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O EGITO ANTIGO

INTRODUÇÃO
Houve uma época em que os estudiosos acreditaram que a civilização do
antigo Egito fora a primeira na história mundial e a progenitora de todas as outras.
Sabemos, agora, do engano de tal opinião, mas os antigos egípcios conservaram uma
singularidade: eles foram o primeiro povo na Terra a criar um Estado-nação.
Pouco depois de aparecerem na Suméria, os primeiros sinais de civilização
podem ser vistos no Egito. Se os egípcios aprenderam com os sumérios, o que parece
provável, não se sabe como, o que e até que ponto.
Incorporando crenças espirituais e aspirações de seu povo, esse Estado, em
todas as suas manifestações superiores, se estabeleceu como uma teocracia. Ele
funcionou como a moldura de uma cultura extraordinariamente forte, confiante e
duradoura, que se estendeu por três mil anos, mantendo praticamente até o fim sua
inequívoca pureza de estilo. No Egito da antiguidade, Estado, religião e cultura
formaram uma unidade incontestável, ascendendo e decaindo conjuntamente.
Portanto, conjuntamente eles têm de ser estudados.
Um outro elemento essencial se fez presente nessa unidade criativa: a terra.
E impossível conceber a civilização do antigo Egito sem considerar sua peculiar
situação geográfica. O país se alimentou dos fatores físicos de sua localização,
dependendo deles ininterruptamente: a circunscrição do deserto, o ritmo do Nilo e
seu vale produtivo deram aos egípcios e à sua cultura características fundamentais,
como estabilidade, permanência e isolamento.
Como no sul da Mesopotâmia, a maior parte da explicação para o
desenvolvimento da civilização egípcia é fornecida pelo cenário natural. A mudança
climática pré-histórica secara gradualmente a maior parte do norte da África para
além do Vale do Nilo. No entanto, aquela estreita faixa de terra fértil tornou-se
suficiente para sustentar uma população significativamente expressiva. A lama
(húmus fertilizante) trazida das terras altas do interior e ali depositada facilitou a
agricultura. Nas margens lodosas de 1.100 quilômetros de comprimento e algo em
torno de seis ou vinte quilômetros de largura, os primeiros egípcios puderam iniciar a
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agricultura. Suas terras se transformaram lentamente num oásis comprido e isolado,
cercado de desertos e montanhas.
De fato, os egípcios se conscientizaram tanto da imobilidade quanto do
isolamento nacionais. Eles supuseram ter sempre habitado o vale do Nilo como
uma raça diferenciada, imaginando que o território, com seus desertos
circundantes, existira desde a Criação.
Nenhuma dessas duas suposições estava correta: até mesmo o Egito e seu
povo se sujeitaram às lentas transformações do tempo. Como grande parte da
África, houve uma época em que todo o Egito foi habitável. Por volta de 10.000
a.C., no último período do paleolítico médio, as chuvas locais diminuíram
aceleradamente. As pastagens e savanas da planície egípcia se transformavam em
deserto.
Mais tardiamente, em 2.350 a.C., a média pluvial no Egito ainda era muito
mais alta do que a de nossos dias (superior a 15,24 centímetros por ano), mas
continuou a decrescer ao longo da história. Quase todo o país se tornava, assim,
cada vez mais inóspito para animais e seres humanos. A quantidade de
hipopótamos, gazelas, búfalos e avestruzes diminuía gradativamente. Durante o
tempo dos faraós, onagros, gados selvagens, avestruzes e leões continuaram a ser
intensamente caçados.
Nos primeiros dez anos de seu reinado (1.413 - 1.403 a.C.), Amenófis III
vangloriou-se de ter matado, com as próprias mãos, 102 leões; duzentos anos
mais tarde, no pilono (pórtico) de pedra de seu templo em Madinat Habu, Ramsés
III esculpiu o esplêndido panorama de uma caçada régia de onagros e touros. Na
época romana, existiram, de fato, muitos hipopótamos no delta do Nilo, mas, em
geral, o crescimento do deserto foi inexorável, direcionando a fauna das planícies
para um sul cada vez mais longínquo e obrigando os seres humanos a irem para os
oásis, sobretudo, para o vale do Nilo.
