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Essa discussão se insere num projeto maior que analisa o pensamento de Caio Prado
Junior como renovador de uma época, a partir de sua produção no âmbito da intelectualidade
que integra o corpo de ensaístas que pensam a formação social do Brasil nos anos 20/30.
Busca-se, então compreender a produção do conhecimento desde a colônia, o qual apresenta
características muito específicas como a desarticulação da cultura nativa pelos colonizadores,
criando uma tendência que aponta para uma cultura oral em detrimento da escrita. Os
intelectuais da época colonial se constituem pois, em agentes de idéias e da linguagem de
verbo fácil e da palavra corrente, e não como organizadores da cultura. Nesse contexto, a
prática da tribuna e da eloquência predomina tendo como público os freqüentadores de
sermões e saraus. Outra forma de produto intelectual da época são as crônicas, que se referem
aos aspectos exóticos dos trópicos. Com o fim do domínio colonial e o aparecimento de novas
nações, o pensamento social sofre uma profunda transformação surgindo novas idéias. No
século XIX, um grupo de intelectuais toma à si a liderança dos debates sobre a formação
nacional, o abolicionismo e a República. Percebe-se uma emancipação desse grupo em relação
à classe senhorial e à Metrópole. No início do século XX, a reflexão continua sobre a questão
nacional abrangendo também o social, o econômico e problemas raciais. Os ensaístas como
Alberto Torres, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado
Junior, entre outros, se constituem nos chamados “explicadores” do Brasil, sendo que Caio
Prado Júnior, destaca-se dos demais, por buscar uma interpretação com base no materialismo
histórico, o que lhe confere uma posição pioneira por pensar o presente, resgatando o passado
e imaginando o futuro.
TEXTO COMPLETO
Este ensaio se constitui numa tentativa de discutir alguns aspectos da cultura brasileira
e da formação de sua intelectualidade, situando-as em três momentos da história: a prática da
oralidade no Brasil Colônia, o aparecimento da crônica de religiosos e viajantes estrangeiros e
do ensaísmo histórico-sociológico dos anos 20/30.
Não é meu propósito escrever a história da cultura nem da intelectualidade (outros já o
fizeram e muito bem), mas tão somente, tecer alguns comentários acerca da produção do saber
desde a Colônia até o momento em que o Brasil conheceu mais uma ruptura
político-econômica e passou de uma sociedade de base agrária e oligárquica, para uma
sociedade de base industrial com novas configurações de classe e um Estado que se pretendia
moderno.
Com o propósito de apreender essa trama, busca-se conhecer a produção do saber desde
o início da colonização, o qual apresenta características muito particulares como a
“desarticulação da cultura nativa”, LIMA, (1978); a integração de padrões europeus,
1
Professora da Universidade Potiguar- UnP. Pesquisadora da UFRN - Base de Pesquisa “Educação e
Sociedade”. Doutoranda em Educação pela UFRN. End. Residencial Av. Antonio Basílio, 1140/203, Bl. Santa
Maria. Dix-Sept Rosado. Natal/RN. CEP: 59054-380.
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primeiros séculos e presentes nos períodos subseqüentes, culmina, numa explosão de trabalhos
que vão consolidar o pensamento social no Brasil, principalmente, através do ensaio. (CRUZ,
1993, P.146-147).
Os analistas da produção desses saberes, têm mostrado visões diferentes sobre a relação
entre saber nativo/saber importado, como eles se mesclam, se integram, para formar um tecido
com perfil próprio. Para quem admite a desarticulação cultural como LIMA (1978), na
América Latina, inclusive no Brasil, “as culturas nativas, embora desarticuladas, predominam
sob a forma de resíduos (mitos, lendas, costumes, modo de conduta, monumentos), passíveis
de entrarem, como peças, em novas articulações” mesmo admitindo que a cultura da
Metrópole tenha se colocado como uma imposição “de cima, como parte de uma política de
terra arrasada” (p.28). Dessa forma, ela se fez privilégio da classe dominante que
desenvolveu um interesse pela cultura nativa, não para conhecê-la melhor, mas, para proceder
a uma “aculturação” ou destruição que teve como principal instrumento, o teatro jesuítico e a
tradução do catecismo, como pensa este autor (p.28). Isso fez com que só alguns traços
culturais fossem transmitidos, embora que para uma população reduzida e sem influência, os
marginalizados, aqueles que não tinham condições de divulgá-la, uma vez que do ponto de
vista social, eram incapazes de se fazerem reconhecidos. O exemplo apontado é Gregório de
Matos que se sentia “enraizado/desenraizado entre a Metrópole e a Colônia” numa amostra do
que seria, daquele momento em diante, o sistema intelectual brasileiro: “a sensação ingênua ou
fraudulenta, conforme o caso, que têm seus participantes de não pertencerem a nenhum grupo
social, de estarem como que soltos no espaço dos interesses sociais” (LIMA, 1978, P.28).
