, o ar e o organismo dos seres vivos. 69
- Volatilização - quando o agrotóxico é jogado no solo, eva- De cada cem quilos de veneno jogados na terra, apenas cem
pora e contamina a atmosfera. A perda de veneno por esse sistema ramas atingem o objetivo; o restante cumpre~ função de destruir
chega a atingir 90% do seu conteúdo em cada dose aplicada. Um o que não era necessário.
estudo feito em 1O países da Europa, publicado no ano 2000,
mostrou que, de um total de 99 pesticidas monitorados, 48 deles As epidemias como parte da cultura
foram encontrados na água da chuva, 66 que são descarregados nos O enfraquecimento e o cansaço destroem a capacidade de
rios e nos lagos. autodefesa, tal como ocorre com o ser humano. Como qualquer
- Lixiviação - é a penetração do veneno no solo por meio da er vivo, a terra também adoece e morre. O caminho que leva à
água, seja ela provinda da chuva ou dos sistemas de irrigação. Sobre morte é o esgotamento. A rigor, a pessoa não escolhe ou seleciona
isso também há estudos feitos nos Estados Unidos. Em 1988, a uma doença; contudo, ela pode escolher o esgotamento e, é este
Agência de Proteção Ambiental relatou que 46 tipos de pesticidas que escolhe a doença. 70 Segundo estimativas históricas, esse esgo-
foram encontrados no lençol freático de 26 Estados daquele país. tamento faz com que, a cada 11 anos, em média, a humanidade
Em 1992, a mesma agência comprovou que 10,4% da água usa- viva uma nova epidemia incontrolável.
da por redes instaladas e 4,2% dos poços, na área rural, estavam Nas décadas de 1980 e de 1990, o mundo foi surpreendido
contaminados com pelo menos um pesticida. 67 pela moléstia: "encefalopatia espongiforme" ou, como ficou po-
- Escoamento superficial - é o transporte do veneno que as p ularmente conhecido: o "mal da vaca loucà'. Trata-se de uma
águas das enxurradas encontram sobre o solo e descarregam nos moléstia crônica, degenerativa, que afeta o sistema nervoso dos
rios e por onde passam. bovinos, através do agente infeccioso conhecido como prión. Este
As pesquisas mostram que o uso desenfreado de praguicidas deriva de uma proteína da membrana das células nervosas que, ao
não está ajudando em nada, pois pela proliferação de insetos e as serem modificadas, afetam o cérebro do animal, transformado-o
doenças que adquirem resistência, cerca de 35% das safras con- numa espécie de esponja, cheio de lesões.
tinuam a ser perdidas, como acontecia há 50 anos. Nos Estados A origem dessa epidemia está associada às mudanças na fabri-
Unidos, maior consumidor de agrotóxicos do mundo, estudos cação das rações ou, mais propriamente, ao preparo da farinha de
demonstram que a aplicação de venenos leva a uma redução de carne e de osso, produzida com baixas temperaturas. A doença
1 a 2% dos problemas que teriam ocorrido se eles não fossem é causada pelo consumo de restos de animais mortos, como ali-
utilizados. 68 mento, pelas vacas leiteiras confinadas. Ela já é uma realidade na
66
JUNIOR, R. P. S. O Estado de S. Paulo. Suplemento agrícola, 16 novembro de 2003.
67
Idem. 69
Ibidem.
68
RIECHMANN, J. Cultivos e alimentos tramgênicos, p. 97. 70
YALOM, 1. D. Quando Nietzsche chorou, p. 138.
74 IDE NTIDADE E LUTA DE CLASS ES
AD EM AR 8 0GO 75

Grã-Bretanha, mas também se manifestou em mais de 20 países. rigoroso) e Cultura, (ação de cortejar, cultivar). Quando escassea-
Um dos problemas dessa doença é que ela pode ficar incubada por ram os alimentos naturais, as sementes, pelo trabalho humano,
vários anos sem manifestar qualquer sintoma. deram origem à agricultura. Uma atividade árdua fundamental
A partir de 2003, a Ásia viveu o perigo da "gripe aviárià', que à sobrevivência da humanidade, pois é dela que, cortejando,
já havia se manifestado na Europa e nos Estados Unidos na década retiramos o alimento, esse produto especial do qual dependemos
de 1980. Originária de uma variação do vírus influenza, surgido diariamente para viver.
inicialmente em aves e, posteriormente, pela sua capacidade de Essa história tem milhares de anos. Mas atualmente há iden-
mutação, em humanos. Os estudos apontam para o perigo de o tidades que estão sendo propositadamente modificadas para que
vírus passar pela transmutação de H 5 N 1 para H 7 N 7 , quando se algumas empresas, que detêm o direito de propriedade, legalmente,
tornaria incontrolável, podendo se manifestar em qualquer espécie sobre as espécies de vida, possam lucrar com essas deformações. Tal
animal e levar à morte milhões de seres humanos. A Organização processo ocorre com a ajuda da engenharia genética, pela qual as
Mundial da Saúde alerta que, até 2015, esse tipo de enfermidade espécies sofrem o atentado do roubo de genes recombinados, que
matará cerca de 270 milhões de pessoas. 7 1 são transportados para outros organismos.
Ademais, ainda convivemos com o avanço do vírus HIV, que As mudanças genéticas são possíveis graças à biotecnologia,
provoca a Aids. Só na África, o continente mais afetado pelo ví- uma ciência que consegue manipular a vida em laboratórios.
rus, já são 3,3 milhões de soropositivos, a maioria com assistência Não satisfeitos de penetrar na célula, os cientistas querem entrar
médico-hospitalar muito precária. Sem mencionar o avanço, mais no átomo. Esse tipo de conhecimento está sendo chamado· de
silencioso, das doenças do aparelho circulatório causadas por um nanotecnologia. ''A nanotecnologia é, para a matéria inanimada,
estilo de vida que eleva as taxas de colesterol e de diabetes e que o que a biotecnologia é para a matéria animada."72 Essa tecnolo-
provocam derrame, hipertensão e infarto. gia manipula os átomos, moléculas e partículas, invisíveis a olho
Em resumo, podemos perceber que, paralelamente ao aumento nu para criar vários produtos, mais resistentes, ou máquinas e
da riqueza e da concentração de renda, crescem os problemas sociais aparelhos minúsculos - "nano" é uma medida que compreende a
e avançam as epidemias. milésima parte de um milímetro. Com essa técnica, os cientistas
acreditam que podem controlar a Tabela Periódica composta por
IDENTIDADES MODIFICADAS 11 O elementos químicos, para criar novos materiais e modificar
A agricultura é uma invenção humana e, sobretudo, feminina. os que já existem.
Ela depende das sementes e da intervenção física e inteligente dos Nos últimos tempos, muito se tem falado sobre os alimentos
que vivem e trabalham na terra. e as sementes transgênicas. Além de causar grandes malefícios à
A palavra agricultura significa cultivo ou trabalho árduo. Re- saúde humana, à terra e à natureza,73 estão garantindo elevados
sulta da soma de duas palavras vindas do latim: Acru (árduo, duro,
72
MOONEY, P. R. O século 21. Erosão, tramfo rmação tecnológica e concentração de poder
empresarial, p. 84.
73
7
' WESTEM, N . A Tarde, 14/_4/2006, p. 18. GÕRGEN, S., ofm. Riscos dos transgénicos, p. 15.
76 IDE NTIDAD E E LUTA DE CLASSES A DEMAR B o GO 77

lucros às grandes empresas. Essas empresas, pela concorrência, tecnologia julgar que pode ultrapassar os limites das formas de
poderão levar à destruição dos pequenos agricultores, que não produção, excluindo as experiências sociais adquiridas, impon-
utilizam as sementes transgênicas. 74 Ademais, há que considerar a do produtos criados e modificados geneticamente; procurando
perda da soberania e o controle das sementes pela apropriação por manipular os agricultores como se eles fossem objetos de plástico
meio do patenteamento da vida. 75 que, aproximando-se do calor do mercado, adquirem uma outra
No entanto, pouco se tem falado dos aspectos filosóficos dessa forma.
política. Quais são os malefícios, os crimes culturais e as mudanças As empresas desconhecem que trabalhador rural representa
de identidade que esses inventos produzirão na agricultura? Em mais do que uma profissão; essencialmente, é uma cultura na qual
nome do lucro, a engenharia genética pode ser levada a desprezar se entrelaçam práticas e sentimentos que dão identidade ao cenário,
a engenharia natural e a engenharia social, criadas ao longo dos no qual, há milhares de anos, a alimentação é produzida.
séculos pela história do desenvolvimento das espécies - uma histó-
ria em que cada uma delas aprendeu a respeitar e a conviver com O que é um organismo transgênico?
as demais, contribuindo com suas características, seu perfume e É importante compreender os fundamentos da tecnologia que
suas cores, para o equilíbrio da vida no planeta. está produzindo esse grande desastre em laboratórios para estendê-
Qualquer mudança em qualquer um dos principais fatores lo para toda a agricultura.
responsáveis pela produção do alimento, como a terra, a água, o Como vimos, qualquer ser vivo é composto por pequenas
calor, a semente etc., pode provocar grandes desequilíbrios não partículas chamadas de células. Elas guardam dentro de si as in-
só na natureza, mas também na vida social e na vida cultural da formações das características do corpo. Na linguagem científica,
espécie humana. essas informações são chamadas de DNA.
A ganância das empresas pelo dinheiro e pelo poder está fa- Todas as células trazem dentro de si proteínas e ácido deso-
zendo com que elas coloquem em risco a existência dos hábitos, xirribonucléico, que compõem os cromossomos, cuja quantidade
costumes e tradições desenvolvidas pela convivência biológica. varia de uma espécie para outra, estes juntam-se em pares.. Para
As empresas utilizam a técnica para uma verdadeira invasão da ser fecundado, o ser humano precisa de 23 cromossomos da mãe
intimidade de cada uma das espécies, ferindo a ética tanto no que e 23 cromossomos do pai, formando 46 no total. Neles estão
se refere ao respeito quanto ao cuidado com a manutenção da todas as informações ou o DNA das características de ~ada ser,
vida e do planeta. como, por exemplo, a cor da pele, dos olhos e dos cabelos; a
Por sua vez, os trabalhadores que aprenderam, ao longo de altura e o formato do corpo. Os corpos maiores possuem mais
milênios, a produzir afetivamente, por meio do trabalho familiar, células do que os corpos menores, mas a sua composição é sem-
não podem ser arrancados de sua cultura pelo simples fato de a pre a mesma.
Dentro da célula, essas características não estão soltas, mas liga-
74
ALTIERI, M.e ROSSET, P. "Dez motivos porque os transgênicos não salvam o mundo das umas às outras, como se fossem os elos de uma corrente. Todas
da fome, p. 39.
75 PINHEIRO, S. Transgênicos, p. 7. as células 1e um corpo têm as mesmas informaçõe~ genéticas.
78 I DENTI DADE E LU TA DE CLASS ES ADEM AR B OGO 79

A produção do organismo transgênico é obra dos laboratórios. O aumento da quantidade das sementes transgênicas é também o
Nesse caso, genes de uma célula de um corpo são transportados avanço na qualidade, neste caso não para aumentar a produtivida-
para outra célula de outro corpo. Para passar uma informação de de, mas simplesmente para que as plantas resistam ao agrotóxico
uma espécie para outra, os cientistas precisam abrir uma célula do no período da produção.
primeiro corpo, retirando a parte interessada, buscando a mesma A sensibilidade sofrerá modificações, pois a convivência entre as
parte no outro corpo e transplantando-a no primeiro. espécies será afetada pelo simples fato de os laboratórios tornarem
Quando falamos nos pares de cromossomos, usamos o exem- perigoso o cruzamento e a reprodução da vida na natureza.
plo da corrente. Vimos que o ser humano tem 46 cromossomos, As mudanças influirão no comportamento humano em relação
imaginemos que estes sejam 46 anéis interligados. Mas, no meio à preservação da vida. Um vaso, com uma planta ornamental cujas
dela, existem dois anéis que possuem alguma deficiência, que folhas estão murchando, desperta a sensibilidade do cuidado, que
comprometem a corrente toda. Então, procura-se uma corrente nos faz buscar água para regá-la. O contrário ocorre quando vemos
que tenha anéis fortes, retiram-se dois deles substituindo os que um vaso com uma planta semelhante, de plástico. O sentimento
estão com deficiências. Ela ficará com os mesmos 46 anéis, só que, de cuidado é muito diferente, pois seria ridículo tomar a iniciativa
agora, todos possuirão a mesma resistência. de regar uma planta que não tem vida, pois foi feita de matéria
Há algumas décadas, as grandes empresas que controlam a morta. Nesse último caso, domina a ideia de que a planta não
produção de sementes e de herbicidas, principalmente o Roundup precisa de cuidados porque ela possui os elementos de autodefesa.
Ready, usado para matar a vegetação que nasce na lavoura, estão As diferentes espécies serão ameaçadas profundamente em
fazendo experimentos para tornar nulo o efeito do veneno sobre suas identidades biológicas. Os animais que se orientam por seus
as plantas alimentícias. instintos, desenvolvidos na convivência com sua espécie, sofrerão
Visando aumentar seus lucros e controlar o mercado das se- alteração, seja pela forma de reprodução em confinamentos, seja
mentes, as empresas modificaram a genética da soja. Pesquisaram pelo transporte de genes acrescidos de outras espécies.
o gene fraco dentro da célula da semente que não resistia ao ve- Se, até agora, identificávamos as espécies pela aparência, poderá
neno e, após encontrá-lo, retiraram-no e colocaram em seu lugar, não mais ser assim. Quando vemos uma semente, dizemos que ela
um gene do Roundup, fechando a célula novamente. Quando a é boa, porque tem cores fortes. Um animal é bonito, porque tem
semente germinar, torna-se resistente ao veneno - basta lançar o o pelo liso; uma vaca é de corte ou de leite, porque tem·caracte-
herbicida sobre as lavouras e o veneno só eliminará as ervas que, rísticas próprias mantidas pelo cuidado que tiveram as gerações
antes, eram arrancadas com as enxadas. que passaram.
Ao mudar geneticamente as sementes, elas adquirem novas As mudanças genéticas estão nos levando para o mundo da
características que obrigam a lhes dar outra denominação. Sendo recombinação dos genes. Em alguns casos, elas poderão contribuir
assim, a comunicação que se estabeleceu entre o ser humano e para a solução de graves problemas que a humanidade ainda não
as demais espécies por milhares de anos de história, por meio da conseguiu resolver, mas, mexer em organismos vivos não é o mesmo
linguagem, sofrerá modificações pela mudança de componentes. que mexer na matéria morta. Podemos fazer uma cadeira utilizan-
80 I DEN TI DA DE E LUTA DE CLASSES A DEMAR 8 0 GO 81

do madeira, ferro e plástico; depois de pronta, continuará sendo o gene terminator, que foi incorporado às sementes. Ocorre que
cadeira, mas não se reproduzirá por si mesma. Com as espécies essas sementes, plantadas e colhidas, só produzem sementes esté-
vivas, as mudanças genéticas podem se tornar incontroláveis. reis, obrigando o agricultor a comprar novas sementes a cada novo
plantio. 76 O que essas empresas fazem, desde já, após eliminar uma
Os interesses econômicos movem as pesquisas infinidade de variedades de sementes, é apropriar-se de algumas
Os interesses das grandes empresas transnacionais em torno da delas e cobrar pela tecnologia aplicada em laboratórios, cobrando
modificação genética dos organismos vivos é um atentado contra a pelo invento e repassando a terceiros (os agricultores), mediante
vida e contra os costumes dos camponeses. Para perceber melhor o pagamento, para que as plantem em suas lavouras.
que significa essa iniciativa, vejamos alguns aspectos das prováveis Essa anulação da energia embrionária das sementes, tornando-as
mudanças culturais que descaracterizarão as identidades biológicas estéreis, é o que se pode chamar de valor ideológico da mercadoria, ou
e físicas das espécies. seja, a ciência é e será usada para fins que satisfaçam alguns interesses,
tornando os produtores de alimentos servos dos grandes senhores
a) Os genes como mercadoria capitalistas. Isso quer dizer que, embora a transgenia pareça ser um
Encontramos trabalhadores na agricultura preocupados em grande avanço nas relações de produção, na verdade submete cada
preservar as sementes. Produzem-nas por meio de técnicas sim- vez mais o produtor às empresas que detêm o controle do conheci-
ples e as trocam com os vizinhos por outros produtos ou mesmo mento. Essa dominação não ficará apenas no nível econômico, mas
por força de trabalho. Assim, ao longo dos tempos, as sementes também no nível das ideias. Sem essa cumplicidade ideológica não
foram acompanhando a sequência das gerações e preservaram suas haverá uma próxima safra.
variedades. A mercantilização das sementes levará à destruição da produção
O mercado moderno produziu uma verdadeira alucinação autônoma e da troca de sementes entre os próprios agricultores
em torno da urgência de "vender", que, necessariamente, está que serão expropriados de toda cultura do cultivo e do cuidado.
suportada no avanço do impulso de "comprar" e de "consumir". O mercado se apropriará dessa cultura, submetendo o agricultor
Em outros termos, ele não apenas inventa novas mercadorias, mas aos interesses das grandes empresas que venderá a eles o direito de
também influi na produção dos seus consumidores, que precisam uso temporário das sementes.
modificar hábitos, costumes e gostos. Portanto, a perda do controle sobre a produção de sementes
Um dos elementos centrais da moderna alucinação mercantil implica a perda dos conhecimentos e das habilidades envolvidas
é a própria genética, a manipulação de genes. As empresas não no desenvolvimento dessa profissão que vai se tornando cada vez
podem admitir que uma área que movimenta milhões de dóla- mais controlada e subordinada à ditadura das próprias empresas
res por ano seja prejudicada pela produção e circulação livre de de sementes. O desaparecimento de uma variedade de semente
sementes naturais e orgânicas. Portanto, as sementes passaram a tem o mesmo impacto na vida social como o desaparecimento
ser produzidas, controladas e comercializadas por empresas que
querem obter altos lucros. A Delta & Pine, dos EUA, patenteou 76
Idem, p. 18.
82 IDEN TI DAD E E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B DGO 83

de uma língua, com ela vão embora ensinamentos, valores e dade: lançam-se punhados de arroz nas cerimônias de casamento,"79
resistências. para desejar sorte aos cônjuges.
A prática agrícola passa agora a ser altamente tecnificada. A Para os povos egípcios, "o campo de favas( ... ) era o lugar onde
produção assemelha-se aos campos de concentração, cercada por os defuntos aguardavam a reencarnação". 80 Para os gregos Orfeu e
dezenas de proibições e de restrições. Só são consideradas válidas Pitágoras, comer favas era como comer a cabeça dos próprios pais
as experiências acompanhadas e dirigidas por técnicos que estão mortos e, assim fazendo, permaneceriam no interior do ciclo da
condicionados a ver com os olhos da empresa e não com os olhos reencarnação.
da ética. Na cultura japonesa, o feijão tem a função de afastar os demô-
As sementes, cultivo de uma cultura milenar, sob o poder das nios e de proteger dos ataques de raios.
empresas passam a circular apenas como mercadorias e não mais Logo antes da primavera, na noite de 3 de fevereiro, os japoneses espalham
como conhecimento, afetividade, experiência e memória. feijões pela casa (mamemaki) a fim de expulsar os demônios e os maus espíritos
do lar. Acompanham esse gesto gritando: demônios fora e felicidade dentro!
b) As sementes sem memória Na tradição mística - a amêndoa - simboliza segredo (o segredo é um te-
A história das sementes se confunde com a história da huma- souro) que vive na sombra e que convém descobrir, a fim de nutrir-se dele.
nidade. Há diferentes teorias para explicar as origens do cultivo O invólucro da amêndoa é comparado a uma porta ou a uma parede( ... ).
das sementes. Algumas existem há milhares de anos, como é o Para os hebreus, a amendoeira era símbolo de uma vida nova. A primeira
caso do milho, do latim mílíu e mílíum, ou seja, "uma semente árvore que floresce ~a primavera.81
que produz mil". 77 Na China antiga, a amoreira era a árvore do levante. 82 Dizem
Em algumas culturas, como a dos indígenas mexicanos, o milho que, originalmente, seus frutos eram brancos, mas tornaram-se
representa a origem da própria vida. vermelhos após o suicídio de dois amantes, que se encontravam à
(...) a criação do homem só é atingida depois de três tentativas: o primeiro sombra de uma dessas árvores.
homem, destruído por uma inundação, era feito de argila seca; o segundo, Portanto, a transgenia significa mudar a essência de uma vida. 83
desfeito pela umidade e parasitas, era feito de madeira; somente o terceiro é Tomemos o caso do arroz, se lhe inserimos genes do camarão,
nosso pai: ele é feito de milho. Ele é o símbolo da prosperidade, considerada para dar ao alimento um outro sabor, ele perde sua simbologia de
em sua origem: a semente. 78 pureza e a memória histórica é. renegada.
Para os asiáticos, o arroz é tão essencial quanto o trigo para os Além das lendas sobre suas origens históricas, as sementes tam-
europeus. "O arroz é a riqueza, a abundância, a pureza primeira. bém aparecem de outra forma associadas às catástrofes e às tragédias
Deve-se observar que, no próprio Ocidente, ele é símbolo da felici-
79
Idem , p. 82.
80
Idem, p. 41 9.
81
n CANCI, A. Sementes crioulas construindo a soberania, a semente na mão do agricultor, Idem, p. 44 e 419.
82
p. 16. Idem, p. 48.
78 GHEERBRANTE J. e CHEVALIER, A. Dicionário dos Símbolos, p. 610.
83
RIFKIN, J. O século da biotecnologia, p. 34.
84 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSE S A DEMAR B OGO 85

humanas, como, por exemplo, a origem do milho para os povos não conseguimos realizá-las. De todo modo, cumprem seu papel
indígenas da América Latina. Todas as suas lendas relacionadas ao de nos estimular na busca de melhores condições de vida. "Somos
milho estão vinculadas à superação da fome. 84 A descoberta dessa seres 'carentes', precisamos de algo que não temos, e essa é a origem
semente se deu justamente em períodos em que grupos humanos de uma 'consciência antecipadorà que nos caracteriza (... )" 85
foram levados a oferecer o sacrifício da própria carne em troca de Pelo do controle sobre as sementes, as empresas ameaçam a
conseguir superar a fome. utopia dos trabalhadores. A própria divulgação da ideia de controle
As lendas sobre as sementes acompanham a história dos seres reforça a dominação das consciências e dos espaços dos dominados.
humanos. Fazem a mesma trajetória de vida que eles. Elas são Agora, são os pensamentos e os hábitos veiculados pelas grandes
tradicionalmente colhidas e levadas para dentro das casas como empresas que penetram não só as terras, mas também os lares de
visitas ilustres. Se essas lendas se perdem, as sementes deixarão de cada agricultor. Elas produzem um personagem que imagina tu.do
participar da memória histórico-social e não mais serão cuidadas diferente: o preparo do solo, o plantio, o desenvolvimento das
afetivamente. plantas, a colheita e o mercado.
As sementes carregam consigo lembranças. Basta conversar Os conhecimentos tradicionais são colocados sob suspeita e
alguns minutos com um trabalhador rural para que ele descreva declarados incompetentes. Quem detém o saber é o técnico respon-
uma infinidade de lembranças guardadas nos caules das árvores sável pela assistência. As fases da Lua deixam de importar, porque
que trouxe, quando ainda pequenas, da casa de algum parente ou são entregues ao suporte tecnológico, aos venenos etc. o poder de
amigo. São recordações que preservam o respeito à origem das controlar "pragas", exterminando-as, e, por isso, a própria natureza
espécies. perde o poder de restabelecer seu próprio equilíbrio.
As paredes geladas dos laboratórios e as mãos escondidas nas Impõe-se um tipo de pensamento perverso. As informações
luvas sintéticas dos cientistas serão incapazes de reproduzir o calor divulgadas não visam desenvolver o ser humano, mas alertá-lo para
e a afetividade humanas transmitidas às sementes nelas guardadas os produtos que deve consumir. O agricultor continua a residir
há milhares de anos. no interior, mas sonha mesmo é com as mercadorias que estariam
Modificando as sementes, acrescentamos novos elementos que à sua espera na cidade; mercadorias que nada acrescentam ao seu
lhes dão uma nova identidade. Elas deixarão de se entender como bem-estar real.
espécie e sua germinação e reprodução tornar-se-ão dependentes As empresas penetram nos sonhos dos trabalhadores fazendo-os
das determinações das empresas. acreditar na possibilidade do enriquecimento imediato, em curto prazo
e com o menor esforço, bastando que utilizem as sementes genetica-
c) A invasão da utopia camponesa mente modificadas e os produtos químicos que as acompanham.
A imaginação é um dos momentos da consciência humana; é São mudanças que repercutem nas formas de comportamento.
por ela que nascem nossas fantasias e se tornam utópicas quando As relações com os compadres e com os vizinhos, com os iguais

85
84 BOGO, A. O vigor da 111/stlc11. pp. 11 8- 11 9. KONDER, L. "O calor da utopia e a frieza da ciêncià', p. 140.
I DENTIDAD E E LU TA DE CLASSES
A DEMA R B OGO 87
86

e do mesmo meio, perdem importância e credibilidade. O saber Nesse sentido é que se instala a monocultura, ou a cultura
respeitado é o da empresa, por intermédio do técnico; ser seu amigo de um mesmo hábito, um mesmo dono, um mesmo sistema de
é adquirir prestígio, é poder colocar-se como intermediador com devastação, expulsão e degradação dos solos.
os que não têm acesso a ele. Nas antigas civilizações agrárias, adorava-se a deusa Ceres, de
Junto com as forças produtivas vão também as receitas para as onde advém a palavra cereais, ou seja, os presentes de Ceres, em
mudanças da ética, dos hábitos, dos costumes e dos valores, de toda forma de espigas e grãos, para os que trabalham na terra no tempo
uma concepção de mundo. Os trabalhadores do campo perdem da colheita. Com as florestas artificiais e com a invasão da agricul-
sua identidade e a utopia camponesa entra em colapso. tura comercial, os cereais deixarão de ser um presente oferecido a
quem trabalha na terra. AI, florestas artificiais impedirão a produção
d) A perda das raízes culturais de grãos e.onde estes forem produzidos, mecanicamente, já estarão
A relação com a agricultura permitiu ao agricultor decifrar contaminados. Por isso, os trabalhadores, com suas famílias, tam-
os encantos da terra, da vegetação, dos animais e dos insetos. A bém serão levados a abandonar a terra; os campos vão se tornar
substituição da produção de espigas por florestas artificiais, dando cada vez mais tristes e as cidades cada vez mais famintas.
início ao monocultivo com fins comerciais, trouxe consigo não só
a perda dos hábitos nos tratos diversificados com as espécies, mas e) A manipulação da identidade
também desequilíbrios ecológicos imensos. AI, sementes transgênicas por manipulação produzirão alimen-
Nas florestas naturais, existem árvores grandes e pequenas; tos transgênicos.
as que sugam água e as que devolvem umidade ao solo. Não é o Os alimentos obtidos por manipulação genética são: a) os organismos que
que ocorre com o monocultivo da agricultura comercial, no qual podem ser utilizados como alimentos e que têm sido submetidos a processos
todas as árvores sugam ao mesmo tempo e, por isso, os solos ficam de engenharia genética (por exemplo, colheitas de plantas geneticamente
crescentemente ressecados. É o ressecamento que faz com que as modificadas); b) alimentos que contêm um ingrediente ou aditivo derivado
águas das chuvas escorram acima do solo, como se caíssem sobre de um organismo submetido à engenharia genética; c) alimentos que foram
um piso de cimento. Perdendo essa água das chuvas, sedentas, as produzidos utilizando-se em seu processamento um produto auxiliar (por
raízes das árvores precisam buscá-la, cada vez mais profundamen- exemplo, enzimas) criado mediante engenharia genética. 86
te, no solo, provocando um rebaixamento no lençol freático, que Portanto, a intervenção humana no processo de produção de
nada mais é que a reserva de água guardada gratuitamente pela alimentos pode modificá-los por meio do cultivo e do uso espe-
terra para abastecer os seus descendentes. cífico da mistura destes cultivos, como é o caso do uso da soja n·a
A falta de umidade do solo produz a destruição da diversidade mistura de vários produtos ou na produção de fibras. Em qualquer
de vidas - muitos tipos de vidas não sobrevivem com pouca água. um destes casos, os alimentos sofrem várias modificações, desde a
Os pássaros são obrigados a migrar para outros lugares. Essas composição, o sabor, a cor e até o cheiro.
imensas extensões de plantação de eucaliptos são chamadas de ·
"deserto verde".
86
RIECHMANN, J. Cultivos e alimentos transgénicos, p. 77.
88 IDEN TIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B OGO 89

As sementes, em grande parte, estão intimamente ligadas ao rirem determinados alimentos. Hoje muitos ingredientes que
alimento, e a perda do controle sobre as sementes representa a jamais foram testados estão sendo acrescentados na produção e
perda do direito de produzir os próprios alimentos. Há um pen- composição dos alimentos. Pior ainda, "muitos dos genes que estão
samento árabe segundo o qual "nenhum povo pode ser livre se os sendo transferidos para o código genético de lavouras de alimentos
seus alimentos são produzidos fora de suas fronteiras" que nos dá jamais fizeram parte da dieta humanà'. 88
a verdadeira fundamentação da tese da soberania alimentar. Por outro lado, haverá um direcionamento das variedades de
O controle tecnológico sobre as sementes trará risco e insegu- alimentos que deverão ser produzidos em cada país. Dessa forma,
rança para a produção dos alimentos populares, pois a produção já a própria soberania alimentar será perdida, pois as empresas po-
não dependerá apenas do clima e das condições de produção, mas derão impor aos governos políticas de importação que favoreçam
também, e ainda mais, do interesse das empresas e dos governos. os ganhos exorbitantes dos monopólios.
Esse controle provocará mudanças nos hábitos alimentares Com isso, a soberania da humanidade frente ao imperialismo
das pessoas. Quem sabe os próprios alimentos mudem de tempos de um pequeno grupo de nações está colocada em risco, pois ela
em tempos, como já ocorre com a moda, nas vitrines das lojas de não depende apenas do desenvolvimento econômico e tecnológico,
tecidos e de calçados. As empresas poderão brincar com a vida mas da capacidade de produzir autonomamente, ou seja, da capa-
como se ela fosse matéria morta e, poderão criar na consciência cidade de preservar as reservas naturais de florestas, dos minérios,
social, a necessidade do consumo pela sua aparência e não pela do petróleo, das fontes de água doce e de educar o seu povo para
capacidade nutritiva dos alimentos. que reproduza os meios de vida de tal modo que as futuras gerações
Sendo propriedade das empresas, as sementes serão liberadas tenham melhores condições de gerirem a sua própria existência.
ao preço por elas estipulados. Dessa maneira, mesmo que grande A contaminação dos alimentos com produtos transgênicos, seja
parte dos produtores queiram resolver os problemas de produção por meio das plantas geneticamente modificadas, seja pela mistura
e alimentação, todos estarão submetidos aos interesses capitalistas de outros componentes, afetará não somente a saúde humana, mas
que favorecem a produção de produtos agrícolas segundo a lógica também sua cultura, pela modificação de todo um conjunto de
do mercado. ''As plantas, os animais, o meio ambiente estão dei- hábitos e de modos de vida.
xando de ter características de complexidade natural para virar um
mero artefato." 87 Os produtores já não conseguirão compreender o
que, de fato, estão produzindo e os consumidores já não saberão
o que, de fato, estão consumindo.
A medicina comprovou que, naturalmente, cerca de 2% dos
adultos e 8% das crianças apresentam reações alérgicas ao inge-

87
LISBOA, M . "Alimentos transgênicos: proteção ao consumidor e riscos para o meio
RIFKIN, J. O século da bioteconologia, p. 109.
88
ambiente", p. 4 1.
AMEAÇAS À CULTURA EÀ
IDENTIDADE CAMPONESA

O TÍTULO DESTE CAPÍTULO SUGERE duas importantes contradições:


a primeira, porque no Brasil, pela sua diversidade, não há "uma
única cultura camponesa" - cada grupo social com essa origem,
que habita o meio rural, dependendo da localização, etnia, for-
ma organizativa, religião etc. se apresenta, no todo ou em parte,
diferenciadamente. A segunda, porque a identidade também, na
atualidade, seja pelos meios de comunicação, pela instalação das
empresas capitalistas por quase todos os recantos dá terra, pela pe-
netração do mercado leva influências urbanas aos habitantes desse
"mundo" camponês, 89 não isolado do todo, mas como representação
de variadas características históricas e atuais.
Os camponeses não constituem uma sociedade à parte, uma
classe arredia ou um modo de produção próprio; geralmente são
vítimas das inovações e das transformações que mexem com seu
modo de produzir a existência. Eles fazem parte do mesmo modo
de produção em vigor e buscam, por meio das formas variadas de
produção, maneiras de resistir:em às transformações forçadas por
elementos externos.
Elas são cada vez mais violentas, principalmente nos lugares em
que o capital tem maiores interesses em ampliar a sua concentração.
Nesses locais, parte das populações consideradas necessárias são
acomodadas e toleradas para que aí permaneçam; parte delas são
assalariadas ou simplesmente expulsas para fora do território rural.

