Questão 01 - Exponha qual o projeto conjunto que conferiu à escola Sociológica Francesa e exemplifique a sua realização por meio dos trabalhos de Marcel Mauss estudados ao longo da disciplina. As dificuldades que encontro para elaborar este texto são marcas mentais resultantes do contato com o conhecimento da vida não acadêmica, que se apresentam como lentes de pseudomoralismo relativista construída por gerações e em mim manifestada. As contribuições indiretas do pensamento sociológico fomentaram e fomentam o saber não acadêmico de tal forma que nos leva crê que somos todos cientistas sociais de alta capacidade relativista e de alteridade e críticos de qualquer aproximação com evolucionismo sociocultural ou outras “deficiências” da visão de mundo dos séculos passados. Por outro lado, também marcas mentais resultantes da vida acadêmica trazem dificuldades. Estas apresentam-se como lentes de pseudoconhecimento acadêmico, baseado na sociologia durkheimiana, tal como apresentada pela dicotomia metodológica do ensino acadêmico e sua perseguição dos modelos epistemológicos “sociedade x indivíduo”. Confunde-se sistematização do conhecimento, como sendo o conhecimento em si, reificando teorias e autores em cristalizações que atendem a essa classificação dicotômica. Ou isso, ou minha deficiência em realizar o que estudei nesse curso. Tenho dificuldade de ver o conhecimento e os autores dessa forma, engessada nas classificações e sistematizações didáticas. Talvez por isso, vejo o indivíduo e sociedade contemplados nos estudos de Durkheime, e ainda mais intensamente nos estudos de Mauss. Buscar o indivíduo autônomo, “conscientes de seus interesses particulares” e agindo mediado por uma visão de mundo construída em função de seus interesses particulares ou em função de características inatas ao ser humano é tarefa sem sentido ao se estudar estes autores. Por outro lado, negar a consideração do indivíduo em formação e ação nos trabalhos destes autores, arrisco dizer, que não é razoável. Diria até que estas considerações corroboram para compreender um dos elementos do projeto da escola Sociológica Francesa. Isto porque a máxima “O todo é mais do que a soma das partes”, não nega as partes. Pelo contrário ela afirma “a parte”, buscando aproximasse ao máximo do que realmente é essa parte, enquanto produto e produtor do todo. Nega o indivíduo construído pelo observador ou pesquisador, tendo como referência a universalidade humana ocidental (o qualquer outra), imaginando-o como bom ou mau, como selvagem ou civilizado, interessado ou altruísta, segmentando-o em aspectos “espirituais”, psicológicos, econômicos, domésticos e públicos, e outras individualizações imaginarias ou universalizantes utilizadas como mediadoras para compreensão do indivíduo e do pensamento e ação humana. Buscando assim, compreender o movimento de indivíduos “reais” movimentando-se em sociedades “reais”, em conformidade com a compreensão singular de realidade de um determinado grupo. Realidade essa que só se exprime como tal, em função do interagir social entre homens e coisas, que constrói as realidades “verdadeiras a seu modo”, pois todas correspondem a “condições dadas da existência humana”. Dessa forma a escola contrapõe o pragmatismo utilitarista e economicista, e ao mesmo tempo o idealismo Kantiano, e as noções de ação individualista ou de ação universal derivada destas formas de pensar o homem e sociedades. Além da contraposição as teorias idealistas, naturalistas e individualistas que citamos acima, a contraposição de perspectivas metodológica e epistemológica que era dominante nas ciências sociais em formação, faziam parte do projeto da escola francesa. O método sociológico proposto por Auguste Comte opunha ao racionalismo e ao idealismo, porém partia de epistemologia evolucionista da formação do pensamento humano. Elementos históricos de uma sociedade, ou elementos comparativos entre sociedades que poderiam auxiliar na compreensão sociológica era acessado à partir dessa perspectiva. Até mesmo os registros etnográficos, eventualmente consultados pelos autores desta escola, traziam na sua estrutura linguística e metodológica esta epistemologia. No entanto os autores buscam penetrar nos estudos históricos e etnográficos superando essa visão. Contudo, a escola