Considerando-se o que foi colocado quanto à preservação de traços como os mitos,
monumentos, etc., “como peças de novas articulações”, na verdade, não se pode falar em
destruição mas em desconstrução/construção/reconstrução da realidade social através desses
traços, e não uma desarticulação do que existia. Parece que há uma possibilidade de se
considerar que houve sim, uma apropriação como sugere CHARTIER (1990) que trabalhando
com Michel de Certeau, toma o conceito de apropriação como fundamental o que lhe “permite
pensar o consumo como produção e, por esta via, centrar atenção nos diferentes usos
constantes dos mesmos produtos, dos mesmos textos, das mesmas idéias...” (CARVALHO,
1991, P.40). Assim, ele trabalha tanto com o leitor como com o modo de leitura, cuja relação
se dá entre o ato de ler e o texto. Nesse sentido, “no ponto de articulação entre o mundo do
texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de
compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o
conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo” (CHARTIER, 1990,
P.24).
Entre os vários estudiosos dessa realidade histórica, inclui-se CÂNDIDO (1987), o qual
admite que o saber desenvolvido através da literatura na América Latina e no Brasil trouxe
embutido em seus fundamentos, um conteúdo que expressava a “idéia de país novo” embora
surpreendida “do interesse pelo exótico, de um certo respeito pelo grandioso e da esperança
quanto as possibilidades (p.141). Sua tese é a de que houve um processo de integração num
movimento dialético entre o local e o universal. Esta compreensão, no meu entender, também
está próxima do ponto de vista de CHARTIER que fala de uma apropriação cujo objetivo é
“uma história social das interpelações, remetidas para as suas determinações fundamentais
(que são sociais, institucionais, culturais) e inseridas nas práticas específicas que as produzem”
(p.26). Portanto, na cotidianidade, o homem em relação com o mundo, tanto material como
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das representações, vai se aproximando dele através de códigos e significados para fazer sua
leitura de forma articulada.
Partindo-se dessas considerações, pode-se admitir que no Brasil, não houve nem uma
destruição nem simplesmente uma “transplantação” do saber como sugere SODRÉ, mas uma
apropriação, permitindo a reconstrução/construção e enriquecimento do saber local. Com
estas características, talvez seja possível admitir que a produção intelectual brasileira, apesar
de marcada por elementos da cultura européia e mais tarde, pela cultura africana, não perdeu
os traços mais fortes da cultura nativa mesmo que os de fora tenham delineado um saber com
predominância da eloquência e da teatralização. Os traços locais foram manifestados em
determinados momentos com o interesse pelo “sentimento nativista” e pelo “entusiasmo ante a
exuberância dos trópicos”, aliás aspectos ressaltados pela maioria dos cronistas e viajantes que
por aqui passaram (LIMA, 1978, P.28).
A exaltação do ambiente tropical começou a se manifestar em “projeções utópicas que
atuaram na fisionomia da conquista e da colonização” com a carta de Colombo o qual
inaugurou o tom deslumbrante dessa exaltação que se ligaria à posteridade, cuja continuação
foi dada por Caminha que descreveu com entusiasmo as belezas, exuberância e riquezas das
terras tropicais. Reforçou essa visão paradisíaca, a atitude de Antônio Vieira no século XVII,
como lembra CÂNDIDO (1978), aconselhando “a transferência da monarquia portuguesa para
o Brasil, que estaria fadado a realizar os mais altos fins da História como sede do Quinto
Império” (p.141). Foi ainda no período colonial que a formação de uma consciência da classe
dominante, se consolidou através da escolha de aspectos adequados para criar um meio
natural representado na literatura dando forma ao sentimento nativista. Inventou-se e
criou-se, portanto, “um tipo de história por meio da avaliação da mestiçagem e do contato de
culturas” (CÂNDIDO, 1987, P.17), o que para muitos, foi resultado não só da fusão das três
raças, mas, sobretudo, da modificação do que já existia. Uma apropriação, significando não
só imitação ou algo imposto, mas, uma conquista a qual foi “submetida ao processo geral de
colonização e ajustamento ao Novo Mundo” (CÂNDIDO, 1987, P.165). Embora ela tenha se
manifestado como a expressão do colonizador, mostrou, posteriormente, a força da cultura
nativa, afirmando aquela condição atribuída ao homem de leitor do mundo, possibilitando-lhe
se apropriar de culturas diversas e com esse material refazer ou reconstruir o tecido social,
intercambiando os elementos novos com os nativos que configuraram o meio no qual estava
inserido. Essa manifestação demorou a se impor, pois o “colono europeizado herdeiro dos
seus valores e candidato à sua posição de domínio que serviu às vezes violentamente para
impor tais valores”, lutou “contra as solicitações e a princípio poderosas das culturas
primitivas que cercavam de todos os lados”. Uma tensão que atravessou toda a história e,
com maior expressão, a produção do conhecimento, uma vez que a literatura aqui
desenvolvida foi, politicamente, uma “peça eficiente do processo colonizador” (CÂNDIDO,
1987, P.165), mas também, uma forte expressão de liberdade.