89
LEFEBVRE, H. "Perspectiva da sociologia rural", p. 163.
92 IDENTID AD E E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 93

Há um terceiro grupo dos que se organizam, lutam e resistem, cial, natureza constitutiva, em pelo menos cinco diferenciações:
seja contra um inimigo próximo, seja contra os inimigos potentes a) pelas características das atividades produtivas com a força de
representados pelo capital internacional. trabalho familiar (quebradeiras de coco de babaçu, castanheiros,
A muitos dos nativos e aos que vivem nas regiões onde o capital seringueiros, lavradores, colonos, pequenos agricultores, sertane-
já penetrou decididamente, ainda acreditando ser a educação o jos nordestinos, meeiros, assentados); b) condição social histórica
meio principal de ascensão social, sobra-lhes a alternativa de en- sem definição de propriedade (quilombolas, posseiros, agregados,
tregarem os filhos diariamente para que o Estado os eduque à sua rendeiros, meeiros, sem terra, acampados); c) localização geográfica
maneira, levando-os para os povoados e cidades para escolarizá-los e e residencial (ribeirinhos, extrativistas, cizaleiros, fundo de pasto);
domesticá-los nas escolas que atentam contra a cultura que conhe- d) assalariados temporários e avulsos que moram na terra, mas
cem, visando desenraizá-los definitivamente para que desabitem o parte da renda extraem da venda da força de trabalho (diaristas,
espaço quando crescerem. vaqueiros, peões); e) caboclos e comunidades indígenas. Sendo
Por essas e outras razões é que o conceito de campesinato assim, "A diversidade cria identidades locais e ambientais". 9 1
hoje causa profundas polêmicas e desentendimentos. Antes de Essa aproximação ainda superficial é para chamar a atenção
tudo, devemos considerar que o próprio conceito, no intuito de da diversidade à qual o conceito de "camponês" tentou se impor e
compreender a diversidade das populações do campo, se sobrepôs passou a ser usado em um país com características diversas como é
negando as identidades específicas. Sobre isso descreveu José de o Brasil. Mas também para dizer que a constituição e a organização
Souza Martins na década de 1980: da classe camponesa não será possível sem levar em consideração
As palavras "camponês" e "campesinato" são das mais recentes no vocabulá- as atividades produtivas específicas, que é o ponto de referência,
rio brasileiro, aí chegadas pelo caminho da importação política. Introduzidas de aglutinação.
em definitivo pelas esquerdas há pouco mais de duas décadas, procuraram As estatísticas oficiais também passam por cima dessa diversi-
dar conta das lutas dos trabalhadores do campo que irromperam em vários dade, pois seu interesse é contabilizar a população rural e constatar
pontos do país, nos anos 1950. Antes disso, um trabalhador parecido, que que, em termos proporcionais, ela vem diminuindo. Diferenciando
na Europa e em outros países da América Latina é classificado como cam- a população rural e urbana, em 1940 havia, na agricultura, cerca
ponês, tinha aqui denominações próprias, específicas até em cada região. 90 de 74% da população e, em 2000, cerca de 18%.
Mas é bem verdade que, embora o conçeito tenha se genera- Para além dos números, sabemos que, embora fustigada pela
lizado ele não conseguiu suprimir as identificações regionais dos intromissão descabida do capital, existe uma população significa-
grupos sociais do território agrário brasileiro. tiva que aparece, ora como colaboradora, aceitando participar da
De acordo com as características das regiões do Brasil, levando divisão social do trabalho com a indústria, integrando-se no início
em consideração a sua natureza constitutiva, podemos facilmente do processo de produção, empenhando seus meios de produção e
aproximar particularidades pelas formas produtivas, situação so- a força de trabalho familiar para oferecer a matéria-prima, como

90
MARTINS, J. S. Oscamponeses e a política no Brasil, p. 21. 91
GÔRGEN, S., ofm. Os novos desafios da agricultura camponesa, p. 13.
94 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES
ADEM AR B OGD 95

frangos, suínos, leite etc.; ora como empecilho, seja por resistir em com a radicalidade da vida. Facilmente comprovamos isso, através
desocupar o território e ceder o lugar para os lagos artificiais for- da literatura, na qual a participação deste contingente foi decisiva
mados pelas barragens, seja por querer se lançar sobre o latifúndio, nas lutas revolucionárias.
que desde os últimos cinco séculos estão vazios de seres humanos Nesse plano, a palavra camponês não designa apenas o seu novo nome,

e não cumprem a função de servir a sociedade. mas também o seu lugar social, não apenas no espaço geográfico, no campo

Em seu Dicionário de Reforma Agrária (América Latina), Clo- em contraposição à povoação ou à cidade, mas também na estrutura da

domir Santos de Morais, embora equipare o Brasil com os demais sociedade; por isso, não é apenas um novo nome, mas pretende ser também

países da região, expôs mais longamente o conceito com conteúdo a designação de um destino histórico. 93

"hispano-americano" em que aparece a definição de "campesinos" João Pedro Stedile reforça essa ideia ao responder a pergunta
como: no livro Brava Gente:
(... ) simples produtores que trabalham a terra como proprietários, parceiros, Por que o MST se chama Movimento dos Trabalhadores Rurais e não "Movi-

meeiros, arrendatários ocupantes de terras de título precário, ocupantes de mento dos Camponeses Sem Terra?". Porque - diz ele - a palavra "camponês"

terras públicas, "comuneros", usufrutuários etc., que se utilizam de seus é meio elitizada. Nunca foi usada pelos próprios _camponeses. Não é, digamos,

próprios meios de produção e decidem sobre consumo e distribuição dos um vocábulo comum. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi o único

produtos. Sua produção é familiar e poucas vezes contratam trabalhadores que usou o termo "camponês". O homem do campo geralmente se define

para realizá-la. É o empresário de produção familiar (... )" 92 como agricultor, trabalhador rural ou como meeiro, arrendatário. É, na

É nesse universo de posições e interpretações que precisamos verdade, mais um conceito sociológico e acadêmico, que até pode refletir a

situar o conceito de camponês. Por um lado, devemos vê-lo pela realidade em que eles vivem, mas não foi assimilado. Não sendo uma palavra

ótica sociológica, que considera que ele se caracteriza por ter uma popular, não tinha como colocá-la no nome do movimento (... )94

parcela de terra à disposição para produzir; utiliza a força de tra- Não poderiam identificar-se com um nome "elitizado" aqueles
balho familiar e a sua unidade de produção é também referência que não tinham ainda sequer resgatado a autoestima de classe.
de consumo. Mas, por outro lado, devemos acrescentar a essa in- Nesse mesmo sentido, aponta Horacio Martins:
terpretação as caracterizações culturais e as perspectivas políticas, A revificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e

que permanentemente se abrem e se colocam à sua frente como afirmar a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na socie-

desafios. dade capitalista a partir das teses da centralidade da reprodução da família

É nesse sentido que vamos abordar a identidade camponesa, camponesa e da sua especificidade no contexto da formação econômica e

procurando compreender que essa população, desde a sua origem, social capitalista. Objetiva, deveras, abranger nesses conceitos a totalidade das

sempre foi mais do que uma categoria ou uma classe; é especial- formas de reprodução das unidades de produção familiar e rural brasileira.95

mente uma cultura que ·e estrutura em torno do trabalho e traz


em si, pela própria natureza, a radicalidade da luta, porque lida
93 MARTINS, J. S. Os camponeses e a política no Brasil, pp. 22-23.
94 STEDILE, J. P. e MANÇANO, B. Brava gente, p 31.
95 CARVALHO, H . M. O campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes de
92 desenvolvimento do campesinato no Brasil, p. 23.
MORAlS, C. . Diciondrlo de reformn agrdria (América Latina), p. 173.
96 IDENTIDA DE E LUTA DE CLASSES A DEMAR 8 0GO 97

Por sua vez, o campo, esse território não urbano, segue lógicas DISSOLUÇÃO E AFIRMAÇÃO DA HISTÓRIA
diferentes das cidades. No meio urbano, a intervenção do capital Pela história, temos as condições de comprovar os feitos e os
estrutura, materializa planos rapidamente. Edifica projetos visíveis desfeitos, os malefícios e os sacrifícios impostos pelos "civilizadores"
e os nomeia de progresso. No campo, o avanço dos investimentos do progresso capitalista.
capitalistas dissolve, desestrutura, extermina o já feito e praticado Em nosso país há pedaços da longa história contada pela
por séculos e milênios. ótica dominante; e há pedaços não contados. Apenas as ruínas
Os papéis e funções são diferentes. Por isso, a cultura e a servem de testemunhas das perversidades impostas, quando se
identidade também se constituem e se manifestam de formas interrompeu a história de tribos, aldeias, povos, quilombos e
diferenciadas, ora abrindo-se para as mudanças, ora retraindo-se comunidades. O nacional, como "comunidades imaginadas"
como forma de preservação. Seja nos aspectos produtivos, em que diferentemente umas das outras, foi no passado e é no presente,
os produtos caipiras e os industrializados não possuem apenas dife- mesmo com a globalização, lugar de resistência e projeção do ser
rença no sabor, mas também no conceber e no fazer, seja também e do vir a ser da cultura.
em relação às tecnologias e às relações sociais. Os camponeses A primeira prova escrita que temos, demonstrando as diferenças
também, como em qualquer outra atividade produtiva, antecipam culturais é a carta de Pero Vaz de Caminha para a Coroa portu-
na ideia o que desejam produzir concretamente, a diferença é que guesa, enviada dias depois dos primeiros contatos com os índios,
esta prévia ideação para se realizar depende da ajuda da natureza ocorridos em Porto Seguro, Bahia, em 1500, descrevendo-os como:
e esta tem seus ciclos que precisam ser respeitados. "pardos, nus, carregam arcos e flechas e que falam outra língua e
Em nosso país, os trabalhadores rurais, de forma oficial, sem- possuem os beiços furados". Na sequência do relato, descreve que
pre estiveram a serviço do projeto dominante. Os trabalhadores "provaram o vinho e o rejeitaram". Deram-lhes: pão e peixe cozi-
nativos, afrodescendentes ou descendentes europeus, utilizados do, confeitos, mel, figos passados, mas não quiseram comer quase
pela colonização, foram tomados como força de trabalho barata e nada; "provavam e lançavam forà'. Era dos índios Tupis que falava.
como desbravadores dos sertões, que se pretendia povoar ou onde Após seguir a descrição, por toda a carta, já quase no final,
se pretendia produzir algum produto de interesse capitalista. revela que:
Enquanto o projeto capitalista foi e é pela dissolução, a nossa Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou
preocupação deve ser pela defesa e pela valorização das diferentes galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do
identidades existentes no Brasil. Vamos buscar pelas dissoluções homem. E não comem a não ser deste inhame, de que aqui há muito, e
os elementos para organizar as nossas afirmações. Isso porque, o dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto
capital, no estágio im perialista, quer se estabelecer em todos os andam tais tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com tanto
lugares já habitados e p recisa desmanchar a organização e dissolver trigo e legumes que comemos,
a cultura eristente. M as há reações a este movimento contraditório Nessa ideia da superioridade cultural está o desejo do não
_d estrutivo. Vejam os em inco aspectos como se manifestam as reconhecimento do sujeito nativo e da dissolução da cultura
contradições. local.
98 IDENTIDAD E E LUT A DE CLASSES ADEM AR BO GO 99

É claro que isso era uma impressão de um visitante e não a Mas essa violência não foi rp.enor para os "lavradores nacionais"
descrição da verdade. Sabe-se por tantas outras vias que aqueles conhecidos como mestiços (caboclos, caipiras ou sertanejos), 96
habitantes chamados de índios produziam a cerâmica, teciam suas originários das relações entre os homens brancos e as mulheres
redes e praticavam a agricultura. A terra era um bem comum da índias. A esses coube propriamente a tarefa da expansão territorial,
qual cada família poderia separar uma parte para plantar suas roças por meio das derrubadas ou da penetração com os rebanhos de
com mandioca e milho. gado, como ocorreu no Nordeste do Brasil, onde essas populações
Essa história e seus costumes não só foi desconhecida, mas foram se deslocando seguindo as margens do rio São Francisco,
também sobreposta com a outra verdadeiramente perversa como que divide os Estados da Bahia e Pernambuco.
descreveu Alberto Passos Guimarães: São raízes perdidas pelo caminho e raízes reiniciadas. Histórias
Aos princípios e métodos da conquista, sucediam os princípios e métodos desmanchadas que marcam a formação do campesinato brasileiro
da colonização. A missão confiada aos colonizadores era a de submeter que se reconstruíram em outras bases. Ao se instalarem nas novas
o íncola, apropriar-se de suas terras e bens, impor-lhe suas concepções e condições, a convivência permitiu o ressurgir pelo encontro da
transformá-lo num agente dócil de seus objetivos e domínio. experiência já vivida e as novas circunstâncias criadas, de uma
A violência política e cultural da colonização, assim como pos- nova cultura enraizada.
teriormente a da escravidão e, de forma parecida, a da imigração, Ao mesmo tempo em que o capital desenvolvia as forças pro-
foi não só de obrigar a renegar a cultura de origem, mas também dutivas para produzir e abastecer o mercado externo, era obrigado
de ter que assumir a cultura do colonizador. a permitir que se produzissem, de maneira diversificada, todos os
A história dos prováveis 5 milhões de nativos existentes na produtos necessários; e que as comunidades (formato da sociedade
época nesta terra, que falavam cerca de 300 línguas; os 3,5 milhões rural) se estabelecessem com suas originalidades.
de africanos trazidos como escravos que também se diferenciam, Essa existência produzida coletivamente foi, ao longo do tem-
como até hoje as comunidades e os povos com suas culturas (os po, tornando-se também fator de resistência, porque a nova história
que para cá vieram eram da costa ocidental africana, desde o _se estabeleceu como fator de identidade de cada grupo social.
atual Senegal até a atual Angola e indo em direção ao interior, Na atualidade, as empresas repetem as formas de coerção sobre
que compreende as bacias do rio Congo, Níger e Benin; seguindo os trabalhadores da agricultura. Visando enquadrá-los em um mo-
para a costa oriental, onde hoje é Moçambique e a atual Etiópia); delo agroindustrializado, altamente tecnificado, ou expulsá-los para
assim como os trabalhadores migrantes europeus, que chegaram se tornarem donas do espaço ocupado, usam diversos subterfúgios
contraindo enormes dívidas, para se instalarem, com juros que que vão desde a obrigatoriedade de consumir insumos, máquinas
chegavam a 12% ao ano, vindos de diferentes países como Suíça, ou sementes geneticamente modificadas, com a integração e o assa-
Alemanha, Portugal, Itália, Polônia, Holanda, entre outros, aqui lariamento, ou a simples expulsão pela compra ou expropriação das
se instalaram em colônias ou como meeiros e arrendatários: todos terras, com alagamentos para fins da construção de hidrelétricas.
viram pela violência, desprezo ou preconceito, a dissolução do
patrimônio cultural que traziam. 96
Idem, p. 71.
100 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B oGo 101

A resposta à dissolução histórica é a organização social. Os DISSOLUÇÃO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE


problemas sociais provocam as mobilizações e estas estruturam-se O projeto do capital não se detém diante de sentimentos ou
em movimentos de lutas que dão forma à classe social. É a história valores húmanitários. Ele, de certa forma, se insurge contra outro
que aparece com um novo conteúdo. Os avanços na formação da projeto, espontâneo, histórico, visando desestruturá-lo - por isso
consciência impedem de cair no corporativismo de que "cada um a identidade tem poder. O sujeito incomoda o diferente, pois ele
se basta a si próprio" e de que a organização política mais ampla é a contestação da identidade oposta.
não é necessária. Para o capital, o campo, com a sua monotonia original, é um
A partir de meados da década de 1980, inaugurou-se no Brasil atraso; principalmente quando quer intervir nele por meio da di-
a fase da formação dos movimentos sociais do campo: de estru- nâmica tecnológica. Mas essa rotina, supostamente improdutiva,
tura e princípios semelhantes, táticas combinadas por meio das não é depressiva; ao contrário, é atrativa e exaltadora. Envolve
diferentes formas de lutas, direção coletiva, autonomia política quem nela vive com seus afazeres simples, lentos, regulados pelo
e ideologia própria. Esses movimentos sociais abrangem todas tempo da natureza.
as diferenciações de trabalhadores ou comunidades indígenas, O capital procura entrar na utopia camponesa e desorientá-
no espectro da luta pela terra, da resistência contra as barragens, la. Formula novas imagens como se fossem metas alcançáveis
comunidades quilombolas, direitos dos pequenos agricultores, por dentro e por fora das expressões culturais. Para desestruturar
quebradeiras de coco de babaçu, ribeirinhos, extrativistas, ciza- precisa inovar.
leiros etc. As famílias camponesas, historicamente e em lugares onde esse
Há, sem dúvida, um processo em andamento para a formação tipo de modo de vida existe, criam e educam os seus filhos não
da classe. Ele ainda esbarra nas divisas de cada categoria e no apego para o mercado de trabalho, mas para a comunidade. Ali devem
corporativo exagerado que impede que se vejam as outras forças, constituir família e se reproduzirem, garantindo a harmonia e os
mas caminhará para a unificação nacional. O capital obrigará a laços de parentesco.
fazer isto. A Via Campesina já é o primeiro ensaio para a reunião Sempre que, no passado, os camponeses mencionavam a
destas forças. cidade, era para os filhos buscarem nela o melhor, como, por
Nesse sentido, é que se diferenciam os movimentos de classe exemplo, o estudo: "estudar para não sofrer". De fato, o sofrimento
e os movimentos populares. Os movimentos que se estruturam a na agricultura é, em certo sentido, exagerado pela diversidade de
partir de objetivos táticos e estratégicos caminham para formar a atividades diárias, mas se apresenta como desafio às habilidades
organização política de sua força e a constituição de sua classe social, e, como tudo se interliga na mesma cultura, há uma atração que
como é o caso dos trabalhadores sem terra que, ao se organizarem, prende e que a muitos convoca para o retorno.
entram para a classe camponesa. Por sua vez, os movimentos popu- O suposto isolamento camponês não se dá pelo viés individua-
lares tendem a alcançar os objetivos táticos e se dissolverem, tendo lista ou egocêntrico, mas, sim, por uma necessidade, devido ao
em vista que deles participam vários grupos, em que o determinante modo como detém a propriedade, produz e convive. Como tem
é a identidade temporária como objetivo. a obrigação de traçar seus próprios projetos de produção, sente-se
102 IDE~TIDADE E LUTA DE CLASSES ADEMAR 80G O 103

preso a eles em tempo integral, tornando-se administrador e exe- A perversidade das empresas capitalistas, do mercado e dos
cutor ao mesmo tempo. Sua visão estratégica não está claramente próprios meios de comunicação é instituir aos poucos a norma-
delineada puramente como meta, mas num sentimento ou vontade lização de uma identidade que lentamente ganha superioridade
de legar aos descendentes aquilo que edifica pelo trabalho. Atender sobre a identidade existente. Os seus aspectos, mostrados como
aos anseios e necessidades das gerações futuras faz com que plante positivos, são tantos, que cada vez mais o tradicional e o normal
árvores frutíferas, preserve as reservas florestais, cuide da água doce histórico vão perdendo a credibilidade. A autoestima despedaça-se
etc. Além do mais, não pode ser egoísta um ser que é profundamen- e o patrimônio cultural vai se tornando inútil para a convivência.
te hospitaleiro em suas relações com os visitantes, na contribuição A nova identidade normalizada destaca-se com tanto vigor que
em produto ou em serviços para ações comunitárias. incentiva o desenvolvimento dos preconceitos de si, para si próprio.
Há, por sua vez, uma relação afetiva e de proteção para com a É como se sentisse medo de si mesmo. Medo que alguém veja uma
geração que vem. Geralmente a propriedade e os bens familiares, característica, descubra um segredo ou conheça um hábito. Então
embora adquiridos com o esforço de todos os filhos, ficam com o o gênero musical deixa de ser admirado publicamente como se ele
mais novo. Ós mais velhos, ao constituírem a sua família, retiram-se inferiorizasse o ouvinte. As roupas e os calçados consumidos passam
para um lugar da propriedade ou para fora dela, deixando todos a imitar os habitantes dos grandes centros urbanos. O linguajar
os seus direitos ce>mo contribuição para o irmão mais novo tomar é acrescido com palavras desenraizadas, as cantigas de roda e da
conta dos pais. tradição étnica são abandonadas, e assim todos os objetos e bens
É diferente de um ser social urbano, que, ao se sentir insatisfeito de consumo vão penetrando na convivência e desestruturando a
com o seu trabalho, pode procurar outro e continuar a viver nomes- sua forma de ser.
mo bairro. Muda de profissão, mas não de lugar social. O camponês Tudo passa a ser visto a partir de um padrão estabelecido por
não! Não lhe é permitido separar o tempo de trabalho e o seu tempo interesses externos, como se esse fosse o juízo correto. Quem está
livre, se é que ele ainda existe no atual estágio do desenvolvimento do com ele tem estilo, por isso pode questionar os outros e não aceitar
capital. Na atualidade tudo é utilizado para aumentar a exploração. ser questionado, como aquela conhecida expressão de prepotência:
Mesmo ao assistir televisão - estamos a serviço daquela emissora, "Aqui quem faz as perguntas sou eu.". Ao perguntado, cabe não
dando-lhe audiência que garante aos investidores colocarem a pro- só a obrigação de responder, mas também a determinação de não
paganda de seus produtos, induzindo os espectadores a se tornarem perguntar.
consumidores de produtos que carregam em si o valor a mais da Imaginemos então que a voz do capital esteja dia e noite
exploração, extraído da força de trabalho que os produziu. interrogando as pessoas: por que vive ali? Por que consome tais
Se um camponês quiser mudar de ocupação, terá que mudar produtos? Por que não vai para outro lugar? Por que não troca de
de lugar social. Para isso, deverá desfazer-se dos bens e ferramentas móveis e eletrodomésticos? Por que não experimenta os agrotó-
de trabalho, dos animais, dos utensílios domésticos, separar-se da xicos, as sementes transgênicas? São essas algumas questões que
comunidade, distanciar-se do cemitério, da capela e desfazer-se respondemos intimamente, que nos levam a consentir e a pactuar
de todas as amizades. com os desejos da suposta superioridade do capital.
104 IDENTIDAD E E LUTA DE CLASSES A DEMAR Bo Go 105

Hegel disse que "a história é uma luta constante pela liberda- Há tentativas de dissolução das identidades locais e há
de". Nesse sentido é que as pessoas buscam por todos os meios resistências. A busca de produzir organicamente, o resgate das
vencer na vida, apostando em jogos de azar ou buscando negócios tradições artísticas, a rejeição da mecanização e da compra de
lucrativos etc. No fundo, o que as pessoas querem, é se livrar das meios de produção impróprios para a pequena produção , a
ordens e das obrigações. Por isso atendem facilmente aos anseios associação para transformar os próprios produtos e a busca da
do capital. Esquecem, porém, que quanto mais se aliam a ele mais preservação do ambiente são sinais do renascimento de outra
dependentes se tornam. identidade diferente da do capital. Os camponeses possuem a
É, então, a "indústria cultural" que orienta e determina a for- terra em forma de propriedade particular, porém não se pode
mação da identidade das pessoas e dos grupos sociais. O mercado compará-la com a propriedade capitalista, mas sim como um
é o caminho para a projeção dos habilidosos. Ele chama e projeta bem de uso que não é utilizado para explorar a força de traba-
aqueles que se submetem e simpatizam. Como disse Adorno, re- lho alheio.
petindo Tocqueville: "Sob o monopólio privado da cultura sucede Cada grupo social possui seus traços de identidade que se man-
de fato que a tirania deixa livre o corpo e investe diretamente sobre têm nos hábitos alimentares, nos quais cada qual dá uma utilidade
a almà'. 97 diferenciada ao milho, fazendo a broa, a polenta, o cuscuz, o pão
Isso serve tanto para a competição quanto para a submissão. de milho, a pamonha, o munguzá, ou com o aipim, extraindo a
Primeiramente, induz a uma liberdade ilusória em que se pode farinha, a goma, o biscoito, o biju, a tapioca etc.
buscar o quanto se deseja e, ao encontrar uma grande parte, quer Há, por sua vez, o cuidado com as sementes; a cada ano se
mais, mas não alcança. A minoria que alcança, entrega a alma percebe que aumenta a recuperação de variedades em extinção.
ao seu dominador, submetendo-se a contratos ou simplesmente O vestir no campo traz consigo a simbologia do reconheci-
deixando-se escravizar em troca de poder estar naquele meio. mento à distância. O tipo de chapéu usado e as cores das roupas
Oferecer e negar é parte do jogo do capital. É como se houvesse desbotadas pelo tempo de uso tornam os camponeses inconfun-
um movimento para frente que vai concretizando a identidade díveis entre si, diferenciado-os dos empresários do agronegócio.
desejada, e um movimento para trás que vai desestruturando a Aqui reaparece a unidade e luta dos contrários, ao mesmo tempo
identidade existente. em que os camponeses detêm a terra sob seu domínio como os
Essa força que move para frente conduz ao caminho da imi- grandes proprietários, dão outra função social a ela e, ao introduzir
tação, semelhante à trama de um filme que faz quase sempre os em seu trabalho novas forças produtivas, mais desenvolvidas, não
espectado~es se identificarem com determinados personagens. visam dispensar a força de trabalho, mas diminuir os sacrifícios e
Nesse caso da identidade, a tendência é fazer os seres sociais o esforço físico exagerado.
identificarem-se com as invenções do capital, em oposição à iden- É evidente que esses grupos sociais não podem imaginar que
tidade não capitalista. estejam vivendo no capitalismo de cem anos atrás. Nem eles são
os mesmos, nem o capital o é, mas nem por isso devem aceitar ser
97 ADORNO, T. A indústria cultural e sociedade, p. 25. aquilo que nada tem a ver com suas raízes históricas. A organiza-
106 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR 8 0GO 107

ção de formas variadas de cooperação possibilita a superação do pé para ver mais longe e localizar os alvos preferidos - assim,
isolamento e, pela convivência e o estudo, eleva-se a qualidade da aprendeu a andar ereto.
consciência social e política. As distâncias e a demora de obter o alimento levou o ser
h umano a ter que buscar ajuda. Primeiramente em sua própria
DISSOLUÇÃO E AFIRMAÇÃO DO EQUILÍBRIO CULTURAL espécie, saíam em grupos para capturar os animais. Depois,
O equilíbrio é uma relação na qual todas as forças sentem-se do mesticando o cachorro, que supriu alguns dos limites hu-
contempladas e respeitadas, embora nem sempre seja favorável a manos.
todas elas, nem tampouco a anulação das contradições. Com o tempo, ao descobrir a agricultura, surgiu a necessidade
O tempo, no campo, permitiu, ao longo da história, fazer de domesticar o boi e o cavalo para o trabalho. Nesse sentido, há
certas combinações entre os seres humanos, os animais e a natu- uma diferenciação estabelecida na propriedade camponesa, em que
reza, que garantiu o lento desenvolvimento dos sistemas de vida podemos encontrar animais de trabalho e animais de consumo.
interligados. Gado leiteiro e gado para o abate. Árvores frutíferas e sombra e
O camponês tradicional, nativo ou migrado, aprendeu, com o árvores para lenha e construções. Insetos danosos e insetos cola-
seu fazer necessário, que tudo ali, naquele ambiente, tem valor e boradores, principalmente os que cuidam da polinização das flores
importância. Na cidade, ao contrário, qualquer objeto com defeito nos plantios e na perfuração do solo.
ou as sobras de sua fabricação são descartadas e jogadas no lixo. Na Essa tradição foi e está sendo atacada pela expansão da agricul-
pequena agricultura, o lixo são restos aproveitados imediatamente tura comercial. As grandes lavouras, de um só produto, tornaram-se
pela natureza. inimigas das demais espécies. O capital não tem responsabilidade
A cultura é conhecimento que se vai reunindo e praticando com a vida do meio ambiente. As máquinas avançam pelas encostas
ao longo da vida. Esse conhecimento é o referencial para medir a como se quisessem desmanchá-las para entupir o rio e ampliar
importância ou não das mudanças. a área de plantio. O uso desenfreado de agrotóxicos elimina os
A experiência permitiu estabelecer na pequena agricultura, insetos, pássaros e peixes indiscriminadamente.
diferenciações e respeitá-las. Em relação à terra, por exemplo, O equilíbrio, portanto, criado pela própria natureza, ou pela
levou a três subdivisões: a) terra de trabalho; b) terra de descanso; convivência desta com os camponeses, está sendo dissolvido. O
c) terra de reserva. mercado penetra, de uma forma ou de outra, nas mais longínquas
Por outro lado, a vida familiar depende da vida das aves, vilas e povoados.
animais e insetos. A história detectou que supostamente o ser O que importa entender é que aquilo que foi feito com as mãos
humano aprendeu a andar sobre dois pés há cerca de 90 mil há milhares de anos, agora está sendo dissolvido pelas máquinas e
anos, e o fez por necessidade de sobrevivência. Como a ativi- pelos insumos controlados por empresas transnacionais. A expulsão
dade principal era a caça, sendo inferior aos demais animais dos camponeses não só esvazia o campo de seres humanos, mas
na velocidade, na visão e no faro, precisava armar tocaias ou também libera as forças do capital para agirem livremente para
esgueirar-se entre os arbustos; para tanto necessitava ficar em desarmonizar a convivência do ecossistema.
108 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMA R B DGD 109

O capital, conforme se desenvolve, tem necessidade de espaço; Cumprimentar-se mutuamente é sinal de harmonia e respeito.
isso o leva a requerer a terra dos agricultores ou a exigir que estes se Bom dia, boa tarde e boa noite são grandes obrigações; não se pode
adaptem às formas de produção, substituam os meios de produção, descuidar de cumpri-las, mesmo que às vezes isso seja apenas um
insumos e sementes. sussurro, um gesto com a mão, com a cabeça ou cortando pela
Aos poucos, fica difícil localizar onde eram as antigas moradias metade, retirando o desejo, mantendo apenas a condição (dia ...
que foram apropriadas pelo grande capital. Os pátios rodeados tarde ... noite ... ) é fundamental para não instigar desavenças e
pelas árvores ornamentais ou frutíferas, foram destruídos pelo fogo manter a harmonia entre os vizinhos.
ou as máquinas as derrubaram para dar à terra outra função. Se, por um lado, a tradição é apreendida pela convivência,
O equilíbrio da agricultura camponesa se dá, então, primeira- por outro, a ensinada nas escolas nem sempre valoriza os aspectos
mente, pelos costumes que são alimentados ao longo dos tempos culturais do meio.
pelas ideias e práticas. É a sequência histórica respeitada sem ruptu- Temos uma passagem ilustrativa, resgatada por Carlos Rodri-
ras. São lembranças e sentimentos materializados nas estruturas gues Brandão, em um fragmento de uma carta enviada por seis
das casas, galpões ou nas árvores e bosques, que cresceram juntos nações indígenas dos Estados Unidos, para os governantes daquele
com as crianças e jovens. país, que, no intuito de agradar os índios, após tê-los praticamente
Por isso, podemos dizer que, onde há um camponês há sensatez. dizimados pela violência física, ofereceram-lhes vagas nas escolas
É preciso organizá-los para que o equilíbrio se generalize. para que os jovens das aldeias pudessem se escolarizar. 98 A resposta
É claro que se pode produzir os alimentos de outras formas em foi habilidosa, porém, dura e direta:
escala industrial com elevadas tecnologias, expulsando os agriculto- (... ) Nós estamos convencidos, portanto, de que os senhores desejam o
res da terra e do trabalho. Mas isto não se faz sem consequências. bem para nós e agradecemos de rodo o coração ( ... ) Muitos de nossos
É só olhar para as mudanças climáticas e as reações violentas da bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam
natureza. Os grandes centros urbanos intransitáveis e já impróprios roda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus
para a convivência social remetem a ter que pensar em desfazer as corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio
negações equivocadas da civilização. e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir
uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto,
DISSOLUÇÃO E AFIRMAÇÃO DA TRADIÇÃO totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou
. k coisas da agricultura são conhecidas desde a infância. A vida como conselheiros (... )
é a escola que garante o aprendizado da tradição. Em nosso país, o trato com a educação dos camponeses sempre
Os costumes não existem apenas para serem apreendidos, mas foi um desleixo. Embora o Brasil tenha elaborado a sua primeira
para serem praticados; dentre eles, o respeito aos mais velhos é mais Constituição em 1824, somente em 1934, mais de cem anos de-
do que a obediência, pois pedir a bênção aos pais, tios e padrinhos, pois, a educação para a área rural mereceu destaque, isso porque
desocupar o lugar para que eles se sentem é, de certa maneira, um
sinal de estima e reconhecimento. 98
BRANDÃO, C. R. O que é educação, pp. 8-9.
110 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES A DEMA R B OGO 111

naquele período iniciava-se a industrialização do Brasil e as má- Acreditar que isso não seja perverso para a continuidade da
quinas exigiam trabalhadores alfabetizados. Era preciso preparar a tradição camponesa é deixar-se levar docilmente pela vontade
força de trabalho antes de arrastá-la dos campos para as fábricas. do capital.
Para o pensamento dominante, a escolarização dos camponeses Há, portanto, não só a extinção das escolas fisicamente, mas
não era necessária, por estes terem vocação ao cultivo com técnicas também do conteúdo pelos currículos induzidos e tornados obri-
rudimentares. Quando a educação dos camponeses passou a ter gatórios pelas secretarias de ensino.
alguma importância, foi por interesses meramente econômicos Lutar por uma educação de qualidade, ligada à organização
por parte dos capitalistas. de classe é desafiar o poder da dissolução da escola e do sistema
Mas isso não se deu sem conflito, conforme descreve Antonio educativo ligado à cultura dos trabalhadores camponeses e de suas
Candido, 99 que não teria sido o movimento revolucionário de 1930 comunidades.
que começou as reformas do ensino em todo o país; pressões locali- É verdade que a tradição é carregada também de mitos e su-
zadas, como ocorreu em 1920, em São Paulo, com a modernização perstições. Aquilo que se denomina "lixo cultural" pode estar na
de métodos pedagógicos e o incremento de escolas rurais, depois cultura pretendida pela elite como também em aspectos da cultural
no Ceará, Minas Gerais e Distrito Federal, em 1928. popular. Por exemplo, não podemos acreditar que seja exemplo de
A Constituição de 1934 dedicou um parágrafo, no qual se valores a mensagem da música "Cabocla Tereza", de Raul Torres
acentuou a importância de dedicar 20% das cotas de recursos e João Pacífico, autênticos representantes caipiras, na qual o eu
destinadas a educação para as zonas rurais. Na verdade, o interesse lírico mata a punhaladas a esposa; ou "O ipê e o prisioneiro", de
das empresas urbanas, não era nada humanizador, mas de dar um Chrystian e Ralf, da mesma forma que, por se tratar de um ato de
mínimo de capacitação para os futuros migrantes que deveriam, traição matrimonial, em nome da honra, a mulher é assassinada
ao menos, conhecer as letras para servirem ao sistema de indus- por seu companheiro que paga sua pena na cadeia de fronte a um
trialização que se iniciara a parir de 1930. ipê, que também sofre com os cipós parasitas presos ao caule.
Mais recentemente, já na década de 1990, com o fulgor do Mas há infinitas criações musicais, que embora retratem um
modelo neoliberal, a educação continuou sendo obrigatória e um Brasil de ontem, são saudáveis e engrandecem a história cultural.
dever do Estado, mas realizada fora do universo rural. Criaram-se Aspectos dos valores, provérbios, contos, fábulas e ditos populares,
verdadeiras indústrias de transporte para deslocar diariamente as legam ensinamentos às gerações mais jovens desta cultura milenar
crianças e adolescentes de seus locais de origem para as escolas que é a agricultura.
de ensino médio mais próximas, centralizadas em povoados e O conhecimento das plantas, ervas e sementes, o movimento
çidades. dos astros, das fases da Lua para adequar os plantios, corte de
O desenraizamento, semelhante a denúncia feita pelos índios madeira e castração de animais .. . em todos os sentidos há um
estadunidenses , repete-se na atualidade com os camponeses. conhecimento empírico que geralmente antecede o conhecimento
científico. Isso faz com que, mesmo passando por intensas calami-
99
CANDIDO, A A educação pela noite & outros emaios, p. 183. dades, a humanidade não pereça.
112 I DENTIDAD E E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 113

DISSOLUÇÃO E AFIRMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA e há as formas que dependem de conhecimento mais elaborado.


As formas de consciência dos seres sociais do campo se consti- Na ausência deste, a consciência em vez de passar para o nível
tuíram historicamente com outra ordem, que não a do capital, do superior, retrocede ou permanece no nível inferior.
mercado e da lógica das relações sociais urbanas. Inevitavelmente Na agricultura, porém, há formas empíricas que equivalem
quem vive no campo tem que se relacionar com objetos, seres e a descobertas científicas, ou que servem de base para o aperfei-
fenômenos que não são referências do mundo urbano. çoamento de algumas técnicas como a enxertia, a preservação
As fases da Lua, na sua relação produtiva, não possuem conteúdo de cereais, o corte de madeira para instrumentos de trabalho e
supersticioso; influem diretamente nas atividades agrícolas, assim construções etc.
como o Sol não é apenas o astro que fornece energia e calor para o Por outro lado, o medo das dívidas, a paciência da espera, a
crescimento das plantas; ele orienta o horário demarcado pelo movi- honestidade, a devoção, o domínio das técnicas primitivas etc.
mento da sombra; influi no planejamento do trabalho estabelecendo fazem parte de um conhecimento particular, que é repassado gra-
quais sãos ,as atividades a serem desenvolvidas em cada momento. tuitamente para os descendentes como herança obrigatória, que as
O fazer cotidiano é o construtor da consciência social dos habi- gerações mais novas devem receber. É nesse sentido que a produção
tantes da terra em que se desenvolve a agricultura, entendida no seu da renda e da cultura, na agricultura, não se separam.
sentido amplo, corpo cultivo árduo. É o conhecimento medido por Mas esse não é o perfil generalizado dos camponeses, que
outro tempo social gasto, que constrói a conduta e a consciência dos subsistem calcados na consciência passada. Há, sem dúvida, uma
trabalhadores rurais juntamente com os produtos e alimentos. nova consciência sempre em formação que, presa às origens, ga-
Este meio imediato que compõe o ambiente natural e social rante a continuidade, agregando à produção atual da existência os
dos camponeses combina-se com o que disseram Marx e Engels, elementos que facilitam a vida social.
que a consciência é desde o seu início um produto social. Logo: Há mais limites para o desenvolvimento da consciência que
(...) começa por ser apenas consciência acerca do ambiente sensível ime- em outros meios sociais, nos quais as informações circulam com
diato e consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas fora maior rapidez. Na pequena agricultura, costumeiramente, se vê a
do indivíduo que se vai tornando consciente de si (... ) 100 divisão sexual do trabalho, interligada à divisão social do trabalho.
Ao se desenvolver o conhecimento, a consciência passará do De certa forma, as funções se confundem com as tarefas, que, em
grau inferior ao superior de que, iniciada pela percepção da rea- geral, são desenvolvidas individualmente. Mas, ao contrário do que
lidade sensível, próxima, avança para a compreensão da realidade ocorre com um operário, que se sente parte da classe pela atividade
universal. produtiva, ou pela forma da consciência política, os camponeses,
A forma de consciência é a maneira do existir da consciência homens e mulheres, juntos com o desenvolvimento da consciência,
integrada a um movimento que evolui e regride. Há formas que possuem um sentimento de pertença.
são consideradas empíricas que se desenvolvem pelas experiências Este representa também uma forma de consciência social. Perten-
cer é querer fazer parte. Podemos presenciar, de Sul a Norte, que há
100 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 34. nas culturas de base familiar a preocupação espontânea de fustigar as
114 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 115

crianças a declarar se "são do pai ou da mãe", como que para testá-las ticas do objeto e quase nenhuma da pessoa que está vendendo. Isso
a ser a favor de um ou de outro. Essa brincadeira serve de alerta, já ocorre porque quem está se relacionando é o dinheiro e o objeto.
na infância, para dizer que é impossível viver sem pertencer. As pessoas, tanto o comprador quanto o vendedor, são apenas
Pertencem às relações sociais os instrumentos de trabalho e intermediárias para que a transação se realize.
também os animais que são tomados de empréstimo para ativida- Feita a transação , o comerciante vai levar o dinheiro para
des nas lavouras; pertencem às sementes, quando os vizinhos, ao comprar outra mercadoria para repor o estoque; o comprador vai
tomarem conhecimento de alguma variedade em fase de produção, orgulhar-se perante as pessoas pela aquisição feita.
solicitam para que no tempo adequado "guardem" uma porção Quanto mais a economia camponesa entra para o mercado,
para eles. A partir do momento em que prometeu, aquela planta maiores são as transformações da consciência dessa população.
ou aquele fruto, já não é mais só dele. Impedir que os produtos cheguem na agricultura e que as pessoas
Mas essa consciência que integra todas as partes e dimensões cheguem até o mercado é praticamente impossível no capitalismo;
da vida passa a ser dissolvida no momento em que o capital entra é preciso então tratar de saber como devem chegar.
para modificar as relações. Nesse momento, as relações sociais e Para lngo Voese, "Uma das maneiras que a ideologia encontra
humanas são tomadas pelo fetiche. para homogeneizar o que é descontínuo é desconstruir o que se
O fetiche, na visão de Marx, é um poder abstrato que toma • • atraves
opõe ao h egemomco , d e uma sene
, · d e recursos discurs1vos.
• "1 02
conta da mercadoria. A mercadoria "(... ) é cheia de sutilezas me- Portanto, é preciso construir uma contra-hegemonia no sentido
tafísicas e argúcias teológicas", 101 ou seja, pela imaginação atribui-se de se opor à ordem estabelecida com a desobediência organizada
à mercadoria um poder que ultrapassa a sua materialidade e é esse da classe.
poder que passa a mobilizar as pessoas. O fetiche está em todos os objetos que são levados ao mercado,
A compreensão desse assunto se dá pela percepção de que, inclusive na terra quando se transforma em mercadoria. Quando
quando o objeto vai para o mercado, ele deixa de ter apenas valor as empresas capitalistas ainda não entraram em uma região, geral-
de uso e passa ter um valor de troca. mente a terra tem somente valor de uso. Poucos são os proprietários
No início das relações comerciais, trocava-se um objeto por que querem vendê-la, e quando ocorre, o preço estabelecido é
outro, levando-se em consideração o tempo social gasto para se representado pelas benfeitorias que nela tem. Quando as empresas
fazer cada um deles. Posteriormente, embora mantendo a referên- se instalam, os pequenos agricultores, mesmo não tendo interesse
cia do tempo social gasto, inventou-se uma mercadoria· de valor em vender a sua propriedade, começam a se preocupar para saber
abstrato: o dinheiro. quanto ela vale em dinheiro.
Isso tanto é verdadeiro que, se prestarmos atenção, quando as Na medida em que as relações sociais se mercantilizam, tudo
pessoas vão ao mercado em busca do objeto que querem comprar, passa a ter preço: as ervas medicinais, que eram oferecidas para as
seja um sapato ou um vestido, procuram saber todas as caracterís-
º VOESE, L O Movimento r;ÚJs sem terra na imprensa. Um exercício de análise 6ÚJ discurso, p.
1 2
10 1
MARX, K. O capital, p. 79. 11 2.
116 I DENTI DADE E LUTA DE CLASSES

visitas; as sementes e mudas, antes prometidas gratuitamente; as fer- A RECONSTRUÇÃO