O Nilo parece ter começado a adquirir seu curso atual há cerca de dez mil
anos. No tempo em que as planícies secavam, a chuva das florestas africanas e as
neves que derretiam na Etiópia criaram a inundação anual, transformando o
grande rio em um construtor geográfico. Através das rochas graníticas e da
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extensão de arenito quase tão ao norte quanto a antiga Tebas, ele abriu caminho em
direção ao sul da Primeira Catarata; orientou-se, então, pelo planalto de pedra
calcária até o mar Mediterrâneo, onde englobou o delta aluvial. Esculpindo nas
rochas uma sucessão de várzeas e terraços multiplicados pelos sedimentos carregados
pela corrente, o Nilo criou um oásis contínuo de 1.200 quilômetros de
comprimento ao longo de todo o seu trajeto, da Primeira Catarata até o mar.
Enquanto a savana se tornava deserto, o homem paleolítico começou a
descida para os terraços do Nilo, direcionando-se, em seguida, para o fundo do
vale, inicialmente pantanoso. Por muitos milênios, a região desde a Primeira
Catarata até Tebas foi um lago, ao passo que grande parte do delta permaneceu
alagadiça até a nossa era. Potencialmente, entretanto, possuindo 21.280
quilômetros quadrados no próprio vale e, mais distante, 23.200 quilômetros
quadrados no delta, ela era uma fértil terra agrícola.
O Nilo não forneceu apenas água confiável, mas também excelentes
depósitos aluviais e fertilização. Por volta de 5,000 a.C., os caçadores paleolíticos
das planícies se transformaram em agricultores neolíticos e pastores do vale e do
delta, formando a economia agrícola do Egito histórico. Faltou completar a
conquista da terra pantanosa e começar o aproveitamento do rio com diques,
barragens, reservatórios e canais. Foi aí que a história do Estado egípcio se
encontra com a da cultura produzida por ele.
O aluvião do Nilo torna o solo negro. Desde os tempos mais remotos, os
egípcios dividiram o país em duas partes: keme, a negra (isto é, a cultivável e
habitável), e deshret, a vermelha, ou o deserto. Tal dualismo parece ter sido
incorporado pela personalidade egípcia. O próprio país foi visto como dividido em
duas metades: o vale, ou o Alto Egito, e o delta, ou o Baixo Egito; esse último, por
sua vez, foi separado em um lado ocidental, líbio, e outro oriental, asiático.
A configuração geográfica do Egito completou-se com suas barreiras
externas: ao sul, as cataratas cortam o país; ao oeste, o Deserto Líbio; ao leste, o
Deserto Oriental, o Mar Vermelho e o Deserto do Sinai; e, ao norte, o Delta, que,
com seus pântanos e canais em constante movimento, constituíram tanto um
obstáculo quanto uma saída.
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Isolado do resto do mundo, o Egito foi dominado pelos ritmos sazonais de
seu rio. O Nilo e sua própria inundação, chamada Hapi, eram venerados como
deuses. Hapi era barbado, com plantas germinando de sua cabeça e seios femininos
pendurados no corpo, simbolizando a fertilidade. Os egípcios acreditavam que ele
extraía seu poder (as águas da inundação) das bacias subterrâneas em volta da
Primeira Catarata; mesmo muito tempo depois de essa explicação ter sido
apresentada como falsa, eles adoraram fervorosamente os deuses da região e, diga-
se, com razão, já que o Nilo talvez seja o rio mais benéfico e confiável de toda a
Terra: a conjunção dos dois rios que o originam, o Nilo Branco e o Nilo Azul, aliada
à sua longa jornada pelo planalto, em vez de uma catástrofe imprevisível, oferece um
sistema anual seguro à inundação.
A civilização egípcia desenvolveu-se mais ou menos na mesma época que a da
Mesopotâmia, outra região caracterizada por vales e planícies aluviais. Enquanto o
Tigre e o Eufrates trouxeram, além da vida, crueldade e destruição intermitentes,
transmitindo um elemento de insegurança e pessimismo à filosofia cultural do povo,
o Nilo nunca foi uma fúria, mas, ao contrário, um amigo.