Nesse processo tiveram participação, os cronistas e viajantes que no século XIX
percorreram o país através de expedições científicas, cujos trabalhos depois foram reeditados,
contribuindo, assim, para o pensamento social e o projeto editorial que se concretizara de 30 a
40 (MASSI, 1989, p. 392). As obras sobre a flora, fauna, solo, costumes, geografia física e
humana, hidrografia, geologia, se constituíram numa fonte segura e obrigatória para os que
queriam interpretar o Brasil. Assim, esses “cronistas, historiadores, oradores e poetas dos
primeiros séculos” contribuíram de maneira positiva, para a produção do conhecimento desde
o período colonial, descrevendo os costumes dos nativos, as riquezas naturais, exaltando
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sempre sua beleza, exuberância e exotismo. Quase todos “sacerdotes, juristas funcionários
militares, senhores de terra”, além de naturalistas estrangeiros, curiosos em conhecer os
trópicos, registraram em seus livros, suas impressões de viagem e descrevendo, as riquezas, a
beleza e asperezas dos trópicos, objeto de suas investigações. A ciência produzida por eles
seguia o paradigma naturalista e tinha o caráter classificatório. Entre eles, são conhecidos:
Saint-Hilaire, Humbaldt, Darwin, Karl Martius, Louis Couty, Spruce, Johaan Spix, entre
outros (CRUZ, 1993, P.157), como também alguns cronistas econômicos como Ambrósio
Fernandes Brandão e, principalmente, Antonil, que mesmo sem uma metodologia definida,
fizeram uma espécie de etnografia do Brasil nos seus primeiros séculos de história (CHACON,
1977, P.10). Até o século XIX, a ciência feita no Brasil, foi de responsabilidade desses
viajantes estrangeiros que vindos para coletar informações, acabaram contribuindo com seus
estudos. Além de não haver interesse do governo brasileiro pela ciência, os recursos também
eram escassos (SCHWARCZ, 1989, P.26).
Ao lado desses grupos ligados organicamente à Metrópole, a religião católica foi
fundamental como peça nesse processo de dominação cultural, como querem alguns, ou no
processo de apropriação, na urdidura da trama entre culturas nativa e européia. No primeiro
caso, a Igreja através de comemorações de festas religiosas com manifestações literárias,
exerceu explicitamente o controle social sobre os nativos, por meio de “sermões ou
representações teatrais, composições e recitações de poemas” (CÂNDIDO, 1987, P.166).
Essa forma de difusão e veiculação cultural/religiosa, foi um reforço à cultura oral. No
segundo caso, ao trazerem para cá elementos de uma cultura letrada, forneceram material para
uma releitura do mundo pelos nativos, permitindo-lhes através do consumo, produzir um saber
renovado.
Outro instrumento que contribuiu para a produção do saber, foi o documentário,
sobretudo, no século XIX, embora a tendência à essa forma literária tenha se manifestado
desde o início funcionando como uma espécie de retrato completo das condições de vida do
povo, tanto no campo como na cidade (CÂNDIDO, 1987, p.172). Nesse momento quando as
contradições do estatuto colonial afloraram, a classe dominante passou a lutar e desejar a
autonomia política em relação à Metrópole, emergindo “a idéia complementar de que a
América tinha sido predestinada a ser pátria da liberdade, e assim consumar os destinos do
homem do ocidente” (CÂNDIDO, 1987, P.141). Para isso, a literatura jogou um papel
importante como instrumento de exaltação da natureza como é expressa nos poemas de
Gonçalves Dias numa demonstração evidente de que “a idéia de pátria se vincula à de
natureza” já que o atraso material e político era marcante. A natureza exuberante e exótica,
no entanto, mantinha o otimismo reinante, embora as condições concretas da produção
intelectual mostrassem uma realidade pouco animadora com a presença do analfabetismo,
meios de difusão incipientes, um público pouco expressivo, além de condições políticas
desfavoráveis. (CÂNDIDO, 1987, P.141-143).