ramentas e animais, anteriormente emprestados cortesmente etc.
DAS IDENTIDADES
Isso ocorre, não porque as pessoas mudaram de caráter ou
deixaram de ser cooperativas, mas, sim, porque possuem em mente
a imaginação de um objeto que querem comprar, e que somente
poderão fazê-lo se reunirem a mercadoria dinheiro.
Assim, as empresas levam os agricultores a criarem uma abso-
luta dependência de certos produtos, cujo uso se torna um vício e,
VLADIMIR LENIN AO APROFUNDAR a dialética em Hegel se refere
em muitos casos, levam à morte física ou social das pessoas.
à identidade como a luta dos contrários em constante transfor-
A morte física se dá pelo uso excessivo de ingredientes químicos
mação. Diz ele:
que condena as pessoas à morte pela contaminação, ou ao suicídio
A dialética é a teoria que mostra como os contrários podem ser e sáo ha-
causado pela depressão, quando as pessoas já não compreendem
bitualmente (como se tornam) idênticos; em que condições sáo idênticos
mais, nem a si, nem o meio em que habitam.
ao transformarem-se uns nos outros, porque a inteligência humana náo
A morte social se dá pela perda da capacidade de participação
deve entender estes contrários como mortos, rígidos, senão como vivos,
na vida social, seja .por causa dos investimentos feitos em parceria
condicionados, móveis, que se transformam uns nos outros. 103
com as empresas, seja porque a adoção de técnicas mecanizadas
Para ele, o limite da primeira negação é o que impulsiona, ao
desocuparam o tempo tradicional de trabalho e este, por não ter
mesmo tempo, a negação da negação seguinte e, no mesmo ato de
outros afazeres, nem estar preparado para tê-los, perde a função
negar, afirma. A natureza em si do finito, é passagem para além de
social; passa a jogar e a ingerir bebidas alcoólicas descontrolada-
si mesmo, quando, ao realizar a própria negação abre-se novamente
mente; é também o início da morte moral.
para o infinito, que vem a ser logo em seguida um novo finito.
A consciência que o camponês tem de si nem sempre está
A identidade, seja ela individual ou coletiva, é parte constitu-
ligada à autoestima e ela é fundamental para reverter o avanço da
tiva do movimento dialético já feito , antecipando a expectativa do
dominação do capital.
movimento que ainda fará a riova identidade.
A revitalização da vida social passa pela busca da construção
O ser humano, desde o nascimento, é um constante vir a ser.
de formas solidárias de relações sociais. A cooperação agrícola, tão
Por essa razão, é que ele sempre será o último dentre todas as espé-
importante no passado, se coloca como caminho a ser recuperado
cies a fazer suas sínteses históricas, pois a satisfação de suas neces-
e inovado, em que as pessoas possam sentir que sua função social
sidades jamais se concluí. Pelas características contemporâneas em
não é apenas oferecer matérias-primas para que a indústria as trans-
constante negação, vislumbramos quais serão os seres e a sociedade
forme, mas que possam servir de sustentáculos das novas relações
que se afirmarão no futuro. Neste sentido, também se desenvolve
produtivas a serem estabelecidas no próprio meio onde vivem as
a sociedade que produz os conflitos e por eles é produzida. As
formações sociais camponesas.
103
LENIN. V. I. "Resumen de la 'ciência de la lógica' de la doccrina dei ser", p. 96
118 I DEN TI DAD E E LU TA DE CLASSES A DE MAR 8 0 GO 119

classes se enfrentam e se ultrapassam, ocupando umas o lugar das DA LUTA DE RESISTÊNCIA PARA A
outras sempre com novas caracterizações e qualificações dando IDENTIDADE DE PROJETO
identidade à história de povos e nações que se autodeterminam A identidade de resistência, citada por Castells, como inter-
no formar das circunstâncias. mediária entre a identidade legitimadora e a de projeto ou alter-
É claro que podemos intervir no rumo da história, tanto nativa, é importante para se estabelecer o lugar em que se está na
individual quanto coletiva, e dar-lhe outro destino. Por isso, contestação do poder dominante.
falamos em "identidades reconstruídas". A identidade de classe Ocorre que, se optarmos apenas pela resistência, teremos a
se forma quando há reações concretas de lutas para não aceitar "estagnação" da identidade e, com o tempo, ela perderá as forças
passivamente aquilo que está estabelecido por força da classe e retrocederá. Há experiências de diversos grupos étnicos que
dominante. buscaram resistir à destruição da identidade, envolvendo-se o
Frente a isto ocorre, então, o surgimento do que podemos cha- mínimo possível com aspectos da modernização e não evoluíram
mar, num primeiro momento, de "identidade consciente". Trata-se em sua própria construção, como se fosse possível alguém que
de compreender o que de fato é a realidade em que vivemos. Em vivesse em um casebre de palha, para não se deixar influenciar
segundo lugar, esta identidade eleva-se para a "autoconsciêncià', pela tecnologia da engenharia civil, responsável pela construção
que nos permite saber o que de fato queremos fazer de nós mesmos de um prédio de dez andares ao lado, se trancasse em casa para
enquanto classe. Assim, na coletividade buscamos produzir a auto- não ver subir a construção. Não é simplesmente ignorando a
identidade que se enraíza na autoestima e, então, os passos dados realidade que ela deixará de existir. Dessa forma é que a identi-
deixam de ser aleatórios e em vão. Comprovamos pela própria dade, na atualidade, deve perseguir um projeto, em negação do
experiência o que disseram os antigos filósofos, que "a história projeto dominante e, sem ignorá-lo, ultrapassar os limites por
é um progresso sem fim". Logo, a identidade se caracteriza pela ele impostos.
experiência já feita e pelas perspectivas que se abrem a partir da Em vez de simplesmente resistir, reavivando as táticas ,
intervenção do sujeito coletivo na história. reformulam-se os conceitos e passa-se a combinar a "defensiva
Em que se baseia a construção histórica da cultura e da identi- ativa e ofensiva" . A primeira cuida da força, para que não seja
dade? Será nos interesses econômicos, políticos e ideológicos? Será dividida, cooptada ou destruída, para isto é preciso conhecer bem
nos interesses religiosos, morais, estéticos? Será nos sentimentds e o inimigo e escolher os lugares onde se deve atacá-lo para que os
visões utópicas? "Uma vez que a construção social da identidade enfrentamentos deixem de ser localizados, como se dá na resis-
sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder", 104 tência. No segundo aspecto relacionado à ofensiva, combinando
é nelas que precisamos nos fixar para entender que ela também com a defensiva, busca-se abrir outras frentes de enfrentamento,
tem, na vida social, natureza de classe. para atacar o inimigo em sua retaguarda, com o objetivo de
enfraquecê-lo e derrotá-lo. A solução sempre é avançar para a
formulação do projeto de classe e socialista, como um movimento
104
CASTELLS, M. O poder da identidade. Vol. II, p. 24.
que empurra para frente, no qual se tornam mais eficientes os
120 I DEN TI DADE E LUTA DE CLASSES ADEMAR 8 0GO 121

enfrentamentos contra as forças contrárias. Disputamos com elas la de "domínio direto" ou do comando, que se expressa no Estado e no
os meios de produção e o poder, assim como os valores positivos governo "jurídico". 105
da civilização e renegamos os imprestáveis. Assim estabelecemos Para aquilo que Gramsci chama de "organismos privados",
a relação entre o presente e o futuro, em que o primeiro está a podemos ler instituições, sindicatos, partidos, igrejas, ou seja,
serviço do segundo. Vivemos um, para construir o outro na sua tudo que é organizado. Isso compreendido, fica fácil entender o
totalidade. que é a "sociedade políticà'. São nessas duas esferas que ocorrem
Resistir simplesmente seria voltar ao conceito estático de iden- os conflitos entre dominadores e dominados, ora na própria socie-
tidade de Aristóteles; significaria tentar preservar o patrimônio dade civil, entre trabalhadores e patrões, ora na sociedade política,
cultural explorador. Sabemos porém que o que é, pode se desfazer. entre trabalhadores e forças do Estado, nos choques com a polícia
Fechar-se em si é como se tentássemos combater por meio de uma e nos mandados do Poder Judiciário ou mesmo nas Comissões
só trincheira, deixando a retaguarda desprotegida. Um projeto se Parlamentares de Inquérito.
constrói combatendo outro, para, ao mesmo tempo que o levamos Há resistências e projetos em diversos níveis dentro da so-
à derrota, construímos a nossa vitória. ciedade civil. Há aqueles que se adaptam à ordem e há os que a
Nesse combate, vamos nos conhecendo e nos estabelecendo. combatem até o fim. Por exemplo, a experiência de um movimento
Combinamos a ofensiva com a formação da consciência e assim de luta, na qual, após a ocupação de um latifúndio - uma ação
vamos descobrindo mais claramente aquilo em que acreditamos. de desobediência à ordem - há resistência à violência das forças
Quando formulamos, avançamos em direção ao projeto, orde- repressivas ou da sociedade política. Após os enfrentamentos e a
namos o que já existe e que está desordenado. Construímos as terra conquistada, inicia-se a distribuição de pequenas parcelas para
estruturas sociais que dão forma à sociedade que queremos. cada família, o Estado, antes repressor, agora será o legitimador da
Muitas vezes empregamos na luta de resistência enormes ordem que se estabelece em torno da propriedade e dos créditos e
energias, mas, por falta de compreensão do que queremos, vol- se afirma pela segunda vez.
tamos para dentro das estruturas já existentes da sociedade e nos As famílias escolhem um lugar, erguem casas e formam uma pe-
tornamos meros cidadãos da ordem. É a negação da negação que quena cidade, onde funcionará o comércio, a sede da cooperativa, a
não conseguiu negar o necessário, por isso as contradições não igreja, a escola, o posto de saúde e outras estruturas complementares.
conseguiram o salto de qualidade que deveriam. As mudanças Ao se concluir esse ciclo, a antiga fazenda recebe a denominação de
esperam por outro momento. "assentamento" e as famílias passam a viver normalmente. As pes-
O que são as estruturas sociais? Segundo Antonio Gramsci, elas soas, inclivi<,iualmente, passam a ter todos os documentos e vários
se subdividem em duas: sociedade civil e sociedade política. direitos atendidos. Elevam-se, portanto, ao plano de cidadãos, mas
O que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é, o conjunto de or- ainda estão muito longe da emancipação do capital, do Estado e das
ganismos designados vulgarmente como, "privados"; e o da "sociedade restrições da moral burguesa. Esses são os grandes limites da classe
política ou Estado", planos que correspondem, respectivamente, à função
de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àque- 105
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Vai. 2. pp. 20-2 1.
122 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES
A DEMAR 8 0 GO 123

camponesa, que por si só não consegue alcançar a complexidade Sendo assim, as lutas sociais precisam prever alcançar conquistas
das negações estruturais da sociedade. Mas nem por isso são con- imediatas que visem a melhoria nas condições de vida. Não se trata de
trarrevolucionárias. O próprio proletariado que no século passado conferir à luta econômica um caráter político reduzindo o seu horizon-
ascendeu ao poder não enfraqueceu e asfixiou o Estado, ao con- te estratégico. Mas o problema não está com quem luta pela terra, mas,
trário, fortaleceu-o ainda mais. Nos leva a crer que, ou as negações sim, na ausência de um projeto que aponte para a desconstrução da
alcançam o nível da superação completa do modo de produção ou totalidade da sociedade política, ao mesmo tempo em que se modifica
o movimento das mudanças sempre será interrompido. a estrutura de dominação na sociedade civil. Um movimento corpo-
Nesse caso, houve a luta de resistência, mas ela serviu apenas rativo, pode ser também de operários, tende mais para a resistência
para resgatar a identidade arcaica de pequenos proprietários. Como do que para o projeto de superação do capitalismo; precisa esse de um
o projeto delineado pelo movimento social era espontâneo, sem movimento socialista, no qual se articulam diferentes forças.
profundidade na formulação e sem perspectiva de abranger a Talvez a resposta mais segura a essa questão deu-nos Florestan
totalidade, serviu para levar para dentro da ordem quem se sentia Fernandes na apresentação do livro Que Fazer?, de V. I. Lenin,
fora dela, reproduzindo as origens atrasadas, como disse Rousseau: feita em março de 1978:
"O primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer: (...) As massas populares e as classes trabalhadoras só podem ser educadas
'Isso é meu' e encontrou pessoas bastante simples para crê-lo, foi para o socialismo através de um force movimento socialista, dentro do qual
o verdadeiro fundador da sociedade civil (... )". 106 elas forneçam as bases, os quadros e as vanguardas, e através do qual elas
É claro que isso não se deu de forma individualizada nem disputem o poder das classes dominantes( ... )'ºª
tampouco sem conflito como descreveu Rousseau. A propriedade, Essa é a verdadeira relação que a luta por resistência deve ter
mais do que um capricho, foi uma necessidade de sobrevivência de com a identidade de projeto da classe, em que as pessoas em mar-
grupos e tribos que, diante da escassez de alimentos tiveram que cha reconheçam que estão fazendo as duas coisas interligadas: a
impor pela força a demarcação e a defesa de seus territórios. solução de problemas imediatos e a transformação das estruturas
No caso do assentamento, houve a reintegração ao trabalho, ao sociais e políticas, em que todas as carências de todos os que sofrem
mercado e aos deveres para com o Estado, no pagamento de im- serão sanadas.
postos e no respeito às leis, mas não houve libertação. Como disse O movimento das forças em direção ao socialismo cria a identi-
Marx ao analisar a passagem do feudalismo para o capitalismo: dade socialista por meio do projeto conscientemente elaborado. Vai
Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve, isto sim, além da classe em particular e se soma às demais forças sociais.
liberdade religiosa. N ão se libertou da propriedade; obteve liberdade de Deixan1o de seguir esse caminho e fixando-se apenas na resis-
propriedade. N ão se libertou do egoísmo da indústria; obteve a liberdade tência, tendo como meio as lutas reinvindicatórias, os movimentos,
industrial. 107 mesmo os de classe, trilham rapidamente para a acomodação. Isso
porque toda e qualquer ação coletiva é política, mas nem toda ação
106
WEFFORT, F. C. Os ddssicos da política, p. 201.
108
107
MARX, K. A questão j 11d11ic11, p. 50. LENIN, V. 1. Que f azer?
124 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEM AR 8 0 GO 125

política tem força e consciência para se tornar luta de classes. As credita a tendência do proletariado para o reformismo ideológico,
ações podem apontar para o início e continuidade do processo no nível em que se definem as "propensões ontológicas", ou seja,
revolucionário, assim como para a acomodação das forças popu- está na própria natureza da luta econômica e da existência de
lares reunidas pela organização anterior, com o objetivo apenas de qualquer categoria a tendência para esse tipo de comportamento,
buscar melhorias econômicas para si por meio de negociações, em no qual, por si só, a força em luta se recolhe em torno de sua visão
que as lideranças decaem para a burocratização e se asfixiam no de mundo e dos interesses da categoria.
mundo das reivindicações corporativas. Em parte é verdade, pois a tendência de quem busca benefícios
A identidade do projeto da classe é um longo processo de imediatos é satisfazer-se com as pequenas conquistas. Como disse
construção e reconstrução, que carrega em si muitas contradições, Lenin: "A política sindical da classe operária é precisamente a política
seja na vidà social, na atividade política, nos princípios e métodos burguesa da classe operárià' . 11 0 Por outro lado, quando este "quem"
organizativos, que influem na formulação estratégica da tomada é a classe, embora haja em determinados momentos a tendência para
do poder e da construção da sociedade socialista, mas sempre quer a acomodação, as contradições em movimento convidam para que
ir além no sentido da superação dos limites e obstáculos colocados o proletariado veja além do seu espaço e se apresente como classe
pelo projeto oposto. universal. O desenvolvimento da consciência por dentro e por fora
da realidade imediata, leva ao aperfeiçoamento dos instrumentos de
DO COMBATE AO REVISIONISMO PARA A IDENTIDADE luta e consequentemente para a superação do reformismo.
REVOLUCIONÁRIA As lutas empreendidas por conquistas imediatas ou reformas
O revisionismo e o reformismo geralmente se confundem no são fundamentais para o envolvimento das massas nas ações. Sem
falar cotidiano. Na verdade possuem conteúdos diferentes. Todo ação não pode haver revolução. A teoria que se elabora a partir das
revisionista é reformista, mas nem todo reformista é revisionista. lutas e de outras dimensões da política, tem o papel de apontar o
Reformismo, aqui considerado como a busca da conquista ou destino das mesmas. A identidade revolucionária se forma com a
manutenção dos direitos adquiridos; e reviosionismo, como a prática da teoria e da cultura revolucionária, composta por formas
tentativa de modificar o conteúdo dos conceitos marxistas por de luta e principalmente pelo pensamento revolucionário.
interesses oportunistas. O revisionismo, acima de tudo, é uma opção político-ideoló-
As massas, quando lutam por terra ou por salário, não podem gica. É fruto de formulações que se dispõem a ir até determinado
ser consideradas revisionistas no sentido da teoria marxista. São ponto, mas não a romper com a ordem estabelecida. É aliado, de
reformistas na forma material, mas não no conteúdo filosófico, primeira fileira, da contrarrevolução. Por isso ele, não o reformismo
como destacou Jacob Gorender: "( ... ) O proletariado reformista das ações, é perigosíssimo para a luta de classes. Cumpre o papel
deu numerosas demonstrações de combatividade. As reformas de quebrar a identidade da teoria revolucionária com a negação
foram conseguidas à custa de lutas muitas vezes sangrentas". 109 Ele do movimento das contradições.

º GORENDER, J. Marxismo sem utopia, p. 22 1.


19 11 0
LENIN, V. I. ()}te fazer?, p. 66.
126 IDE NTI DA DE E LUTA DE CLASS ES ADE MAR BOG O 127

O revisionismo político-ideológico, embora se apresente com revolucionários ainda não haviam se estabelecido. Não havia uma
ares de radicalidade, é conciliador. É revisionista porque modifica avaliação das táticas utilizadas, como, por exemplo, a do terrorismo,
os conceitos em sua essência e os aplica com outro conteúdo, que muito usada na Rússia- devido a ela, Alexandre, o irmão mais velho
os descaracteriza totalmente, ou quando procura substituí-los por de Lenin, foi enforcado em maio de 1887 por ter organizado, meses
outros menos ofensivos, sem vigor e contrarrevolucionário, como antes, um atentado contra o rei da Rússia, o tsar Alexandre III.
da revolução passiva, do socialismo democrático etc. Nas crises, acredita-se que todas as ideias e iniciativas estão
O século 20 foi pouco generoso para com os revolucionários corretas, mas não bastam somente ideias e iniciativas para se
e tolerante demais para com os revisionistas. As ideias vitoriosas e desencadear uma revolução; é necessário que o movimento das
as revoluções que triunfaram com a ajuda do marxismo, não dei- contradições seja favorável, instigador e motivador da participação.
xaram de ser perseguidas e combatidas durante todo o tempo. As Por isso é que são infinitas as dificuldades para estabelecer o
ideias revisionistas e contrarrevolucionárias estiveram presentes seja caminho da luta de classes, pois, não são as ações por si só que
nos partidos ou na elaboração teórica desde a criação da Segunda se julgam mais ou menos revolucionárias, mas a direção que elas
Associação Internacional, em 1889. Cem anos depois, em 1989, apontam. Era esse o principal problema do final do século 19. Não
quando vimos ruir o muro de Berlim e presenciamos a vitória da eram as ideias que faltavam, elas jorravam em grande quantidade;
contrarrevolução, percebemos que o revisionismo não só fora um mas faltavam as ideias corretas formuladas a partir das contradições
aliado desta, mas também inimigo teórico e orgânico das ideias e concretas que ajudassem a definir as táticas corretas.
forças revolucionárias no mundo todo. A principal tendência dentre todas era a opção pelo "revisio-
Comprova-se, assim, que a contrarrevolução age também pelas nismo". Revisar significava, naquela época, abandonar os funda-
contradições que há nas fileiras revolucionárias. A propósito, ela mentos filosóficos do materialismo histórico e dialético formulados
se abriga em duas: de um lado, é pensada pela classe burguesa por Marx e Engels.
dominante, que usa todos os artifícios para impedir o avanço da As batalhas no "mundo das ideias", diria Platão, entre os di-
revolução; de outro lado, enraíza-se nas forças de esquerda quando versos grupos que buscavam afirmação, eram brutais, e em torno
lutam a todo custo para evitar o rompimento com a direita. delas formavam-se verdadeiros exércitos oriundos da mesma clas-
No final do século 19 e início do século 20, os pilares do co- se, que, no campo estratégico, eram tão inimigos quanto os que
nhecimento filosófico revolucionário e, portanto, o m'arxismo, representavam o capital.
foi atacado pelo revisionismo. Era de fato um tempo de grandes A título de recapitulação, podemos estabelecer uma relação
turbulências devido ao movimento intenso das forças do capital entre a teoria marxista e as lutas -de classes pelo mundo a partir de
em sintonia com a superestrutura política da sociedade, quando o meados do século 19.
Estado, através de sua forma em vigor, garantia a conquista de novos A elaboração do Manifesto Comunista, em 1848, representou a
territórios: a expansão do mercado e o domínio colonial em várias primeira tentativa de ligar a teoria do socialismo científico com a luta
partes do mundo. Foram tempos em que a classe trabalhadora ainda proletária concreta. A vinculação de Engels com a Liga dos Justos
experimentava seus instrumentos organizativos, os partidos políticos e, depois, dele e Marx com a Liga dos Comunistas, se constituiu
it ll Nt lllllll l L LUTA DE CLASSES AD EMAA 8 DGO 12

no primeiro esforço d militância de ambos. Os círculos de leitura, O primeiro período compreendeu o tempo em que houve forte
os comitês de correspondências e as reuniões de confraternização e influência da Segunda Internacional. Embora esta tenha vigorado
solidariedade com os exilados de vários países na Inglaterra levaram por um quarto de século de 1889-1914, não impediu o avanço da
à ideia de se criar a Primeira Associação Internacional, na qual se as- luta e das ideias socialistas.
sociariam os círculos e os comitês de cada país. A Associação, devido Inicialmente, a Associação se estruturou com os diversos par-
às disputas internas, vigorou até 1872, quando as divergências se tidos socialistas e operários de orientação próxima ao marxismo,
tornaram inconciliáveis, pois seus dirigentes passaram a se digladiar que irromperam com o grande movimento sindical e eleitoral.
com posições reformistas, pacifistas ou radicais anarquistas. O próprio Engels previa que o processo seria "mais lento e mais
Essa dispersão foi favorecida pela primeira grande crise ocorrida seguro", com as lucas sendo feitas dentro da legalidade, mas não
no capitalismo em 1871, quando a superprodução (que teve seu imaginava que as forças ·polícicas dos trabalhadores chegariam a
auge em 1873 e se estendeu até 1898) induziu a pensar, inicialmen- se aliar ao capital como foi na fase seguinte.
te, que os formuladores da teoria do socialismo científico tinham A partir de 1898, quando o capitalismo deslanchou a sua re-
se equivocado. O capitalismo ruiria por si só! cuperação em escala mundial, iniciou-se, mais intensamente, nas
Frente à perda de vigor do capital, eclodiu a Comuna de Paris, em fileiras da Segunda Internacional, um processo de questionamentos
1871. Marx e Engels avaliaram que a tática era incorreta, pois julgavam sobre a veracidade das teses marxistas, dando origem ao revisio-
impossível a revolução ocorrer em um só país, mas ajudaram a pensar nismo. Eduard Bernstein, dirigente da social-democracia alemã,
a iniciativa operária, derrocada militarmente 72 dias depois. foi o primeiro a buscar adaptar as ideias de Marx a um programa
A partir daí, o caminho escolhido pelas forças políticas que revisionista. Dentre as várias ideias que ele e outros adeptos de-
almejavam melhorias dentro do próprio capitalismo, sem precisar fendiam, escava a de que o proletariado, para tomar o poder, tinha
derrocá-lo, levou a conceber a sindicalização e a criação dos parti- que se constituir na maioria - ter quadros preparados para tomar
dos socialistas de massas. Em maio de 1883, Marx veio a falecer e e manter o poder - caso contrário, não poderia tentar e o método
Engels perdeu seu companheiro de elaboração; teve de continuar da greve geral não podia ser aceito. O caminho para chegar ao
"sozinho" na conclusão de alguns trabalhos. Num último intento poder era o voto, ou seja, havia uma delimitação da articulação da
organizativo, ele conseguiu articular a formação da Segunda Inter- classe trabalhadora, mas a opção estratégica era para o pacifismo.
nacional em 1889, agora com a participação de todos os partidos Na Rússia, havia várias correntes de pensamento que defendiam
de ideologia socialista e progressistas e sindicatos operários de o mesmo caminho. Na·Itália, Croce e, na França, Sorel, 112 acredita-
diferences concepções ideológicas. vam numa mistura de reformismo econômico, revolução passiva
Daí para frente, Eric J. Hobsbawm 111 caracteriza a ação do re- e "socialismo" ético-político, que se resumia em usar os mesmos
visionismo em três períodos desenvolvidos no mundo. De 1889 instrumentos da burguesia para derrocá-la. Tudo isso levava à
a 1914; de 1914 a 1924; de 1924 a 1954. negação da luta de classes e da revolução proletária.

112
111
HOBSBAWN. E. J. "A cultura europeia e o marxismo entre o séc. XIX e o Séc. XX". GRAMSCI, A. Cadonos do Cárcere, p. 279.
130 I DENTIDADE E LU TA DE CLASSES ADEMA R 8 0GO 131

O auge dos enfrentamentos teóricos, da Segunda Associação propôs que se criasse a Terceira Associação Internacional Comunista,
Internacional, se deu no seio da Primeira Guerra Mundial, em já pensada desde 1914, desta vez, somente com a participação dos
1914, quando os operários foram incentivados a lutarem entre si partidos comunistas do mundo todo. Nascia, assim, uma semente de
ao lado das burguesias nacionais para defenderem os seus países estreitamento nas formas organizativas que dogmatizariam a teoria
capitalistas. A união original rompeu-se e os trabalhadores passa- marxista enfraquecendo-a como ciência da história.
ram a se combater pela participação nos exércitos burgueses. Da O terceiro período compreende toda a era estalinista, de 1924
identidade de classe foram para a colaboração de classe. a 1954, quando ocorreu a morte de Josef Stalin e com isso a de-
O segundo período compreende o início da Primeira Guerra sintegração das forças que o apoiavam pelo mundo.
Mundial, em 1914, até a morte de Lenin, em 1924. O período stalinista penalizou a reflexão e o marxismo, apesar
Lenin dedicou-se a combater o revisionismo desde o início de de muitas tentativas, como a criação da Quarta Associação Inter-
sua militância. Procurou não apenas influir na disputa das ideias, nacional, em 1938, por Leon Trotsky, ambas pouco se desenvol-
mas também na elaboração da teoria da organização e no triunfo veram; as perseguições intimidaram as formulações e a atualização
da revolução que tinha como referência desastrosa a experiência das ideias.
da Comuna de Paris, em 1871. Se, por um lado, houve um "congelamento" das ideias atra-
Se o capitalismo nos países mais industrializados do mundo vés da ortodoxia, devido o centro do comando da elaboração ser
havia se recuperado a partir de 1898, o mesmo não aconteceu com hegemonizado pelos partidos comunistas, por outro, os próprios
a Rússia, que mantinha uma economia primordialmente agrícola. partidos eram a encarnação do revisionismo pela burocratização da
Lenin decidiu-se pelo caminho da revolução e para isso necessitava prática partidária. Por outro lado, todas as iniciativas de renovação
colocar em ordem os elementos que faltavam na organização da das ideias e a continuidade da elaboração marxista fora dos marcos
classe trabalhadora. Ao partido e ao programa foram acrescentadas da burocracia comunista foram execradas, combatidas ou ignora-
as grandes mobilizações de massas que desde o início do século das. Podemos citar Leon Trotsky, Ernst Bloch, Antonio Gramsci,
eram intensas. Dessa maneira, o revisionismo foi sendo enfrentado Lukács, José Carlos Mariátegui e tantos outros.
no campo das ideias e também na prática organizativa. A partir da era Stalin, podemos considerar mais dois períodos:
Se a revolução de 1917 não houvesse triunfado, e, ao contrário, o quarto, até 1989, e o quinto, até nossos dias.
os mencheviques tivessem derrotado os bolcheviques, 11 3 certamente Primeiramente, o marxismo como filosofia e política desco-
teríamos tido reveses político-ideológicos ainda mais profundos do nectou-se dos partidos comunistas, flexibilizando as formas de
que tivemos no final do século 20. Em 1919, com o objetivo de organização política e militar. Mas a nova crise do capitalismo
estabelecer uma articulação política de orientação marxista, Lenin mundial, em 1973, e a combinação da repressão militar com a
formulação da ideologia neoliberal levou à dispersão do patrimônio
11 3 A palavra bolchevique vêm do russo bolshenstvó, que quer dizer "maioria", surgida por histórico teórico: retomou-se a luta sindical, voltaram a se formar
causa de urna divisão que surgiu n congresso do Partido Operário Social-Democrata da
Rússia (POSDR) , em 1903, 0111 os mencheviques (menchinstvo') , que significa minoria,
os partidos de massas e o pragmatismo substituiu a elaboração e
de tendência revision isrn. Lcni n liderava a tendência bolchevique. o desenvolvimento do marxismo.
132 I DENTID ADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 133

Chegamos em 1989, quando, simbolicamente, o socialismo só o papel de estar na frente das massas), mas também a ideia da
de Estado foi derrotado e passou a surgir, com maior vigor, o constituição da força dirigente da revolução.
pensamento pós-marxista, essencialmente revisionista, alçado já Inventam formulações subjetivas que não respondem aos desa-
no descenso das lutas sociais. É, por sua vez, daí para frente, que fios políticos estratégicos, renomeando as iniciativas organizativas,
se caracteriza o quinto período. com a intenção de negar o partido, instrumento de organização,
A derrota dos partidos comunistas e de sua experiência bu- como patrimônio histórico da classe trabalhadora. O partido aqui
rocrática deveria significar também a derrota do revisionismo entendido como parte consciente, organizada, que, embora se possa
teórico e institucional, mas não foi. Este, ao ressurgir, aliou-se denominar de associação, frente, instrumento, ou organização
ao pensamento neoliberal e juntos edificaram o monumento da política, sempre terá que ter um programa, táticas e estratégias que
"crise da razão", denominando-se pós-marxistas e pós-modernos, visem combater e derrotar as forças opositoras, um contingente
que, consideram a classe como mera formulação intelectual, uma de quadros preparados, a inserção na luta de classes, um sistema
visão reducionista, acreditando que as classes estão se dissolvendo de comunicação·avançado etc.
e, portanto, torna-se ultrapassado falar em luta e organização de O que parece não ser correto é colocar aspectos secundários
classes. Todas as lutas são válidas se mantiverem em si a intenção e como fundamentais. É evidente que houve um aceleramento na de-
a capacidade de controlar o capital, dominar o Estado e modificar sorganização da classe trabalhadora, que rapidamente se viu banida
as relações sociais e de produção. das fábricas e como consequência afastou-se dos sindicatos. Mas
Na estrutura da sociedade civil, os pós-modernos impressio- essa força dispersa, dentro e fora do mundo do trabalho, terá que
nam-se com as organizações não governamentais (Ongs) , por seu encontrar um ponto de referência para se recolocar como classe, e
extenso crescimento e enfatizam o terceiro setor. Reina aí a ideia não como contingente disperso diante dos desafios políticos atuais.
do "mercado solidário" coordenado por essas instituições. Para Mas essas forças somente adquirem significado revolucionário se
combater o planejamento centralizado do capital, defendem que ultrapassarem o próprio horizonte da luta imediata, para isto é
as pessoas troquem entre si os seus produtos. importante a organização política da classe.
Negam a revolução como possibilidade da transformação As fábricas eram e, em muitos casos, ainda são, territórios ou
social; desconsideram a existência do imperialismo, o qual consi- ocupados pelas comissões de fábrica ou esvaziados em caso de greves.
deram ser um conceito ultrapassado; acreditam que a coóperação Mas, desorganizados, os operári~s eram apenas força de trabalho. As
internacional é o caminho para o desenvolvimento das sociedades ruas, antes do surgimento das cidades modernas com largas avenidas,
dependentes. eram territórios estratégicos de combate. As montanhas, nas lutas
O .e spírito vingador da centralização partidária do passado guerrilheiras, foram e são de grande utilidade; mas não o são por si
leva ao antagonismo teórico irreconciliável da construção política. só; a luta entre as forças e a luta de classes com sentido estratégico
Invertem a lógica e ressuscitam a espontaneidade, como se as mas- são determinantes. Se a força se organiza para o combate, o território
sas, por si só, encontrassem o caminho da transformação. Negam, entra como fator de colaboração, assim como o clima, a astúcia, a
com isso, não só o papel da vanguarda (como se ela tivesse tido surpresa etc., todos são elementos indispensáveis.
134 ID EN TIDAD E E LU TA DE CLASS ES
A DEMAR B DGO 135

O diagnóstico, enfim, nos mostra que entramos no terceiro da exploração capitalista, como fez a classe operária no passado.
milênio com uma grande crise do modo de produção capitalista Isto não quer dizer que o proletariado tenha perdido o seu lugar
mundial na sua essência, mas essa não é maior do que a crise no processo revolucionário, e nem que a revolução tenha abando-
das ideias, dos programas e das formas organizativas das forças nado a natureza proletária de expropriação dos meios de produção,
sociais e políticas que têm a tarefa de levar em frente as lutas desmonte do Estado capitalista e as mudanças nas relações sociais.
pela revolução. Estando o capital com seus investimentos em todas as partes da
As grandes mobilizações populares e sindicais, por si só, não terra, a luta de classes ocupará espaços mais amplos, seja no campo
conseguiram sustentar o patrimônio filosófico e político da história ou nas cidades.
do marxismo e nem tampouco teorizar dialeticamente sobre sua Com a internacionalização do capital, ampliou-se o conteúdo
própria experiência. Levando-nos a concluir que, sem um partido do conceito de que as revoluções "ocorreriam", primeiramente,
revolucionário, como núcleo pensante e organizador da classe, nos países mais industrializados. Os países menos industrializados
atento às contradições e às circunstâncias históricas, é impossível fornecem a matéria-prima para a produção dos objetos de con-
se desenvolver a teoria revolucionária. sumo para as populações com maior poder aquisitivo do mundo,
Os partidos de massas que conhecemos apostaram nas disputas devido à generalidade das contradições, pode-se afirmar que o
dentro da institucionalidade, com pouca disposição de romperem socialismo não pode acontecer em um só país, mas pode começar
com a ordem, adotando a identidade inicial da esquerda que optou em qualquer um deles.
pela "revolução passivà', ou seja, derrotar a burguesia com os seus Nesse sentido, as tarefas se inclinam para duas frentes princi-
próprios meios. Por essa razão, não possuem vigor suficiente para pais: a) impulsionar as lutas de massas; b) formular a perspectiva
retomar a formulação do pensamento revolucionário. Falta-lhes a estratégica, ao mesmo tempo em que se combate o revisionismo
matéria-prima abandonada da luta de classes. contrarrevolucionário.
Na ansiedade de dar respostas ao "descenso" das lutas sociais, Voltar aos clássicos não é retroceder; é ancorar-se nas raízes
corre-se o risco, como disse Lenin, de estabelecer uma "confusão para revigorar o caule e as folhas da história de nosso tempo. O
entre política e pedagogià', 11 4 que acaba descaracterizando e disper- materialismo não é uma etapa da luta de classes na história, mas
sando as verdadeiras tarefas da revolução. . a filosofia da história inteira. A cada,passo andado acrescenta-se a
Por outro lado, tudo indica que, na América Latina, está o visão adquirida do presente e do futuro.
cenário das lutas revolucionárias do futuro, tal qual ocorreu na Sem sombra de dúvidas, o projeto revolucionário só pode
Europa no século 19. Nela encontramos as possibilidades e a ser formulado por ideias revolucionárias no seio do movimen-
matéria-prima que sustentará o novo ciclo de crescimento do to revolucionário que puxa as forças para a frente; e estas não
capital. Na atualidade os camponeses e os índios, embora sendo podem apartar-se do marxismo que representa o esforço da
minoria, cumprem um papel importante de resistência ao avanço humanidade de pensar a superação do capitalismo. Combater
o revisionismo é uma tarefa altamente revolucionária que temos
11 4
LENIN,V. I. O papel do partido entre as massas, p. 32. no presente.
136 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES
A DEMAR B OGO 137

A CORAGEM DE INVESTIR-SE E INVENTAR-SE COMO Os grandes capitalistas, industriais, banqueiros, comerciantes


