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M. Dobb, R. Hilton, E. Hobsbawm ET AL. (2004).

A transição do feudalismo para o


capitalismo. 5ª edição, Tradução: Isabel Didonnet, , Rio de Janeiro: Paz e Terra, ISBN 85-
219-0447-9.

https://blogdorosuca.files.wordpress.com/2011/04/maurice-dobby-outros-a-
transic3a7c3a3o-do-feudalismo-para-o-capitalismo.pdf

Do feudalismo para o capitalismo


Eric Hobsbawm

Dos vários estágios do desenvolvimento histórico relacionados por Marx no


Prefácio de The critique of political economy — os modos de produção "asiático, o
antigo, o feudal e o burguês moderno", o feudal e o capitalista foram aceitos sem
problemas sérios, enquanto a existência ou universalidade dos outros dois tem
sido contestada ou negada.

Por outro lado, o problema da transição do feudalismo para o capitalismo


provavelmente deu origem a discussões marxistas mais numerosas do que
qualquer outro relacionamento com a periodização da história mundial. Na década
de 1950 ocorreu o conhecido debate internacional sobre esta questão, em que
tomaram parte Paul Sweezy, Maurice Dobb, H. K. Takahashi, Christopher Hill e
Rodney Hilton (suplementado por intervenções do falecido Georges Lefebvre, A.
Soboul e Giuliano Procacci). Na mesma década teve lugar na URSS uma
discussão animada mas inconcludente sobre a "lei fundamental do feudalismo",
isto é, sobre o mecanismo que necessariamente leva o feudalismo a ser
substituído pelo capitalismo, assim como a tendência histórica da acumulação de
capital, na análise de Marx, leva o capitalismo à ruína.1 Sem dúvida houve outros
debates semelhantes, particularmente em países asiáticos, dos quais infelizmente
não tenho conhecimento. O objetivo desta nota não é dar mais outra resposta às
perguntas sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, mas encaixá-la na
discussão mais geral sobre os estágios do desenvolvimento social, reaberta por
Marxism Today. Talvez a melhor maneira de fazê-lo seja apresentar algumas
proposições para debate.

1) A primeira diz respeito à universalidade do feudalismo. Como Joan Simon


expôs em Marxism Today, de junho de 1962, ao resumir a reunião de um
dia organizada pela revista e pelo Grupo de História do Partido Comunista a
fim de estudar o assunto, a tendência geral da discussão marxista nas
últimas décadas é no sentido da ampliação do âmbito do "feudalismo", a fim

1
Tanto quanto eu saiba, esse debate não foi divulgado em inglês, e não parece refletir -se no
recente Fundamentais of Marxism-Leninism, editado por O. Kuusinen.
de abranger formas sociais anteriormente classificadas como comunais-
primitivas, asiáticas etc.

Na prática, isso quer dizer que "feudalismo", tendo se tornado numa


espécie de herdeiro de resíduos, agora se estende para cobrir uma
vasta área — desde as sociedades primitivas até o triunfo do
capitalismo, o que em alguns países ocorreu neste século — e desde
a China até a África ocidental, talvez até o México (Marxism Today,
1962, p. 184.)

Sem concordar necessariamente que o atual vasto âmbito de "feudalismo"


esteja inteiramente justificado, é claro que se trata de uma formação social
muitíssimo difundida. Na verdade, a forma específica de feudalismo varia
bastante. O mais próximo paralelo da versão européia integral sem dúvida é o
encontrado no Japão — as semelhanças são extraordinárias — enquanto em
outras áreas o paralelismo é menos acentuado, e em outras ainda os
elementos feudais constituem apenas uma parte de uma sociedade constituída
de modo muito diferente.