Esse contexto favoreceu à catequese que no início, poude exercer um papel
fundamental no sentido da desarticulação/integração/apropriação da cultura nativa de que
falam LIMA (1978), CÂNDIDO (1985-1987) e CHARTIER (1990), com autos, poemas
escritos, tanto em “língua indígena” como em “vernáculo” mesmo que em moldes do que se
tinha na Metrópole. Com isso, manifestou-se uma certa dependência cultural (se é que assim
se pode considerar), que se estendeu por todo o período colonial e, posteriormente, com o
hábito usual de línguas estrangeiras, tanto no falar como no escrever.
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Dessas articulações, tanto cultural como política, resultou no que CÂNDIDO (1987)
denomina de “galhos metropolitanos” ou de um “vínculo placentário com as literaturas
européias” (p.151). Até mesmo a concepção de independência e nacionalismo, foi inspirada
em modelos europeus, como no “caso do Romantismo brasileiro, definido em Paris por um
grupo de jovens, que lá estudavam e lá fundaram, em 1836, a revista Niterói, marco simbólico
do movimento” (CÂNDIDO, 1987, P.153). É ainda CÂNDIDO (1985) quem fala de uma
produção literária que dependeu em parte, de um público que era disponível em várias fases,
“começando pelos catecúmenos, estímulos dos autos de Anchieta, a eles ajustados e sobre eles
atuando como lição de vida e concepção de mundo” (p.77). Os locais de recepção eram os
auditórios – de Igrejas, academias, comemorações – não permitindo ao escritor desempenhar
um papel social definido, como diz LIMA (1978), impedindo a formação de um sistema
orgânico, embora ele – o escritor – fosse solicitado pela sociedade. Desse conhecimento
formado com idéias vindas de além-mar e sem possibilidade de se criar uma produção local,
escritor, obra e leitor não poderiam se constituir num elemento organizado. Mesmo porque
não havia imprensa local (na Colônia era proibida), depois a impressão era feita na Europa.
Além do mais os leitores eram reduzidos (analfabetos e desconhecidos da língua portuguesa).
Os letrados liam e escreviam em francês ou inglês.
A vinda da Família Real, não modificou esse quadro substancialmente. E, apesar da
Independência e da campanha abolicionista, as caraterísticas da cultura aqui desenvolvida, não
se modificaram de forma mais profunda: a oralidade continuou a ser um traço dominante
tendo como veículo transmissor da produção do saber, a tribuna e o púlpito. O intelectual
brasileiro se afirmava como orador. Mesmo que “o Romantismo tivesse tipografias à sua
disposição”, o conhecimento produzido continuou a ser cúmplice da oralidade. E a maneira
de converter a página escrita em forma oral, consistia em oferecer uma leitura fácil, fluente,
embalada pela ritmicidade. A presença da Igreja materializada pela “ação dos pregadores”
reforçada pelos “conferencistas de academias, dos glosadores de mote, dos oradores nas
comemorações, dos recitadores de toda hora, correspondia a uma sociedade de iletrados,
analfabetos e pouco afeitos à literatura” (CÂNDIDO, 1985, P.81).
Em tais circunstâncias, ao invés de se formar um público leitor, formou-se um público
auditor, sem grande necessidade da página impressa, enfatizando-se a oratória como “timbre
de boa leitura” prejudicando, “entre nós a formação dum estilo realmente escrito para ser lido.
A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e perfigura
um leitor que ouve o som de sua voz brotar a cada passo por entre as linhas” (CÂNDIDO,
1985, P.81). Foi assim que se criou o homem de palavra e não da reflexão, pois falar aos
grupos com eloquência, com exibição afetiva, era mais fácil de ser aceito, do que refletir em
textos escritos sobre as questões postas à sociedade. Isso foi decisivo na literatura,
imprimindo-lhe uma marca até hoje presente: a retórica: HOLANDA (1989) expressa bem
esse procedimento dizendo que “Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental acurado e
fatigante, as idéias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da
inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria” (p.117).