IDENTIDADE DE LUTA e políticos profissionais, quando decidem adquirir uma fazenda
Nas lutas sociais, sempre encontramos grandes contingentes investem recursos financeiros, muitas vezes em lugares distantes
humanos unificados por interesses e propostas, reunidos em tor- para não serem reconhecidos. Se tiverem algum prejuízo, é um
no da busca de soluções. Um dos mais expressivos movimentos negócio secundário, pois, quase sempre, sua atividade econômica
surgidos na década de 1980, no Brasil, foi o Movimento dos principal não é a agricultura.
Trabalhadores Rurais Sem terra. Os Sem Terra são obrigados a investirem o patrimônio físico,
A palavra sem-terra designa um substantivo composto que, formado por eles e suas famílias. Ao contrário dos grandes inves-
visto pela ótica da gramática, nada se percebe de especial. Significa tidores, agem onde costumeiramente vivem. Ali foram empobre-
um contingente social que não tem a sua terra para trabalhar, como cidos, ali terão que resolver os seus problemas.
são todos os posseiros, meeiros, arrendatários e filhos de pequenos Os trabalhadores Sem Terra equiparam-se, nesse estágio de or-
proprietários produtos de um tipo de contradições. ganização, ao que era a classe operária nos séculos 18 e 19: nada ti-
Esse substantivo composto surgiu e passou a ser usado, com nham a perder a não ser os seus grilhões, e a vida, naturalmente.
muita frequência, a partir de 1984. Daquele momento em diante, Ao tomar a decisão de empenhar a própria vida e não apenas
a gramática ganhou um novo vocábulo e a classe trabalhadora uma os bens que possuem, decidem "investirem-se", e isso supõe riscos.
nova categoria que se insurgiu provocando novas contradições, Cada qual sabe que pode perder o tempo esperando a sua terra,
elevando-as tanto em quantidade quanto em qualidade nas disputas caso a desilusão o assalte no meio do caminho, fazendo-o desistir,
econômicas e políticas na sociedade brasileira. ou perder a vida se for violentado pelas armas dos latifundiários.
Ao se organizarem em movimento, os sem-terra - substantivo Mas também poderá ser recompensado em tempo, porque esse
composto - tornaram-se sujeitos: Sem Terra. Deixaram de seca- surgirá novo como a sombra matutina que fará com que cultive a
racterizar pela condição social de seres isolados, mas, organizados terra cortando o seu próprio vulto, marcado no eito pela sombra
buscaram alternativas num intenso processo de negação. do corpo; em segundo lugar, uma nova vida, com outra qualidade,
A luta e unidade dos contrários ele-vou esses mesmos indivíduos agora reestruturada a partir de um território, imitando as plantas
para a condição de sujeitos, agora Sem Terra, nome próprio, inco?- que enterram as raízes sem que ninguém as veja, deixando à mostra
fundível com outras categorias ou grupos sociais pelas suas formas aquilo que lhes dá identidade visível, a natureza da espécie.
organizativas e de luta; pelos métodos de trabalho organizativo; pela Nesse espaço territorial, que é o campo, a busca da conquista da
estética na ordem dos passos e na combinação das cores; pelo visual terra, permite também a constituição da classe através da inclusão
dos acampam'entos, onde as barracas se enfileiram estabelecendo de pessoas em uma coletividade de luta. Os Sem Terra organizados
uma nova forma de convivência social; pela capacidade de controle, e conscientizados passam a ter noção de qual deve ser o seu papel
nível de consciência e ações educativas. Fundamentalmente porque na história.
aprendemos a gerar-nos por meio de um "investimento" de risco A fábrica, com grandes contingentes de operários, era mais do
que é o emprego da própria vida. que é no presente, um meio de convivência, através dela se iniciava a
138 IDENTI DA DE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGO 139

formação da consciência de classe. Os assentamentos levam vantagem pobres em luta; nem os grandes contingentes de massas que vivem
frente a isto, porque a convivência se dá com todos os membros das nas periferias dos grandes centros urbanos. Como eles mesmos
famílias; a escola está colada com as atividades produtivas e a forma- reconheceram, na luta, há fases anteriores, quando os proletários
ção política se dá pelas reuniões, cursos e mobilizações. Mas, em si, agem de forma isolada e dispersos, por isso lutam "ainda contra
o assentamento é corporativo. Pensa em si mesmo. A organização os inimigos de seus inimigos", ou seja, o estágio da luta em que se
política formada pela associação de militantes, permite vislumbrar encontram, ainda não os levou a se confrontarem com os grandes
e se engajar no projeto da classe trabalhadora em geral. capitalistas, é pela luta que os contingentes populacionais se inte-
O grande desafio da classe trabalhadora, assalariada ou não, gram às classes de acordo com a posição que assumem.
é descobrir formas a partir das quais todas as pessoas possam se O proletariado é a referência fundamental para o processo
lançar em atividades políticas de forma permanente. E, ao mes- revolucionário, sem importar a sua quantidade, pois é dele que
mo tempo em que participam, possam ir reconstruindo a classe os capitalistas extraem a mais-valia pela exploração da força de
desestruturada pelo capital. trabalho que produz a mercadoria. Sem esta não há mercado, em
As lutas populares ou sindicais se constituem na escola primária que trabalham os comerciários; também não haverá impostos que
da luta de classes. Elas, por serem abertas, têm a facilidade de incluir sustentam a burocracia, os serviços e os assalariados públicos. Não
milhares de pessoas que ainda possuem pouca experiência e baixo há investimentos em estradas que abastecem as empreiteiras que
nível de consciência. Ao lutar, a unidade política ganha forma e contratam os seus operários, ou seja, a base primordial do capital
em torno das reivindicações imediatas se estabelece a identidade produtivo sai da força do proletariado.
do movimento. A luta contra o latifúndio já foi superada em muitos países,
A identidade revolucionária virá na medida em que o movi- ela só existe nos países capitalistas em que a classe dominante não
mento das contradições gerais apontarem para a revolução. Logo, teve interesse ou não necessitou da distribuição da terra para in-
todos os esforços empreendidos são como pedras lançadas contra dustrializar o país. Mas, em nosso caso, do ponto de vista político,
os mesmos inimigos. É o momento em que a classe se amplia e o é uma luta atual, principalmente para reafirmar a identidade da
projeto se torna consciente, ao alcance da mão de todos os sujeitos classe camponesa. Sobretudo porque, em nosso país, os inimigos
que lutam. da classe trabalhadora estão todos imbricados nos mesmos inves-
timentos.
A CONSTRUÇÃO COLETIVA DA IDENTIDADE E DA CLASSE A rigor, não é a classe trabalhadora que escolhe os seus inimigos,
Marx e Engels afirmaram no Manifesto do Partido Comunista mas o capital que os coloca frente a frente. O que ela pode decidir é
que: "De todas as classes que hoje se contrapõem à burguesia, só se os enfrenta, todos ao mesmo tempo ou não, e como os enfrenta.
o proletariado constitui uma classe verdadeiramente revolucio- E, muitas vezes, mesmo sem ter a disposição de enfrentá-los, as
nária (...)". 11 5 Essa afirmação não significa excluir os camponeses batalhas são inevitáveis.
É pela luta que os Sem Terra e os pequenos agricultores encon-
11 5
MARX, K. e ENGELS, F. "O Manifesto do Partido Comunista", p. 96. tram sua identidade de classe. Sem a luta, não haveria condições de
140 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B oGo 141

atingir esse patamar de relação entre si e com as demais forças. A Ilustrativo é o alerta de Iasi que, em Marx não há um conceito
organização de classe impede que cada um se isole em seu espaço. estanque, fechado de classe social, mas ao contrário, as posições
Encontramos a confirmação de que somos uma classe em diante da propriedade dos meios de produção, a posição diante
construção na filosofia, nas palavras de Marx: das relações sociais de produção, a consciência e a intervenção por
(...) na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma meio das lutas na transformação social, são elementos que também
ligação local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comu- caracterizam a classe social.
nidade alguma, ligação nacional alguma, nem a organização política, nessa (... ) isto implica que analisemos mais que as simples relações de proprie-
exata medida não constituem uma classe. São consequentemente, incapazes dade, mas as relações sociais que se estabelecem, uma vez que a classe é
de fazer valer seu interesse de classe em seu próprio nome, quer através de um conceito que não pode ser definido pela análise abstraída de um grupo
um parlamento, quer através de uma convenção (... ) 11 6
social; ao contrário, só se revela na relação com outras classes. 118
Esta ideia está colocada primeiramente por ele no texto da Nesse sentido é que existem movimentos e movimentos, ou
Ideologi,a Alemã quando disse que: "Os indivíduos isolados apenas seja, há movimentos sociais que se desenvolvem organizando e
formam uma classe na medida em que têm que manter uma luta conscientizando as pessoas e, portanto, constroem a classe. São
comum contra outra classe (... )" 11 7 movimentos mais estáveis que, ao longo do tempo, vão ampliando
A classe não é formada pelos camponeses dispersos, mesmo que e dando qualidade às suas reivindicações. Por outro lado, temos os
haja, em certo aspecto, uma relação social localizada, estabelecida movimentos populares transitórios, que não chegam a organizar e a
naturalmente, que permita que eles se conheçam. Nesse sentido, conscientizar os seus participantes e, por essa razão, não constituem
qualquer iniciativa que se tome, seja no campo da educação, da uma classe. Com o tempo estabilizam ou se d~ssolvem, deixando
cultura ou mesmo de cooperação, por meio da entreajuda, são à mostra suas fragilidades.
esforços que não constroem a classe nem elevam a consciência O processo organizativo é que forma a classe e a partir disso é
para o nível superior. Devido à extensão e diversidade, não se pode que entram em cena os demais elementos de sua qualificação. Por-
considerar que haja uma "cultura camponesà' como também não tanto, qualquer iniciativa impulsionada por interesses desligados da
se pode, na ótica da luta de classes, falar em "educação do campo" ótica organizativa, seja na educação, assistência técnica, atendimen-
sem considerar os camponeses como oposição aos latifundiários e to à saúde etc. estacionam na esfera assistencial, burocrática, que
aos empresários do agronegócio. Campo é território onde convivem tende a ajudar o Estado a oferecer os serviços que o capital ainda
as diversas forças; classe é gente organizada e em luta. A educa- permite que sejam prestados, e disfarçam a luta de classes.
ção dissociada da organização não potencializa a classe. O ponto As insuficiências da dispersão, assistência, desorganização
central é a organização e, a partir dela, investe-se na formação da e territorialização como referência organizativa, são facilmente
consciência de classe. comprovadas pela própria história do sindicalismo rural brasileiro,
criado a partir de 1962. Por que os sindicatos de trabalhadores
116
MARX, K. O 18 brumdrio e cartas A Kuge/mann, p. 116.
118
11 7
MARX, K. e EN GEL , F. A ideologia alemã, p. 84. IASI, M. L. Ensaios sobre consciência e emancipação, pp. 107-108.
142 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAA B OGO 14 1

rurais pouco representaram em termos de luta de classes em toda como um burguês, participa de alguma forma das atividades pro-
sua história no Brasil? fissionais em empresas, parlamento etc, passa a ser parte orgânica
1
Poderíamos identificar vários fatores, mas o principal é de que, da burguesia, ou seja, é o que ele chama de "burguês coletivo". 19 É
como a organização sindical foi formada para abranger o território o que pode ocorrer com os camponeses que produzem integrado
de um município sem levar em consideração, em primeiro lugar a com as empresas, os que se deixam convencer pela transgenia e
quantidade, os pequenos agricultores dispersos em suas proprieda- outras tantas tecnologias, que podem elevar os ganhos.
des não chegaram a se constituir enquanto classe, organizaram-se Os interesses dos grandes capitalistas, articulados pelo capital
apenas legalmente, não elevaram o nível de consciência e por isso financeiro unificam também os interesses das categorias isoladas
nunca perceberam, de fato, quem eram os seus inimigos. As ligas dos camponeses, que, ingenuamente, tornam-se parte da força da
camponesas tiveram, com menos tempo de existência, muito mais classe dos grandes proprietários organizados.
expressão política em nosso país. Quais são os interesses do capital? Este, após ter atingido um
A organização se agrega à formação da classe. Ao articulá-la, a nível elevado no desenvolvimento das forças produtivas, na indús-
mantém coesa em torno de seus interesses particulares, mas, aos tria e no comércio, entrou em ·uma crise de crescimento devido
poucos, amplia os horizontes e passa a inteirar-se dos problemas à superprodução de mercadorias. Há, por isso, a necessidade de
das demais classes e, juntas, estabelecem programas de ação. Sem produzir novas mercadorias que possibilitem um novo impulso
a organização, os camponeses não constituem ainda uma classe, na acumulação.
apresentam-se apenas como produtores isolados, sem noção e O crescimento já não pode se dar somente pela indústria, e o
reconhecimento da própria classe que deveriam constituir. comércio precisa entrelaçar-se com o meio rural, onde facilmente
Há, ainda, um agravante na generalização deste conceito pode encontrar terra fértil para a produção de interesse comercial,
no campo. O desenvolvimento do capitalismo produziu não água doce para irrigação, consumo humano e produção de energia
somente um novo tipo de trabalhador agrícola, mas também um com a construção de hidrelétricas. Além disso, há a biodiversidade,
novo tipo de capitalista. Este último utiliza sofisticadas técnicas que pode oferecer inúmeras possibilidades de exploração, florestas
que descaracterizam as formas de produção tradicionais, enve- e minérios em grande quantidade.
nenam o ambiente e estabelecem relações com o mercado que A elevação da quantidade e qualidade da exploração capitalista
impossibilita os pequenos produtores a concorrerem com seus como um ataque combinado obriga as categorias de pequenos agri-
produtos. Avançam cada vez mais sobre o latifúndio procurando cultores, assalariados agrícolas, trabalhadores Sem Terra e famílias
espaço; com isso, avançam também sobre os pequenos agricul- atingidas pela construção de barragens a se unirem e se constituírem
tores, "cooptando-os" para o seu modelo, fazendo-os assumir a como classe, pois ocupam o espaço físico que é de interesse das
identidade da classe oposta ou então elimina-os. empresas capitalistas. A Via Campesina poderá ser o instrumento
Por estes e outros elementos é que se torna de difícil compreen- de organização ampla da diversidade das categorias que compõem
são o ser e o vir a ser da classe. Iasi esclarece que uma pessoa pode
não ser proprietária dos meios de produção, mas se atua e pensa "
9
Idem, p. 110.
144 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B OGO 145

a classe camponesa, para isso terá que avançar na formulação de um Isso nunca poderá acontecer enquanto a consciência estiver enrai-
programa de lutas e, a partir delas, articular a sua alternativa de socie- zada no capital e na propriedade privada dos meios de produção.
dade para o meio rural com propostas para a produção, a educação Ao contrário, com a organização da classe e das forças sociais, as
e a formação política de classe. Sendo assim, as ações deixarão de ser relações sociais e de produção tendem a entrar em choque com
corporativas e as relações sociais adquirirão identidade de classe. os proprietários dos meios de produção e, através de um processo
O ponto de partida de formação da classe como vimos, é o consciente, processa-se a ruptura com a ordem vigente.
lugar que as pessoas ocupam na produção, mas que precisa da or- Com os camponeses sempre foi intensa a polêmica em relação
ganização e da articulação dos indivíduos dispersos que vivem em a sua postura diante da revolução, o próprio Lenin, antes da revo-
determinado território e também universalmente. A consciência lução russa teve de buscar uma maneira sensata para que esta classe
de classe precisa da produção e da assimilação de ideias para que as importante não ficasse de fora ou se colocasse contra o processo
suas propostas se fundamentem na experiência e na ciência. Nesse revolucionário, assim afirmou ele:
sentido, a posição de classe derivará da compreensão coletiva que se Para um marxista, o movimento camponês não é um movimento socialista,
forma da realidade e da participação nos conflitos entre as classes mas um movimento democrático( ... ) Esse movimento não é de modo
para superar a própria sociedade de classes. algum dirigido contra os alicerces do regime burguês, contra a economia
A consciência é um vir a ser num movimento sem fim. O mercantil, contra o capital. Ao contrário, é dirigido contra as velhas relações
seu ser são suas formas que ganham qualidade a cada momento pré-capitalist_as, feudais no campo e contra a grande propriedade rural,
dependendo das informações que recebe segundo as relações que principal apoio de todas as sobrevivências da servidão ( ... ) 121
o ser social estabelece. No entanto, a sua elevada capacidade política o fez perceber que
No estágio atual do desenvolvimento das forças produtivas, o esta classe deveria ser tomada em aliança com o proletariado.
camponês não terá outra saída a não ser lutar para defender as suas A diferença entre o proletariado e o campesinato é que aquele
relações sociais e de produção e conquistar o seu espaço na vida é parte constitutiva da produção e reprodução do capital. Ao
política do país ao mesmo tempo em que se constitui enquanto produzi-lo produz-se a si mesmo. Ao destruir as relações de explo-
classe. Para isso, terá que conhecer, enfrentar e derrotar "os grandes ração, destrói a si mesmo como classe explorada e toma-se livre. O
capitalistas", da mesma forma como deverá se dar na indústria e em campesinato, ao destruir o latifúndio, afirma-se ainda mais como
outros setores da economia e serviços. Mesmo porque, já alertavam proprietário da terra de acordo com o direito de propriedade que
os próprios precursores do comunismo: "O comunismo se caracte- a rigor se torna um bem de uso, "propriedade em geral", mas
riza pela abolição da propriedade burguesa e não pela abolição da propriedade, para a produção da sua subsistência, da sua família
propriedade em geral", 120 ou seja, os meios de produção deixam de e da sociedade, com certo grau de independência.
ser propriedade individual do grande capitalista para se tomarem Porém, o que estamos vendo é que, com o passar do tempo,
propriedade coletiva a serviço dos interesses comuns da sociedade. o capital mudou a sua natureza, passou de industrial e comercial

120
Idem, p. 30. 121
LENIN, V. I. Aliança da classe operária e do campesinato, p. 112.
146 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAA B DGD 147

para financeiro; é obrigatoriamente necessário que tenha mudado classe, o proletariado precisa estar organizado e consciente, e para
também a natureza dos movimentos camponeses, que podem optar ser revolucionário, precisa estar em luta pela revolução.
pela propriedade coletiva da terra ou tê-la apenas como concessão Em termos materiais e produtivos, devemos levar em conta a
de uso regulada pelo Estado; ou mesmo, adotarem formas múl- diferença que há entre a natureza do camponês e a do operário.
tiplas de cooperação para enfrentarem o poder do capital. O que Enquanto o operário transforma a sua força diretamente em
deve fazer a diferença é a elevação da qualidade da consciência dos mercadoria, produz o lucro de seu patrão e o seu próprio salário,
camponeses para consciência proletária para que de fato a terra trabalhando 8 horas por dia; o camponês, da mesma forma, produz
seja vista como um bem comum e que os indivíduos assim como o seu próprio "pagamento", mas sua atenção está voltada para a
a terra tenham função social definida lavoura e demais bens, durante todo o ciclo de sua produção e, não
Não temos relações pré-capitalistas e feudais no Brasil, embora raramente, isso se dá durante 16 a 18 horas por dia. O operário
ainda tenhamos trabalho escravo. Por isto, a luta é anticapitalista aliena-se do objeto que produz diariamente, desliga-se dele sem
e anti-imperialista, cujo êxito somente será alcançado se, mais do saber para onde vai. O camponês não, permanece ligado a eles
que uma aliança operária e camponesa, como era possível no pas- como bens de uso ou como mercadorias, até o momento da entrega
sado, haja uma integração entre operários, trabalhadores informais, no mercado, mas essa diferenciação produtiva não pode se dar no
desempregados, grandes contingentes pobres, ou seja, as massas nível de consciência; esta tem que ser comum e de classe.
populares, e camponeses, estabelecendo formas de lutas comuns Os camponeses enquanto classe hoje, tendem a ser como nas
contra os mesmos inimigos. revoluções passadas, uma força fundamental. O imperialismo, por
Se o capital funciona na forma de capital financeiro, indus- meio das empresas transnacionais, chegou perto de suas casas e
trial, comercial e agrícola, nacional e internacional; integrados terão que combatê-lo. Os rincões foram descobertos e se tornaram
devem ser os combates. Por isso, a palavra de ordem do Manifesto atrativos para o grande capital. Sem a classe não pode haver mudan-
do Partido Comunista é atual: "Proletários de todos os países, ças revolucionárias. Somente a organização permite a formação de
uni-vos!" identidades combativas voltadas para a defesa dos interesses de classe.
É importante salientar que, para muitos, basta as pessoas tra- Dessa forma, os camponeses poderão expressar o lema revolucionário
balharem em um mesmo ramo de produção ou se considerarem como última alternativa: "ou se triunfa ou se morre!".
parte dos que têm a mesma profissão, para já compor a mesma
classe. Por muito tempo se viu a classe operária como sendo aqueles A CAUSA COMO IDENTIDADE EDUCADORA
trabalhadores das fábricas metalúrgicas, e, por esse fato, já serem A ação cria, inicialmente, a desarmonia nas relações sociais
naturalmente revolucionários. O conceito mais adequado e que estabelecidas. Bom para a ordem é aquele que se submete, não
abrange todos aqueles que são explorados diretamente na produ- aquele que discorda. O que é certo para quem luta pelo direito
ção é proletariado, ou seja, são aqueles trabalhadores que vendem à terra não o é para o grande proprietário, para o juiz, o policial,
a sua força e geram nova força (prole), através dos filhos gerados os donos dos meios de comunicação e as pessoas que, em geral,
para deixá-los como nova força de trabalho. Mas, para ser uma temem o conflito.
148 IDE NTID ADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR 8 0GO 149

Há os que recriminam as formas e os métodos, bem como a no do homem", disse Bertolt Brecht, divergindo do que havia dito
participação das mulheres e crianças no conflito. Ocorre que o John Locke, filósofo e médico inglês, nascido em 1632, fundador
grande capitalista tem recursos para resolver de outras maneiras os do empirismo, que acreditava que todo conhecimento derivava da
seus problemas. Quando sai para fazer negócios, não leva a esposa experiência. Contrariado com os rumos da humanidade, Locke
nem os filhos. Os trabalhadores Sem Terra, movidos pela esperança afirmou: "O homem é o lobo do homem". Nesse ambiente, um
de conquistar o seu espaço, levam tudo o que têm e, mesmo no não precisa devorar o outro para ter aquilo que merece e, se ele
perigo do conflito, acreditam que os filhos estão mais seguros do individualmente tiver, é sinal que todos terão.
que se ficassem para trás. Assim, na coletividade, ao mesmo tempo O fato de se abraçar uma causa coletiva educa e reeduca o ser
em que as pessoas se educam, se identificam. social. Renuncia-se a inúmeras vontades, instintos, controlam-se os
Os Sem Terra passam a ser conhecidos a partir do momento vícios para não ficar de fora da grande conquista que se anuncia.
em que vão para a ocupação. Antes disso, são seres sociais, existem As forças que se colocam em movimento permanecem nele se
como números que fundamentam as estatísticas dos que não têm adquirirem consciência da causa que defendem. A luta de classes
emprego, casa, saneamento básico etc. tem um lado a ser defendido e, só o defendemos se fizermos parte
No momento em que organizam o acampamento, levam para desse lado.
dentro dele todas as cicatrizes que existem na pele e na consciência, A causa é a consciência das contradições que assegura a confian-
rapidamente mudam o comportamento, porque compreendem o ça para desenvolver as ações. Quanto maior a intensidade destas,
que estão fazendo e passam a confiar na organização. maior será a profundidade do pensamento.
Nesse momento é que se dá a impressão da identidade, como Na luta de classes, há poucos que têm o que perder e há muitos
se um carimbo vermelho fosse colocado na consciência de cada que só têm a ganhar, que podem estar do mesmo lado. Mas, vale
indivíduo. Ela é a forma política que desperta confiança e dá se- a capacidade e a coerência daqueles que querem ir até o fim. A
gurança. Quando vivia na periferia da cidade ou no povoado do organização política da classe cumpre esse papel. A fragilidade dos
interior, o perigo vinha de dentro da comunidade. No acampa- movimentos sociais contemporâneos não permite que assumam
mento, o perigo vem de fora. por si só essa função. É fundamental que a unidade das forças se
Por que ocorre essa inversão? Porque a identidade ganhou eleve acima da força dos contrários para colocar as contradições
forma de causa e não apenas de representação. As portas das bar- em outro patamar.
racas do acampamento não têm tranca, chave ou tramela, e tudo A conquista da terra como causa inicial é também a busca da
o que uma família tem de bens está ali. A vigilância noturna está liberdade, do direito a receber visitas em horários supostamente
voltada para fora, de onde o perigo deve vir. Ninguém teme ser de trabalho, mas acima de tudo é o princípio da lura pela eman-
assaltado enquanto dorme, nem ir cedo para o trabalho deixando cipação, em que a liberdade nada mais é do que cumprir bem a
seus pertences protegidos por uma frágil parede de lona. função social individual e coletivamente.
A mudança brusca de comportamento está relacionada com as
diretrizes da reconstrução das relações sociais. "O homem é o desti-
OPODER COMO CULTURA
E IDENTIDADE DE CLASSE

QUANDO, EM 1988, ELABORAMOS a letra do hino do MST, acredi-


távamos que a luta e a organização edificariam uma·"pátria livre e
forte, construída pelo poder popular".
Refletiam em nós os raios da revolução nicaraguense que se
apresentava como um ensaio do que seria em cada país da América
Latina. Lá, em 1979, as massas populares tinham assumido seu
próprio destino ao se inserirem na Frente Sandinista de Liberta-
ção Nacional (FSLN). Era o projeto popular que triunfava e nos
cativava para que fizéssemos o mesmo; apesar de termos ainda as
ideias dispersas e os conceitos em estágio embrionário de formu-
lação e assimilação.
Aprendemos cedo que também há um projeto imaginário (sem
forma, não dito e não escrito), existente na vivência das massas
dispostas nas diferentes classes e movimentos sociais, nem sempre
captado pelas estratégias partidárias, que geralmente consideram
apenas como "ideias dispersas", "razões espontâneas" de ver o
futuro, por serem elas "desorganizadas" e "despolitizadas", como
geralmente o são. Por isso mesmo, elas precisam ser evidenciadas
e organizadas para que se integrem e componham o projeto.
Em nosso tempo, os instrumentos organizativos tradicionais,
por causa do enfraquecimento do movimento socialista, perde-
ram a força e a sensibilidade para perceberem a originalidade da
imaginação popular, abrindo uma grande lacuna entre as forças
partidárias e as forças sociais desde o início do século. Nas crises
de ascenso do movimento socialista, as entidades organizativas
152 I DEN TIDADE E LUTA DE CLASSES
A DEMAR B oGO 153

de classe saem dela pelo fenômeno do esvaziamento e enfraque- na frente, desarticulando e desorganizando a busca da solução
cimento das lutas. conjunta. Uns pensam em "vencer" pelo trabalho; outros, por
Diante deste fenômeno que presenciamos, a maioria dos outros meios.
partidos políticos de esquerda, na atualidade, optaram por der- Vivemos um tempo em que as referências das formas organi-
rotar a burguesia pelos mesmos meios que ela usa para dominar: zativas clássicas perderam o potencial de enfrentamento, como é
o processo eleitoral e a administração do Estado burguês. Para o caso dos sindicatos e dos partidos políticos, mas não significa
tanto, necessitam de um instrumento cartorial de propaganda que as forças sociais perderam o seu potencial revolucionário. Ele
para ampliar a influência na sociedade, passando, do combate à existe, apenas espera por novas formas de expressão.
ordem estabelecida, à participação e fortalecimento da mesma, A identidade de classe (no sentido restrito proletária, campo-
colaborando com a contrarrevolução, por meio da inclusão no nesa...) atinge-se organizando-a para enfrentar a classe dominante
projeto oposto, tornando-se "burguês coletivo" como vimos no já organizada. A esperança precisa se tornar consciência do desejo
capítulo anterior. coletivo, para que, de fato, se possa caminhar em direção à transfor-
As massas desorganizadas buscam, cotidianamente, a mação estrutural da sociedade. O projeto é de classe, mas contem-
realização da esperança histórica por meio de investimentos pla o "popular" que circunda a classe, quando as forças populares,
particulares: nos jogos de azar, nas promessas para com as esperançosas por mudanças, se vinculam ao projeto consciente e
divindades, nos momentos de culto, na fila do emprego, que, solidário formulado pela classe organizada. É nesse sentido que
apesar do excesso de candidatos , pode contemplar um dos esta força busca fora de si a superação dos seus próprios limites.
desempregados; na busca de conhecimento nas escolas como C omo diz Mészáros: "Por mais amplas que sejam suas bases, a
garantia para a ascensão na vida social; na reunião política, ou classe é, por definição, uma força social exclusiva, pois não pode
na luta do movimento social. Há uma consciência primária de abarcar outros indivíduos além dos seus próprios membros". 122 O
que a esperança não se realiza sem esforço, isto é, para dizer projeto político e a influência do instrumento político no seio das
que as massas, na busca de satisfazerem as suas necessidades, forças sociais possibilitam a intima integração entre as partes. O
apenas desarrumam a ordem oficial das coisas, dando-lhes uma instrumento político é a mediação entre as diferentes organizações,
ordem mais simples, popular, informal, de movimento constan- para que a classe "amplie os seus membros", pela posição de classe
te, sem ter o entendimento do que isso representa. Falta-lhes proletária, da parte popular.
o elemento agregador para investirem suas forças no combate Não pode haver um projeto de sociedade futura sem considerar
direcionado à ordem estabelecida para instalar um novo sistema e sem valorizar a cultura popular. Logo, a luta é de classes, mas
de funcionamento da sociedade. o seu objetivo não é apenas mudar a infraestrutura e as relações
O que distancia a luta pelas conquistas imediatas do projeto de produção. Cada um atua no meio em que vive, para ajudar
político de transformação revolucionária, muitas vezes elaborado a transformar o todo, em que os demais seres sociais vivem,
sem considerar a cultura popular, é que, apesar de os problemas e
122
de as necessidades serem as mesmas, os desejos individuais correm MÉSZÁROS, I. Para além do capital, p. 1035.
154 IDENTIDADE E LUT A DE CLAS SES ADE MAR 80G O 155

transformando-se socialmente juntos. Para isso é importante a A CULTURA É UM CULTNO DE ALTO RISCO
formulação do projeto como destino. A cultura é um cultivo de alto risco, ao mesmo tempo em que
A revolução, como processo de transformação da sociedade, a fazemos, a fortalecemos, ou, ao contrário, podemos também
continua a ser, como no passado, de caráter proletário, porque ela desviá-la e destruí-la.
se insurge contra os proprietários dos meios de produção, para Em qualquer tempo e lugar, a cultura é a mediação. Ela é a cons-
torná-los propriedade coletiva dos trabalhadores. trução e ao mesmo tempo o construtor já feito, mas também, ainda,
Embora haja a contribuição de diversas forças sociais, como, o que virá a ser da construção e do construtor, seja no processo de
por exemplo, a participação ativa dos camponeses, a revolução não produção ou no processo educativo."( ... ) As circunstâncias precisam
poderá ter outro caráter que não seja proletário. Há, por assim ser transformadas pelo homem e o próprio educador precisa ser edu-
dizer, a necessidade de um confronto de culturas, da velha e da cado", disseram Marx e Engels na terceira tese sobre Feuerbach. 124
nova moral. O agente da cultura faz e é feito por ela. Não basta educar e
A propriedade dos meios de produção não eliminará a pro- politizar o ser social, é preciso intervir sobre as circunstâncias em
priedade dos bens de uso ou aqueles que, mesmo individual- que ele vive para criar as novas circunstâncias. Ele e o meio são
mente, cumprem função social. A questão será sempre a busca partes interligadas da mesma mudança; para conhecê-los, é preciso
da emancipação do ser humano e da sociedade. As forças sociais arriscar-se a "andar por todos os lados do finito" 125 na busca de que
terão o papel de educar as massas para a construção do socialismo. o imaginário se torne acessível.
Somente quando os pensamentos, as ações e os sentimentos se Toda vez que separamos as circunstâncias dos seres humanos
tornam reflexão e prática, a política se enraizará nas consciências; - uma habilidade específica dos partidos contemporâneos institu-
aí então podemos dizer que a cultura passa a ser um movimento cionais que veem a conjuntura pelo movimento da economia e das
permanente de transformação, das relações sociais e de produção, forças políticas e não pela existência das pessoas -, desarticulamos
com identidade de classe, com a extinção do Estado, como disse todo o processo de mudanças. Então, não há mudanças só para a
Engels: frente. Há também retrocessos que modificam a ordem primeira.
( ... ) O primeiro ato em que o Estado se manifesta efetivamente como Os movimentos sociais, por sua própria natureza, valorizam antes
representante de toda a sociedade - a posse dos meios de produção em de tudo as pessoas, sem elas não há organização, sem elas não há
nome da sociedade - é ao mesmo tempo o seu último ato independente história, mas, nem sempre conseguem vislumbrar o projeto mais
como Estado (... ) 123 amplo. Falta-lhes a consciência da organização consistente dos
Daí é que nascerá o processo do seu desaparecimento, pois partidos revolucionários.
o modo de produção nascente modificará as relações e com isso Há circunstâncias que não são somente momentâneas e passagei-
o Estado perde aos poucos a função anterior, extingue-se numa ras; elas são, acima de tudo, estruturais. Há circunstâncias de décadas
sequência contínua.
124
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 108.
125
IAS!, M. L. As metamorfoses da consciência de classe: O PT entre a negação e o consentimento,
123
ENGELS, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico, p. 73. p. 24.
156 IDENTID AD E E LUTA DE CLASSES ADEM AA B OGO 157

e de séculos que estabeleceram padrões de referências intelectuais, A cultura republicana do poder que se cultiva com euforia
morais, jurídicas etc. e se manifestam nos hábitos, comportamentos gira em torno da ideia de que "vale a vontade da maioria''; leva a
e maneiras de ver o mundo presente e futuro - tornaram-se, por- sociedade a uma fantasia de democracia, e culturaliza a identidade
tanto, cultura. Mexer em um dos lados, só no ser humano ou só nas representativa.
circunstâncias, é um alto risco para as massas. Mexer em ambos, ao Mostesquieu, ao fazer a classificação das "três espécies de go-
mesmo tempo, é um alto risco para a classe dominante. verno": republicano, monárquico e despótico, disse que:
Cultura deriva do verbo latino colo que significa cultivar. Quem (... ) o governo republicano é aquele em que todo o povo, ou apenas uma
cultiva intervém para cuidar direito. Afasta do "redor" o indesejado parte do povo, tem o poder soberano; o monárquico, aquele em que uma
para que não se aproxime e asfixie o objeto do cuidado que vive só pessoa governa, mas por meio de leis fixas estabelecidas; enquanto, no
em certas circunstâncias. Lutar pelo poder é lutar pelo direito livre despótico, uma só pessoa sem lei e sem regra, tudo conduz, por sua vontade
desse cultivo da cultura de participar. e por seus caprichos. 126
Como as plantas na lavoura, assim é a cultura na sociedade Montesquieu não tinha condições de prever que o capital
do capital; é necessário cuidar para que as outras ervas, que são o unificaria em uma as "três espécies de governo".
objeto de nosso trabalho, não as causem mal. Os processos eleitorais, que incluíram o povo na falsa escolha
Na vida social,. há muita convivência com as coisas imediatas e democrática de seus representantes, significaram a renúncia de sua
pouca convivência com a cultura política; isso descompromete os própria esperança, tornando-a desejo de um grupo cada vez menor
seres sociais da responsabilidade com o destino coletivo. Vivemos de políticos profissionais que legislam despoticamente como se não
sistemas contrários do que era a polis, no tempo de Platão, onde vivêssemos em uma república. Vejamos: pela vontade popular não
os não escravos, "cidadãos de bem", se reuniam todos os dias, na se pagariam certos impostos, pedágios, consultas nos hospitais,
Ágora, a praça central, para discutir sobre a vida em sociedade. mensalidades em escolas, passagens em ônibus urbanos e metrôs,
Dessa forma, quem participasse tinha consciência coletiva dos haveria trabalho, reforma agrária e universidade para todas as pes-
problemas e das soluções políticas apresentadas. A assembleia era soas etc. Quem obriga a pagar são as leis feitas pelos representantes
soberana. "Usurpar a soberania'' significava um estranho ouvir as republicanos que precisam dos impostos para manterem o Estado
discussões sem ser convidado, descoberto, era punido com a morte funcionando contra os interesses da maioria.
para evitar que levasse para fora o que ali se havia decidido. O cultivo da subserviência é um grande risco que correm as
Hoje, os meios de comunicação substituem a grande Ágora. forças de esquerda quando fazem política junto com a direita, pois
Já não se faz mais política na praça. Sem exigir que os cidadãos não é a sua vontade que determina a ordem, mas a ordem que
de bem saiam de casa, o capital, todos os dias, leva pelas imagens, determina a sua vontade. Esta se enraíza no imediato, não perce-
sons e cores o alimento dos costumes que quer desenvolver. bendo as circunstâncias estruturais, as massas não se colocam em
A representação é a doença da modernidade; ela trouxe junto ação contra a ordem. E, quando a minoria determina o destino da
com a república o desejo do cidadão de ser representado. Delega
o poder para se submet r. 126 ALBUQUERQUE, G. J. A. "Montesquieu: sociedade e poder", p. 127.
158 IDENTI DADE E LUTA DE CLASSES ADEMAR 8 0GO 159

maioria por longo tempo, mata o vigor dos valores que qualificam inquietos (... )". 127 Podemos viver décadas à espera do despertar
a cultura política de ação contra a ordem. do movimento para frente que destrava a revolução, mas ele virá!
As forças revolucionárias somente se constituem e se desenvol- É, então, no fazer acontecer o desejo que se desenvolve e se
vem quando vão além da luta corporativa e se revoltam contra a cultiva a cultura. O poder da classe com a participação popular da-
ordem estabelecida com o objetivo de negá-la e ultrapassá-la. Os queles que não se organizaram enquanto tal exige que se acrescente
revolucionários são altamente desobedientes e impacientes com a o saber consciente a esse desejar, para que o fazer tenha consistência.
normalidade da ordem, nisso está o germe da cultura política, que Ao ampliar a quantidade na abrangência organizativa, amplia-se
precisa se tornar de classe e se estender para a população. também a qualidade da consciência. A formação política das
Não havendo o despertar da esperança das mudanças políticas, massas é parte da cultura que se amplia para que, além do esforço
supõe-se que as massas abandonaram o objetivo de ter uma vida para viver, elas também desenvolvam o esforço para organizar e
melhor. Não é verdade. Ocorre que, na desorganização partidária conquistar o poder.
da sociedade, em que a parte encarregada de impulsionar e sustentar
as mudanças, com consciência, se dispersou, há uma organização A CULTURA POPULAR É TAMBÉM A
informal feita pela cultura popular. Então, por mais que o capital CONSTRUÇÃO DO PODER
queira, a expressão da verdadeira cultura não está na televisão, Na história da humanidade, principalmente nos últimos cem
por mais que se tente impor os padrões de consumo e influir no anos (aproveitando as circunstâncias que se formaram), foram
comportamento. Na informalidade, as massas são desobedientes poucas as vezes em que os desejos das massas de um país se com-
à ordem e agem estruturando as suas religiões; organizam seus binaram com os desejos da organização da força política dirigente.
investimentos para enfrentar o desemprego através de vendas Quando isso se deu, as revoluções triunfaram. Foi, por assim dizer,
avulsas em pontos comerciais ambulantes sem pagar imposto e, o encontro da consciência da classe com a esperança das massas
estabelecem relações de afetividade e convivência que se tornam que se identificaram e fizeram nascer uma nova cultura de poder.
referência de solidariedade. O novo conteúdo ganhou forma nova no exercício do fazer,
Então, as massas nunca estão apáticas na visão estratégica; do saber e do imaginar e exercer o poder de outro jeito. A visão de
apenas desviam os sentidos para o ponto da sobrevivência quando m undo de uma época é -também o resultado da situação de vida
lhes falta a referência política. Mas a energia da esperança está de uma determinada sociedade, classe ou grupo social. Por trás
resguardada, como o potencial de crescimento da criança que, da fisionomia das pessoas estão os fundamentos de satisfações ou
por mais que se desgaste em brincadeiras diárias, seus músculos a decepções que as fazem vibrar ou calar.
desafiam ao crescimento, mesmo enquanto dorme. Para afirmar o poder é preciso negar o poder das elites. Para
Como a maturidade não é um estágio conclusivo da vida, os isso, se faz necessário compreender onde este se situa. Ele não é
desejos amadurecem também sem se degenerarem. Como disse um sentimento abstrato de mudança confiado a uma minoria.
Ernst Bloch: "Os desejos mais maduros não precisam ser menos
127
BLOCH. E. O princípio esperança, p. 36.
160 I DEN TIDADE E LUTA DE CLASSES
A DEMAR B oGo 161

