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1Mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da Unicamp, dissertação concluída em 2016. Professor de
Geografia no Ensino Médio.
E-mail de contato: geo.caegalvao@gmail.com
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k-7 que apresentaria uma banda da cidade, o texto ficou conhecido como o primeiro
“Manifesto Manguebeat”, é datado de 1991 e em um de seus trechos é possível ler:
Emergência!
Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que
a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O
modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é
matar os seus rios e aterrar os seus estuários.
O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos?
Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade?
2 https://pt.wikisource.org/wiki/Caranguejos_com_cérebro
3 “Chico Science e o Mangue Bit – BBC” (14m53): https://youtu.be/ik84zn476M8
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diversidade, ao invés de definir como um movimento previamente planejado e
organizado. Tal sentido de espontaneidade aparece em muitas falas de protagonistas4
e será a partir dessa noção, de movimentação enquanto abertura, que este presente
trabalho pensará algumas das obras do manguebeat, na perspectiva de serem
compreendidas enquanto irrompidas de uma lama energizada, obras que vieram
sacudir uma paisagem até então apática e saturada.
“O caranguejo nasce dela, vive dela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias
dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas
vísceras pegajosas.
Por outro lado o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber
os seus cascos até que fiquem limpos como um copo.
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das marés e tentar sobreviver na cidade grande. Josué de Castro não morou nos
mocambos nem precisou catar caranguejo para saciar o estômago, mas, atento a
mundos que conheceu na sua própria experiência de cidade, criou contos que
considera “[...] as primeiras tentativas de índole mais emocional do que racional de
dar expressão aos nossos sentimentos diante destas sombrias paisagens de uma
geografia da fome” (CASTRO, 1959, p. 8). Paisagens que o afetaram e pareceram
sufocar toda uma existência que, para dar vazão a tais sentimentos, fez fluir uma
escrita ao mesmo tempo circunstancial e universal: telúrica.
Sentimentos de paisagens sombrias, de experiências marcantes que moveram
e orientaram a busca acadêmica e política de Josué de Castro. Quis ele compreender
a sobrevivência dos que resistiam às hostis secas do sertão e descobriu, por exemplo,
a riqueza de cálcio presente na farinha de macambira (CASTRO, 1959, p. 165). Nesse
sentido, a obra de Josué de Castro (1965, p. 16) repousa “[...] na perspectiva de um
estudioso [...] que é ao mesmo tempo um habitante desta região, impregnado de corpo
e alma da vida desta terra e do sentimento de sua gente”. Obra que resguarda a terra
natal não como lembrança distante e parada no tempo, mas enquanto sentido de
resguardo da cumplicidade homem-terra.
A saga da família Silva emerge como narrativa fundada no ato de nomear os
homens-caranguejos, que “[...] aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos
da lama [...]”, habitantes que “[...] nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama
que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras
carapaças também enlambuzadas de lama” (CASTRO, 2003, p. 3). A cumplicidade
homem-caranguejo-lama-mangue abre a possibilidade de compreensão
fenomenológica de um modo-de-ser-e-estar-no-mundo, pois desvela a relação
homem-terra numa dimensão existencial. A narrativa criada por Josué de Castro
irrompe de sua própria experiência da realidade geográfica, experiência que age como
energia depositada na lama. Afetado pelo tema da fome, seu pensar denuncia a morte
e a vulnerabilidade, mas também a vitalidade e a fertilidade de sua gente.
Desencantado com os revezes e as incertezas que as marés traziam e
levavam, o mangue já não era mais, para o menino João Paulo, visto como lar próprio
e também dos guaiamuns, agora “[...] lhe parecia apenas um espesso e lodoso borrão
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de lama, sem nenhum interesse. Seus olhos já não vislumbravam na paisagem cores
alegres. Só cores sombrias lhe falavam ao coração” (CASTRO, 2003, p. 104). O
romance fundado no mangue não esquece das horas ruins nas quais não se aguenta
mais aquela existência precária, a despeito de matar a fome o mangue e o caranguejo
também aparecem como adversários de um embate impróprio aos homens. João
Paulo, ouvindo trovoadas que desconhecia “[...] desceu a barranca do rio e se
misturou com aqueles homens [...] sentiu que eram todos da mesma família [...] dos
heróis do mangue [...] quase despidos [...] apenas com o corpo coberto por grandes
placas de lama” (CASTRO, 2003, p. 105-106). Participou da revolta desejando ajudar
os “[...] cavaleiros da miséria que já tinham vivido tantas lutas heroicas” em sua
imaginação. Carregou metralhadoras, mas virou caranguejo: cumpriu seu papel no
ciclo ao qual estava condenado. Não sem antes, cabe ressaltar, exprimir seu desejo
de insurgência.