2) Nessas circunstâncias, é muito duvidoso que se possa falar de uma


tendência universal do feudalismo em transformar-se em capitalismo. Com
efeito, ele só o fez em uma única região do mundo, a saber, Europa
ocidental e parte da área mediterrânea. Poder-se-ia argumentar que em
algumas outras áreas (por exemplo, Japão e partes da Índia) essa evolução
poderia ter-se completado, devido a forças puramente internas, se o seu
desenvolvimento histórico não tivesse sido interrompido pela intromissão do
capitalismo ocidental e das forças imperialistas. Também se poderia discutir
até que ponto se projetaram nessas áreas as tendências no sentido do
capitalismo. (No caso do Japão, é possível que a resposta à primeira
questão fosse "sim", é à segunda "até muito longe", mas este é um assunto
sobre o qual alguém que não é especialista deve hesitar antes de expressar
uma opinião.) É possível também sugerir que as tendências no sentido
dessa evolução estão presentes em toda a parte, embora por vezes num
ritmo tão lento que poderia ser considerado insignificante. Certamente
nenhum marxista negará que as forças que agiram no sentido do
desenvolvimento econômico da Europa atuaram em toda a parte, embora
não necessariamente com os mesmos resultados em circunstâncias sociais
e históricas distintas. Não se pôde, porém, eludir o fato de que a transição
do feudalismo é feita, em escala mundial, de um modo muito desigual. O
triunfo do capitalismo ocorreu integralmente apenas em um único lugar do
mundo, e essa região, por sua vez, transformou o resto.
Consequentemente, temos de explicar primeiramente as razões especiais
que ocasionaram esse triunfo na região mediterrâneo europeia, e não em
outro lugar qualquer.
3) Isso não significa que o problema deva ser resolvido em termos tão
somente europeus. Ao contrário, é evidente que em vários estágios cruciais
as relações entre a Europa e o resto do mundo foram decisivas. Falando
em termos gerais, na maior parte de sua história a Europa foi uma região
de barbárie na faixa ocidental extrema da zona de civilização que se
estendia desde a China, no Oriente, através da Ásia meridional, até o
Oriente Próximo e o Médio Oriente. (O Japão ocupa uma posição marginal
semelhante mais a Leste dessa área, ainda que muito mais próximo aos
centros da civilização.) No exato começo da história europeia (como
demonstrou Gordon Childe), as inter-relações econômicas com o Oriente
Próximo eram importantes. O mesmo também é válido para o início da
história feudal europeia, quando a nova economia bárbara (ainda que
potencialmente muito mais progressista) se estabeleceu sobre as ruínas
dos antigos impérios greco-romanos, e seus centros mais adiantados
situavam-se ao longo das etapas finais da rota comercial Oriente-Ocidente
através do Mediterrâneo (Itália, o vale do Reno). Isso é ainda mais óbvio no
começo do capitalismo europeu, quando a conquista ou a exploração
colonial da América, Ásia e África — bem como partes da Europa oriental
— possibilitaram a acumulação primitiva de capital na área onde afinal ele
irrompeu vencedor.
4) Essa área compreende partes da Europa mediterrânea, central e ocidental
(mas, absolutamente, não toda ela). Graças a trabalhos arqueológicos e