francesa não nega a existência de aspectos universais do pensamento humano. Nem tão pouco ignora a diferença entre a visão de mundo mágica, religiosa e cientifica. O que ela questiona é o entendimento de que existe uma escala universal e ascendente na organização do pensamento humano, que partindo da visão de mundo mágica, evolui para visão religiosa e finalmente culmina com a visão cientifica. A universalidade não está na evolução do pensamento e na diferenciação entre supostas fases evolutivas. A universalidade está nas categorias que oferecem as bases para construção do pensar humano. Isto independe se este pensamento desenvolve-se com predominância de visão mágicas, religiosas ou cientificas. Por outro lado, as categorias do pensamento não são universais por serem inatas aos seres humanos, ou por apresentarem a mesma forma moral, psicológicas ou utilitária em todas sociedades. A universalidade das categorias do pensamento está na sua gênese. A condição humana, como ser social, e seu interagir com meio e com os outros homens são o berço que gesta as categorias do pensamento. Por ser estas condições diferentes em cada época e lugar, as formas estruturais que apresenta as categorias do pensamento são múltiplas. Universal na sua gênese (gestação social) e singular na sua forma (instituições e relações sociais). A compreensão durkheimiana de que em “sociedades primitivas”, ou com menor multiplicidade de funções sociais, bases morais de pensamento e instituições sociais, existe maior uniformidade intelectual e moral, assim como a noção de consciência coletiva influenciou os trabalhos de Mauss na sua busca pela gênese social das categorias do espírito humano. Ele busca em vários estudos identificar categorias do entendimento humano, que apresentam aspecto universal, apesar da singularidade das formas sociais delas derivadas. O contato com os fenômenos, coisas e seres, a partir da condição existencial humana em sociedade desperta os seres a compreender o “mundo perceptível” em sua volta e a constante mudança que nele opera. Homens e outros seres nascem, adoecem, curam-se, se relacionam de forma diversa com outros seres e com as coisas, causam mudanças nas coisas e são modificados por elas, vivem e morrem em um ciclo infinito. A necessidade de expressar essas coisas de maneira compartilhada socialmente e que esteja “fundada na natureza das coisas”, oferece o terreno para construção dos fundamentos da vida em sociedade e ao mesmo tempo já é expressão de sociedade. Arrisco dizer que as categorias do entendimento humano são ao mesmo tempo trilhos, motor e locomotiva que constrói o pensamento humano e sua emanação em sociedade. A noção de causalidade por exemplo: “ela é”, “se faz”, oferece as “possibilidades do fazer” e se movimenta “no fazer” ao mesmo tempo. O estudo sobre a magia de Mauss revela a universalidade da noção de causalidade e as expressões sociais delas derivadas. Ao que atribuímos a ideia universal de pensamento mágico, se revelou em formas singulares de explicar os fenômenos naturais e relacionais humanos com base em uma noção da causalidade que associa o movimentar dos homens e das coisas como causas para constante mudança da realidade perceptível. A não separatividade entre homens e homens, homens e coisas, coisas e coisas, e a aceitação do movimento de forças não visíveis que a tudo unia, oferecia a linha e agulha, enquanto a noção de causalidade oferecia o impulso para tecer sociedades. Estas sociedades reforçam a visão de não separatividade a partir da visão mágica de mundo, ao mesmo tempo reforçam a visão mágica de mundo a partir da visão de não separatividade. Sendo que ambas são construção social. Fica claro que só na eficácia entre causa e resultado socialmente aceita, que se ampara a estrutura de pensamento mágico e as relações sociais delas derivadas, assim se percebe que uma eventual inexistência da noção de causalidade implicaria na inexistência do pensar e observar eficácia entre causa e resultado. Esses fundamentos estão presentes no entendimento humano, seja ele mágico, religioso ou cientifico, por outro lado esses fundamentos não são inatos ao ser humano, e sim construções sociais. Os estudos de Mauss contribui com o projeto da escola francesa trazendo também a noção de reciprocidade e o tecer