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Mais especificamente, a partir de obras irrompidas da lama, este trabalho
espera abrir caminhos para pensar geosofia e resiliência. Nesse caso, considerando
a resiliência enquanto a capacidade do homem de “[...] apropriar-se da sua própria
história e assim existir como abertura, possibilidade e mistura” (MARANDOLA JR.,
2016b, p. 90), o que se pretende é pensar a geosofia enquanto caminho para
apropriação dessa própria história. Para tanto, faz-se necessário retornar às obras
cujo fundamentos remontam à experiência de realidade geográfica.
E que pode ser uma obra fundada na experiência da realidade geográfica?
Em um discurso no qual considerou que o enraizamento do homem estava
ameaçado, seja pelos meios de comunicação ou, principalmente, por ser uma
característica do espírito da época, Martin Heidegger, em 1955, perguntou: “[...]
podem ainda, no futuro, o Homem ou a obra humana medrar do solo da terra natal e
crescer [...] em direção à extensão [...] do céu e do espírito?” (HEIDEGGER, 2000, p.
17). O questionar levou o filósofo, ao longo de sua obra, considerar como uma
característica da modernidade o cada vez maior distanciamento homem-terra, no
sentido do homem habitar cada vez mais apartado de sua condição terrestre.
Interessa aqui, no entanto, antes de pensar tal distanciamento, a compreensão
heideggeriana da obra enquanto irrompida do solo natal e em direção ao céu. Obras
que, germinadas no solo da terra natal, irrompem na própria abertura que o embate
terra-mundo resguarda, irrupção que é acontecimento fundamental (DAL GALLO,
2015; HEIDEGGER, 2014): emergida da terra e em direção ao céu, desvela a
relação homem-terra e cria referência de mundos.
Um outro aspecto importante do mesmo discurso de Martin Heidegger é a
distinção que fez entre um pensamento que planeja e calcula e um outro, um
pensamento que reflete e medita sobre o “[...] aqui e agora [...] sobre o que está mais
próximo [...]” (HEIDEGGER, 2000, p. 14). Um pensamento que medita cuida do que
está próximo. Compreendendo ambos como necessários e potentes, a crítica
heideggeriana refere-se à supremacia do pensar voltado a demandas que resguardam
pouco espaço para a reflexão, distanciando o homem de um pensar fundado no que
está próximo, no sentido desse homem pouco voltar-se a questões de sua própria
condição terrestre. Na compreensão de Heidegger (2000, p. 18-19) esse mundo “[...]
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aparece agora como um objecto sobre o qual o pensamento que calcula investe [...]
A Natureza transforma-se [...] numa fonte de energia para a técnica e indústria
modernas”. Eric Dardel (2011, p. 96) alertara de que o homem contemporâneo estaria
condenado a ver a Terra apenas “[...] através de suas medidas e de seus cálculos, em
lugar de deixar-se decifrar sua escrita sóbria e vívida”.
Desse modo, uma obra fundada na experiência da realidade geográfica
irrompe de um solo cuja fertilidade remete a raízes e vínculos criados ao longo da
existência, terra natal que aproxima o homem de sua condição terrestre. Também
a obra fundada na experiência da realidade geográfica é aquela que cuida do que
está próximo, proximidade que remete às coisas que nos afetam e que constituem
as referências do mundo que somos.
Josué de Castro (1959, p. 61), refletindo acerca da literatura do Nordeste
brasileiro, compreende que a “[...] arte é sempre tendenciosa, pois encerra em tôdas
as suas expressões a reação do humano diante das fôrças circundantes [...] e não há
fôrça sem diretriz”. A arte enquanto reação do humano diante de outras forças. O
sentimento que a fome dos outros despertara lhe deu forças para reagir e fazer
germinar da lama uma obra carregada de emoção, que ao invés de denunciar contra
seu modo de pensar, lhe deu uma tonalidade fundamental: pensamento vívido e
pulsante, marcado das paisagens, territórios e lugares habitados.