históricos, conduzidos principalmente depois de 1939, podemos agora
estabelecer as fases principais de seu desenvolvimento econômico, a
saber:
a. Um período de retrocesso, após o desmoronamento do império
romano do Ocidente, seguido da evolução gradual de uma economia
feudal e talvez uma retração no século x (início da Idade Média).
b. Um período de desenvolvimento econômico rápido e altamente
generalizado, a partir do ano 1000, mais ou menos, até o começo do
século XIV (a Alta Idade Média), constituindo o auge do feudalismo.
Esse período assistiu a um crescimento marcante da população, da
produção e do comércio agrícola e manufatureiro, ao virtual
renascimento das cidades, a uma grande explosão de cultura, e a
uma notável expansão da economia feudal ocidental sob a forma de
"cruzadas" contra os muçulmanos, emigração, colonização e
estabelecimento de empórios no estrangeiro.
c. Uma importante "crise feudal" nos séculos XIV e XV, caracterizada
pelo colapso da agricultura feudal em larga escala, das manufaturas
e do comércio internacional, em decorrência de um declínio na
população, tentativa de revolução social e crise ideológica.
d. Um renovado período de expansão desde meados do século XV a
meados do século XVII, marcado pela primeira vez por sinais de uma
forte ruptura na base e superestrutura da sociedade feudal (a
Reforma, os elementos da revolução burguesa na Holanda) e a
primeira arremetida dos mercadores e conquistadores europeus na
América e no oceano Índico. Este é o período considerado por Marx
como indicativo do começo da era capitalista (Capital, v.I, Dona Torr
ed., p.739).
e. Outro período de crise,2 ajustamento ou retrocesso, a "crise do
século XVII", que coincide com a primeira brecha aberta pela
sociedade burguesa, a Revolução Inglesa. Foi seguido de um
período de expansão econômica renovada e cada vez mais
generalizada, que culminou no —
f. Triunfo definitivo da sociedade capitalista na Revolução Industrial na
Grã-Bretanha, Revolução Americana e Revolução Francesa, todas
virtualmente simultâneas, tendo lugar no último quarto do século
XVIII. A evolução econômica da Europa oriental é um pouco
diferente. Talvez aproximadamente comparável nos períodos a e b,
ocorre uma brecha com a conquista de grandes áreas por povos
asiáticos (mongóis, turcos), enquanto nos períodos d e e partes da
mesma são subjugadas como semicolônias a regiões capitalistas
ocidentais em desenvolvimento, sofrendo um processo de
refeudalização.
5) A transição do feudalismo para o capitalismo é, portanto, um processo
longo que nada tem de uniforme. Cobre pelo menos cinco ou seis fases. A
controvérsia sobre essa transição tem se voltado principalmente para as
características dos séculos que decorreram entre os primeiros sinais
evidentes de derrocada do feudalismo (período c, a "crise feudal" no século
XIV) e o triunfo definitivo do capitalismo no final do século XVIII. Cada uma
dessas fases contém poderosos elementos de desenvolvimento capitalista
— por exemplo, no período b, a notável ascensão das manufaturas têxteis
italianas e flamengas, que entraram em colapso durante a crise feudal. Por
outro lado, ninguém defendeu seriamente que o capitalismo tenha
prevalecido antes do século XVI ou que o feudalismo tenha sobrevivido