Apesar da criação das Escolas de Direito no século XVIII, a palavra oralizada,
permaneceu e até foi reforçada e legitimada. Essas instituições de ensino superior poderiam
ter sido o instrumento de oposição à cultura oral para desenvolver a prática da reflexão e da
teorização através do texto escrito. No entanto, não foram capazes de o fazer. Ao contrário,
trouxeram a preocupação com o título de bacharel como forma de legitimar uma posição
social, favorecendo a ascensão social do seu portador, a uma situação política para os filhos da
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Europa e a preocupação com a República que se formava, defendida pelos intelectuais que
debatiam sobre a nacionalidade brasileira.
Tanto MARTINS (1987) como MASSI (1989), admitem que para se recuperar a
história do pensamento brasileiro ou mesmo da sua “origem” dessa preocupação que se tornou
“quase uma obstinação, tantas vezes reiterada, em desvendar, mapear, estudar e diagnosticar a
realidade brasileira”, deve-se buscar na “geração modernizadora de 1870” a grande alavanca
da produção intelectual “sobre o país, através da ciência emergente” (p.359). A realidade
brasileira, desde então, passou a se constituir num conceito chave para reinterpretar o passado
nacional, interpretar e diagnosticar o presente (MASSI, 1989, p. 365). O século XIX
forneceu, mesmo apresentando contradições, sinais de uma fase já de “amadurecimento no
processo de adaptação da cultura e da literatura” como assinala CÂNDIDO (1987), que lembra
o Romantismo como essencial, pois o seu aparecimento coincidiu com o processo de
independência política, o qual foi associado ao sentimento nacionalista, tornando-se, dessa
maneira, autenticamente brasileiro, no sentido de expressar uma brasilidade em tudo o que
fosse patético, sentimental, confidencial (p.168-175). A produção literária serviu pois, para
construir a Nação.
Expressando as contradições que atravessaram o conjunto da sociedade, a literatura,
tanto do período colonial como nos posteriores, foi mesclada de um movimento, de articulação
do geral com o particular como se pode conhecer através do Barroco que criou hábitos
grandiloqüentes, expressão concreta do colonizador e o Romantismo que significou o espírito
nacional (CÂNDIDO, 1987, P.176), contribuindo, assim, para a formação dessa consciência
que vai se manifestar mais sistematicamente nas duas primeiras décadas deste século,
marcando uma ruptura nos anos 20/30, com o aparecimento do ensaio de caráter mais
interpretativo.
Os anos 20 deste século, foram marcados por manifestações que estavam por vir: a
criação do Partido Comunista do Brasil, a Semana de Arte Moderna, o Tenentismo,
culminando com a Revolução de 30, os quais demonstraram que o Brasil já não era aquele
país da oralidade, da crônica e dos saraus. Agora as preocupações eram de outra ordem.
Elas foram, através do ensaio histórico-sociológico, direcionadas para se construir a identidade
nacional. O ensaísmo dessa década assumiu um caráter particularista, discutindo a questão
nacional mesmo que fundamentado nos modelos europeu e americanos, amparado no
positivismo comteano, no evolucionismo spenceriano, como foi expresso nos escritos de
Oliveira Viana que, apesar de ter formação rural pois era um homem do campo, inspirou-se
em Le Play, Demolin, Gabriel Tarde e Sílvio Romero. Usou o método antropogeográfico,
inspirado em Ratzel e o antropossociológico de Gobineau, Lapange, Amaron, Robot, Sergi,
Lange e Le Bons, os quais seguiam a escola do determinismo geográfico de herança francesa
(CRUZ, 1993, p.154). Como ensaísta destacado, assumiu uma perspectiva teórica dualista,
apontando contrastes, oposições e polarizações. Foi um crítico da 1ª República e um opositor
ao liberalismo, defendendo um Estado forte.
Gilberto Freire, transitando entre a política e a academia, foi um dos ensaístas mais
conhecidos. Como aluno de Boas, o responsável pelo seu veio teórico, desenvolveu muito
bem os ensinamentos do mestre: o relativismo cultural e a recusa ao determinismo racial e
geográfico, marcas da sua produção desde os anos 20, distinguindo-se porém dos seus pares.
Foi crítico literário, liderou no Recife o movimento regionalista e tradicionalista, abrindo
caminho para o romance nordestino (MASSI, 1989, p.403).