É no sentido de ser uma criação-reação à realidade geográfica, que se quer
aqui adensar a compreensão da geosofia: um pensar-meditar sobre o que está
próximo. Pensar que abre caminhos para que a irrupção de uma obra que seja
reação à realidade geográfica, obra emergida da terra e em direção ao céu.
IV. “Cheguei com meu universo / e aterriso no seu pensamento / trago a luzes
dos postes nos olhos / rios e pontes no coração / Pernambuco embaixo dos pés / e
minha mente na imensidão”5 cantam vozes do manguebeat. Rios, pontes, pés e
corações fincados no chão do Recife, apontados para a imensidão do céu, batidas e
vozes que, a partir da terra natal, percorrem outros mundos desejando mistura e
contato. A partir do manifesto, os Caranguejos com Cérebro criam uma imagem
5 “Mateus Enter” (Chico Science & Nação Zumbi). Do álbum “Afrociberdelia” (1996).
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fundamental: uma antena parabólica fincada na lama. A energia injetada na lama e
que viria a estremecer a paisagem recifense não vinha na forma de imposição de um
estilo único de arte, tampouco preocupada em manter fechados os costumes
tradicionais da região. Tal energia, alimentada pela recente onda cibernética que
invadira o Brasil e o mundo nos anos de 1990, pretendia uma arte cosmopolita.
Guitarras e alfaias, atabaques e baixos, a movimentação manguebeat varreu
fronteiras e transformou a música brasileira6.
Numa perspectiva geosófica, é possível considerar que tal energia
movimentou vínculos e sentimentos geográficos, seja dos habitantes para com a
cidade, seja das mais variadas pessoas que ouviram e viram seus sons e imagens. A
geografia, nesse caso, aparece no sentido pensado por Eric Dardel, isto é, um
conhecimento que resguarda as possibilidades do “[...] despertar do homem para o
mundo, despertar do mundo no homem” (BESSE, 2011, p. 139). Despertos, os
homens-caranguejos injetaram vitalidade na lama, que já não mais aparecia como
condenação de uma existência incerta. As obras, fundadas no acontecimento terra-
mundo, redirecionaram o sentido da lama: irrompeu como insurreição.
Figura 3 – trecho da música “Antene-se”7 (Chico Science & Nação Zumbi). Do álbum
“Da lama ao caos” (1994).
Mas que pode ser a lama enquanto insurreição? Uma revolta contra a moradia
nos mocambos e choças, contra a fome ou a precária dieta, contra o subemprego ou
6
“Chico Science e o Mangue Bit – BBC” (14m53): https://youtu.be/ik84zn476M8
7 https://www.letras.mus.br/chico-science/304728/
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os altos índices de mortalidades tão de perto conhecidas. Revolta contra uma noção
de progresso que entope o rio Capibaribe e que condena homens a habitarem o
paraíso dos caranguejos. Desejo de insurgir contra a antiga estrutura fundiária, de
poder morar nas grandes casas que apenas de longe podiam ser avistadas. Se ainda
é possível pensar que tais lutas continuam atuais, é preciso considerar que a lama
enquanto insurreição irrompeu na arte manguebeat, o que faz emergir uma questão:
como pensar o sentido dessa insurreição presente na arte manguebeat?
No sentido de insurgência contra o distanciamento homem-terra. Dito de
outro modo: a insurreição aparece no próprio movimento de criação, porque
preocupada em produzir uma arte voltada ao que está próximo, uma arte cujo
movimento irrompe da terra em direção ao céu. Ou, de modo mais apropriado, uma
arte que irrompe do mangue e se espalha pelas antenas emissoras e receptoras. A
parabólica fincada na lama e em contato com o satélite “Manguesat” possibilitou que
“mangueboys” e “manguegirls” entrassem em contato com outros mundos e
continuassem o despertar que a experiência da realidade geográfica havia iniciado.
Contra uma noção de progresso que “[...] desnaturaliza a realidade geográfica”
(DARDEL, 2011, p. 93), a lama enquanto insurreição irrompera como a revolta de um
pensamento reflexivo em busca de um habitar poético.