2
Esta crise começou a chamar atenção na década de 1930. Debates marxistas sobre ela
aparecem em Dobb, M., Studies in the Development of Capitalism, 1946; Hilton, R. H., Annaks E.
S. C, 1951,p.23-50 (em francês); Graus, R, A primeira crise do feudalismo (em alemão e tcheco),
1953, 1955; Malowist , M. (em polonês), 1953, 1954; e Kosminsky, E. A., "Feudal rent in England",
in: Past and Present, p.7. 1955.
depois do final do século XVIII. Todavia, ninguém pode duvidar que, no
período de 1000 anos — todo ou quase todo — antes de 1800 a evolução
econômica seguiu firmemente na mesma direção. Nem em toda parte, nem
ao mesmo tempo, pois houve áreas que retrocederam, depois de terem
liderado a marcha (por exemplo, na Itália), e outras que alteraram o sentido
de sua evolução por algum tempo, e também sem uniformidade. Cada crise
importante viu antigos países "líderes" regredirem, suplantados por outros
que eram mais atrasados, mas potencialmente mais progressistas, como a
Inglaterra. Todavia, não pode haver dúvidas sérias de que cada fase, à sua
maneira, fez avançar a vitória do capitalismo, mesmo as que
superficialmente parecem períodos de recesso econômico.
6) Assim sendo, é muito provável a existência de uma contradição
fundamental nessa forma particular de sociedade feudal que a impulsiona
sempre para frente no sentido da vitória do capitalismo. A natureza dessa
contradição ainda não foi bem esclarecida. Por outro lado, também é
evidente que as forças que se opõem a essa evolução, embora mais fracas,
não são absolutamente desprezíveis, pois a transição do feudalismo para o
capitalismo não é um processo simples mediante o qual os elementos
capitalistas no interior do feudalismo vão fortalecendo-se até estarem
bastante vigorosos para romper a casca feudal. O que vemos sempre de
novo (como no século XIV e provavelmente no século XVII) é que uma crise
de feudalismo também envolve os setores mais adiantados do
desenvolvimento burguês no seu interior, produzindo, portanto, um
aparente retrocesso. O progresso, sem dúvida, continua ou recomeça em
outro lugar, em áreas até então mais atrasadas, como a Inglaterra. Mas
uma coisa interessante acerca da crise do século XIV (por exemplo) não é
apenas o colapso da agricultura dominial feudal de grande escala, mas
também o das indústrias têxteis italianas e flamengas, com seus
empresários capitalistas e proletários assalariados e de uma organização
que chegara quase ao limiar da industrialização. A Inglaterra adianta-se,
mas a Itália e Flandres, muito maiores, nunca se recuperam e portanto
diminui temporariamente a produção industrial total. Naturalmente, é difícil
descrever em termos estáticos um período tão longo, no qual as forças do
capitalismo estão ascendendo, não conseguindo, porém, repetidamente,
romper o tegumento feudal, ou estão mesmo envolvidas pela crise feudal.
Esta dificuldade reflete-se em grande parte da frustrante discussão marxista
sobre o período entre a primeira crise geral do feudalismo e a vitória
definitiva do capitalismo, que sobreveio muito mais tarde.
7) Até onde este quadro de uma progressiva substituição do feudalismo pelo
capitalismo se aplica a regiões fora do "coração" do desenvolvimento
capitalista? Apenas um pouco. Reconhecem-se alguns sinais de
desenvolvimento comparável no ímpeto do desenvolvimento do mercado
mundial depois do século XVI, talvez no fomento das manufaturas têxteis
na Índia. Esses sinais, porém, são mais do que neutralizados pela
tendência oposta, ou seja, a que transformou outras áreas que entraram em
contato com as potências europeias ou sofreram a sua influência, em
economias dependentes e colônias do Ocidente. Na verdade, grandes
áreas das Américas foram transformadas em economias escravagistas a
fim de atender às necessidades do capitalismo europeu, e extensas regiões
da África foram forçadas a caminhar para trás economicamente devido ao
tráfico de escravos; por razões semelhantes, grandes áreas da Europa
oriental reduziram-se a economias neofeudais. E mesmo o pequeno e
transitório estímulo ao desenvolvimento da agricultura comercial e das
manufaturas que a ascensão do capitalismo europeu talvez haja
proporcionado aqui e ali foi interrompido pela deliberada desindustrialização
das colônias e semicolônias assim que elas pareceram competir com a
produção na matriz ou mesmo (como na índia) tentaram suprir seu próprio
mercado, ao invés de depender de importações da Grã-Bretanha. O efeito
final da ascensão do capitalismo europeu foi, portanto, intensificar o
desenvolvimento desigual e dividir o mundo cada vez mais nitidamente em
dois setores: o "desenvolvido" e o "subdesenvolvido", em outras palavras, o
explorador e o explorado. O triunfo do capitalismo no final do século XVIII
selou essa evolução. O capitalismo, que sem dúvida proporcionou as
condições históricas para a transformação econômica em toda parte, de
fato dificultou ainda mais as coisas para os países que não pertenciam ao
núcleo original de desenvolvimento capitalista, ou não eram seus vizinhos
imediatos. Somente a Revolução Soviética de 1917 proporcionou os meios
e o modelo para o genuíno crescimento econômico mundial e o
desenvolvimento equilibrado de todos os povos.

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