Antes de tudo, são relações concretas manifestadas pela estrutura mercadoria, a começar pela força de trabalho. Enquanto houver
social e política em vigor. mercado, ele continuará projetando o "homem" deformado do
Lutar contra o poder das elites significa colocar-se em determi- futuro.
nados postos que permitem assumir outra posição como sujeitos da Deve-se, portanto, tomar o capital como uma "força social" ,
história. Quais são esses postos? São infinitos. Para cada lugar há como afirmaram Marx e Engels no Manifesto do Partido Comu-
espaços a serem ocupados que estão distribuídos em três campos: nista. Ele é o resultado de "uma ação coletiva'' que só existe por
a) na luta de classes contra o capital; b) na construção estrutural causa "da ação comum de muitos membros, e mesmo, em última
do poder político; c) na formação da consciência pela práxis re- instância, de todos os membros da sociedade" . 128 Torná-lo uma
volucionária. Vejamos por partes: propriedade verdadeiramente social é desvinculá-lo da classe dos
proprietários, modificando o seu caráter de propriedade burguesa
a) Na luta de classes contra o capital para propriedade coletiva.
Não pode haver luta de classes sem que em um dos lados esteja Logo, é necessário desfazer a classe que se estabeleceu através da
o capital e a propriedade privada. A classe dominante só pode ser propriedade privada e formar a classe da socialização do capital. Ao
assim compreendida porque é a classe do capital. Ele é o centro da serem coletivizados os meios de produção, se reorganiza a divisão
referência do poder, ele é o poder. Quem o alimenta é o trabalho, social do trabalho e, a partir disso, cada ser social encontrará a sua
do qual se extrai o lucro; para isso precisa explorar quem trabalha função social.
(homens, mulheres e crianças) e o consumidor de mercadorias. É O sistema do capital como poder é que precisa ser desestru-
por meio dele que se manifesta o fetiche da mercadoria, que passa turado, ele é a força que faz mentir, enganar, submeter, destruir e
a ter vida e "poder sobrenatural", que atrai as pessoas a buscarem falsificar a visão das coisas e do mundo. Não foi em vão que Marx
desesperadamente a sua companhia. Dessa forma, o mercado e Engels descobriram muito cedo que:
torna-se um local de encontro, não de pessoas com pessoas, mas de As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominan-
dinheiro com mercadorias. Comprar é uma relação de prazer que tes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao
impulsiona as pessoas a buscarem desesperadamente a mercadoria mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. 129
dinheiro para irem ao mercado. As ideias dominantes são, então, a expressão das relações con-
O surgimento do dinheiro , valor abstrato da mercadoria, cretas estabelecidas pela própria classe dominante.
reduziu enormemente a possibilidade de surgirem e se reprodu- É pelas relações dominantes que se expressa a cultura domi-
zirem valores humanitários. Tudo passou a ser pago. Os emprésti- nante. O sistema do capital não gera somente miséria, guerras
mos e os créditos passaram a ser a nova forma de "solidariedade". e destruição, além disso faz com que os dominados expressem
Isso tanto se tornou referência que os comerciantes, já no século uma "falsa consciência" como se fossem suas as ideias, quando na
12, acreditavam fielmente serem eles o "embrião do homem do
futuro". Não deixavam de ter razão. O modo de produção capi-
128
MARX, K. e ENG ELS, F. "Manifesto do Partido Comunista", p. 101.
talista nada pode fazer sem o mercado. Com ele, tudo se tornou 129
MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 56.
162 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR 8 0GO 163

verdade são decorrentes da ideologia dominante que os leva a ver na luta prolongada, as formas de consciência e a capacidade de
a realidade invertida. dar forma ao projeto de sociedade desejado pelas imensas massas
populares. Estas se ampliam cada vez mais com a elevação da
b) A construção estrutural do poder político produtividade do trabalho pelos avanços tecnológicos que, ao
O poder do proletariado com participação popular não é o mesmo tempo, empurra para fora da classe proletária organizada
exercício do poder na estrutura do Estado capitalista, senão o uma quantidade enorme de força de trabalho, e não integra a nova
seu contrário. A democracia socialista imaginada por Lenin, era força de trabalho que surge.
a vontade da maioria dominada, que triunfava sobre os interesses O poder, antes de estar com as pessoas, está nas forças produ-
da minoria dominante de uma sociedade dividida em classes e em tivas e improdutivas da sociedade e se sustenta pela propriedade
luta. Por intermédio da luta dos contrários o poder da minoria privada, ou seja, pelo capital. Disse bem Gramsci: "A sociedade
deixa de existir para dar lugar ao poder da maioria. Não se tratava burguesa não é uma coisa simples: é um conjunto de organismos
então de ser um mero preenchimento de cargos de confiança na que, atuando de modo aparentemente autônomo, convergem para
estrutura dos poderes da república. Esse princípio está claro tam- um objetivo comum" . 13 1 Ao mesmo tempo que parecem competir,
bém no Manifesto do Partido Comunista: se defendem mutuamente. A natureza do poder burguês reside na
Todas as classes _dominantes anteriores procuraram garantir sua posição identidade com a propriedade privada dos meios de produção ou
submetendo a sociedade às suas condições de apropriação. Os proletários com a coletivização completa deles. Não pode haver desarmonia
só podem se apoderar das forças produtivas sociais se abolirem o modo de entre propriedade e Estado.
apropriação típico destas e, por conseguinte, rodo o modo de apropriação Baseado nessa complexidade, o próprio Gramsci intuiu que a
em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu para salvaguardar; eles sociedade comunista também não seria simples. Para ele, "cons-
têm que destruir todas as seguranças e todas as garantias da propriedade truir uma sociedade comunista" seria fazer com que a luta de
privada até aqui existentes. 130 classes conduzisse à criação de organismos capazes de dar forma
Por isto, o poder do proletariado não é nem a participação no à sociedade.
poder existente, nem a ampliação do poder da burguesia ampliando O funcionamento da estrutura do Estado que conhecemos,
a classe inimiga, mas a superação das relações instituídas através mesmo, às vezes, governado por indivíduos oriundos da classe
da negação da ordem que garante o poder à minoria. proletária tem em seus hábitos e métodos a prática de investir o
O poder aqui exposto, não exclui; ao contrário, supõe a cons- funcionário de "poder público" e dar a esses funcionários direitos
tituição e a organização da classe. A natureza do poder popular superiores que, como funcionários, são colocados acima da socie-
precisa ser entendida como maior do que somente a classe prole- dade.132 Renasce, assim, de forma permanente, a nova burocracia e
tária empregada e produtiva composta e organizada que se tornou a cultura do fortalecimento dos privilégios e do poder mesquinho
. a força dirigente do processo revolucionário, por ter madurado,
131
GRAMSCI, A. Escritos políticos, p. 313.
132
130 MARX, K. e ENGELS, F. "Manifesto do Partido Comunistà', p. 97. LENIN. V. I. O Estado e a revolução, p. 30.
164 I DENTI DADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR 8 0GO 165

no seio daquilo que parece ser uma nova classe, como afirmou forças em ascensão a se tornarem coniventes com seus interesses.
Francisco de Oliveira: Numa sociedade em construção, cuja revolução não pára nunca,
A nova classe tem unidade de objetivos, formou-se no consenso ideológi- todas as tarefas estão voltadas para o mesmo objetivo político - a
co sobre a nova função do Estado, trabalha no interior dos controles de emancipação da sociedade e do ser humano. Logo, deixando de
fundos estatais e semiestatais e está no lugar que faz a ponte com o sistema haver a exploração no trabalho, não pode continuar havendo do-
financeiro (... ) 133 minação administrativa, hierárquica, por meio de ordens, assédios
Logo, ao invés de fortalecer a luta dos contrários, estabelecem ou preconceitos.
um pacto de convivência com o lado que deveria ser o seu oposto. A nova cultura se insurgirá contra todos os tipos de domina-
As contradições não foram eliminadas, apenas uma parte da classe ção, primeiramente de classes, depois nas demais relações, sejam
foi cooptada, a outra parte continua, embora frustrada, no mesmo profissionais, de gênero ou institucionais, mas ela precisa de me-
lado que sempre esteve. canismos para se desenvolver. Estes estão na sociedade civil, mas,
Engels, ao contestar os anarquistas, explicou que a dissolução para se tornarem verdadeiramente expressivos precisam ir além e
do Estado devia ser gradual. se apoderarem da estrutura de poder político que determina as leis,
Ora, após a vitória do proletariado, é justamente o Estado que representa a moral e controla, pela força, as relações sociais.
a única organização que a classe operária triunfante encontra para utilizar
(... ) exige importantes modificações. Mas destruí-lo completamente nesse c) Na formação da consciência através práxis revolucionária
momento equivaleria a destruir o único aparelho( ... ) com o qual permite A práxis revolucionária nos aponta o caminho para agarrarmos
assumir o poder, reprimir seus inimigos capitalistas e realizar a revolução as possibilidades de mudanças se compreendida como:
econômica (... ) 134 (.. .) Atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no
É aí onde os interesseiros que chegam ao governo confundem as mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la,
coisas. Engels fala da utilização do aparelho sem a classe dominante transformando-se a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira
que deverá, esta sim, deixar de existir, imediatamente enquanto mais consequente, precisa da reflexão, do autoquestionamento da teoria; e
classe dominante. é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos
A partir do controle sobre o capital, o Estado inicia a mudança e desacertos, cotejando-os com a prática. 135
de natureza, mas sem tomá-lo é improvável que se consiga negá-lo Na vida social se desenvolve a consciência social mediada por
e extingui-lo. infinitas estruturas e relações. Nem sempre elas ajudam na evolução
O poder é uma nova cultura que se desenvolve a partir do da consciência; ao reproduzir cotidianamente apenas atividades, o
exercício do próprio poder; o risco de tomá-lo parcialmente, sem ser social se torna ativista e não crítico.
considerar as forças do capital que permanecem intactas, obriga as O ativismo se dá tanto na econômica quanto nas atividades
políticas mecânicas, desprovidas da visão das contradições. Por
133 OLNEIRA, F. Crítica à razão dualista - o ornitorrinco, p. 148.
134 NETIO; J. P. Engels, pp. 228-229. 135
KONDER, L. O futuro da filosofo da práxis, p. 115.
166 IDENTID ADE E LUTA DE ClcASS ES A DEMAR 8 0 GO 167

exemplo, um vendedor ambulante pode oferecer, ao mesmo tempo, político. Mas não há transformação do meio e do ser sem um
a bandeira do Brasil e a dos Estados Unidos; um CD de Chico instrumento que se coloque entre a consciência e a possibilidade.
Buarque e outro com mensagens completamente diferentes, o que Não pode haver práxis coletiva se não houver um instrumento de
se justifica no sentido de satisfazer seus ganhos, mas, por outro uso coletivo.
lado, alguém pode adquiri-los e utilizá-los frequentemente com Então vem o desafio: desfazer-se ou adotar instrumentos já
a mesma naturalidade, representando a sintonia que há entre a estabelecidos?
indústria cultural e o mercado. Há na dialética um princípio de ação e reação. Mas essa "rea-
Podemos dizer que não há ação sem reflexão, pois tudo o que ção" tanto pode ser ofensiva quanto passiva. Nesse sentido é que as
fazemos de prático tem uma teoria. Ocorre que há, pelo menos, estruturas organizativas também têm seu "prazo de vencimento",
dois tipos de reflexão: a do "senso comum" (conjunto de infor- ou seja, elas foram criadas dentro de determinadas circunstâncias
mações fragmentadas) e a consciente. Por isso, "Toda práxis é e para um determinado fim. Seus fundadores tinham determina-
atividade, mas nem toda atividade é práxis". 136 É através dela que das preocupações e viviam em certas circunstâncias que os seus
pode surgir na vida social a exposição das contradições e, organi- descendentes já não têm e nem vivem. O que vemos atualmente
zadamente, começa-se a perceber quem são os inimigos, seja no é que a estrutura organizativa da classe trabalhadora se ampliou,
campo econômico, político, ideológico ou cultural. entrou na ordem estabelecida em busca da legalidade e passou a
Então inverte-se a ordem das coisas, interrogando-as e, de uma desenvolver tarefas co~iventes com a própria ordem. As burocracias
ou de outra forma, negando-as com ações concretas. Por que é pre- também se reproduzem como cultura e identidade.
judicial para a consciência dos adolescentes ouvirem e se divertirem Há uma infinidade de organizações que estão no meio social,
com músicas bregas ou outras criações dessa natureza? seja na forma de associações, sindicatos, movimentos, partidos etc.,
A palavra alienação se origina da palavra Alius, que quer di- mas não possuem espírito de rebeldia. Mantém uma aparência
zer separar. Logo, toda teoria que não reflete a realidade em que colorida externa, mas estão mortas e apagadas por dentro.
estamos inseridos, nos afasta dela. Coloca-nos ilusoriamente em A práxis revolucionária exige descobrir quais são os empeci-
outro mundo que não é aquele que precisamos compreender e lhos que impedem que o meio e o ser social se transformem, mas
transformar; por isso, a música, a novela, os livros de autoajuda é preciso que haja um impulso revolucionário para frente; um
etc., que às vezes parecem tão inofensivos, são vitais para a domi- clima de revolução criado pelas contradições e não pela simples
nação das pessoas pelo capital e pela ordem ~ t; belecida por ele. vontade humana.
A desqualificação da informação é também a desqualificação da O movimento das contradições desmancha o que é sólido e o
consciência. que também não é. O concreto e o abstrato são apenas momentos
A transformação do meio somente ocorre se houver também que se sucedem e se renovam.
a transformação do ser social. O fazer, então, torna-se um fato O poder popular orientado pelas forças das classes aliadas tem
de se tornar uma cultura e não apenas um projeto de governo, em
136
VÁZQUEZ, S. A. Filosofia da práxis, p. 219.
que o fazer e o pensar cotidianos, nada mais são do que a práxis
168 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B OGO 169

sensível consciente. Dessa forma, a revolução cultural não está Elas estão nos livros, nos meios de comunicação, nas escolas,
separada da revolução social. nas religiões, nos princípios, na ética, na moral, nos valores e
A derrota da classe dominante será representada pela modifica- também nas conversas cotidianas. É por meio delas que circulam
ção no sistema de propriedade dos meios de produção e do capital, as propostas, as intenções políticas e as decisões tomadas.
na reestruturação das estruturas de poder político e na renovação As ideias têm muita força na organização e no controle político
das relações sociais em que os seres humanos se reconheçam como da sociedade; quem produz ideias comanda as reflexões coletivas
seres verdadeiramente emancipados de todos os tipos de precon- e, por meio delas, estabelece o consenso e a consciência coletiva
ceitos e dominações. através das condições que encontra em cada atualidade.
É bem verdade que as ideias não surgem do nada, são as ações
AS CARACTERÍSTICAS DO PODER DE NATUREZA que ajudam a produzi-las. Por essa razão é que uma revolução é
PROLETÁRIA fruto da prática de ideias e da reflexão sobre a realidade. A revolução
A luta pelo poder entre exploradores e explorados exige que também é um objetivo imaginado, figurado primeiro na mente
ele, o poder (sobre os mesmos sustentáculos do poder burguês), dos revolucionários. No fim do processo, como disse Marx sobre o
adquira características e conteúdo diferentes. No caso dos explo- processo de trabalho"( ... ) aparece um resultado que já existia antes
rados, há um antagonismo, pois o seu poder está na continuidade idealmente na imaginação do trabalhador (... )" 137 A objetivação
dialética da revolução. então se realizou. É no movimento das forças sociais que ganham
Vamos, para efeito de compreensão, relacionar algumas ca- forma as ideias socialistas.
racterísticas que deve ter o poder da classe proletária, para que Por isso é que a classe explorada, organizada, precisa produzir as
possamos situar como ele aparece na sociedade. suas próprias ideias para não repetir o projeto da classe dominante.
Elas representam o conteúdo da luta de classes que ajuda a orga-
Elaboração de ideias e propostas nizar as táticas para derrotar os inimigos antagônicos. Sem ideias
As ideias políticas da classe são mais do que intenções e próprias, a luta pelo poder não tem juízo. Falta-lhes a maturidade
vontades descritas; são revelações e propósitos que convocam e para estabelecer a negação da negação corretamente.
convencem as forças políticas e sociais a percorrerem o mesmo
trajeto. Não pode haver liderança sem ideias. Vivemos atualmente A organização política da classe
um período em que as forças partidárias de esquerda, por terem As pessoas se organizam na sociedade de acordo com seus
se aproximado demasiadamente das forças partidárias da direita, interesses, mas também coordenadas por interesses alheios. Há
perderam a autoridade de propor mudanças. momentos em que vemos peões de fazendas, empregados e demais
As iniciativas se misturaram. Isto levou a que as ideias dominan- trabalhadores da agricultura comercial participando das mobili-
tes da classe dominante prevalecessem sobre as demais ideias. São as zações dos fazendeiros e latifundiários. Isso significa que, embora
ideias de quem detém o poder do capital, do Estado e de quem con-
trola as relações sociais que determina o funcionamento da ordem. 137
MARX, K. O capital. Vol. 1, p. 202.
A DEMAR B oGo 171
170 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES

os interesses não sejam seus propriamente, ele foram convencidos social, movimento popular etc. O fator fundamental é que eles
a lutarem por seus patrões. Assumiram a posição de classe de seus podem aceitar ou renunciar à institucionalidade. Podem aceitar
dominadores. Assim ocorre com o voto que leva ao governo po- a ordem ou se colocar contra ela. Podem agir na legalidade ou na
líticos profissionais que, embora oriundos da classe trabalhadora, clandestinidade etc. Portanto, as formas utilizadas são semelhantes,
eleitos, assumem a posição de classe dos exploradores. o que os diferencia é a sua natureza. O importante é que organizem
Há infinitas formas de organização da sociedade civil e políti- e coordenem o movimento de transformação e se coloquem como
ca, mas, na sua grande maioria, todas elas subordinadas à ordem lideranças das forças em ação.
estabelecida. Os movimentos sociais são os que mais livremente Quem se organiza tem poder, quanto mais gente mobilizada,
atuam, porque não estão presos às limitações legais e, por estarem mais qualidade terá a força para alcançar as mudanças. Todas as
apegados a coisas concretas e visíveis, facilmente distinguem quem formas de lutas são importantes, sejam elas por categorias popula-
são aliados e inimigos. Mas, como vimos anteriormente, pouco res, de etnias, de gênero etc., quando não desprezam o eixo central
pode ajudar a luta se não temos claro quem devemos derrotar para que é a organização e a constituiçã? da classe.
construir outro poder com novas relações sociais e de produção e,
que tipo de transformação deve ser feita. Os movimentos sociais, Dar função política às forças sociais
de estrutura e natureza reinvindicatória, por si só não conseguem Poder também é saber colocar as forças para agirem na sociedade.
alcançar este patamar de elaboração das conquistas econômicas. A classe dominante coloca suas forças na estrutura do Estado, como
A classe dominante sabe como é importante a organização as polícias e demais aparelhos de repressão, os meios de comunica-
política, por isso, sempre que pode, procura impedir a organiza- ção, os políticos etc., e na sociedade civil, por meio de associações,
ção dos trabalhadores. Embora, na atualidade, os partidos polí- sindicatos, ONGs e tantas outras, para enraizar o poder.
ticos encontrem-se desmoralizados, por se confundirem com as No meio popular, há infinitas maneiras de organização, mas
instituições da ordem, não significa que essa mesma classe esteja nem sempre estão voltadas para enfrentar os inimigos de classe de
desarticulada. Ela mantém as estruturas políticas e jurídicas muito forma articulada. O grande desafio atual é organizar as forças sociais
bem controladas por meio do Estado. para extrair delas lideranças que deverão orientar a construção do
A rigor, na humanidade nos últimos séculos, encontramos poder. Essa força consciente pode ser de uma classe apenas ou um
duas formas de organização importantes que sobreviveram como ajuntamento de militantes comprometidos com a revolução.
fundamentais: os movimentos de massas e os partidos políticos É na distribuição das tarefas entre as forças organizadas que
revolucionários com diferentes denominações. saberemos quais são as funções de cada uma delas. Os capitalistas
Para esses dois referenciais foram encontradas muitas formas sabem muito bem quais são as tarefas dos banqueiros, dos latifun-
de expressão e nomeação como: exército, facção, seita, partido diários, dos meios de comunicação, da polícia, dos políticos e das
(político de esquerda, social-democrata, de massas, de vanguarda, empresas. Ao organizar a luta pelo poder, precisamos estabelecer
revolucionário), organização política, frente de libertação, mo- quais são as tarefas cotidianas de todas as forças populares e políticas
vimento revolucionário, movimento de libertação, movimento da revolução brasileira.
172 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES ADEM A R B □ GO 173

Quem tem maior capacidade de unificar as forças leva vantagem respeita a lei é a punição, mesmo que ela seja feita contra os inte-
na disputa pelo poder. resses da maioria.
Devido ao dinamismo das lutas sociais, parte das leis rapida-
Controle da ordem pública mente se torna ineficiente; então a burguesia precisa manter um
Os capitalistas se apegam à ordem de direito, isso significa que grupo, selecionado no Parlamento, permanentemente, para fazer
eles elaboram as leis para proteger os seus interesses e depois usam leis contra aqueles que lutam para mudar a ordem.
a força para garantir que elas sejam respeitadas.
A desobediência civil é uma forma que a sociedade tem para se c) A moral
defender das imposições feitas pelos governantes e pela classe domi- A moral também é constituída de normas que estão em acordo
nante. Na luta contra a ordem, os explorados edificam a sua ordem. com os dois primeiros elementos. Ela induz para se respeitar à
Há três aspectos que afirmam a ordem capitalista: propriedade: "Não cobiçar as coisas alheias". É claro que as "coisas"
são as propriedades que cada capitalista pode ter, incluindo aí os
a) O direito de propriedade meios de produção, a terra e o poder político.
A classe dominante só é dominante porque a ela é garantido o Pela moral, a propriedade conseguida injustamente se torna
direito de ter a propriedade privada dos meios de produção. No dia intocável com a concordância pacífica daqueles que não a tem.
em que ela perder essa condição, perderá também o poder político A unidade e luta dos contrários deve estabelecer também uma
e jurídico. Por isso é que qualquer ameaça contra a propriedade moral contrária que ajude a sociedade a ser verdadeiramente livre.
é considerada crime. Em qualquer situação e estágio da luta de Assim se edifica uma nova cultura, eliminando dela todos os pre-
classes, a democratização da propriedade privada dos meios de conceitos e discriminações entre os explorados.
produção deve ser o alvo principal.
O Estado moderno ao iniciar o processo de superação do Desenvolver a cultura de poder
Estado antigo a partir de 1501, estruturou-se com três poderes, Os poderosos acham que existe somente a sua cultura. Tudo
vistos como independentes (Executivo, Legislativo e Judiciário) aquilo que os explorados fazem, para a elite não é cultura, tanto
mas todos eles estão em função da mesma ordem. Com a superação é ª~ssim que consideram "culto" somente quem estudou em uni-
da sociedade capitalista, haverá também a do Estado e dos poderes versidades.
constituídos que serão negados para adquirirem outra qualidade A classe trabalhadora precisa derrotar a cultura de dominação
de funcionamento. da classe dominante e desenvolver uma nova.
A cultura dominante é um lixo dominante, está presa ao con-
b) As leis sumo, porque para ela tudo passa pelo mercado. Nós acreditamos
O conjunto das leis elaboradas pelo poder legislativo garantem que a cultura é tudo aquilo que fazemos para aperfeiçoar a vida
a ordem capitalista, quando uma falha, elaboram outra. Assim social e não para gerar lucro. Por isso, precisamos lançar mão de
atualiza-se o poder jurídiciário. A consequência para quem não todos os recursos para enfrentar e derrotar a classe dominante.
174 I DENTIDADE E LU TA DE CLASSES ADEM AR 8 0GO 175

As relações sociais e humanas se tornam cultura, assim como o ou ainda do proletariado contra a burguesia, no final, nenhum dos
preconceito e a discriminação. É na organização popular e política dois lados poderá existir; ou seja, nem os explorados continuarão
que vamos exercitando maneiras de eliminar o lixo imposto e criando explorados, nem os exploradores continuarão exploradores, se
a verdadeira cultura da igualdade e da democracia participativa. modificará a forma de produzir a vida, logo a organização de toda
A classe na sua organização exercita atividades de poder. Elas sociedade, com isso as classes serão desfeitas.
porém são insuficientes. Querer o poder é negar o poder existente A tarefa é constituir o "bloco histórico" no qual todas as forças
para reafirmá-lo não com a concordância da força opositora, senão se unem em uma só direção. Somente assim conseguiremos derrotar
com a sua repulsa. Este conflito entre atração dos aliados e repulsão os inimigos comuns.
dos inimigos, é que mantém as identidades dos poderes contrários A Via Campesina é o instrumento que temos para a unificação
que se confrontam. das várias lutas no campo. Precisamos de uma organização política
Diante do que vimos restam algumas tarefas imediatas neces- que nos ligue com as lutas urbanas.
sárias para desencadear a luta pelo poder.
Estabelecer o projeto comum na luta de classes
QUAIS SÃO AS TAREFAS FUNDAMENTAIS DA LUTA PELO Os planos devem ser amplos, que sirvam para todas as pessoas
PODER? da classe. O nosso projeto de agricultura considera todos os pe-
Sabemos que as tarefas são muitas, mesmo porque elas são quenos agricultores, sem terra, atingidos por barragens, mulheres
extraídas dos problemas colocados pela classe dominante em cada agricultoras, quilombolas e comunidades indígenas.
momento específico. Às forças revolucionárias cabe a elaboração O capital quando se instala num território, finge ser a favor de
das táticas corretas para enfrentar as táticas contrárias. Vejamos, todos. Com a falsa ideia de desenvolvimento, mente que "gerará
então, algumas delas: empregos". Na verdade, ele é contra todos, mesmo que alguns
consigam emprego.
Construir o poder com todas as forças da classe Então, os planos precisam ser dos pequenos agricultores, da
Muitas vezes temos a tendência de nos organizar por movimen- classe; das mulheres agricultoras, da classe; dos jovens, da classe; dos
tos ou categorias, fato importante, porque as pessoas não começam quilombolas, da classe; dos índios, da classe. E assim os operários
a lutar se não for para resolver seus problemas concretos. Ocorre e os favelados, todos organizados compõem a classe trabalhadora;
que isso tem levado a cada um cuidar do seu problema e, então, mesmo aqueles que estão desempregados devem ser articulados
as categorias nunca se transformam em classe, porque lutam por para lutar e compor a classe. Dessa forma, se estrutura .o projeto
interesses isolados, tal qual fazem as massas populares. comum que nos leva ao poder da classe explorada.
Precisamos compreender que, no sentido amplo, somos parte
da mesma classe do proletariado, mas, se essas partes ficarem iso- Construir a autonomia
ladas, ela não se constitui e não terá força suficiente para negar a Autonomia significa não depender de ninguém para fazer o
classe burguesa. A luta é dos dominados contra os dominadores, que queremos. Os movimentos do campo precisam saber que em
176 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B oGo 177

si está a solução do campo, e é por seu próprio esforço que virá a contra todas as forças do imperialismo em qualquer lugar em que
emancipação. ele se manifeste.
Essa autonomia precisa se dar por ter: militantes próprios, Soberano é um povo que tem o direito de decidir sobre o seu
finanças próprias e ideias próprias. próprio futuro, sem imposições ou limitações colocadas por in-
No passado, os movimentos sociais ancoravam-se nos parti- teresses mesquinhos externos. "Pátria Livre": a terra dos pais, dos
dos ou nas igrejas, dessas instituições saiam as diretrizes para as antepassados está à disposição para que os filhos deem sequência
táticas, delas também derivavam os quadros e as finanças. Com ao caminhar das gerações.
isso, quando elas se equivocavam, levavam todos a se equivocarem.
Há que ter relação íntima entre todas as forças e organizações sem Cultivar a mística da revolução
perder o senso crítico. É difícil vencer, mas não é impossível. Quando duvidamos
A realidade e o desenvolvimento histórico levou-nos ao amadu- das possibilidades, estamos duvidando de nós mesmos e, de outra
recimento das análises; por isso, compreendemos que os quadros forma, estamos dizendo que estamos desistindo.
devem ser formados a partir da realidade em que atuam; cada Tudo aquilo que não se cultiva, morre. A mística é essa força
organização deve ter seus militantes, embora o conteúdo filosófico; que precisa ser cultivada com exercícios práticos, mesmo quando
político e metodológico possa ser unificado. a vontade aponta para o lado inverso.
Quem não é capaz de andar com as próprias pernas não pode Olhar para o horizonte e perceber, antecipadamente onde
apostar corrida com ninguém. O vigor da luta está na capacidade vamos nos colocar nele. Acreditar na possibilidade de vencer as
de independência que cada movimento tem das forças externas distâncias. Para isso, precisamos encontrar o caminho que nos leve
à classe. A solidariedade quando se torna mendicância deixa de ao topo apesar de todos os desafios.
ser solidariedade e é equiparada ao plano da caridade. A luta de Confúcio, um sábio chinês, perguntou a um curioso: "Você me
classes, embora precise de todas as energias, jamais será vitoriosa considera um homem instruído?". - "Claro que sim!" - respondeu
tendo a mendicância e a caridade como meio. o outro. - "Engano seu" - disse Confúcio - "apenas descobri o fio
da meada para seguir adiante".
Defender a soberania Quem descobre o fio da meada do projeto vai até o fim, quem
Soberania é não se subordinar a ninguém. Soberania se con- não descobre, está sempre em dúvida e jamais chega ao topo da
quista na política. Soberano é alguém livre de todas as limitações montanha. Quem perde o ânimo, perdeu o fio da meada; é preciso
que o impede de ser livre. ajudar a encontrá-lo que o ânimo volta.
O lugar em que vivemos é a referência para a soberania política, O poder da classe explorada é uma construção coletiva e cons-
nele está o potencial de desenvolvimento. Ninguém pode impor a ciente, constrói-se como qualquer outra construção. O poder não
sua vontade se alguém é soberano em sua própria casa. tem proprietário individual; somente vigora se for democrático.
A tarefa é fazer com que o povo brasileiro tenha soberania Podemos encerrar esta reflexão com uma pequena história do
alimentar, tecnológica e territorial. Essa ideia nos remete a lutar rio e do pântano sujo.
178 IDE NTIDADE E LUTA DE CL ASS ES

Um riacho que descia das montanhas com águas limpas, ras- A IDENTIDADE DA MILITÂNCIA DO SÉCULO 21
gando a terra e desviando as pedras com esforço, avistou, já perto
de chegar ao mar, um pântano de água suja e temeu chegar até ele.
Revoltado, protestou contra a montanha que o havia incentivado
a descer.
- Por que não me avisou que teria que passar por este pântano
sujo que eu teria desistido a tempo? De que valeu todo meu esforço
para manter-me limpo até aqui? Por que este castigo agora?
A montanha, que tudo presenciava, respondeu:
- Depende da maneira como você vai encarar o pântano. Se O PAPEL DE UMA ORGANIZAÇÃO na história é interpretar os desa-
ficar com medo, vai diminuir o ritmo de sua descida, dará voltas fios que as circunstâncias apresentam e tentar resolvê-los, criando
e, inevitavelmente, sem forças, acabará se m isturando com as novas circunstâncias.
águas sujas do pântano e será para sempre parte dele. Mas se você Vivemos um tempo de grandes vazios de alternativas, de ideias
enfrentá-lo com velocidade, força e determinação, vai atravessá-lo e iniciativas, que levam cada vez mais a sociedade à barbárie. Isso
ao meio e jogará toda a sujeira para as margens. Com o tempo ela tudo é provocado pelos interesses das grandes empresas capitalistas
será absorvida pela terra, ficará à margem, tornando-a coisa do de exploração e consumo e pela insuficiência da elaboração teórica
passado. Você, como prêmio pelo esforço, permanecerá como rio, que aponte as formas de enfrentá-las.
chegará ao mar e participará de sua grandeza. Há quem diga que não estamos herdando nada dos dias que
Na luta pelo poder, as duas coisas nos esperam: o pântano e o ficam para trás, mesmo porque a esperança de transformação,
mar. Se entrarmos indecisos, nos misturaremos ao pântano da polí- que poderia ser a força envolvente, tem perecido com as práticas
tica burguesa e pereceremos afogados na lama dos desvios; mas, se perversas da política oportunista de lideranças, que decidiram
atacarmos, com força e determinação, abriremos os velhos hábitos apostar mais na conciliação do que no conflito entre os explora-
e vícios ao meio, afastando-os para as margens da prática política e dores e explorados.
chegaremos ao outro lado onde estará o mar, que tem o poder de Houve, sem dúvida alguma, nas últimas décadas, a afirmação
jamais se deixar dominar. É a emancipação que sonhamos. da identidade do militante "administrador" e, portanto, fun-
cionário da organização para cumprir as tarefas elementares da
burocracia partidária e das funções nos cargos de confiança nos
serviços públicos. Este se diferenciou profundamente do "quadro
revolucionário" caracterizado por Che Guevara:
(... ) um indivíduo que alcançou o suficiente desenvolvimento político
para poder interpretar as grandes diretivas emanadas do poder central,
incorporá-las e transmiti-las como orientação para as massas, percebendo,
além disso, as manifestações que estas façam de seus desejos e suas moei-
180 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES ADEMAR B oGo 181

vaçóes mais íntimas. 138 e transmitidas; contudo, é preciso conhecer quais são os desejos
A história da humanidade é mais do que o simples confron- das massas e interpretar as suas motivações.
to entre forças contrárias, é também a imaginação organizada A natureza político-ideológica da organização determinará as
contra a alienação. É o pensar que se torna ação e se alimenta da características da militância e vice-versa, isso repercute na quali-
solidariedade de grandes contingentes humanos andarilhos pelo dade de suas ações. É a relação que há entre forma e conteúdo que
mundo, escalando morros e montanhas para h;bitar; desbravando manifesta a identidade da existência e da consciência da classe,
o desconhecido para se alimentar, criar e fazer história. uma não pode existir sem a outra. Mas, ao existirem juntas, uma
A construção de cada época histórica exigiu esforço, dedicação, carrega o ser da outra. A formação de uma é também a formação
apego e confiança na causa, na organização e nas forças humanas. da outra.
Sem estas, a história poderia ser contada, mas seria bem diferente. Não é difícil perceber isso na atualidade. Se uma organização
O militante sempre esteve presente em todos os momentos da voltou às diretrizes de suas táticas para as disputas imediatas e não
história, homens e mulheres repartiram as responsabilidades de vê importância alguma na formação ideológica, não se preocupará
sempre fazer de novo e reencontrar o caminho perdido. As ideias em construir escolas para formar os seus militantes; se a estratégia
e o querer alimentaram as práticas desde a origem do gênero. da conquista do poder é pela via institucional, de nada interessará a
A defesa dos ataques dos animais ferozes fez nossos antepas- prática conspirativa; e, por fim, se os meios para as disputas são os
sados buscarem abrigo em cavernas e em lugares de difícil acesso, meios de comunicação e as elevadas somas financeiras, para nada
ali se reproduziram e cuidaram para que a descendência evoluísse; interessará o acúmulo de forças e a qualificação revolucionária dos
depois vieram as guerras entre as tribos, mais tarde as guerras entre que compõem a organização. Cada ação faz, tanto no conteúdo
as classes que nunca mais cessaram. quanto na forma, a organização.
Esse húmus militante que se tornou "homem", gênero, só pode Em qualquer exercício de análise que fizermos, iremos encon-
continuar sendo fecundo se animar em si a energia de cuidar cada trar a organização como esteio central que estabelece o ponto de
vez melhor da existência e reformular as formas como ela é pro- referência para o comportamento de seus militantes.
duzida. A condenação recebida por toda a desobediência histórica Não basta que eles tenham um nível elevado de informações
é que não podemos fazer isso sozinhos, a história não permitiria e conhecimentos, é preciso que transformem esse conhecimento
que esse capricho triunfasse. em diretrizes que se combinem com os "desejos e motivações"
das massas nas ações concretas. Fora disso, todo conhecimento
A ORGANIZAÇÃO É A BASE DA TRANSFORMAÇÃO político é inútil.
O princípio definidor para que possamos delinear as carac- As organizações revolucionárias somente se constituem e se
terísticas do militante no processo de negações permanentes é a desenvolvem se houver um movimento revolucionário da socie-
organização. Ela armazena as diretrizes que devem ser interpretadas dade civil, ou seja, forças sociais que se mobilizem contra a ordem
capitalista. Com estas organizadas, as ideias socialistas ganham
138
GUEVARA, E. Textos revolucionários, p. 45. espaço na linguagem cotidiana e as propostas facilmente ganham
182 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMA R 8 0GO 183

grandes dimensões. a organização jamais se constituiria;


O movimento para frente é um interesse incendiário, um desejo - segundo nível: um grupo menor de coesão que tenha capaci-
de se envolver voluntariamente em atividades sociais e o despertar dade de centralizar as diretrizes, com a obrigação de ser vanguarda,
de um ânimo incontrolável, sem formalidades que induz a pensar marchar à frente, tomar iniciativa e ser exemplo. Esse nível também
e agir sintonizadamente com a coletividade social. sozinho não constituiria uma organização, porque não se poderia
A organização política ou partidária se apresenta como força vê-la formada somente com a direção.
coordenadora por meio de informações, comunicados e convoca- Mas se os dois níveis fossem reunidos poder-se-ia ter um
ções feitas por militantes do próprio meio. Aos poucos, muitos movimento de massas pelo menos com capacidade de mobiliza-
dos colaboradores voluntários se elevam ao grau de lideranças que ção. Mas faltaria ainda o principal a ser constituído num nível
ajudam a disciplinar e a colocar os esforços nos lugares determi- intermédio;
nados. - terceiro nível: é aquele capaz de articular o primeiro nível
com o segundo. Capaz de colocar os dois níveis em contato, "não
A ESTRUTURA ORGÂNICA PARA ENVOLVER A MILITÂNCIA só 'físico' , mas moral e intelectual". 140
A palavra envolver, representa simbolicamente "vestir", como Estamos diante de dois novos elementos importantes: não basta
que quando estamos desorganizados nos sentimos nus. A organi- aplicar o princípio de "vinculação com as massas", num movimento
zação é a vestimenta que encobre o corpo e a consciência na luta de quantidade e qualidade das táticas é preciso que esse vínculo seja
de classes. "moral e intelectual". O fator determinante para que o pensamento
A estrutura da organização tem como responsabilidade respon- ganhe força é a coerência no comportamento moral. Não pode
der aos anseios das forças sociais que nela acreditam. Sua função ser uma moral opressiva, mas uma nova moral negadora da velha
é estar voltada para as tarefas históricas, políticas e organizativas moral, que instrua para a emancipação das massas.
para levar estas mesmas forças ao poder. Esse elemento intermediário de militantes, fundamental para
Ao descrever sobre o assunto, aplicando a necessidade à reali- que a estrutura da organização se mova, é captado também por
dade europeia, o italiano Antonio Gramsci, que viveu até a década Che Guevara, que foi um arguto formador da concepção de que
de 1930, ao conceber a estrutura da organização, na sua colocação "o quadro é a coluna vertebral da organização". Sem ele não haverá
humana, entrelaçou três níveis diferenciados nos quais caberiam estrutura orgânica. As lutas se desenvolvem, mas a consciência não,
as diversidades das consciências: porque falta o primordial que é a coordenação política ordenada
- primeiro nível: um contingente de pessoas com noção política de acordo com os princípios político-ideológicos estabelecidos.
que se oriente pela disciplina e pela fidelidade e "não pelo espírito Não é possível enfrentar as forças de repressão, sem que uma
criativo e altamente organizativo." 139 Gramsci fala de um contingente coluna vertebral se encarregue de organizar os movimentos das
amplo, de massas, fundamental, mas que somente com esse nível massas com táticas de autodefesa, elevando sua qualidade ofensiva,

140
139 Sader, E. (org.) Poder, Política e Partida, p. 16. Idem, p. 17.
184 IDENT IDAD E E LUTA DE CLASSES AD EMAR BoGo 185

para devolver os golpes e se manter organizada. quadros de excelente qualidade." 142