Isto se constituiu numa importante diferença em relação à antiga
Mesopotâmia, como cenário para um novo estágio no desenvolvimento humano. Os
egípcios não precisavam de trabalhos de recuperação de terras como os sumérios. O
rio Nilo era muito mais regular do que os rios Tigre e Eufrates. Como eles, enchia
todos os anos, mas o fazia de forma previsível; suas inundações não eram desastres
repentinos e surpreendentes e sim bastante regulares, de forma que estabeleciam o padrão
para o ano agrícola. O Nilo era um enorme relógio regulando a vida dos antigos egípcios
num ritmo invariável, ano após ano.
Apesar disso, seu desempenho era variável, como continua até hoje. Entre a
baixa das águas e a inundação, o volume aquático do Nilo Azul, por exemplo, eleva-se,
em média, de 2.133 m3 por segundo para mais de 106.680. Em Elefantina, próximo à
Primeira Catarata, e no Velho Cairo, onde o vale se encontra com o delta, os antigos
egípcios estabeleceram os “nilômetros”, marcos de pedra à margem do rio para
registrar e até predizer seu comportamento. O testemunho desses respeitáveis
dispositivos mostra que uma subida ao ponto de 6,40 metros era perigosamente baixa,
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enquanto, se o nível das águas atingisse ou ultrapassasse 8,53 metros, era sinal de futuras
inundações danosas; o desejável, ou o “normal”, era que o marco acusasse uma
profundidade de 7,60 metros ou 7,90 metros.
Até a construção recente de altas barragens, o Nilo comportou-se praticamente
da mesma maneira que na Antiguidade. Em junho, entre Assuã e o delta, quando a
água verde aparecia, ele começava a aumentar seu volume. Em agosto, subia
bruscamente, ganhando uma cor avermelhada. O aumento continuava até meados de
setembro; após três semanas de pausa, ele enchia ainda mais em outubro. Daí em diante,
durante o inverno e a primavera, sua maré baixava lentamente, alcançando de novo, em
maio do ano seguinte, seu ponto mais baixo.
Esse lento, deliberado e prognosticável ciclo anual do rio era, e ainda é,
acompanhado de um clima extraordinariamente regular. No Egito, o céu é ensolarado e
desanuviado. A precipitação pluvial no Alto Egito é praticamente nula; na região do
Cairo, ela é por volta de 5,10 centímetros, e no delta, onde as chuvas caem no inverno,
alcança 15,24 centímetros ou um pouco mais. A combinação de sol constante com
água apropriada, somada ao adubo natural, proporciona excelentes safras.
Escrevendo no quinto século antes de Cristo, Heródoto afirmou que os
camponeses egípcios levavam uma vida fácil, o que não era verdade: em algumas épocas
do ano, principalmente após a baixa da água da inundação, os lavradores tinham um
árduo trabalho pela frente. O ano agrícola começava quando as águas transbordavam.
A semeadura, então, tinha de ser realizada rapidamente, enquanto a terra estava macia.
Ao mesmo tempo, a grande quantidade de valas e canais necessitava de limpeza e
restauração. Amadurecidos sob o sol do inverno, os produtos agrícolas eram colhidos na
primavera, enquanto a temperatura estava amena. O processo tinha de estar concluído
até o fim de maio, quando as águas voltavam a subir. O ano agrícola era constituído,
portanto, de três temporadas: a da inundação, a da semeadura e a da colheita. Para sorte
dos egípcios, coincidindo com o tempo mais quente, a época da inundação era quando
havia menos trabalho a fazer.
O rio não proporcionou apenas fertilidade, mas também transporte. Variando de
cerca de 8 a 24 quilômetros de largura, a terra habitada do vale era o local de plantio
dos principais produtos agrícolas, como o trigo, a cevada e o linho. Inúmeros canais que
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corriam de norte a sul dividiam o delta, usado basicamente para pastagem. Todos os
lugares do Egito em que as pessoas moravam e trabalhavam estavam numa faixa de
poucos quilômetros acessível pelo rio. Por esse motivo, a roda tardou a chegar ao país,
sendo encontrada em antigas representações de máquinas de guerra, mas não em
carroças.