das formas de dádivas construindo instituições, relações de alianças sociais internas e externas a determinado povo. A noção de obrigatoriedade de “dar, receber e retribuir”, surge nesse vasto estudo como impulso da ação humana de produzir e fazer circular bens, coisas, serviços e pessoas, totalmente desprovido de valores mercantis ou individualistas. A dádiva surge como propulsor de um “sistema de prestações totais”, oferecendo sentido, normas e liga social para construção de instituições diversas no interior e nas relações exteriores de grupos sociais diversos. A teorias utilitaristas e contratualistas e sua universalização do indivíduo autocentrado e agindo em função de seus interesses, e em função disto criando alianças e contratos de mútuos benefícios pragmáticos e individuais é trucidada por este estudo. A naturalidade do ser humano, suas técnicas e forma, até mesmo corporais são questionadas e postas em chegue no estudo “As técnicas do corpo” de Mauss. Por fim a noção de individualidade e de pessoa quanto algo inato ao pensar humano é criticado e revelado na sua gênese através do estudo sobre “A noção de pessoa, a de ´eu´”. Nele, aquilo que parece está posto deste sempre, a individualidade e a noção do Eu, é demonstrada como elemento de construção social que em conformidade com a cosmologia de uma determinada sociedade pode tomar várias aparências e formas, ou até mesmo inexistir enquanto expressão de separatividade entre o homem e os demais homens, seres e coisas. Questão 02 - Identifique e comente dois deslocamentos analítico promovido por Marcel Mauss que evidencia o modo como ele se afastou do projeto sociológico de Durkheim e se tornou um dos fundadores da moderna Antropologia. Os estudos sobre as categorias do espirito humano realizados por Mauss, amplia e traz maior profundidade ao método comparativo e investigativo das causas que sustentam determinado fenômeno social. A exterioridade do fato social é investigada para além do seu poder coercitivo, enquanto consciência coletiva, do todo social sobre os indivíduos, oferecendo elementos causais para o fato social em estudo. A investigação de elementos de sociedades primitivas, encontra não fatores que traz relação de causalidade com determinado fenômeno, mas sistemas de prestações totais, que interagem construindo causas e condições e ao mesmo tempo possibilitando o impulso e o sentido, que constrói e mantêm formas e fatos sociais. Arrisco dizer que são causas, circunstancias e resultantes que só se exprimem como tal em sua totalidade, tanto para a sociedade investigada como para o investigador. A comparação então se dá para além das expressões culturais, das relações grosseiras entre homens e coisas, para além das estruturas e formas, se dá em um campo simbólico que traz sentido e fundamenta as relações. Então não se trata de proximidade ou afastamento de léxico linguístico, de técnicas, de rituais, formas de parentesco ou outras expressões socioculturais, e sim de sentido último, que torna real, factível, incontestável, eficaz e reproduzível certo fenômeno social para um determinado grupo de indivíduos. A realidade perceptível é resultante da própria construção dos elementos de percepção dos sujeitos sociais. A percepção humana é objeto de estudo interdisciplinar. Acredito que Durkheim já conversava com outras áreas do saber. Talvez pela necessidade de estabelecer a sociologia como ciência, ele deu maior ênfase ao estudo dos fatos sociais centrado nos métodos e sistemas de conhecimento da sociologia. Porém utilizando elementos antropologia, filosofia e história. Aparentemente Mauss, aprofundou a interdisciplinaridade no investigar sociológico que de forma mais ampla introduziu elementos conceituais dessas ciências e mesmo propôs mudança de perspectivas cientificas, como é notado no estudo sobre as técnicas do corpo e sobre a noção de eu. Elementos de linguística e construção do mundo simbólico, relacionando homens e coisas, organizando o pensamento e a realidade de tal forma a dar sentido ao ser e ao agir são notadamente trazidos em seus estudos. Penso que estas contribuições ampliam as contribuições de Durkheim para a antropologia e desloca Mauss da condição de discípulo metodológico durkheimiano e o coloca como um dos fundadores da moderna Antropologia.