Seja então nos três níveis de Gramsci, ou na coluna verte- Chama atenção, na continuidade, o sentido de "grandeza"
bral concebida por Che, ou em outras formas de organização destacado por ele. Uma revolução é uma obra imensa que não
descobertas pelas forças revolucionárias em todos os tempos, o poderia ser dirigida por uma organização mesquinha, oportunis-
militante é aquele que está em sintonia com as diretrizes de sua ta, sem firmeza política, com militantes mercenários e corruptos,
organização e, sob essa linha, cria e envolve as demais forças, porque os quadros devem ter "excelente qualidade". Não poderia
para que se empenhem na recriação e no fortalecimento dos ser "um grupo reduzido e estreito" e nem ter líderes de "espírito
planos de ação. pequeno".
Para Lenin, ao pensar a revolução russa, a estrutura de organi- Essa organização, segundo Mao, deveria estar em todo o país.
zação partidária tinha que ser altamente disciplinada, com elevada Aí estava o princípio de sua grandeza, pois, de início, deixava de
capacidade de elaboração, organização e ação. A natureza das ações ser corporativa e localizada.
também deveriam definir a natureza da organização, isso porque Então os quadros de "excelente qualidade" deveriam ter não só
é no agir concreto que se testam os instrumentos de luta. Por isso boas características, mas torná-las um estilo de trabalho:
se interroga: Eles devem ser quadros e dirigentes sabedores do marxismo-leninismo, com
Um revolucionário sem energia, hesitante nos problemas teóricos, com uma visão política ampla, competentes no trabalho, penetrados de espírito
horizontes limitados, justificando sua inércia pela espontaneidade do mo- de sacrifício, capazes de, por si próprios, solucionarem os problemas, ina-
vimento de massa; mais semelhante a um secretário de sindicato que a um baláveis diante das dificuldades e leais e devotados no serviço da nação, da
tribuno popular, incapaz de apresentar um plano amplo e corajoso, que classe e do partido (... ) Tais quadros e dirigentes devem ser destituídos de
imponha o respeito de seus próprios adversários, um revolucionário sem todo o egoísmo, de todo o heroísmo individualista, ostentação, indolência,
experiência e pouco hábil em sua arte profissional - a luta contra a polícia passividade e sectarismo arrogante; devem ser desinteressados heróis de sua
política - será um revolucionário? 14 1 própria nação e da sua classe. 143
A lei da dialética da unidade e luta dos contrários também se O objetivo estratégico só é assim constituído por causa da uni-
aplica nas contradições que há no próprio comportamento indivi- ficação dos entendimentos. O ponto de chegada passa a ser comum
dual do militante que precisa esforçar-se cada vez mais para superar para todas as pessoas envolvidas, ele está entre a realidade imediata
as deficiências e as atitudes negativas das quais é portador. e a causa utópica daqueles que estão em luta defendem.
A primeira tarefa da militância, disseram nossos antepassados,
O OBJETIVO FAZ A ORGANIZAÇÃO é fazer a revolução; para isso, teriam que cuidar de si próprios e da
Mao Tse-tung fortaleceu ainda mais essa ideia da organização, organização; o instrumento deveria estar sempre em condições de
mas a colocou voltada para o objetivo a ser construído. "Para dirigir enfrentar os desafios. Por sua vez, cada militante, individualmente,
uma grande revolução necessita-se dum grande partido e muitos
142
TSE-TUNG, M . Obras. Vol 2, p. 247.
143
141
LENIN, V. l. Quefazer?, p. 98. Idem, pp. 247-248.
186 IDENTIDAD E E LUTA DE CLASSES ADE MAR 8 0GO 187

deveria ser capaz de evoluir em suas qualidades e torná-las "estilo se propõe a dirigir o Estado e a sociedade.
de trabalho" próprio. A força de uma organização se localiza em dois polos: no nível
de elaboração intelectual de sua militância e na capacidade de agir
HOMENS E MULHERES, MILITANTES DE NOSSO TEMPO sobre a realidade.
Sofremos um profundo corte na ligação entre uma geração É por isso que, sem estudo, é praticamente impossível conduzir
e outra. Ao mesmo tempo em que estamos próximos de muitos corretamente as ações por um longo período. É preciso aprender
lutadores que pegaram em armas na década de 1960, estamos com as organizações do passado para ver como elas lidaram com
próximos das organizações partidárias que, ou avançam para os desafios de seu tempo.
a desmoralização ou estão distante da organização das massas, O aparente vazio que sentimos pode ser também um alento
por terem adotado táticas impróprias para fazer a revolução para a renovação de comportamentos. Aquilo que se costuma
brasileira. chamar de "velha esquerda'' tem muito de ensinamento e sinais de
A formação e a multiplicação dos quadros deixou de ser priori- combatividade que não podem sumir do imaginário. Há aspectos
dade de muitas organizações burocratizadas. A academia fechou-se de disputas e enfrentamentos entre grupos rivais que impediram de
para a luta de classes e os movimentos de massas perderam a batalha se ver, em determinadas épocas, quais eram os inimigos de classe,
das reformas; quem hoje as faz é o capital, em benefício próprio. que devem ser observados, mas não imitados.
Esta época exige muito mais dos militantes que almejam manter Muitas disputas acirradas no passado ocorriam devido ao
acesa a chama da revolução. É como se um grupo de crianças com árduo trabalho para manter o conteúdo dos conceitos na linha
menos de um ano tivesse o desafio de aprender a andar sem ter revolucionária para evitar o revisionismo. Mas as brigas chegavam
nenhum adulto por perto. a tal grau que as pessoas da mesma classe, e, por conseguinte, da
Toda organização deve ter e procurar formar seus militantes mesma organização, não se toleravam, perseguiam-se como se
de acordo com os princípios políticos e filosóficos que estabelece. fossem inimigos, e talvez o fossem.
É, como disse Gramsci: toda organização precisa ter os seus inte- Os movimentos sociais, embora ainda mergulhados no es-
lectuais orgânicos. pontaneísmo, constituíram, por meio da prática, uma escola de
Cada grupo social tem como necessidade criar uma ou mais formação e conduta da militância, que preza pela preservação da
camadas de intelectuais. "O empresário capitalista cria consigo o unidade. Mas, acima dela, sempre pairou o espírito da afetividade,
técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador do companheirismo e da solidariedade como valores fundamen-
de uma nova cultura, de um novo direito etc." 144 Logicamente que tais.
esse conhecimento precisa ser mais amplo do que a área específica No século 21, os desafios que a humanidade enfrenta são imen-
em que cada um atua. Uma camada por certo, dentre todos esses sos, a luta de classes se diluiu em milhares de características que
conhecedores, detém um elevado nível de conhecimento e por isso precisam de interpretações constantes. A tecnologia condiciona a
forma de pensar; o conhecimento evolui diariamente efetuando
144 GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, vol 2. novas descobertas que podem levar ao descrédito posturas tradi-
A DEMAA B OGO 189
188 I DEN TID ADE E LUTA DE CLASSES

cionais que eram inquestionáveis. o militante deve saber como enfrentar os profundos desequilí-
Não há como formar bons militantes fora da prática, mas a práti- brios impostos pela ideologia da classe dominante, que falsifica
ca precisa estar voltada para os desafios e ser iluminada pela teoria. o verdadeiro sentido de suas intenções; a destruição do conteúdo
Ao fazer determinada ação consciente, o ser humano põe dos valores históricos, sustentáculos dos gestos de cooperação e
em prática o seu poder de decisão. Sabe que pode correr riscos; solidariedade entre os seres humanos; a velha esquerda, como
desafia os obstáculos e re-elabora os planos sempre que os achar organização, era "espectadora artísticà'. O século atual exige que
insuficientes. Pelo trabalho e, portanto, pelo fazer é que se origina a militância assuma a tarefa de politizar, mas também de animar
a formação do militante. as massas. A arte é patrimônio da classe trabalhadora, por isso tem
É fundamental aprender a combinar ação e reflexão. "A práxis um sentido revolucionário e deve-se recorrer a ela para melhorar
é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam a prática.
no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem O militante de nosso tempo precisa aprender a lidar com as
alterá-la, transformando-se a si mesmos." 145 Por aí se pode ver que emoções, não apenas de revolta, como era no passado, mas no
não nascemos militantes, nos fazemos militantes e poderemos sentido de descobrir que um ser humano tem a razão e o coração
deixar de ser no momento em que deixarmos de transformar a interligados. As ideias não nascem nem sobrevivem sem os senti-
nós mesmos no fazer cotidiano. mentos que devem alimentá-los e transportá-los.
Nesse sentido é que o desvio da burocracia, do dogmatismo, O militante deve saber cuidar da cultura, da consciência, dos
do sectarismo e todos os vícios são um empecilho à formação do símbolos ou das comemorações. Mas, acima de tudo, empenhar-se
militante, porque impedem que este ser se modifique e evolua em cuidar da revolução. Viver para ela como se espera por alguém
como um novo ser social e humano. que chegará e precisará de atenção permanente.
A sociedade continuará cada vez mais em crise porque o capi- Cuidar das pessoas que lutam; elas têm as mesmas necessidades
talismo tenderá a não ser capaz de resolver suas próprias contradi- que um ser comum. Não só as tarefas interessam ser distribuídas,
ções. Por isso precisamos de bons quadros que saibam interpretar mas também interessa a satisfação em realizá-las.
e transformar a realidade. As relações humanas que reforçam o preconceito e as exclusões
devem ser duramente combatidas. Homens e mulheres, neste sécu-
CARACTERÍSTICAS QUE DEVE TER A lo, terão as batalhas mais duras a serem travadas com a tecnologia
MILITÂNCIA DESTE SÉCULO destrutiva, as armas eletrônicas, químicas e biológicas e o poder
Podemos relacionar alguns aspectos fundamentais desse rein- das empresas do império.
ventar permanente que consiste nas tarefas da militância para A democracia não pode ser vista como a vontade da maioria,
alcançar a ruptura com a ordem capitalista. Nas questões culturais, mas sim como a consciência da maioria que se transforma em
vontade de tornar as decisões em ações práticas. Praticar é saber
formular métodos de acordo com a realidade da forma que se apre-
145 KONDER, L. O Futuro da filosofia da Práxis. O pensamento de Marx no século XXI,
senta. Para isso é preciso treino. Aprender fazer compreendendo
p. 115.
190 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES AD EMAR 8 0GO 191

como se faz, é o caminho correto para nunca deixar de fazer. trimônio político, ideológico e cultural.
O líder da revolução vietnamita, Ho Chi-minh, disse um dia Empenha-se em desvendar a verdade; não se deixa levar por
em uma conferência: impressões e mantém a serenidade frente às disputas internas, para
Educar a população não é entregar-lhe livros e obrigá-la a estudar. Se vocês garantir o direito de defesa e a busca de solução das questões.
agirem assim, irão contra seus interesses, e contra os interesses da revolução. Respeita os direitos individuais e, por isso, atua com rapidez
Isso seria burocracia e autoritarismo. É preciso exortar a população a fazer para que as relações não sejam desgastadas pela protelação das
de bom grado aquilo que lhe pedimos. Se usarmos o constrangimento, só decisões a serem tomadas.
se obterão resultados momentâneos e superficiais. 146 O fortalecimento dos valores se dá nas ações concretas, in-
A participação consciente é a essência da democracia. Quan- centiva a prática da solidariedade e dá exemplo, realiza o trabalho
do uma parte participa e outra não, os que decidem se enganam voluntário permanentemente e combate os próprios vícios, antes
que estão dirigindo, porque não têm a força de implementar as de exigir qualquer correção nos outros.
decisões. Presta contas das despesas por mais simples e insignificantes que
O bom militante não é aquele que representa a massa, mas sejam. Mantém separados os gastos pessoais e os da organização.
aquele que a faz representar-se. É aquele que dá a primeira palavra, Explica porque e como adquiriu tais objetos de uso pessoal.
mas também é o que ouve a última e faz a síntese. Dirigir não é Acredita no poder de reabilitação e insiste nas tentativas sem
dar ordens, mas coordenar a realização de ações. deixar de cumprir as normas estabelecidas e os princípios da or-
É aquele que convida, visita e acalenta. Atende aos chamados ganização.
e empenha tempo para convencer os desanimados. Participa das místicas, das jornadas culturais e incentiva os
Cuida do bem-estar dos outros e se coloca à disposição para demais militantes a fazerem o mesmo. Utiliza a arte, a música, a
qualquer tipo de serviço. Explica com paciência as decisões e enca- poesia, o teatro como recursos didáticos para a educação política
minhamentos e busca, pelo método do convencimento, reproduzir e para as diversões.
as ideias aprovadas. Mantém viva a memória histórica e valoriza cada gesto signi-
Verifica se a renda familiar dos camponeses é suficiente para ficativo daqueles que realizam bem suas tarefas.
que levem uma vida com dignidade, incentiva a cooperação e o Produz o seu sustento e combate a ociosidade. Enfrenta os
trabalho coletivo, socorre nas dificuldades e convoca a coletividade perigos e cuida da vida e da saúde, sua e de todos os que lidera.
para ações de solidariedade. Sabe que um militante, quanto menos ficar doente, mais energias
Investe na educação das crianças e orienta os jovens para tem para enfrentar os inimigos.
que acreditem em si próprios e se coloquem à disposição da Enfim, o militante deste século deve ser um ser humano
história. que vive como os demais de sua classe, mas sonha como pou-
É um cultivador da memória como parte constitutiva do pa- cos e, na sua simplicidade, procura passar aos outros o prazer
de sonhar.
146
ALVAREZ, M. H. (org.). Ho Chi-minh, p. 30. Cuida-se de todos os requintes e privilégios. Como disse Mao
192 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES

Tse-tung: OS DESAFIOS DA
É proibido festejar o aniversário dos dirigentes do partido. Igualment FORMAÇÃO DE QUADROS
é proibido dar o nome dos dirigentes do partido a localidades, ruas ou
empresas. Devemos manter o nosso estilo de vida simples e de luta dura,
· como cerrar o passo a' adulaçao
assim · exagerados. 147
- e aos e1og1os
Devemos confiar que a transformação da sociedade virá porque
a história não deu a última palavra, e a certeza disso nos vem da
confirmação de que estamos vivos. Enquanto houver vida humana EM TODAS AS ANÁLISES FEITAS, sempre aparecem constatações e
sobre a terra, haverá história. desafios históricos, mas nem sempre eles são levados a sério, os
repetimos na medida em que não aproximamos a teoria da prática,
o que K. Marx e F. Engels disseram na décima primeira tese sobre
Feuerbach: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de
diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo". 148 Ao não
agarrar os desafios, reforçamos a ideia de que eles não existem,
assim sendo, não percebendo as contradições é impossível negar
os aspectqs bloqueadores dos avanços das luras pela transformação
da sociedade.
Quando falamos em desafios políticos, entendemos que estes
são aspectos que estão situados entre as intenções que temos e os
objetivos que queremos alcançar.
Estamos falando dos desafios políticos e da formação de quadros
dentro de uma organização que possa agarrá-los e buscar as formas
de resolvê-los, através da formulação de métodos corretos.
O ponto de partida é identificar o desafio pelos quadros
responsáveis, para que os demais possam "formar-se" ligados à
busca de soluções concretas, voltadas para o horizonte das grandes
transformações.
Quando falamos em "quadros", sentimos que a palavra, em
si, não tem significado e entendimento adequado. A questão é
simples, na história, os conceitos militares foram integrando-se e

148
147 TSE-TUNG, M. "Métodos de ttabalho dos comitês do partido", p. 381. MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 14.
194 I DE NTID ADE E LUTA DE CLASSES ADE MAR B oGO 195

confundindo-se com os conceitos políticos. O mesmo ocorre com É claro que, se analisarmos a situação atual do capitalismo,
os conceitos de tática e estratégia, que significam planos e ações iremos perceber que rumamos a passos largos para a barbárie nos
militares. O conceito de "quadro" também vem da teoria militar, aspectos da manutenção da estrutura social em funcionamento.
que no passado, designava o conjunto de oficiais que comandavam Mas esta não é, por ora, a linha de nossa reflexão. A linha é outra, é
as tropas, ou seja, era a estrutura de comando militar em ação. aquela em que nos vemos envolvidos por uma prática que alcançou
Traduzindo esse conceito para a política, poderíamos dizer que o teto das soluções dos problemas sociais e a carência de forças
são os dirigentes ou as lideranças que organizam e coordenam as organizadas que não nos permite ir além, como se os músculos
massas rumo a um objetivo. não suportassem mais esforços, enquanto o desafio permanece no
Quando Che Guevara falou de "quadros", os denominou como meio do caminho. Comprovamos isso em dois sentidos.
" (... ) coluna vertebral da revolução" . 149 Para Che, eles eram o sus-
tentáculo, aqueles que garantiam a mobilidade e o funcionamento Pela intensificação das perdas
da estrutura. Por isso precisam ter "alto nível de desenvolvimento Ao analisarmos o último período histórico, percebemos que
político". . há uma infinidade de perdas na estrutura da organização social e
Olhando ao redor, percebemos que o momento em que vive- política que afeta profundamente as iniciativas no campo das lutas
mos desafia, urgentemente, a preparação de quadros para elevar a e da formação de quadros. Por exemplo, o abandono do trabalho
qualidade da consciência desde a base até a direção. de base feito anteriormente pelas igrejas, sindicatos e partidos
Em outros momentos, já destacamos que a formação de um políticos.
quadro se inicia em seu nascimento, isso porque nin~u~m ~e tor~a Algumas forças perderam a certeza das ideias. Passaram a
um dirigente político separado da cultura e da conv1venc1a soe1al confundir o imediato com o estratégico e buscaram, na superfi-
com O seu povo. "A consciência, portanto, é desde o início um cialidade, o impulso para subir o próximo degrau da vida política.
. . h »1 so
produto social, e continuará sendo enquanto ex1st1r omens. Embora tenham encontrado as estruturas de poder, se depararam
É isso que nos deve orientar e preocupar, pois a sociedade não é com o vazio das possibilidades de soluções dos problemas sociais.
apenas o espaço de crescimento, de trabalho e satisfação das ne- Perdeu-se em alguns espaços a noção da ética - embora esta, tal
cessidades humanas, mas, acima de tudo, é o lugar onde se produz qual a liberdade, sob o poder do capital é irrealizável1 51 - na ação
o conhecimento. política, que faz os profissionais apaixonarem-se pela multiplica-
Essa questão é importante, pois nos· remete a verificar como ção de "sucessores", onde o ponteiro do relógio da história (para
cada ser social está integrado à sociedade, como participa dela, muitos) parou para a luta de classes, apontando para a hora da
que função social tem cada indivíduo e como isso se articula com entrada em massa de militantes na administração do Estado, indo
a produção do conhecimento. em sentido contrário do que previram os clássicos do marxismo,
que se deveria pôr abaixo certas estruturas e edificá-las de outra
149 GUEVARA, E. Textos revolucionários, p. 43.
150 MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia alemã, p. 43. 15 1
LESSA, S. Lukács ética e política, p. 119.
196 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGo 197

forma. Confundiram estes indivíduos a lei da negação da negação, A contestação a essa preocupação é simples; se tomarmos tanto
com a da afirmação da afirmação do comitê de poder e negócios a teoria da classe de vanguarda de Lenin, quanto a teoria da hege-
da classe dominante. monia de Gramsci, chegaremos ao mesmo resultado: de que terá
Perderam a expectativa com o futuro. A influência do consu- que haver uma força política confiável que se destaque, com poder
mismo confundiu o estratégico com o imediato. Por essa razão é de atrair as demais forças, 152 que se sintam colaboradoras daquelas,
que aqueles que cuidavam da vida partidária foram alcançados para alcançar o objetivo da transformação.
pelos movimentos sociais. O nível de discussão dos partidos foi Nesse sentido, aponta Marta Harnecker citando Enrique Rú-
rebaixado e o lugar anteriormente ocupado pela vanguarda está bio: "Não se trata de meter as pessoas na organização partidária e
vazio. Tanto assim que, mesmo com muito esforço, se busca es- a sociedade no projeto partidário, mas sim de meter a política na
tabelecer uma política de alianças, principalmente no campo da vida das pessoas e a organização partidária na sociedade". 153 Significa,
formação, e as palavras não fazem eco, por faltar o rochedo das compreender porém, que essa "sociedade" se compõe de classes e as
mobilizações de massas. "pessoas" fazem parte de uma delas. Para "meter a política na vida"
Essa perda de ritmo pode ser debitada à incapacidade de refor- necessitamos de um sujeito de natureza partidária que se entrelace
mular as táticas e estratégias para enfrentar o avalanche do neoli- com as forças sociais em conflito, por isso tem que ser um instru-
beralismo, que desconstruiu, por dentro e por fora, o conteúdo, mento político de classe e não apenas de natureza "popular".
a forma e a essência das organizações históricas. Questionam ou deixam de pronunciar palavras como "revo-
lução", "socialismo", "luta de classes", "ditadura do proletariado",
Pela substituição do conteúdo clássico pelo espontâneo "centralismo democrático" ou, nas formas de tratamentos, subs-
Há uma onda que acredita estar inovando, por renegar aspec- tituem a saudação, "companheiros e companheiras" em plenárias
tos importantes da trajetória política histórica e colocar no lugar ou em atividades de massas, por "todos e todas", retirando com
teorias completamente desenraizadas. isso o conteúdo politizador de compromisso e de identidade de
De repente, de um dia para outro, tudo passou a ser questio- classe que havia anteriormente.
nado em nome das inovações. Mal sabem os "inovadores" que Na elaboração dos planos de ação, usava-se, anteriormente,
a questão da espontaneidade é mais antiga do que os próprios como forma de diferenciar o perto e o distante, objetivos táticos e
clássicos do materialismo histórico. Aliás, estes somente surgiram estratégicos. Aos poucos passaram a relacionar objetivos "gerais e
pela necessidade de combater a ingenuidade e a ignorância. específicos", demonstrando claramente que a ideologia dos con-
Por causa de alguns erros cometidos pelos partidos comunistas ceitos foi modificada.
do século 20, muitas análises se voltam para renegar a organização É claro que essas e outras questões irão influenciar na con-
de classe de natureza partidária, como se os movimentos sociais duta e na formação das novas gerações de militantes. Quando
fossem agora os portadores da verdade revolucionária, em que a
"vanguardà' não é um "sujeito político", mas um "sujeito popular 152
LENIN,V. I. Quefazer? p. 65.
plural", desideologizado. 153
HARNECKER, M. Tornar possível o impossível, p. 363.
198 IDENTIDADE E LU TA DE CL ASS ES AD EMAR BDG O 199

as palavras perdem a força, é porque as ações estão perdendo a ATUALIZAÇÃO NA FORMA PERMANENTE E NO CONTEÚDO
radicalidade. DA ORGANIZAÇÃO
É nesses momentos que devemos nos apegar ainda mais aos Já afirmamos que o neoliberalismo desconstruiu, por dentro e
clássicos e repetir com Florestan Fernandes: por fora, muitas organizações que se viram afetadas em sua forma,
Se a massa dos trabalhadores quiser desempenhar tarefas práticas específicas conteúdo e essência, justamente pela incapacidade de perceberem
e criadoras, ela tem de se apossar primeiro de certas palavras-chave (que não as contradições surgidas em suas entranhas e fora delas.
podem ser compartilhadas com outras classes, que não estão empenhadas Há um pensamento de Carlos Marighella que orienta essa
ou que não podem realizar aquelas tarefas sem se destruírem ou sem se preocupação. "Qualquer mudança de qualidade do movimento
prejudicarem irremediavelmente). 154 revolucionário determina mudança de qualidade na organização",
Esse deve ser o sentido da unidade e luta dos contrários na ou seja, cada momento histórico exige certa capacidade de inter-
formação política de toda a militância. É a identidade da classe venção, e para isto a organização precisa elevar a sua qualidade.
que garante a identidade das palavras. De outra forma, podemos dizer que o perfil político e organi-
A classe burguesa não só precisa temer a organização dos zativo retrata o tipo de quadros que a organização terá. Em que
trabalhadores, mas também as palavras que estes usam para a sentido?
comunicação; devem se sentir incomodados quando tiverem Se a organização é de natureza pacifista, os quadros tenderão a
que usá-las ou, por conta própria, substituí-las sem sucesso, defender a _teoria da não violência e a preparar a organização para
como é o caso da palavra "ocupação", usada pelos Sem Terra, e formas de lutas pacifistas.
"invasão", usada pela mídia, juízes e políticos representantes dos Se a organização é de natureza reformista, os quadros ten-
latifundiários. derão a defender o método de negociação com os opositores e a
Diante da discussão exposta, podemos dizer que os desafios, preparar a organização para pressionar o inimigo, sem visar a sua
antes de serem da formação, são políticos, que somente por meio destruição.
da organização política é possível resolvê-los - isso porque as coisas Se a organização é de natureza revolucionária, os quadros ten-
não andam separadas. derão a buscar formas de enfrentar os inimigos, acumular forças,
Significa dizer que a organização faz a formação e a formação elevar o nível de consciência das massas e multiplicar os militantes
faz a organização. Enquanto a primeira é responsável pela for- para assumirem as tarefas cada vez mais difíceis dentro do processo
mulação do objetivo, a segunda se ocupa em lhe dar conteúdo e revolucionário que se vai construindo dialeticamente.
torná-lo prática. Compreendemos, então, que a organização, de posse da análise
Para melhor expor as questões que aprofundam esse tema, correta da realidade, em cada momento, indica o caminho para
tomemos como referência três grandes desafios. onde vamos. Embora muitas vezes, como disse Che, a teoria não
esteja clara.
Convém dizer que a teoria revolucionária, como expressão de uma verdade
154
FERNANDES, F. Clássicos sobre a revolução brasileira, p. 57. social, está acima de qualquer enunciado; isto é, a revolução pode ser feita
200 I DEN TIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMA A B oGo 201

se a realidade histórica for interpretada corretamente e se são utilizadas A formação é acima de tudo, "forma de ação", por isso não
corretamente as forças que nela intervêm (... ) 155 se pode imaginar a teoria separada da prática. Onde as ações são
Che estava aplicando, a seu modo, o pensamento de Lenin: poucas, a formação tende para a decadência. Justamente porque
"Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário". esta é responsável por dar conteúdo às formas, sejam elas organiza-
Significa que o revolucionário da teoria está primeiramente em tivas, propagandísticas, agitativas, artísticas, ou sejam de qualquer
compreender a realidade, em segundo lugar, saber colocar as forças outra natureza que a organização se proponha. Uma decisão não
para transformá-la. Muitas vezes, como disse Che, se não somos pode vir desacompanhada da formação, de profunda reflexão e de
"teóricos" também não podemos ser "ignorantes", temos que intuir organização das forças que executarão esta decisão. Entendemos
e buscar os fundamentos de nossa prática revolucionária. com profundidade a decisão quando vamos para a ação, é por meio
Nesse sentido, a organização é sempre mais do que uma re- dela que o conteúdo passa do abstrato para o concreto.
ferência política, ela ganha referência de lugar, onde pensamos, É importante perceber sempre os desafios que temos e elevar
planejamos, atuamos e convivemos coletivamente. Essa é a melhor a qualidade da organização para enfrentá-los. É dessa forma que
escola. A organização e a participação voltadas para os desafios se a organização e os quadros nunca envelhecem no estímulo e na
constituem na referência básica para a multiplicação de quadros, rebeldia.
mas estes não saem todos iguais como em uma linha de montagem
automobilística. Cada momento histórico imprime características COMBATER A ESPONTANEIDADE
novas na conduta e na natureza dos quadros. Precisamos estar A questão da espontaneidade não é nova e tampouco se carac-
atentos para manter vivo o espírito revolucionário em cada período teriza como tema de difícil interpretação.
e garantir a identidade da militância e da organização. Quem tratou com profundidade esse tema foi Lenin na busca
Esta não é apenas o programa, as táticas e as estratégias estabe- de superar os limites da organização sindical e elevar o nível de
lecidas, mas também a prática de dar forma às ideias atualizadas na consciência dos trabalhadores para perceberem outras questões
construção de ações e seres humanos. Essa prática se manifesta no que estavam "forà' da luta imediata. Para ele:
jeito de fazer, na distribuição de cargos e tarefas, no desenvolvimen- A luta econômica "incita" os operários "a pensar" unicamente na atitude
to das habilidades individuais, na criação de hábitos democráticos do governo em relação a classe operária; por isso, quaisquer que sejam os
e educativos etc. Haverá níveis diferenciados de responsabilidade esforços que façamos para "conferir à própria luta econômica um caráter po-
dentro da organização, e estes se devem à exigência maior de cada lítico", jamais poderemos, dentro desse objetivo, desenvolver a consciência
tarefa, à capacidade individual e ao acúmulo de conhecimento e política dos operários (até o nível da consciência política social-democrata),
experiência que cada um possui. pois os próprios limites desse objetivo são demasiado estreitos. 156
A formação de quadros está ligada aos níveis de estruturação Essa disputa era profunda entre os economicistas e os social-
e de consciência que compõem a organização. democratas naquela época. Os primeiros queriam colocar a luta

156
155 GUEVARA, E. Textos revolucionários, p. 31. LENIN, V. I. Quefazer?, p. 62.
202 IDENTIDADE E LUTA DE CLASSES AD EMAR B DGO 203

econômica à frente dos objetivos políticos e, por isso, as categorias podemos dizer que toda e qualquer ação é política, porque há
tornavam-se cada vez mais corporativas. enfrentamento entre duas ou mais forças; mas as ações que se
Lenin fez nesse sentido do econômico que "segue docilmente prendem aos interesses particulares e se fixam apenas em ganhos
o político" o que Marx fez com os judeus alemães, que preten- econômicos, não formam, não elevam o nível de consciência tam-
diam alcançar os mesmos direitos quando tratou da "liberdade e pouco levam à derrota das forças contrárias, pois, não relacionam
da emancipação". Disse Marx observando os cidadãos que vieram a força com o objetivo estratégico de transformação da sociedade,
do feudalismo: isso somente é possível na medida em que se adquire consciência
Por conseguinte, o homem não se libertou da religião; obteve liberdade das contradições inconciliáveis e se luta para atacar as causas das
religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. mesmas contradições.
Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial. 157 Rosa Luxemburgo localizou o momento em que os esforços se
Os operários na Rússia, com a luta sindical, iriam até a con- fundem e em que as diferenças tendem a se dissiparem:
quista dos direitos, mas nunca conseguiriam alcançar a consciên- (...) Na mobilização revolucionária das massas, as lutas política e econômica
cia de quem eram os seus verdadeiros inimigos e como deveriam se fundem em uma só e a separação artificial entre sindicalismo e social-
combatê-los. democracia, como duas formas de organização do movimento operário
Este, no fundo, passa a ser, hoje, o nosso principal dilema totalmente independente entre si, é varrida do mapa. 158
dentro da conjuntura política brasileira e mundial visando a eman- Para ela, isto se daria naturalmente num estágio avançado da
cipação. Ao mesmo tempo que precisamos olhar para a frente, revolução, mas de qualquer maneira, antes da "fusão" espontânea
enxergar os desafios políticos, temos que nos voltar para dentro entre econômico e político defendido por ela, a "social-democra-
das forças e reiniciar as lutas por direitos. Isto porque as lutas de cia", força e consciência revolucionária, garantiria a reflexão que
diferentes naturezas sofreram grandes recuos. Hoje é de fundamen- o político não deveria se submeter às reinvindicações econômicas
tal importância envolver-se para despertar as lutas espontâneas, de como defendia Lenin.
natureza imediatista, sem, entretanto, permanecer nelas, o que não Exigir que se "confira a própria luta econômica um caráter político" é uma
era tão difícil no período da revolução russa. atitude que traduz da forma mais surpreendente o culto da espontaneidade
Não se trata apenas de compreender a importância das lutas no domínio da atividade política (... ) 159
reinvindicatórias que, embora tenham seus "objetivos estreitos", É possível que a história desanuvie esta contradição e faça com
acabam logo em seguida à mobilização. Pode-se, inversamente, que rapidamente se dê este salto, do espontâneo, agora separado
afirmar que "toda luta é política", mas não chega a ser totalmente do político, para o político revolucionário, mas é fundamental que
verdadeiro se os que a desempenham não possuem a consciência se tenha um instrumento político de classe, de natureza partidária,
suficiente para compreendê-la como caminho que deve ir além para coordenar este salto adiante.
da conquista dos direitos econômicos e sociais. De forma geral,
158
LUXEMBURGO, R. "Greve de massas, partido e sindicatos", p. 321.
159
157
MARX, K. A questão judaica, p. 50. LENIN, V. I. Que fazer?, p. 57.
204 IDEN TIDAD E E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B oGO 205

Podemos ilustrar as ideias expostas com inúmeros exemplos das c) na preparação dos quadros - os quadros devem ser prepa-
lutas isoladas de movimentos populares que acabaram em nada. rados, por um lado, de acordo com as tarefas e funções que temos
Na luta pela terra na década de 1980, por exemplo, nos enfren- para serem realizadas hoje sem perder de vista as que ainda virão
tamentos armados entre camponeses e latifundiários: após terem no futuro e, por outro lado, com uma elevada cultura política que
sido desmobilizados, aqueles trabalhadores não se incorporaram a não necessariamente as tarefas exigem imediatamente, mas com
outro tipo de organização justamente porque a consciência política objetivo de combater a ignorância.
permaneceu no estágio em que estava quando iniciaram as lutas. Os programas de formação também precisam ser agradáveis.
Por outro lado, a espontaneidade não se manifesta apenas na O curso não pode ser um espaço de exclusão do mundo em que a
linha dos limites das reivindicações e na permanência da consciên- disciplina é imposta por normas e o convívio se torna impossível
cia no nível inferior, há diversos outros aspectos em que podemos pelo excesso de carga horária como se tivéssemos perdido tempo
localizá-la: na história e agora tudo tem que ser aprendido em poucos dias.
a) no planejamento - planejar as atividades pelo menos por um Embora os cursos por orientação de manuais tenham sido su-
médio período é fundamental. Ele ajuda a prever os passos, as ações perados, há que se ter um programa que estabeleça os conteúdos
e os objetivos a serem alcançados. Os objetivos devem ser concretos a serem estudados para evitar que o conhecimento seja absorvido
para todos os que se envolvem nas mobilizações. A formação tem de forma fracionada;
como tarefa qualificar os dirigentes para isso; por sua vez, estes devem d) na ligação das partes com o todo - como afirmamos até
acreditar: é como uma operação militar, cada elemento é colocado aqui, os desafios são da organização e não dos setores. Se não
com precisão para que não haja desperdício de forças. percebermos isso, estamos praticando a espontaneidade na parte
Não planejar significa deixar-se levar pela percepção do co- como ela se dá no todo, particularizando as lutas nos sindicatos,
tidiano. Os problemas imediatos colocam as forças em ação e as movimentos e partidos.
dominam, o planejamento consciente dá seguimento ao esforço Se cada setor ou secretaria (como é nos partidos) fizer as suas
empreendido; mobilizações, formular suas reivindicações, estimar e administrar
b) nos métodos de direção - dirigir é uma arte, mas podemos o seu orçamento, tiver seu corpo de militantes com liberações
transformar a tarefa de direção em um tormento para as massas; independentes, fizer os seus cursos, tiver as suas publicações, a
assim como podemos torná-la agradável, cooperativa e participa- organização vira uma "associação" de forças, uma "frente" alta-
tiva. A democracia não consiste em apenas pedir opiniões sobre mente desqualificada e competitiva, por não conseguir ultrapassar
determinados temas, mas permitir que as forças que agem elevem os limites das questões imediatas;
o entendimento e compreendam as verdadeiras razões por que e) na preparação da agitação e propaganda - saber desenvolver
estão agindo. técnicas de comunicação, seja escrita ou falada, facilita na circu-
É tarefa da formação ensinar métodos embora estes vão sendo lação de informações. Na teoria política revolucionária sempre
aprendidos no exercício das tarefas de liderança é preciso que essas vamos encontrar duas maneiras complementares de comunicação:
se dediquem ao estudo; a primeira é de agitação, a segunda, de propaganda.
206 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES A DEMAR B OGO 207

A agitação geralmente ocorre pela oratória convincente, pro- revolucionários precisam provar o seu respeito às massas populares do-
vocadora, excitativa. A propaganda se dá mais pela forma escrita minadas, confiar nelas, não como pura tática, mas como uma exigência
ou em falações demoradas, em que cada ponto deve ser explicado necessária para serem revolucionários (... ) 160
com cuidado, visando aprofundar a compreensão. É no comportamento cotidiano que demonstramos se es-
Formar significa preparar as pessoas para que se sintam habi- tamos caminhado para a revolução ou para o fortalecimento
litadas no momento em que estejam na condução dos programas, do capitalismo. Como disse Che, "A revolução se faz por meio
tarefas e ações de todos os tipos. do homem, mas o homem tem que forjar dia a dia seu espírito
A formação, portanto, deve estar voltada para prepar:1r os revolucionário" 161 e, reforçando, afirmou, em outro momento,
quadros para resolver os desafios da organização e da classe. E im- que "Na atitude de nossos combatentes se vislumbrava o homem
portante que a política de formação seja eficiente e esteja centrada do futuro". 162
na multiplicação de quadros em grande quantidade e na elevação Esta parece ser a -lógica da construção dos quadros, pela qual,
do nível de consciência das massas. ao mesmo tempo em que estes fazem a revolução, fazem-se a si
próprios como revolucionários num permanente crescimento
TORNAR A ÉTICA, A MORAL E OS VALORES REFERÊNCIAS combinado entre quantidade e qualidade. Diante de cada um
DA PRÁTICA está colocado o propósito da mudança particular para se tornar
Como ponto de partida é importante compreender que quando comportamento coletivo.
há desvios morais não se trata de tomá-los em separado para resolvê- Esta talvez seja uma das principais tarefas da formação, apresen-
los. Eles são decorrentes de desvios políticos que os antecedem. tar aos militantes referências possíveis de serem alcançadas, porque
Por isto, para acertar a moral é preciso se propor primeiramente foram desenvolvidas por seres humanos, por meio de exemplos de
acertar a política. coerência, resistência, rebeldia, honestidade e compromisso.
A prática organizativa não é apenas a produção de resultados A prática de valores, no seio da luta de classes, levará à mudança
imediatos. Mesmo que o nível de conhecimento e desenvolvimento nas ideias equivocadas e à construção de uma nova moral de con-
teórico da organização seja parcial, produzimos, ao intervirmos teúdo revolucionário. É esse o compromisso que cada qual assume
sobre a realidade, valores ou desvios que vão se tornar referência diante da revolução, apresentando-se com uma só fisionomia, ou
no juízo e na formulação das normas de convivência. seja, aquele que fala é o mesmo que age.
Temos maior responsabilidade com a coerência quando a prá- O caminho para avançar na questão dos valores é o da eleva-
tica está em confronto com outras visões e práticas; é importante ção do nível de consciência, formulando e praticando um novo
ter em mente a unidade e luta dos contrários como referência de comportamento. Será a garantia de que não voltaremos para trás
identidade. Sobre isso nos alertou Paulo Freire. em momentos de crise.
É necessário que os revolucionários deem testemunho, mais e mais, da
160
radical diferença que os separa das forças reacionárias. Não é suficiente FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade, p. 79.
161
GUEVARA, E. O socialismo humanista, p. 37.
condenar a violência da direita, sua postura aristocrática, seus mitos. Os 162
Idem, p. 24.
208 IDE NTIDADE E LU TA DE CLASSES ADEMAR 8 0GO 209

Cabe aqui o poder do exemplo. A multiplicação de quadros teoria e na prática para confirmar suas intenções; aglutina em torno
terá que se basear em matrizes bem formadas, nas quais se possa de si questões que fustigam os demais que o acompanham.
reproduzir uma correta "genética política''. O conhecimento é como a raiz da árvore que cresce em silêncio, es-
Nesse caso, os dirigentes estão responsabilizados a darem o condida na terra. Ninguém, a não ser a árvore, é a principal responsável
máximo de si, a rejeitarem os privilégios, trocando-os pelo es- por esse crescimento. Podemos ajudar colocando adubos e remédios,
pírito de sacrifício. O comportamento deve estar fixado sobre mas, em última instância, o esforço de absorvê-los é da planta.
as diretrizes e princípios da organização, em que o conteúdo é Poderíamos ainda dizer que os quadros devem ser preparados
permanentemente ampliado, seja no estudo, trabalho, disciplina, para não perderem as oportunidades. A história é muito caprichosa,
organização de base etc. às vezes oferece saídas fáceis, bastando um pequeno esforço para
O primeiro ato em que consiste o "formar" está na determina- alcançar grandes conquistas, mas a falta de percepção e sensibili-
ção de compreender e mudar. Compreender a essência das coisas dade dos quadros pode deixar passar as oportunidades importantes
e mudar conceitos retrógrados, preconceitos, práticas oportunistas que demoram a voltar.
e assim por diante. Somente nos comprometemos com aquilo que As lutas revolucionárias precisam de quadros disciplinados,
apreendemos. coerentes, virtuosos, com capacidade de propor questões e saídas
No conteúdo desses três grandes desafios residem os principais de fácil entendimento. Que saibam se comunicar sem fadigar as
limites que impedem o avanço da qualificação da organização, das massas, que estas sempre queiram ouvir mais um pouco e sintam
mobilizações de massas e da formação de quadros. certo desapontamento quando se deixa de falar.
Uma pergunta perpassou a história da luta de classes e nos Como vimos, os quadros não nascem prontos. Os mais novos
atormenta na atualidade: que tipo de quadros são necessários para precisam da referência dos mais velhos. Então é isso que enten-
implementar as mudanças? demos por "genética política'', em que cada qual, à sua maneira,
Em 1902, Lenin buscou dar uma resposta observando as projeta os seus descendentes e sucessores. Por isso:
circunstâncias do momento, dizendo que deveriam ir a todas as Se os dirigentes não gostam de ler e buscar conhecimentos,
classes da população como: "teóricos, propagandistas, agitadores e incentivarão os mais novos a lerem e a participarem de cursos?
organizadores". 163 Hoje temos estas e outras tantas responsabilidades. Se os dirigentes e formadores não gostam do trabalho coletivo,
O principal implica saber que os quadros devem ser preparados, incentivarão a cooperação?
teórica e metodologicamente, com elevada capacidade e autoestima Se os dirigentes e coordenadores de setores são corporativistas,
para que sempre se apresentem diante das massas com confiança, incentivarão os mais novos a pensarem no todo da organização?
disposição e coragem para enfrentar os desafios. Se os dirigentes são preguiçosos e indisciplinados, incentivarão
Então, um quadro revolucionário é um autodidata, estuda indi- o trabalho voluntário?
vidual e coletivamente, criando seu próprio jeito. Busca elementos na Se os dirigentes e formadores são machistas, incentivarão a
participação das mulheres nas instâncias de direção, nos cursos,
163 LENIN, V. I. Que fazer?, p. 64. mobilizações etc.?
210 I DEN TI DADE E LUTA DE CLASSES

Se os dirigentes são reformistas, economicistas e individua- RELAÇÕES ENTRE MÍSTICA,


listas, discutirão com a militância a revolução, os valores e o IDEOLOGIA E UTOPIA
socialismo?
Se os dirigentes gostam de privilégios, incentivarão a militância
a fazer sacrifícios e o trabalho voluntário para alcançar maiores
resultados?
Se os dirigentes e formadores são corruptos, incentivarão a
militância a prestar conta de seus gastos? A HUMANIDADE SEMPRE TEVE dificuldade de lidar com temas
É dessa forma que precisamos saber como vamos a todas as abstratos. Não é por nada, é que eles, caprichosamente, ao menor
classes, ou a toda a base da organização? Se vamos carregados de descuido, invertem a ordem lógica das coisas e, então, passamos a
vícios, desvios, desânimos e tristezas, que tipo de trabalho revolu- vê-las obscurecidas ou deformadas.
cionário podemos fazer? Há três maneiras diferentes de ver o tema da mística: a) Pela
A formação ajuda a resolver esses dilemas. Acima de tudo, ela teologia a mística é compreendida como espiritualidade, dentro e
exige pressa, como aponta István Mészáros fora da prática militante; b) pelas ciências políticas, é compreendida
(... ) É que a humanidade não tem uma infinidade de tempo a sua dispo- como carisma; manifestação de habilidades, dedicação etc; c) pela
sição, pois, na realidade, ela é forçada a enfrentar o perigo de potencial filosofia, onde se relaciona a cultura nos seus três aspectos: do pensar,
autoaniquilaçáo em razão da aparente incontrolabilidade de seu modo de fazer e sentir. Liga-se com os valores (solidariedade, disciplina, com-
reprodução sociometabólica sob o domínio do capital. 164 panheirismo etc.) a estética, a arte, o cuidado, o trabalho produtivo e
Logo, o que estamos fazendo ficará como uma prazerosa ou voluntário, a educação e formação humana e a luta de classes. Nossa
desastrosa herança para nossos descendentes. Que eles nada tenham vinculação conceitua! é com o terceiro entendimento.
a reclamar de nós! Sabemos, por um lado, que as coisas jamais se dão a conhecer
por inteiro, porque cada descoberta suscita novas perguntas; mas,
por outro, como disse Karel Kosik, "no desenvolvimento dialético
das categorias econômicas o ser social se reproduz espiritualmente", 165
o que significa dizer que a reprodução material não encerra o poder
da reprodução e da imaginação; portanto, carregamos em nós a
dialética do concreto e do abstrato em permanente mutação.
Neste capítulo vamos tratar da tripla dimensão do abstrato,
que se interliga e se complementa em suas manifestações utópicas,
ideológicas e místicas na existência do concreto.