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Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil (1936), aumentou a tensão entre os
“interpretativistas” com o “homem cordial”, além de uma contribuição significativa no
jornalismo e na crítica literária. Fundou a Revista Estética, participou da Semana de Arte
Moderna em 22 e da Revista Klaxon.
Esses pensadores alguns com formação positivista e eclética, tinham trânsito entre
esferas distintas do conhecimento, o que consistia numa prática comum. SANTOS (1978)
considera que esse pensamento teve “origem na agitação intelectual de Tobias Barreto e Sílvio
Romero no norte do país, o qual irá influenciar toda a uma geração de militantes doutrinados
por mestres convertidos ao positivismo” (p.37). A partir dessa agitação desenvolveu-se uma
preocupação com a cultura e com a identidade nacional, porém numa visão romântica do
Brasil, dando ao ensaio características descritivas sobre os costumes, a cultura, a economia, a
religião, o meio físico e a raça, com base na teoria do conflito racial. A explicação do Brasil
partia da concepção naturalista e factual, exaltando-se o espírito empreendedor e a
superioridade racial. O nacionalismo vindo de 1870, estava presente em todos eles. Mas
também, o desejo de conhecer melhor a realidade, suas peculiaridades e suas possibilidades.
“O empenho em conhecer, desvendar, investigar e mapear o Brasil e a sua realidade, bem
como a tentativa de traçar simultaneamente os contornos da identidade nacional e da
identidade social dos intelectuais brasileiros, inicia-se, de maneira sistemática, com a geração
de 1870. Ela deu origem a uma busca que tenderá a se renovar e se ampliar sob outras bases
e pressupostos, nos anos 20, explodindo nos anos 30”. É uma explosão de “retratos” do
Brasil ou como querem outros, de “explicadores do Brasil”, ou ainda, uma tentativa de
“reinventar o Brasil” (MASSI, 1989, p.363-364).
Os trabalhos assumiram “no contexto em que são produzidos, um caráter imaginário:
procuram ‘inventar’ a cultura para legitimar a ‘invenção’ da identidade nacional. O autor que
conseguir articular esses dois elementos terá decifrado o dilema de todos e dará o salto para
uma nova etapa dos estudos sociais”. Segundo BASTOS (1986), quem conseguiu esse salto
foi Gilberto Freire. (p.6). A renovação e a ruptura, coube a Caio Prado Júnior.
Difícil dizer que se formou, a partir da colônia, um pensamento social articulado. Mas
o conjunto da produção, embora desarticulada, vai se religando, dirigindo-se, naquela época, a
um público definido: auditórios das Igrejas e convivas dos saraus, embora posteriormente
tenha mudado, tanto no conteúdo como no público receptor, formando uma trama que talvez,
possa ser considerada hoje como um sistema orgânico.
Depois desse percurso poder-se-ia apontar como característica da cultura brasileira, o
predomínio da auditividade ou oralidade, isto é, uma cultura que privilegiou o conhecimento
oral, apesar de se desenvolver no seio de uma civilização da escrita, uma vez que “a palavra é
escolhida e a frase composta de maneira a suscitar um efeito que se quer o mais imediato
possível” (LIMA, 1978, p.35) um “efeito de impacto sobre o receptor”. Cultura introduzida
pelos jesuítas. cujo “efeito de impacto produzido consistia em impressionar o auditório, em
esmagar a sua capacidade dialogal, em deixá-lo pasmo e boquiaberto ante a perícia verbal e a
teatralização gesticulatória, maneiras de rapidamente subjugar o auditório. Pois a cultura
auditiva é predominantemente uma cultura de persuasão. Mas da persuasão sem o
entendimento” (LIMA, 1978, p.35). Tanto que aparecem autores com traços de auditividade
como Vieira, Alencar o indianista, Gonçalves Dias o melódico e Gilberto Freyre. Traços
encontrados não só no Barroco, mas passando pelo romantismo e pelo modernismo, pois é um
estilo sedutor, não só por inspirar o horror, o medo do pecado, mas por assumir “tom
acariciante, de conversa à beira da rede ou ao pé do fogo, de conversa despreocupada” (LIMA,
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1978, p.36). Mas também, uma cultura da praticidade, do imediato, desenvolvida com a
crônica e o ensaio que depois assume um caráter mais interpretativo. Além dessas
caraterísticas, uma outra pode ser apontada: como na economia, foi uma cultura voltada para
fora no sentido de exteriorização, de aparência, ostentação externa e desmazelo interno.
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