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do ser enquanto nos constituímos em nossas circunstâncias, nossos lugares”. Uma
história da geograficidade enquanto acontecimento, narrativa da experiência de
realidades geográficas. “Essa identidade compõe a resiliência [...] o que significa que
o continuar-sendo não se refere a um parâmetro externo” (MARANDOLA JR., 2016b,
p.89). Identidade e resiliência parecem se referirem ao “como” cada homem reage à
realidade geográfica, podendo a geosofia ser um meditar voltado a esse “como”.
Mas, que isso pode dizer, ainda, sobre geosofia e resiliência? “[...] o continuar-
sendo está implicado em assumir estas interconexões alquímicas, assumindo a
experiência da abertura e da expansão, e não a experiência da reclusão e do
isolamento” (MARANDOLA JR. 2016b, p. 85). As obras irrompidas da lama carregam
desejos de abertura e expansão, a antena parabólica liga passado e futuro, tradição
e vanguarda, raízes e flores. A paisagem depressiva se transforma, recebe energia
injetada na lama, ânimo novo. João Paulo virou caranguejo, mas outros vieram
continuar a luta contra incertezas e precariedades do habitar contemporâneo.
Mas Chico Science, em depoimento sobre Josué de Castro, disse que não
ouvira falar dele na escola, que na verdade foi na própria movimentação manguebeat
que o aproximou dos homens-caranguejos. É necessário que o conhecimento
geográfico medite e cuide do que está próximo, que a geografia desperte o mundo no
homem e o homem no mundo.
É nesse sentido que a geosofia aparece enquanto possibilidade de caminho
para uma geografia que medita sobre a existência e, desse modo, insurge contra o
pensar hegemônico.
Figura 4 – trecho da música “Da lama ao caos”8 (Chico Science & Nação Zumbi).
REFERÊNCIAS
8 https://www.letras.mus.br/nacao-zumbi/77655/
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BESSE, Jean-Marc. Geografia e existência a partir da obra de Eric Dardel. In:
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. (tradução
Werther Holzer) São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 111-139.
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. 2. ed. – São Paulo: Editora
Brasiliense, 1959.
CASTRO, Josué de. Sete palmos de terra e um caixão: ensaio sobre o Nordeste,
área explosiva. Editora Brasiliense, São Paulo, 1965.
CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
DAL GALLO, Priscila Marchiori. A ontologia da Geografia à luz da obra de arte: o
embate Terra-mundo em "Out of Africa". 2015. 97 p. Dissertação (Mestrado em
Geografia) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências, Campinas,
SP.
DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. (tradução
Werther Holzer) São Paulo: Perspectiva, 2011.
GALVÃO FILHO, Carlos Eduardo Pontes. Por abismos... casas... mundos...: a
geosofia como narrativa fenomenológica da geografia. 2016. 1 recurso online (120 p.).
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Geociências, Campinas, SP.
HEIDEGGER, Martin. Serenidade. (tradução Maria Madalena Andrade e Olga
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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. (tradução Fausto Castilho) Campinas, SP:
Editora da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos
de Floresta. (tradução Irene Borges-Duarte, Filipa Pedroso, Alexandre Franco de Sá,
Hélder Lourenço, Bernhard Silva, Vítor Moura, João Constâncio) 2. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 5-94.
MARANDOLA JR., Eduardo. Geografias do porvir: A fenomenologia como abertura
para o fazer geográfico. In: SPOSITO, Eliseu S. [et al]. A diversidade da geografia
brasileira: escalas e dimensões da análise e da ação / Organizadores: Eliseu Savério
Spósito ... [et al.]. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Consequência Editora, p. 451-466, 2016a.
MARANDOLA JR., Eduardo. Fenomenologia do ser-situado: crônicas de um verão
tropical urbano. 2016b. Tese (Livre Docência em Ambiente e Sociedade) – Faculdade
de Ciências Aplicadas - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Geociências,
Limeira, SP.
Documentários:
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O Som do Vinil Ep. 16 Da Lama ao Caos (25m21): https://youtu.be/z8Lp_UYerAE
O Beat de Chico Science (11m19): https://youtu.be/heq78fJJXXE
Chico Science & Nação Zumbi - MTV na Estrada e A Voz do Mangue (43m56):
https://youtu.be/gPMWpqdRTG8
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