164
165
KOSIK, K. A dialética do concreto, p. 188.
MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia, p. 12.
212 I DENTIDAD E E LUTA DE CLASSES A DEMA R B oGO 213

AS RAÍZES HISTÓRICAS DA UTOPIA Dessa forma é que se coloca a questão da utopia. A imagina-
Quando os revolucionários russos de 1917 erigiram uma estátua ção pode estar ligada à produção de objetos, à busca de melhorias
a Tomás Morus, pela sua genialidade de ter formulado, no século 15, sociais ou à construção de uma sociedade socialista. Assim como
a palavra "utopià', e a ela ter dado um conteúdo semelhante às ideias desperdiçamos parte da imaginação ao fazer o objeto, desperdiça-
socialistas, estavam confirmando que a ideologia socialista carece - mos parte da imaginação ao projetarmos lugares, sistemas sociais,
para a realização do possível - do estabelecimento de perspectivas formas organizativas, relações afetivas etc. A parte não realizada,
maiores do que o alcance das necessidades materiais imediatas. por excesso de pretensão ou por imprudência da imaginação, é a
Embora em sua caracterização, Morus tenha definido a "utopià' sensação que fica do "não lugar" que nunca alcançaremos, porém,
como o "não lugar" ou "lugar nenhum", ele tomou uma ilha ima- não desistimos de tentar. É a utopia.
ginária onde estabeleceria a República e não haveria propriedade O que nos poderia convencer a construir um "não lugar"?
privada nem dinheiro. Ali, a felicidade seria encontrada, principal- Na cultura dos camponeses imigrantes italianos no Sul do país,
mente por meio da organização da produção. 166 Esses elementos de educados a pouca conversa, quando um adulto está realizando
Morus se tornaram pilares fundamentais na formulação, séculos determinada função, um tanto estranha, e um familiar ou uma
depois, da teoria do socialismo científico. criança o aborda repentinamente: "O que está fazendo?". A resposta
Por outro caminho, Karl Marx, em 1867, ao estudar a produção é curta e imediata: "Nada!". Ora, é claro que está fazendo alguma
da mais-valia absoluta, descobriu que"( ... ) O que distingue o pior coisa, mas ainda não consegue prever qual será o resultado, por
arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua constru- isso se reserva, dizendo que não está fazendo nada. Se consegue
ção antes de transformá-la em realidade (... )". 167 Essa construção, alcançar o intento, então, orgulhosamente oferece o resultado
logicamente, é motivada pelas necessidades imediatas, mas não aos demais, justificando que não saiu de acordo com as intenções
se prende somente a elas, indo além. O ser humano diferencia-se primeiras, houve falta de material, de ferramentas, habilidades etc.,
também dos animais pela capacidade de produzir mais do que mas promete que, da próxima vez, acertará.
consome, e de dar aos objetos produzidos requintes estéticos. Este é o "não lugar", nunca se chega à totalidade, mesmo que
Nisso tudo estão os interesses e as expectativas que o ser humano seja da satisfação das necessidades. Ao fazer, descobrimos outras
alimenta em relação ao futuro. dezenas de elementos e de possibilidades que poderíamos ir para,
Tomemos como referência a necessidade de comer que leva a como em uma viagem, em um determinado tempo, levantar os
"figurar na mente" alternativas para buscar a comida. É de fácil olhos e perceber que o horizonte nos enganou, se distanciou do
conclusão que nem tudo o que "figura" na mente é alcançado. ponto que prometeu nos esperar.
Parte do imaginado se perde ou volta de outra forma em outro Há um conto antigo que retrata uma desconfiança emblemática
momento agarrado em novas preocupações. no qual um discípulo procurou o sábio para debater sobre uma
coisa que o intrigava, pois achava que na obra da criação havia
coisas que não fazia sentido, como se o criador houvesse falhado.
166 MORUS, T. A utopia.
161 MARX, K. O cap ital. Vai. l , p. 202. Ao ser recebido, expôs seu ponto de vista:
214 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES ADE MAA 8 0GO 215

- Senhor, a natureza é muito bonita, muito funcional, cada coisa tem sua Foi com Napoleão, portanto, que o termo ideologia - que havia surgido
razão de ser, mas, no meu ponto de vista, há uma coisa que não serve para exaltadamente positivo passou a ter a acepção asperamente negativa. E essa
nada! acepção negativa, afinal, prevaleceu nas décadas seguintes. 169
- E que coisa é essa que não serve para nada? - perguntou o sábio. Napoleão teria se rebelado contra os "ideólogos" que preten-
- É o horizonte. Para que serve o horizonte? Se eu caminho um passo em diam ensiná-lo a governar. Marx e Engels que vieram depois de
direçáo ao horizonte, ele se afasta um passo de mim. Se caminho quilômetros Napoleão adotaram a ideia da negatividade do conceito. Lenin,
em sua direção, ele se afasta os mesmos quilômetros. Isso não faz sentido! não teve contato com a visão de Marx sobre o assunto, pois o texto
O horizonte não serve para nada... A ideologia Alemã foi descoberto e publicado apenas em 1932,
- Mas é justamente para isso que serve o horizonte: para fazê-lo cami- quando Lenin já havia falecido, por isto entendeu que o conceito
nhar.16s tinha dois sentidos:
Caminhar voltados para o horizonte é a tarefa de sonhadores, (... ) o problema coloca-se exclusivamente assim: ideologia burguesa ou
que a receberam das mãos da história. É a capacidade de imaginar ideologia socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não elaborou
que, embora não se alcance o fim, a viagem vale a pena. O lugar a uma " terceira'' ideologia; além disso, em uma sociedade dilacerada pelos
chegar é abstrato, mas a viagem é concreta. Por isso os sonhos não antagonismos de classe não seria possível existir ideologia à margem ou
ocupam um lugar em todo o tempo, mas, de um ou outro modo, acima dessas classes). 17º
o tempo todo de nossa existência. As ideias se movem mais que a gente, vão a lugares a que nunca
Esse tempo limitado e eterno, que nos angustia por fazermos seremos capazes de chegar. Elas gastam energias e se não forem
pouco e, ao mesmo tempo, nos faz nos vermos sobrevivendo nas para a prática, enfraquecem e morrem.
próximas gerações é que motiva a fazer uma parte pelo menos Este é um dos grandes limites da utopia e da mística. O que li-
daquilo que figuramos na mente, a outra parte será feita por quem mita a imaginação e a motivação de irem mais longe é, sem dúvida,
vier depois. a qualidade das ideias, que não conseguem compreender e formular
as respostas certas que devem dar às necessidades concretas.
A IDEOLOGIA COMO CONTEÚDO DA CAUSA As ideias, formuladoras de imaginações, de lugares futuros, de
A ideologia pode ser vista de duas maneiras, como o conjunto situações sociais diferentes, são responsáveis pelo avanço ou pelo
de ideias da classe dominante voltadas para o obscurecimento da recuo da utopia, e da força ou fraqueza da mística.
realidade, no caso para omitir a verdade, ou como o conjunto de No livro A ideologia alemã, escrito por Marx e Engels, em
ideias usadas para contestar a dominação, neste caso, voltadas para 1845, ao falarem da "Ideologia em geral, especialmente a alemâ',
desvendar a verdade. em uma nota de rodapé esclarecem a questão da ciência da história
Leandro Konder nos ajuda a compreender a gênese deste e expõem o que entendem por ideologia.
conceito tão astuto.
169
KONDER, L. A questão da Ideologia, p. 23.
170
16 8 RANGEL, A. (org). As mais belas parábolas de todos os tempos. Vol II, p. 241. LENIN, V. I. Que fazer?, pp. 31-32.
A DEMAR B oGo 217
216 IDE NTIDADE E LUTA DE CLASSES

Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser sociedade que queremos com aquilo que temos como interesses
examinada sob dois aspectos: história da natureza e história dos homens. particulares no momento. É no fazer que o socialismo científico se
Os dois aspectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem homens, realiza, a parte não edificada continua sendo utópica e em processo
a história da natureza e a história dos homens se condicionarão reciproca- de realização.
mente. A história da natureza, a chamada ciência natural, não nos interessa Quando a ideologia se preocupa em apenas revisar as ideias já
aqui; mas teremos que examinar a história dos homens, pois quase toda a postas, negando princípios e valores, a utopia também tende a ima-
ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história, ou a uma ginar que vivemos em uma sociedade sem classes e sem conflitos, os
abstração completa dela. A própria ideologia não é senão um dos aspectos opressores se tornam dóceis, simpáticos, tolerantes e negociadores.
dessa história. 17 1 Os métodos a serem utilizados deixam de ser radicais e passam a
Nesse sentido, compreenderam que a ideologia consiste em ser consensuais; por isso a mística como energia "enfraquecidà',
tomar uma parte da realidade e torná-la como se fosse toda a ver- que anima esses condutores de políticas distorcidas, de simbologias
dade. Por isso, para eles, a ideologia seria sempre um subterfúgio amenas, cores leves e expressões mansas, é o conformismo.
da classe dominante para enganar os trabalhadores. Ao contrário, se a ideologia busca a revolução, ela prevê confli-
Esse "engano" pode se converter em realidades catastróficas, tos, disputas, rupturas, e exige que seus precursores se empenhem,
como disse Adorno ao analisar a era hitleriana na Alemanha. modifiquem seus hábitos, empreendam conteúdo aos princípios e
Mostrando que, os que "se julgam inteligentes não passam de es- valores, formulem programas que prevejam o fim da exploração, da
túpidos", por não perceberem as tendências nem concretamente o opressão e das desigualdades; e alerta para que se comece a mudar
que ocorre na realidade, afirmou: ''A transformação da inteligência logo o que se tem que tornar definitivo no futuro.
em estupidez é um aspecto tendencial da evolução históricà'. 172 Mas As águas dos rios correm para o mar, embora o rio faça curvas.
não só, a negação da negação também leva a humanidade a dar É o que ocorre com as ideias; não significa que elas estejam sempre
saltos positivos quando coloca a inteligência a seu favor. corretas na totalidade, o importante é que elas possuam a lucidez
O que alimenta a inteligência e combate a estupidez são as de onde devem chegar.
práticas e as ideias corretas. Estas alcançam vitórias e é nelas que Quem "educà' as águas para não se desviarem do caminho é o
a mística viaja transportando-se de um lado para outro, unindo, trajeto que chama a correnteza para frente. Quem educa as ideias
compartilhando, animando e comprazendo as pessoas. é a prática política. A prática é como o terreno sobre o qual as
Isso nos leva a crer que a força da mística e da utopia estão correntezas desenham o leito, este, ao reagir, faz as águas darem
primeiro na qualidade das ideias. Quando elas são mal formuladas, voltas para dizer que o fazer tem o poder de escolha.
pouco elaboradas, a utopia também se desqualifica e, ao figurar- Nem sempre a causa está clara, as ideias então têm dificuldades
mos na mente o que queremos do futuro, confundiremos a nova de explicitá-la. Importa é que a direção esteja correta, ela exige um
comportamento coerente.
Em tempos de crise ideológica ou de confusão das ideias, a
171 MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, pp. 23-24.
172 ADORNO , T. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, p. 195.
utopia se dissolve, a mística perde a força. A disposição se choca
218 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES ADE MAR 8 0GO 219

com as incertezas e se cerca de dúvidas: "será que vale a pena?", recusa, e a ele chegamos escolhendo todo o bem de acordo com a distinção
ou seja, a ideologia puxou a linha do horizonte para baixo e o entre prazer e dor. 173
"não lugar" tornou-se um lugar comum. A causa ficou imediata Quando o ser humano não sente mais prazer, perdeu o fun-
como a água da chuva que escorre para dentro de um lago, não damental na vida.
tem saída a não ser pela evaporação. A luta por direitos ignorou a A mística é esse movimento que aparta o prazer da dor. Bus-
luta por emancipação. A reforma não se realizou e ainda derrotou camos a felicidade, embora nunca saibamos se estamos no auge
a revolução. de sua realização ou se ainda falta muito para chegar a tê-la como
Os princípios revolucionários, ao deixar de cuidá-los, também prêmio.
se diluem, modificam-se. Aos poucos vão deixando de ser o que Assim, nos damos conta de que a felicidade não é um momento,
eram, adotam outro conteúdo, tornando-se simplesmente ideias é uma disputa que fazemos diariamente para evitar que a "dor"
imbecis e com elas subornam a consciência das massas. Seus con- nos "enfrentamentos" atinja a quem amamos e percam o prazer
dutores passam a ser administradores voluntários dos bens e do de estarem na luta.
poder da classe dominante. São escravos de consciência em busca A mística também não é um momento, é uma continuidade.
do falso poder. É a satisfação que sentimos ao construir o caminho da felicidade,
Um ser humano eleva-se para uma nova categoria quando para os outros e para nós.
adquire consciência do espaço que ocupa e do papel que deve Vamos realizando e contemplando a obra feita. Assim, deci-
desempenhar na sociedade em que vive. As ideias nos permitem framos e ciframos novamente o futuro.
decifrar onde estamos e para onde vamos. Essa satisfação se manifesta na disposição de servir, repartir,
ajudar, como se, dentro de nós, existisse um celeiro que nunca se
A MÍSTICA, FORÇA QUE LIGA O QUE É esvazia. Por exemplo, o que faz uma mãe deixar todos os dias os
COM O QUE AINDA SERÁ seus filhos em casa, e sair para trabalhar em escolas cheias de crian-
Mas há uma outra força que está além da necessidade e da ças? Não pode ser apenas pelo salário! Se ficasse em casa somente
capacidade da imaginação, é a motivação que nos leva a continuar, cuidando dos seus filhos, não se sentiria bem. Ela sabe que pode
antes e mesmo depois de vermos o objeto pronto. A vontade de criar os seus e ajudar a educar os filhos de outras mães.
buscar e fazer bem feito para ser admirado, utilizado ou doado Então o que é a mística na relação social e política?
a alguém, nos faz nos apaixonarmos não simplesmente pelo que É uma relação entre o abstrato e o concreto. O abstrato é um
fazemos, mas para quem fazemos. Aqui nos encontramos com "o pensamento transformado em desejo de ver o concreto realiza-
primeiro bem", o prazer, como disse Epicuro (341 a.C.), o filósofo do. Antecipa aquilo que deverá vir a ser ao mesmo tempo que
da felicidade. está sendo. A matéria ou a ação cumprem o papel de abrigar o
É por essa razão - diz ele - que afirmamos que o prazer é o início e o fim desejo e de revelar a ideia que, no acontecer, se confunde com
de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro
e inerente ao ser humano; em razão dele praticamos toda escolha e toda 173
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu), p. 37.
220 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR 8 0GO 221

energia, ânimo, vigor, paixão, carinho ou sentimentos de des- xergar os perigos dos desvios; quando estão incorretas, nos fazem
contentamento. virar a cabeça para o lado dos interesses mesquinhos e de natureza
No abstrato inicialmente não se toca, apenas se sente como o oportunista.
voo de um pássaro que quer partir. Quer fazê-lo acontecer como Diz István Mészáros:
se este já estivesse ensaiado. Nas sociedades capitalistas liberal-conservadoras do Ocidente, o discurso
É aqui onde a mística ganha forma material por meio do tea- ideológico domina a tal ponto a determinação de todos os valores que muito
tro, para expressar o vir a ser de uma realidade que ainda é ideia. frequentemente não temos a mais leve suspeita de que fomos levados a
No ambiente ornamentado para as festas ou encontros, as ideias aceitar, sem questionamento, um determinado conjunto de valores ao qual
ganham cores e perfumes. se poderia opor uma posição alternativa bem fundamentada, juntamente
Quando as ideias não imaginam, elas já não solicitam mu- com seus comprometimentos mais ou menos implícitos (.. .) 174
danças; então os ambientes fedem e cultivam péssimos humores. A ideologia é responsável por fazer a crítica à outra ideologia
As relações pessoais tornam-se um peso, uma obrigação; como se que nos provoca, cativa e oferece facilidades.
um revolucionário tivesse regredido de militante a funcionário. As ideias são como a luz do caminho que nos conduzem ao
A luta perdeu a força e a importância. A busca perdeu o encanto. "não lugar" da utopia e nos alertam que, para chegar lá, é preciso
A mística, então, se move em torno da forma, que perdeu o derrotar todos os inimigos, incluindo aqueles que convivem com
conteúdo. É demasiado cansativo pensar para achar algo novo. os nossos sonhos. Os inimigos mais violentos estão no final da
"Tudo já foi feito!" A dialética cedeu lugar ao conformismo, as fileira e sempre fogem com a chave da porta do cômodo que mais
ideias perderam a criatividade, o espírito convalescente está matan- gostaríamos de entrar. Por isso é que a luta revolucionária é um
do por dentro aqueles que antes eram tão compulsivos para a luta. caminho que não tem fim. Quanto mais crescemos em quantidade
Sinal de que as ideias, quando não encontram a materialidade mais precisamos crescer em qualidade.
de sua realização, também cansam e morrem. O conteúdo se torna Todo e qualquer distanciamento da ideologia socialista nos leva
superado, a utopia não instiga a procura porque o desejo se deu a um distanciamento da utopia e da mística socialistas.
por satisfeito; foi derrotado pelo movimento da própria negação. A mística não pode ser vista como algo independente da
É o momento da deserção, militantes que lutaram a vida toda construção histórica do processo de transformação. Ela deve estar
para chegar ao poder, para construir o socialismo, de repente se ligada a cada passo, acompanhar e incentivar a seguir em frente.
deparam com alternativas mais amenas, egoístas e passam a renegar Mas, para isso, é preciso fazer o possível para que as ideias vejam
tudo o que defenderam e acreditaram a vida toda. O movimento e antecipem os passos seguintes, com energia, firmeza e continui-
regressivo nas formas de consciência levou ao enfraquecimento da dade. Quando a teoria começa a ficar para trás, a prática perde a
luta dos contrários. coordenação. Teorizar e praticar, praticar e teorizar, é o alimento
A utopia sem mística também se desconstrói e ganha novas que a mística precisa para não cansar e seguir em busca da utopia.
formas, fazendo com que as ideias mudem de rumo. As ideias são
como os olhos da história; quando estão corretas, nos fazem en- 174
MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia, p. 58.
MÍSTICA: A FORÇA
QUE SE RENOVA SEMPRE

CRIANÇAS TÊM UMA NECESSIDADE estranha; tão cedo acordam,


começam a brincar. Inventam fantasias o dia todo e, quando anoi-
tece, os pais precisam intervir e dizer que é hora de dormir, caso
contrário prolongam por horas essa vida dos seus inventos.
Para elas, não há objeto que não se transforme em brinquedo.
A criatividade tem a capacidade de inventar e de modificar tudo.
Pedras passam a falar; raízes de árvores tornam-se lugares im-
portantes; restos de galhos viram pontes; folhas secas arrumadas
tornam-se restaurantes, pontos comerciais e hospitais, igualmente
necessários, pois quem anda pelas estradas "está no mundo", tem
múltiplas necessidades.
Geralmente, ao brincar, as crianças representam o mundo dos
seus pais. Elas mesmas se transformam em pais e em mães, é uma
brincadeira que representa as relações sociais da vida dos adultos,
tanto as do trabalho, quanto as do lazer. É da convivência com os
adultos que as crianças extraem o conteúdo das suas brincadeiras,
elas imitam aqueles que, a seu ver, são perfeitos.
Qualquer que seja o tipo de brinquedo, ao ganhar vida ima-
ginária e movimento, ele quer espaço, um lugar onde possa, pelas
mãos e pela imaginação, agir e desenvolver o seu papel enquanto
durar aquele cenário. Eis que o ambiente da casa no campo torna-
se repleto de animais, enquanto o das casas nas cidades é invadido
por policiais e bandidos. Lidando com coisas grandes, a criança
também se sente grande. Como disse Ernst Bloch, no Princípio
224 I DENTIDADE E LUTA DE CLASS ES ADEM A R BOGO 225

esperança: "A criança utiliza-se também dos bichos para sonhar renova no corpo das crianças, é essa força que, adquirindo cons-
em ser grande( ... ) Eles náo dáo tanto medo, cabem na palma da ciência de si mesma, náo se deixa parar.
máo (... )". No fim, uma ordem do adulto termina a brincadeira: Em qualquer época histórica, o presente é a sequência e a
"recolha essa bagunça!" e a fantasia desaparece do real. No dia consequência do passado, mas ele é, também, e especialmente, o
seguinte, nada será igual, tudo começa diferente. É a imaginaçáo inesperado. Uma ideia nascendo, um plano surgindo, uma nova
que incentiva a criança a brincar todos os dias, por ela, todas as descoberta, e eis que o presente morde o futuro, que se apresenta
manhás, esperam as fantasias para se tornarem realidade. como um convite que dá aquela vontade de levantar mais cedo
A mística é essa energia criativa que náo cansa, é uma força para que a imaginaçáo possa se concretizar mais rápido.
estranha que faz a gente andar, tornar-se grande, desejar conquistar Nem sempre a prática consegue acompanhar as ideias. Estas
e cuidar das conquistas. sáo como as obras de arte, estáo sempre um pouco à frente do
Quando estamos na luta, somos como as crianças, inventamos presente. Do mesmo modo que a brincadeira interrompida pela
todo tipo de soluçáo para que a força continue "acordadà'. Para ordem dos pais, as ideias precisam esperar, têm de passar pela noite
os po d erosos, "luta e' bagunça", "b ad erna" . G era1mente, recor- de sono. É para vivermos a saudade daquilo que virá. A utopia do
rem à prepotência jurídica para ordenar aos pobres em açáo que amanhá é esse desejo de "um novo dià'. Tudo recomeça. É um novo
"recolham tudo" , e ainda afirmam, como última ameaça, que a recomeço; náo de tudo, mas do essencial. Ontem, a imaginaçáo
"brincadeira acabou". ainda náo tinha esclarecido tudo, fazia suspense, hoje, ela se revela
Na realidade, na militância, a mística nos leva a repetir, com mais um pouco, renovando a curiosidade que alimenta o desejo
um pouco mais de seriedade, os atos das crianças. Lutar é querer de um outro amanhá.
organizar, náo mais o quintal, mas o mundo que foi desarruma- A mística é essa grande força companheira que nos acompanha.
do. A "bagunça do mundo" foi uma invençáo daqueles senhores Ela é o alimento da imaginaçáo, sem imaginaçáo náo há futuro.
que derrubaram as árvores, extraíram os minérios, poluíram o ar, Sem a mística, as pessoas secam por dentro, como as árvores ocas.
contaminaram as águas, escravizaram e exploraram os seres hu- Perdem a consistência, embora fiquem em pé por mais algum
manos etc. e, ainda por cima, deixaram aqui seus descendentes, tempo.
para continuarem a devastaçáo. Ora, quando lutamos, aquela Nas brincadeiras, a força criadora é a criança, é ela que dá vida aos
selva imaginada na cozinha tornou-se um latifúndio de verdade. objetos "mortos". Na política, é a militância, recorrendo às soluções
Os pistoleiros e os fazendeiros continuam a serviço do capital e dadas no passado e, também, criando novas soluções, que dáo vida
da propriedade privada, mas, agora, se movimentam e dominam às propostas e aos projetos que também pareciam mortos; porque,
independentemente da nossa vontade, as balas e os tiros sáo reais de uma forma ou de outra, já existiram em outras épocas.
e matam. Eles já náo cabem na palma da máo, e desorganizados Há uma boa diferença entre a militância e as crianças. Para
somos pequenos diante deles. recuperar a energia e voltar a brincar, as crianças precisam dormir
A luta recomeça a cada dia como uma grande brincadeira. longas horas de sono; só entáo retornam criativas. A militância ali-
Começar de novo, a cada dia! A mística é como a energia que se menta o sonho enquanto está acordada, vigilante, em combate.
226 I DENTID ADE E LU TA DE CLASSES AD EMAR B oGo 227

A mística precisa de alguns meios para se locomover. São pelo Imaginar é uma atitude de vigilância; é uma postura, um estar,
menos três os fundamentos principais. uma presença atenta. A mística é a força que faz despertar a atenção,
faz gostar de cuidar, não deixa abandonar o posto. Com a mística, a
A IMAGINAÇÃO imaginação vai mais longe. Procura o que ainda não foi encontrado,
Imaginar é colocar-se à disposição da criatividade. Imaginar para formar por meio de imagens aquilo que ainda não tem forma.
cenários na política e colocar as forças em movimento para Imaginar é querer. É bem-querer. Quando algo está mal cui-
alcançar o que foi previsto; imaginar conquistas, ambientes di- dado está também mal imaginado. Perdeu a força da função. Não
ferentes, melhores condições de vida; imaginar um mundo sem irradia. Não atrai. É como a flor que murcha, prepara-se para
violência, onde direito.rima com respeito; imaginar as tecnologias morrer e se tornar passado. Imaginar é o futuro. É aquilo que
controladas, a serviço da preservação, em.que o ser humano, ainda não veio, mas já avisou que virá e quer um lugar para ficar,
como intermediário entre o ontem e o amanhã, age com res- há que preparar as condições para recebê-lo, ou recebê-la. O aviso
ponsabilidade garantindo as condições para que a humanidade motiva a espera, o futuro a vir leva a pentear os cabelos e a pintar
possa seguir sua caminhada. os lábios. Queremos ser vistos com uma bela imagem. Ela não
Imaginar é uma tarefa política, sem ela a história não avan- pode frustrar o imaginado.
ça com todos os sujeitos e em todas as frentes . Nem sempre a A revolução a vir não gosta de destroços, mortes, sangue. Ela
lógica tem razão, ela também pode ser surpreendida, como são quer a beleza porque vem para ficar. Os destroços e as mortes fazem
surpreendidas as gerações. Existem momentos em que as forças parte da faxina no tempo da espera. Quanto mais este se prolonga,
da motivação mudam as previsões feitas pela lógica; por isso, as maiores os desastres, maior a barbárie. A revolução é a força que
mudanças surpreendem os próprios sujeitos. inclui, não a que exclui, quem exclui é a contrarrevolução. Esta
Avançamos quando imaginamos. O concreto não é inteiramen- pode estar com a direita ou com a esquerda, nunca com os revo-
te concreto pois guarda dentro de si infinitas possibilidades, ainda lucionários, porque a revolução não para nunca.
abstratas. Descobri-las é a função da imaginação. Fazer política é ter Ela é uma grande festa preparada coletivamente. Ninguém
a capacidade de forçar o abstrato a tornar-se concreto e deparar-se prepara uma festa para ficar fora dela, a não ser que tenha mágoas
com desafios ainda mais abstratos que precisam ser enfrentados guardadas. A mágoa afasta da festa. A revolução é a festa, as lutas
novamente. É por isso que a transformação social é uma luta sem são os preparativ_<?S:...Na comemoração, chega a revolução. Não vem
fim. É como a vida: depois que surgiu precisa ser alimentada. antes, porque seus atores ainda não estão preparados e poderiam
Imaginar é se deixar desafiar. Desacomodar. Arrancar da ordem destruí-la.
a desordem necessária para formar uma ordem superior que ainda A reconstrução é a revolução, ela obriga mudar as coisas de
será imperfeita. lugar. As pessoas mudam de lugar, tanto físico quanto social.
Imaginar é fazer nascer fatos, forjar acontecimentos, fenômenos Mudam o lugar na classe; na cultura; na função política. Quando
não previstos, é buscar nas inexistências do presente as condições isso não acontece é porque ela foi mal imaginada e confundida
para fazer as existências futuras. com poder, ele não é a revolução. Quando se afasta das mudanças
228 IDENTI DADE E LU TA DE CLASS ES AD EMA R B oGo 229

é acomodação da ordem. A revolução é um movimento perma- presente; assim como a noiva, que espera pelo dia do casamento,
nente para a frente. A contrarrevolução pela direita é a repressão; colocando em ordem cada peça do seu enxoval; provando o vestido,
pela esquerda, é a estagnação, a revolução mal cuidada, ou o para saber se as medidas combinam; distribuindo convites, para que
movimento "para trás". os amigos estejam presentes no momento em que o "futuro passe"
Sem imaginação não há revolução, há apenas conflito. As para as mãos do presente a sua própria realização e presenciem a
lutas não são eternas, elas têm altos e baixos, cansam e param. A síntese da busca pela felicidade.
revolução é um movimento para a frente; iniciada, não para mais. A única maneira que temos de "tocar" o futuro é planejando-o.
Quando, aparentemente, ela volta para trás, é porque se revoltou Quando chega o vir a ser esperado, descobrimos que o futuro já
contra aqueles que a conduzem. Como eles pararam de imaginar está em um outro ponto desafiador. E, embora aquele momento
o futuro, ela os pune com a perda do poder, como a criança que de felicidade presente nos leve a achar que "não queremos pensar
fez alguma travessura e recebe o castigo de se recolher para dormir em mais nadà;, como se fosse o fim, logo em seguida descobri-
mais cedo. mos que já estamos envolvidos em outros planos e novas tarefas.
A contrarrevolução da classe dominante também é uma força A mística não apenas embala o sonho, como o faz locomover-se,
imaginada, ela é um movimento atento, pronto para desestabilizar graças à nossa esperança de vê-lo realizado.
e punir aqueles que imaginam a revolução. Os inimigos do futuro Sem sonho não há esperança. Esperança que move aquele
precisam da astúci;, porque sabem que ficarão de fora na grande astuto cavaleiro, viajando em busca de um sonho ainda por se
comemoração. formar, como fez Luiz Carlos Prestes, com sua bela Coluna re-
Imaginar, então, é acreditar. É confiar e criar condições para volucionária. Há sonhos que se soltam e não voltam porque uma
que todos os que lutam tenham acesso ao prazer da conquista po- força ilusória os leva a passear por lugares confµsos e, como as
lítica, sem sectarismos e sem concessões. Disse bem Paulo Freire: goteiras do telhado, secam quando para a chuva. Cessa o motivo,
"O sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos para o movimento.
outros". Se, por um lado, ele nada constrói, as concessões destroem Quando aprendemos a esperar, crescemos. Tornamo-nos
o que já foi feito. Acreditar sobretudo no projeto, pois ele tem adultos na política. Não queremos as coisas só porque queremos,
princípios e valores que vão nos acompanhar até o futuro. esse querer é egoísta; queremos porque precisamos. Enquanto
A mística está no movimento da imaginação revolucionária. esperamos, sonhamos. Verificamos como aproveitar bem o que
Sem ela, as imagens não se movem; perm;_;;~c~~ aos pés dos seus esperamos. Assim, porque desejamos o futuro, vivemos antecipa-
imaginadores. damente dele.
Há sonhos que alimentamos desde a infância, por isso, sonhar é
A ESPERANÇA ter propósitos. Não aqueles sonhos noturnos, inconscientes, mas os
Esperar não é desistir do sonho, mas querer equilibradamente. sonhos da vigília, quando estamos acordados e conscientes. Como
Espera-se pelo vir a ser das coisas ajudando o seu nascimento. En- diz Bloch, "espera-se pelo próprio desejo, até que ele se torne mais
quanto o "futuro não vem", espera-se fazendo a sua preparação no claro". É um sonho que nos leva para a frente, ao contrário do
230 I DE NTI DA DE E LUTA DE CLASSES
ADE MA A B üGD 231

sonho noturno, que nos faz contar de um outro jeito as coisas já no dia seguinte, voltará com ainda mais força, ânimo e disposição
contadas. Quem sonha conscientemente idealiza. para seguir o plano da sua criação.
O sonho é um desejo abstrato em busca do concreto. A mística Segundo um dito popular muito ilustrativo, "a esperança é a
invade esse abstrato para que ele se mantenha vivo e não sedes- última que morre". Quem morre, não tem mais esperança, pois
pedace, tal qual uma nuvem de fumaça, por qualquer distração. esta nos acompanha enquanto estivermos vivos. Ativos. Querer
Desejar é querer e querer é buscar. sem esperança é como pisar sobre as próprias ideias! Não porque
Esperança não é se apegar a coisas irrealizáveis. Tampouco é um as desprezamos, mas, sim, porque elas não têm força para ir além
modo de nos desviar das tarefas imediatas, entregando ao outro a dos nossos próprios pés.
responsabilidade que nos cabe. Ao contrário, as tarefas são a prova A mística é o ânimo que faz o corpo andar para que o querer
de que estamos caminhando em direção ao sonho, elas funcionam seja buscar e o buscar vire acontecer. Quem está em movimento
como os degraus de uma escada e a esperança é uma sensação bem não deixa morrer em si a esperança. É no movimento da história
real de estarmos um pouco adiante do nosso tempo cotidiano. que germinam as condições para que ela chegue onde pretende.
A mística, como força criativa, constrói os sonhos e incita as Se ela é mesmo a "última que morre", todo ser humano pode se
pessoas a saírem em busca da sua realização. Planejar aquilo que orgulhar de ter consigo, até o último momento, uma grande e fiel
está por fazer é calcular o pensar colocando-o em contato com a companheira.
sua realização.
A esperança não é uma ilusão, iludir-se é enganar-se. A espe- A PAIXÃO
rança é preparação, é ação que prepara o vir a ser, é participação, Toda vez que voltamos ao exemplo das crianças, percebemos
é investimento no projeto defendido. Quem tem esperança está que elas gastam na ação a energia da sua vitalidade natural e pro-
radiante, confiante no que virá, ainda que aquilo que se espera curam reabastecer-se na sua relação afetiva com a mãe. Quando
nunca se realize na sua totalidade. De certo modo, esperar, mais do sentem alguma dor, correm para ela na certeza de que ela não só
que buscar, é ficar atento, entrar em estado de atenção e permitir cuidará do ferimento, como protegerá o corpo todo. Quando
que a verdade nos visite e nós possamos recebê-la. sentem fome, frio ou algum desejo que, sozinhas, não conseguem
A mística, força da esperança, é essa disposição de estar atento realizar, sabem a quem se dirigir. É uma dependência favorável.
ao que pode advir e, ao mesmo tempo, querer o que já temos, como Quando queremos algo nos apaixonamos, portanto, a paixão
suficiente. Queremos o futuro, sem nos desligarmos do presente. é um sentimento difícil de domesticar. Às vezes, mesmo quando
Assim como o agricultor, que prepara a sua lavoura, ao mesmo não queremos, gostamos. O desejo de pertencer ao além de si,
tempo em que sai de si, por meio do pensamento, antevendo a ou de fazer com que este além nos pertença, é que nos faz reféns
colheita e o destino da produção, sente-se incomodado ao perce- desse querer.
ber que a claridade do dia está terminando e que ele vai precisar A vida é o limite extremo dessa relação. Há pessoas que mor-
interromper o seu trabalho. Queria mais um tempo presente, pelo rem por coisas aparentemente insignificantes, como é o caso de
menos mais algumas horas! Mas se satisfaz com a esperança de que, enfrentamentos entre duas torcidas organizadas, mas o grau de
232 I DENTID ADE E LUTA DE CLASSES
A DEM AR B oGo 233

importância desse risco não está no que se disputa, mas na paixão material/espiritual; espiritual entendido como quer Leonardo Boff,
que sentimos por aquilo que defendemos. O objeto é apenas o pois "espírito, em seu sentido originário, de que deriva a palavra
meio graças ao qual se desenvolve a paixão. espiritualidade, é todo o ser que respira. Portanto, é todo o ser que
Para os apaixonados, o amado não tem defeitos ou, se os têm, são vive, como o ser humano o animal e a plantà'. 175 É a força contida
ignorados. Não cabe à paixão mostrar as deficiências e as fraquezas, em toda a matéria que a faz transformar-se. A mística é a respiração
sua função é ser a força que empurra em direção ao objetivo. É essa da paixão e do prazer.
energia que o ser, individualmente, não consegue controlar: quando Este ganha amplitude quando a consciência transcende o
não quer pensar, pensa; quando não quer lembrar, lembra; quando querer particular e caminha em direção ao querer dos outros, seja
quer desistir, retorna; quando tenta fugir, não tem forças. É como no campo da justiça imediata, ou da transformação revolucionária
disse Luís de Camões: "É querer estar preso por vontade". da sociedade, seja na preocupação com a "respiração" da sua espé-
A paixão investe no prazer que lutamos para alcançar. Muitas cie ou com a respiração das outras espécies que a acompanham.
vezes, ela nos engana porque nem tudo que lhe diz respeito está no Desapaixonado é alguém que não se importa com a respiração
campo das ideias conscientes. Sob seu domínio, experimentamos dos outros.
coisas que nunca imaginávamos. Sob seu domínio, fazemos coisas Portanto, a paixão consciente ganha a forma e o conteúdo da
que só as próximas gerações poderão esclarecer e interpretar. Há causa política. Pertencer a uma coletividade é, hoje, uma carência
ações que, no presente, parecem loucura, mas que, no futuro, e uma necessidade, pois o capitalismo corrói as causas coletivas na
parecerão heroísmos. mesma medida em que privilegia o caráter egoísta dos seres sociais.
Eis porque podemos dizer que as paixões oscilam entre os A mística socialista reedifica as causas coletivas privilegiando a
sentimentos e a consciência. Quando ela se manifesta por um prática de valores coletivos como os da justiça e da igualdade. Ela
sentimento que busca o prazer individual numa relação humana está comprometida com a tarefa de forjar uma nova identidade.
particular, cumpre o papel de estreitar os laços afetivos. Quando As revoluções, de certo modo, são as paixões políticas dos
a paixão se manifesta pela consciência, fundamentada em ideias, povos, elas buscam representar o novo; nascimentos de sonhos
em valores e em razões, ela se torna opção de vida. Nesse caso, rebeldes. Pertencer à revolução é querer renascer junto com o mo-
mantemos o poder de escolha: a quem nos aliamos, com quem vimento histórico, ela é essa passagem obrigatória diferenciando
nos reunimos, para onde vamos, como vamos ocupar o tempo, dois lados: o antes e o depois.
o que vamos ler, que tipo de sociedade queremos ... Nesse caso, a A paixão revolucionária conserva nossa juventude interna e
paixão tem o papel de estreitar a afetividade política. nos leva a cuidar da aparência externa, pois queremos estar em
A afetividade infantil ganha maturidade no ser político adulto. forma, por dentro e por fora. A paixão consciente não é uma força
Agora, ao mesmo tempo que pedimos, retribuímos, porque esse cega; ao contrário, ela nos revela inúmeros aspectos que passavam
dar significa ganhar, e não perder. despercebidos.
A mística está presente nos dois sentidos. No concreto/abs-
trato, porque os objetos não são uma coisa só, mas, também, no 175
BOFF, L. Ecologia, mundialização, espiritualidade, p. 40.
234 I DEN TI DADE E LUTA DE CLASSES
A DEMAR 8 0GO 235

Quando nos apaixonamos pela transformação, transformamo-


Ainda há tempo! O século 21 é apenas uma criança que, tendo
nos no próprio sentido dela; tornamo-nos ela. Comemos, bebe-
brincado muito intensamente no século 20, gastou suas energias e
mos, vestimos, estudamos, trabalhamos, lutamos e amamos para
dorme para a revolução. Mas vai acordar e não demora! Acordará
ela. Eis porque fazer política revolucionária é uma tarefa afetiva.
com um vigor novo, que ninguém conseguirá deter. Sairá das
Todo nosso esforço coerente visa cativar as multidões, para que
casas, tomará os campos e as ruas, e irá brincar com os objetos
também se apaixonem.
do capital do mesmo modo como brincava antes, com os leões e
Na vida militante, a mística presa apenas à razão, ou ao racio-
as girafas que, apesar de toda ferocidade, revelavam-se miniaturas
cínio ideológico, fenece. A mística precisa da arte, da beleza, da
que cabiam na palma da mão.
afetividade e do prazer. A imaginação, a esperança e a paixão são
Sejamos nós mesmos, os arquitetos e as arquitetas da felicidade
seus pilares de sustentação.
coletiva deste novo século.
Ser militante do século 21 é não se descuidar da formação
constante do caráter. É nele que o capital investe para manter em
marcha a contrarrevolução. Como diz Luiz Bicca, em seu belo
livro Questões persistentes,
Incrementa-se, assim, aquela tendência histórica para a fluidificaçáo de
qualquer vida ética que se pudesse considerar substancial: corrói-se a con-
· mutuo
fiança, a lealda de, o compromisso , (....
) 176
É a perda da humanização.
~ Por isso, não podemos olhar o futuro com descrença nem com
os olhos semiabertos. A velocidade com que nos aproximamos
dele é a mesma velocidade com que ele se afasta de nós, fazendo o
atual ser cada vez mais rapidamente transitório. Parece faltar tempo
para tudo, o supérfluo se sobrepôs ao necessário, a inutilidade da
civilização parece prestes a vencer.
A militância do século 21, homens e mulheres, precisam ser
aqueles que se preocupam com o que fazem, com o que dizem
e com o que sonham. Estão atentos ao próprio comportamento
enquanto mantém o socialismo como sua grande referência.
Sem o socialismo, nem haverá futuro, pois os interesses capi-
talistas querem nos arrastar para dentro do seu próprio fracasso .

176
BICCA, L. Questões persistentes, p. 22.
A AFETIVIDADE:
UM PRINCÍPIO REVOLUCIONÁRIO

NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE, na teoria da organização política da


classe trabalhadora, a afetividade aparece como um princípio con-
creto importantíssimo para garantir outro princípio fundamental:
a unidade política e de ação de seus membros. Ela, a partir da base
do entendimento político estabelecido, produz um elo de ligação
entre as pessoas e fortalece a prática de valores como o companhei-
rismo, a lealdade e a paixão pela causa revolucionária. Isso porque
a condição para sermos revolucionários, homens e mulheres, é que
não sejamos individualistas; nossa mútua dependência é que torna
possível os atos portadores da revolução.
Muitos pensam que os que lutam pelas transformações sociais
são insensíveis, frios, antissentimentais, pessoas rígidas, que me-
nosprezam a afetividade, familiar comunitária ou de classe. Ledo
engano! Como percebeu Che Guevara, ou o revolucionário se guia
por grandes sentimentos de amor, 177 ou nunca haverá revolução.
Como diz também Leonardo Boff:
razão não é nem o primeiro, nem o último momento da existência. Nós
somos também afetividade (pathos), desejo (eros), paixão, comoção, co-
municação e atenção para a voz da natureza que fala em nós (daimon). 178
Nenhum revolucionário moderno encarnou melhor o valor da
afetividade do que Che em inúmeras dimensões da sua vida, seja
no trabalho voluntário; na guerrilha, com armas nas mãos; seja

m GUEVARA, E. O socialismo humanista, p. 36.


178
BOFF. L. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, pp. 28-29.
238 I DENTIDADE E LUTA DE CLASSES A DEMAR B oGo 239

na carta de despedida aos filhos; seja no treinamento militar; seja Ela não pode ser pacífica porque, obriga a romper com a cultura
no combate aos inimigos da revolução etc. estabelecida pela falsificação e tem de reinventar as relações sociais
A afetividade está na essência do ser humano, o seu oposto é o e morais. É negar pela violência as causas que geram a violência.
desprezo e a rejeição. Ela se manifesta de mil maneiras: no olhar, no O rompimento com a velha cultura de dominação exige um
calar, no ouvir, no pensar, no tocar e no fazer. A natureza humana novo sentir e um novo pensar. Sartre nos disse: "( ... ) o primeiro
cria formas diferentes de expressão, em que cada ser se amplia e passo de uma filosofia deve ser de expulsar as coisas da consciência
se torna parte da consciência coletiva. e restabelecer a verdadeira relação dela com o mundo( ... )". 180 Logo,
Uma revolução acontece quando os diferentes tipos de forças se antes de pôr é preciso se preocupar em tirar o que está encalacrado
sintonizam e se movem de acordo com os princípios estabelecidos. na consciência em forma de alienação, que barbariza cada vez mais
Mas, acima de tudo porque quem a edifica não trai, não se corrompe os seres sociais.
e cuida de seus semelhantes que andam nas mesmas fileiras. Assim, a O confronto com as velhas ideias deformadas permite abrir
afetividade se agrega à ética revolucionária, que se sustenta enquanto espaço para a formação de uma nova consciência numa sequência
a política for revolucionária. Quando a política perde a direção, a ética de negações na intimidade da unidade e luta dos contrários. Esse
perde o juízo e a afetividade se desmancha em confrontos. novo existir passa justamente por onde estão calcados os interesses
Uma revolução é a combinação de ações e relações, ideias e da classe dominante, é o confronto entre o dominado de hoje e
sentimentos. Não pode haver uma revolução sem o uso da força. o dominante para se tornar o novo dominante de amanhã com
A mudança é um movimento de forças que se enfrentam, mas o outra qualidade. Ao mexer com esses interesses há reações, tanto
sujeito da revolução não é composto somente de força física, carrega das pessoas que serão forçadas a "mudarem seu estilo de vidà' e não
também em si imaginações, sonhos, desejos e paixões. aceitam cordialmente, quanto pelo próprio capital, que resistirá
Houve, em épocas passadas, e ainda há, os que defendem a "revo- em mudar de natureza e induzirá os seus representantes a reagi-
lução passivà' pela adoção de táticas não agressivas, como o processo rem violentamente. Então, as forças revolucionárias têm de agir
eleitoral ou a conciliação, negando o confronto direto. Os que assim energicamente, como o cirurgião que age sobre o paciente para
se posicionam, são revisionistas e cumprem o mesmo papel dos que se ajudá-lo a eliminar a causa da dor. Após eliminá-la, vem o alívio.
apegam à tese pós-moderna da individualidade para explicar as relações É, por assim dizer, um lado da revolução, ao qual se dedicou
na sociedade. O que move a sociedade capitalista são as leis violentadoras muito espaço nas discussões ao longo dos séculos. Mas há outro,
do capital e não a suposta liberdade pessoal de investir. que, embora nem sempre tratado teoricamente, esteve sempre
Lenin, ao formular a teoria da revolução russa, disse: presente, na forma da afetividade; sem ela não é possível construir
Uma revolução popular é um processo incrivelmente complicado e dolo- a unidade política entre as pessoas e com as forças revolucionárias.
roso, de morte da velha ordem social e nascimento da nova ordem social, Temos exemplos de todos os tipos na história, desde os enfrenta-
do estilo de vida de dezenas de milhões de homens. 179 mentas mais duros, até a paixão, o respeito e o companheirismo,

180
179
GOMES, O. Lenin e a Revolução Russa, p. 59. MOUTINHO, L. D. S. Sartre, existencialismo e liberdade, p. 96.
240 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES
ADE MAR Bo Go 241

que alinhou os passos de nossos antepassados em direção ao Quando estudamos a trajetória de Marx e Engels, sentimos uma
socialismo. O contrário da afetividade sempre foi o sectarismo, sadia inveja da relação entre os dois grandes elaboradores das mais
que dividiu e impediu o fortalecimento dos valores e da ética profundas críticas ao capitalismo e que juntos formularam a teoria
revolucionária. mais avançada do socialismo. Encontramos neles exemplos de uma
Leandro Konder expressa bem o que representou a prática profunda amizade, admiração, solidariedade, cuidado e atenção,
partidária e a luta interna entre grupos, tendências e facções no seio principalmente por parte Engels, que, prontamente, atendia Marx
das próprias forças revolucionárias, quando analisou a trajetória da todas as vezes que ele era banido de um país devido as suas convicções
Segunda Internacional, criada em 1889, na Europa. Disse: revolucionárias. Após a morte de Marx, Engels confidenciou a um
O clima de otimismo durou até 1914, quando começou a Primeira amigo: "Aquilo que todos nós somos, somo-lo por ele; e aquilo que
Guerra Mundial. Os socialistas se dividiram, as razões nacionais se o movimento de hoje é, é-o pela atividade teórica e prática dele; sem
mostraram mais fortes que as razões de classe: os dirigentes da social- ele ainda continuávamos a estar na porcaria da confusão". 183 Vemos
democracia alemã apoiaram a burguesia da Alemanha e os dirigentes que a lealdade política e a afetividade estão nas raízes do nascimento
da social-democracia francesa apoiaram a burguesia da França. Marx do marxismo, ignorar isso é o mesmo que tentar fazer uma criança
havia terminado seu famoso Manifesto do Partido Comunista, de 1848, dar os primeiros passos com uma perna só.
com a recomendação: "Proletários de todos os países, uni-vos!", mas, A solidariedade era uma necessidade de sobrevivência de todos
em 1914, os proletários alemães e franceses passaram a se matar uns aos os exilados no período que antecedeu a criação da Primeira Asso-
outros, de armas na mão. 181 ciação Internacional em 1864.
As discordâncias no campo das ideias levaram os trabalhadores Nasceu a ideia de criar essa Associação em um certo banquete celebrado
para o campo de batalhas, obscurecendo a identidade de classe. em Londres, em 5 de agosto de 1862, por operários de diversas nações
Não era para ser esse o destino da união revolucionária dos que atenderam a Exposição Universal; um banquete de confraternização
trabalhadores do mundo todo. Aqui em nosso país ainda é muito e para demonstrar a gratuidade aos operários londrinenses pela sua nobre
recente a imagem das disputas nas eleições sindicais e nos diretórios hospitalidade. 184
nacionais e estaduais de alguns partidos políticos. O sectarismo A hospitalidade, sem dúvida alguma, é a expressão da afetivi-
tornou-se um desvio que levou a morte da paixão pela revolução, dade humana que recolhe o desgarrado de sua terra para atendê-lo
pois é ele uma doença incurável. Como disse Paulo Freire,"( ... ) O em sua sobrevivência. A divergência de ideias seria o primeiro obs-
sectário, seja de direita ou de esquerda, se põe diante da história táculo para que eles, na época, não se reunissem para confraternizar
como seu único fazedor. Como seu proprietário( ... ) O povo não e retribuir com cordialidade e gentileza aquele apreço. Sem isso,
conta nem pesa para o sectário (... )" .182 Muitas vezes não contam possivelmente, a ideia da Internacional teria demorado mais a
nem os companheiros e nem as companheiras. surgir ou nem sequer teria surgido.

181
KONDER, L. História das ideias socialistas no Brasil, pp. 20-21. 183
OLIVEIRA, J. (trad.) Friedrich Engels, p. 410.
182
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade, pp. 51-52. 184
MORATO, J. J. El partido socialista obrero, p. 13.
ADEM A R BOGO 243
242 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES

A unidade política depende da unidade das ideias e, de ambas, É a conexão entre as identidades, que faz com que elas se
depende a unidade nas ações. Na maioria das vezes que as ideias entra- conjuguem sem desaparecerem, como os dois polos positivo e
ram em confronto, levaram ao rompimento as amizades e as relações negativo de um imã.
fraternas chegando ao confronto fatal, como foi o caso da morte de A interdependência é, de certa forma, a cumplicidade necessária
Leon Trotsky, assassinado a mando de Stalin, em 1940, no México. que a prática política precisa sem desconsiderar a vida particular.
Ambos tinham sido heroicos lutadores da revolução Russa e, lá mesmo, Uma entra na outra e se estimulam e se combatem em caso de
se estabeleceu o germe das divergências entre "comunistas" e "trotskis- desarmonia.
tas" no mundo todo; após quase um século, ainda permanecem os Vamos encontrar também em Gramsci essa preocupação com
respingos nas consciências e nas propostas organizativas, quando as a afetividade e o respeito. Mesmo com aqueles que têm ideias
razões dos encontros e desencontros são completamente diferentes. diferentes, deve-se, no seu entender, verificá-las de modo leal e
A quebra da confiança é também a perda da identidade no projeto. amistoso, pois "a amizade não pode ser separada da verdade e de
Embora os conflitos e as tensões nos fazem crescer, necessi- todas as asperezas que a verdade implicà'. 186
tamos tomar cuidado para que eles não se tornem rompimentos Da revolução vietnamita podemos-extrair muitos exemplos.
se os interesses são idênticos. Querer o bem é bem-querer. Saber Ho Chi-minh que foi uma das grandes lideranças, em um de seus
que somos parte de um projeto, mas em última instância, parte discursos destacou a importância da questão do afeto:
uns dos outros, no sentido de que ideias e sentimentos passam de Diante das massas, não é simplesmente escrevendo a palavra "comunista''

uma consciência para outra e costuram a unidade. na testa que nos faremos amar( ... ) As massas só dão afeto àqueles que são

Rosa Luxemburgo nunca se casou com o suíço Leo Jogiches, dignos dele por sua conduta e por suas virtudes. É preciso que nós mesmos

mas viveu com ele um longo período afetivo. Na carta escrita a demos o exemplo, se queremos conduzir o povo. Muitos de nossos cama-

ele, em 3 de julho de 1900, destacou: radas têm se mostrado dignos, mas ainda há alguns, cujos costumes são
Nós "vivemos" constantemente uma vida interior. Isso significa que nos mo- criticáveis. O Partido tem o dever de ajudá-los a se corrigirem. 187
dificamos e crescemos, o que cria uma dissociação interna, um desequilíbrio, A crítica e a autocrítica, então, são o remédio para que se
uma desarmonia entre algumas partes de nossas almas. Por conseguinte, elimine os germes do divisionismo nas fileiras das organizações.
o ser interno precisa ser constantemente reexaminado, reajustado, harmo- Dividir as forças é enfraquecer a potencialidade da luta para al-
nizado. É preciso trabalhar constantemente sobre si mesmo para evitar cançar os objetivos.
afundar-se num autoconsumo espiritual. Mas, para não perder o sentido Na revolução de Moçambique, na década de 1970, Samora
maior da existência, que acredito seja uma vida voltada para o exterior, ação Machel, em uma conferência para mulheres, assim se expressou:
construtiva, trabalho criativo, necessita-se estar sob o controle de outro ser (... ) Para nós o amor só pode existir entre pessoas livres e iguais, que possuem
humano. Esse ser humano precisa ser íntimo, compreensivo e ao mesmo um ideal de engajamento comum, ao serviço das massas e da Revolução.
185
tempo separado do eu que busca a harmonia.
186
GRAMSCI, A. Escritos políticos, p. 250.
187
185 LUXEMBURGO, R. Camarada e amante. Cartas de Rosa Luxemburgo a Leo Jogjches, p. 125. ALVAREZ , M . E. (org.) Ho Chi-minh, p. 148.
244 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES
ADEM AR BoGo 245

É sobre essa base que se edifica a identidade moral e afetiva que constitui É evidente que há momentos em que os rompimentos são
o amor. Precisamos, pois, descobrir essa nova dimensão, até hoje desco- inevitáveis, mas aí não é por falta de afetividade, é que as ideias
nhecida no nosso país. 188 se tornaram inconciliáveis para permanecerem juntas na mesma
A sociedade socialista não só se opõe à sociedade capitalista prática. A "ternura" de que falou Che não significa poupar do
nos aspectos econômicos estruturais, mas também no desmonte castigo o inimigo.
de todas as relações estabelecidas pela cultura burguesa. Por vezes, não há a disputa de ideias, mas desvio de caráter
Quando Alexandra Kollontai, analisou a família e o Estado de pessoas que preferem formar grupos por afinidade de certos
socialista, elevou a compreensão da afetividade acima das relações hábitos e passam a edificar certos sustentáculos que impossibilite
sexuais entre homens e mulheres, mas que se universalizaria no qualquer tentativa de desarticular seus privilégios. Agem como
sentido de que as responsabilidades seriam também sociais. grupos fechados, facções, utilizando-se da força da organização
(... ) Essas novas relações assegurarão à humanidade todos os prazeres do para se abastecerem. Isso nada tem de rebeldia política, os vícios
amor livre, enobrecido pela verdadeira igualdade social dos sexos, prazeres tomaram o lugar da prática política, ou, como se poderia dizer, é
que eram ignorados na sociedade mercantil do regime capitalista. 189 a política por outros meios, que não discute, ameaça; não planeja,
Nessa perspectiva, a afetividade ganha novas dimensões, no inventa; não dialoga, impõe.
sentido de demonstrar que uma revolução não tem por objetivo Nos escritos de Che Guevara, é uma constante a preocupação
apenas a justiça social pela distribuição dos bens econômicos, com o ser humano e com as relações entre os militantes. Numa
mas principalmente as mudanças de posturas para que o prazer passagem, ele fez referência a Fidel para fortalecer a própria ideia
seja democratizado, ele é, então, o princípio e o fim da vida feliz. de que o marxista não é uma máquina que funciona com controle
Mas não é qualquer prazer, como disse Epicuro, como pensam os remoto. Relata que Fidel assim se expressou em uma intervenção:
intemperantes, mas o prazer de nos acharmos livres do sofrimento Quem disse que o marxismo é uma renúncia aos sentimentos humanos, ao
do corpo e das perturbações da consciência. 190 Lutar é um prazer, companheirismo, ao amor ao companheiro, ao respeito ao companheiro,
não um martírio, pois se sabe que é a única forma de ver nascer a a consideração ao companheiro? Quem disse que o marxismo é não ter
sociedade socialista. alma, não ter sentimentos? Pois se foi precisamente o amor ao homem que
Quando Olga, em sua carta de despedida à Anita e a Luiz Carlos engendrou o marxismo; foi o amor ao homem, à humanidade, ao desejo de
Prestes, afirmou: "Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do combater a miséria, a injustiça, o martírio e toda exploração sofrida pelo
mundo", 191 estava reafirmando o seu compromisso político e afetivo proletariado que fez, da mente de Karl Marx, surgir o marxismo (... ) 192
com a humanidade. Somente a grandeza de Che seria capaz de captar em Fidel essa
profunda referência à essência humana. E concluiu o raciocínio
com o pensamento de Martí dizendo: "Todo homem verdadeiro
188 MACHEL, S. "A libertação da mulher é uma necessidade da revolução, garantia da sua
continuidade, condição do seu triunfo", p. 29. deve receber no rosto o golpe dado no rosto de qualquer homem".
189 KOLLONTAI, A. A família e o Estado socialista.
190 MEWALDT, J. Pemamentos de Epicuro.
192
19 1
MORAIS, F. Olga, p. 294. GUEVARA, E. Textos revolucionários, p. 60.
246 I DENTID ADE E LU TA DE CLASS ES
A DEM AR B oGo 247

Para concluir, podemos resgatar uma passagem de Nelson Chegamos à mesma conclusão de Che Guevara: "Nós, so-
Mandela, o incansável lutador contra o apartheid na África do Sul, cialistas, somos mais livres porque somos mais perfeitos; somos
quando passou quase 3 décadas na cadeia por defender seus ideais. mais perfeitos porque somos mais livres". 194 Livres da propriedade
Teve ele a oportunidade de receber na prisão sua filha mais nova, privada, do capital, do Estado capitalista, da cultura e da moral
Zeni, que se casara com o príncipe Thumbumuzi, da Suazilândia, burguesa, dos valores dessa sociedade. Então, para edificarmos os
acompanhada do marido e da filha ainda sem nome: homens e as mulheres do século 21, verdadeiramente humanos e
O momento em que eles entraram na sala foi realmente maravilhoso. Eu
emancipados, é um pulo.
me pus de pé e, quando me viu, Zeni praticamente atirou a filhinha para
É fundamental compreender que a lei da unidade e luta dos
o marido e atravessou a sala correndo para me abraçar. Eu não abraçava a
contrários não está fora desta realidade subjetiva. Ao mesmo tempo
minha filha desde que ela era pouco mais velha que a própria filha. Abraçar
em que convivemos em uma sociedade que induz para o individua-
de repente a minha filha já crescida foi uma sensação estonteante, como se
lismo, a arrogância e a opressão de um ser em relação ao outro,
o tempo se houvesse acelerado numa história de ficção científica. Depois
temos que desenvolver o comportamento contrário, esforçando-
abracei o meu novo filho e ele me deu aquela netinha m inúscula para
nos para que, em todos os lugares, sejam reafirmados através da
segurar; não a soltei o tempo todo que durou a visita. Segurar um bebê
prática, os valores opostos, sem nunca deixar de levar em frente a
recém-nascido tão suave e vulnerável com as minhas mãos ásperas, mãos luta de classes com toda a radicalidade que ela exige ou tratar os
que por tanto tempo seguraram só picaretas e pás, foi uma alegria imensa. desvios nas próprias fileiras com o máximo de seriedade
Acho que nunca houve homem mais satisfeito por segurar um bebê do
que eu naquele dia.
A visita tinha uma finalidade mais oficial: eu deveria escolher um nome para
a criança. É costume o avô escolher um nome e escolhi Zaziwe, que significa
Esperança. Esse nome guarda um significado especial para mim, pois em
todos os anos que passei na prisão a esperança jamais me havia abandonado,
e dali em diante é que nunca mais me abandonaria. Eu estava convicto de
que aquela criança seria parte da nova geração de sul-africanos para os quais
o apartheid seria uma lembrança distante: era esse o meu sonho. 193
Vemos, então, que a afetividade se constitui parte da cultura
da revolução. Sem ela a vida de militantes pereceria por falta de
sensibilidade. O poder que nasce com a revolução não é ingrato e
insensível; tem apenas a rudeza necessária para que saibamos que
ele precisa ser aperfeiçoado todos os dias.

19 3 MANDELA, N . Longo caminho para a liberdade: autobiografia, p. 404. 194


GUEVARA, E. Textos revoluciondrios, p. 107.
CONCLUSÃO

LEON NIKOLAIEVTCH TOLSTOI, escritor russo, falecido em 1910,


afirmou na abertura de seu livro, Ana Karenina, que "Todas as
famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada
uma a sua maneira . ".
Vão longe os tempos em que as famílias camponesas se pareciam
na sua pacata convivência, quando os filhos se assemelhavam até
nos vestuários, pois, no intuito de economizar os poucos recur-
sos, os pais compravam as peças de tecidos inteiras e as mães as
desmanchavam em camisas, calças e vestidos.
Havia um campo sonhado que se reproduzia através da sequên-
cia das gerações, que aprendiam os afazeres pela participação e
observação do trabalho dos mais velhos. Cada agricultor sentia-se
o próprio Utopus, quando tomou a ilha imaginária e deu a ela o
nome de "utopià', tornando-se dela o rei.
Os pequenos agricultores europeus trazidos para substituírem
a força de trabalho escrava tinham a Cocanha 195 como referência de
um lugar de fartura e fortuna.
Por sua vez, havia e há cada vez mais, com maior vigor, um
campo maldito. ''A imagem-Brasil como o país da Cocanha (... )
era apenas um resto de memória e um modo jocoso de se referir a
um desconhecido que amedrontava (... )" 196 Isso porque o trabalho
pesado, as distâncias dos recursos e acesso aos serviços públicos de

195
MENEGAT, M. O olho da barbárie.
196
Idem, p. 333.
ADEM AR B OGO 251
250 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES

saúde por exemplo, levavam a que os camponeses cuidassem dos Na ansiedade de se obter as mercadorias, promoções ou
seus próprios ferimentos, que os fazia penar meses e meses com qualquer benefício que seja, os aliados de classe passam a ser um
espinhos e lascas de paus encravados profundamente no corpo, ou estorvo, porque o capital induz a vencer sozinhos. Buscar sozinhos
a enterrarem ainda jovens as esposas que morriam em consequência e usufruir sozinhos.
dos partos mal concluídos. A felicidade coletiva se estrutura sobre a base da justiça e solida-
Mas isso em nada se parecia com a vida que levavam antes riedade que há em uma sociedade; a infelicidade, sobre as bases do
de serem "extraditadas" as famílias, "expulsas da pátrià' para não individualismo, é nele que investe o mercado nos tempos atuais.
morrerem de fome, como descreve Mário Maestri: As identidades históricas, ao serem atacadas, levam consigo o
A pelagra, conhecida na península desde os anos 1750, era uma síntese da aprendizado histórico e deixam em seu lugar o desequilíbrio. O aque-
crescente miséria rural italiana. Em 1879, havia mais de 70 mil doentes na cimento do planeta não é só um anúncio das mudanças que virão,
Lombardia e no Vêneto. Em 1881 , os enfermos no Vêneto superavam os mas também uma demonstração de que as ações irresponsáveis estão
55 mil. Causando sequelas cutâneas, gasttointestinais e nervosas, a doença provocando profundas e violentas reações na biosfera. A causa da in-
devia-se a uma dieta baseada em cereais e paupérrima proteína animal e felicidade futura aparentemente virá do céu. É o retorno, de uma só
vitaminas. 197 vez, do pagamento pelos gases enviados há séculos aqui da terra.
Essa descrição confirma que o crime da baixa estatura, que É claro que isso nada tem de misticismo ou de vingança divi-
persegue os agricultores até hoje como uma maldição, tem origem na. O que ocorrerá é em razão do excesso de capacidade humana.
nos campos europeus, e a dos escravos, tem origem nos canaviais O excesso de civilização, não é retórica ou "conversa mole", de-
brasileiros. Isso porque, para facilitar os negócios, as pessoas mais monstra que a liberdade de produção e de mercado, tão elogiadas
belas e robustas eram presas e arrastadas para os navios. Teremos pelos capitalistas, produz o que é necessário e também o que não
ainda de cobrar do capitalismo a parte da genética e da beleza que é. A verdadeira democracia tem que ter as duas vias, a de ida e a
nos roubaram as gerações esquálidas de negros e brancos. de volta. O capital só conhece a de ida; ele só aprendeu a ir para
Na atualidade, o capital tem se encarregado de levar a felicidade frente. E tudo aquilo que não se renova morre ou acaba. É o preço
para todas as pessoas, faz com que "os restos de memória" sejam cobrado pela civilização.
desencorajados a se manifestar, sob pena de parecerem ultrapassa- Então, as velhas expressões como as que as mães orientavam as
dos. É o querer encontrar-se com as mercadorias que determina a crianças quando saiam ao ar livre para brincar: "Coloque o chapéu
forma de se relacionar das pessoas. Por isso, o mercado vai de casa para não queimar os miolos", sinal de que o Sol estava quente,
em casa para, na intimidade familiar, uns pressionarem os outros se tornará uma medida de autodefesa permanente também dos
para adquirirem eletrodomésticos, máquinas agrícolas, roupas, adultos. O Sol, o astro da energia e da claridade, agora enraivecido,
perfumes, agrotóxicos e outras quinquilharias. será aos poucos transformado no inimigo número um das pessoas,
impedindo que elas se movam em certas horas do dia; com isso
ganharão as empresas de cosméticos, pois ampliarão a produção
197 MAESTRI, M. Os senhores da serra. A colonização italiana no Rio Grande do Sul (1875-
1914), pp. 3 1-32.
de cremes protetores de pele.
252 IDENTIDADE E LUTA DE CLASS ES ADE MAR BoG o 253

É certa a exaustão dos bens naturais se os padrões do progresso A humanidade terá de se sobrepor à propriedade. A identidade
continuarem a ser pensados pelo capital._Crescimento econômico a futura terá, no cheiro e na cor, a expressão do desejo de um mundo
qualquer custo significa mais violência contra a natureza, pois é dela em que as bandeiras vermelhas significarão igualdade; e a força não
que se tira a matéria-prima para transformá-la em mercadorias. será usada para violentar, mas para proteger.
A desconstrução se torna a identidade do modelo econômico, A agricultura terá que ser o cultivo da cultura e das tradições,
está ocorrendo em todos os sentidos, há inventos e descobertas que em que a maldição do trabalho árduo será substituído pelo ofere-
vêm para ajudar, mas há, também, grande parte que prejudica e cimento prazeroso do alimento para todas as bocas.
compromete o futtiro da humanidade. A mão humana não se levantará a não ser para saudar os que vão e
A pretensa "economia de mercado" e a "liberdade humanà' a vem, preocupados em tecer o encontro harmonioso com a história.
qualquer preço precisam ser questionadas. Tem direito à liberdade No campo, há espaço para tudo, mas é preciso pensar em
um ser que faz os seus inventos e os coloca a serviço do capital respeitá-lo antes de tocá-lo. Nem tudo o que parece excesso o é de
para beneficiar e satisfazer os interesses de um grupo? Contaminar verdade. As grandes florestas não podem ser vistas como desperdí-
e poluir o espaço quando se coloca em risco a vida de milhões de cio de espaço, a continuidade da vida é a convivência harmoniosa
pessoas - isso significa liberdade? Individualizam-se os investimen- entre os cinco reinos descritos no primeiro capítulo.
tos e coletivizam-se as consequências. Educar as novas gerações é sempre começar de novo o caminho
Vivemos tempos de turbulências, guerras e catástrofes ambien- da preservação e do cuidado com quem deve continuar levando
tais que se misturam e levam o desassossego, o medo e a morte em frente a história da humanidade.
para as civilizações. Esopo ao descrever o diálogo de duas rãs, passou-nos o sentido
Há por sua vez sinais de reações que nos alentam. As formas da precaução.
de consciência se interligam e se complementam no aprendizado. Duas rás viviam num pântano. Mas no verão o pântano secou e elas foram
Economia e ecologia começam a disputar espaço nas discussões. A procurar outro lugar para morar. Chegaram perto de um poço. Uma disse:
técnica sem ética passa a ser questionada por aqueles que se julgam Parece um lugar gostoso e úmido. Vamos pular e fazer nossa casa. Mas a
afetados. Trabalho e mercado entram em conflito, pois há setores outra retrucou: Vamos com calma amiga. Se este poço secar, como vamos
em crise por terem produzido demais. E, por fim, presente e futuro pular para fora dele?
conflitam nas mesmas consciências, interrogando-se se haverá um É, pois, a pergunta que fica como conclusão. Embora os cien-
sem controlar o outro. tistas e os capitalistas busquem alucinadamente vida em outros
A prepotência do capital que já não leva progresso algum, planetas, no intuito de se mudarem para lá caso fique inviável
apenas se reproduz para si próprio, dá sinais de incompatibilidade viver aqui, para a grande maioria da humanidade não há para onde
com o crescimento populacional. Ele provoca a violência social pular. Portanto, precisamos cuidar para que o poço do universo
pela acumulação e não consegue desmobilizá-la. A barbárie é um terrestre não seque.
dos dois trilhos do progresso capitalista: aonde vai o trilho da A utopia do socialismo deve ser recolocada com urgência no
acumulação, vai também o da desintegração social. imaginário social. O capitalismo nada mais tem a oferecer como
254 IDE NTI DADE E LU TA DE CLASS ES

benefícios para a sociedade; derrotá-lo é a parte que nos toca na


história para que as futuras gerações tenham alguma herança de
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A mística que incendiou as paixões dos movimentos revolucio-
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nos corações e nas consciências das pessoas que, mesmo pelo senso
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levará ao precipício da destruição.
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"dissolve" a identidade e a tradição da
cultura camponesa, traz em si o seu
contrário, ou seja, a possibilidade de
os camponeses se organizarem e se
constituírem em classe, deixando de
ser indivíduos isolados e tendo em seu
horizonte não apenas a resistência para
manter o seu modo de vida ameaçado,
mas também um projeto de ruptura
e transformação da lógica do capital,
perspectiva essa que só terá êxito se
levada à frente junto com o proletariado
e as massas populares no confronto
direto contra as forças da ordem
dominante.
O movimento de organização política
das forças sociais traz consigo a
necessidade de se criar uma identidade
de classe, que tenha uma nova
militância, com capacidade de manter
a unidade política e de ação por meio
da prática de valores, a mística e a
afetividade. Isso deve servir para se
contrapor ao referencial do "cabo
eleitoral", ou dos " bons administradores
e colaboradores" da ordem estabelecida,
vistos como o suprassumo do momento.
Ao contrário, a militância do século
21 deve forjar em si, no processo de
luta e na recuperação da memória
revolucionária dos que nos antecederam,
a verdadeira identidade dos homens e
mulheres que queremos que existam no
futuro.
Identidade e luta de classes é uma
contribuição para o avanço no
entendimento de que a identidade está
no movimento das contradições presente
em todas as coisas, mas, acima de
tudo, na luta de classes, a força motriz
da história, em que a classe explorada
e dominada luta para tomar o lugar da
classe dominante e tornar-se, daí em
diante, democraticamente dominante.
As lutas populares ou sindicais se constituem na
escola primária da luta de classes. Elas, por serem
abertas, têm a facilidade de incluir milhares de
pessoas que ainda possuem pouca experiência e
baixo nível de consciência. Ao lutar, a unidade política
ganha forma e em torno das reivindicações imediatas
se estabelece a identidade do movimento.
A identidade revolucionária virá na medida em que o
movimento das contradições gerais apontarem para a
revolução. Logo, todos os esforços empreendidos são
como pedras lançadas contra os mesmos inimigos.
Éo momento em que a classe se amplia e o projeto
se torna consciente, ao alcance da mão de todos os
sujeitos que lutam.

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