Mil anos antes das carruagens serem comuns no Egito, as rodas já eram usadas na
Mesopotâmia. Graças ao rio também, o Egito foi o país da Antiguidade com melhor
comunicação interna. Desde o momento em que os egípcios desceram os terraços do
Nilo, construíram barcos utilizando-se, com considerável talento, da insatisfatória
madeira do sicômoro, a única árvore que o país produzia em abundância. Ao longo de
todo o ano, mesmo quando as águas estavam baixas, os barcos guiados por esparrelas
podiam navegar rio abaixo, viajando pela corrente. Carregados com o peso colossal das
pedras, barcos e balsas seguiam seu curso. Durante a inundação, no fim do verão e no
outono, eles podiam facilmente entregar suas cargas quilómetros acima dos nilômetros.
Foi o rio que fez com que a logística da pesada cultura de pedra do Egito não se tornasse
apenas possível, mas comparativamente barata.
O transporte rio acima também era pouco dispendioso, pois o vento
predominante do Egito sopra, durante todo o ano, do norte, o que é mais um
exemplo da natureza favorável do país. Remos precisavam ser usados apenas durante os
poucos períodos de completa calmaria, já que os egípcios logo desenvolveram as muito
eficientes velas triangulares, que acolhem a suave, entretanto persistente, brisa do norte;
essas velas ainda são muito utilizadas em nossos dias. Nos hieróglifos egípcios, o
determinativo “em direção ao norte” manifesta um simples barco, enquanto o “em
direção ao sul”, um barco a vela.
Apesar da secura do Egito, o Nilo fez do país uma das regiões mais desejáveis
para o homem antigo. Em épocas pré-históricas, essa enorme vantagem natural não foi
um estímulo à letargia, mas ao aperfeiçoamento. Mesmo que, às vezes, tenha sido
parcimonioso, o Nilo nunca falhou. A antiga história bíblica de José e os sete anos de
escassez seguindo outros tantos de fartura, que se refere a um momento do Segundo
Período Intermediário, reflete uma tradição egípcia arcaica de sete baixas consecutivas
do Nilo. A indocilidade do rio estimulou a criação e a organização de uma economia de
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armazenamento — o próprio rio tornou possível o envio de grãos de uma extremidade a
outra do país. Ainda mais importante do que esses dados é o fato de o rio ter
incentivado a ampliação da área drenada e irrigada, o que exigiu grande capacidade
organizacional e árduo trabalho.
Heródoto parece não ter observado que a parte predominante da área cultivada
não era afetada pela inundação. Enquanto as plantações essenciais eram cobertas pelas
águas do rio na devida estação, sendo, portanto, autoirrigadas, as outras, produzidas nas
terras mais altas, acima da linha da inundação, tinham de ser aguadas durante todo o
ano. A água era trazida diretamente do rio por uma engenhosa invenção antiga, ainda
em uso, chamada shaduf, ou era capturada na época da inundação em inúmeras bacias
artificiais. Em seguida, era canalizada para campos e plantações por uma rede de
canaletes e canais infinitamente intricados. Esses canais, cuja largura variava de 2,5 ou 5
centímetros a muitos metros, podiam ser abertos ou fechados durante a estação de
crescimento dos alimentos. Eles foram construídos por muitos séculos e até mesmo por
milênios. A construção, o funcionamento e a manutenção desse sistema envolviam
uma labuta constante, visto que, os lavradores egípcios cujas terras ficavam abaixo do
nível da inundação ainda tinham de operar o próprio sistema individual de irrigação, que
mantinha e aumentava os canais e as barragens comunitárias, além de terem de
participar, como todos os trabalhadores agrícolas, da corveia compulsória.
Por outro lado, foi exatamente a natureza comunitária da irrigação artificial e do
controle da inundação que deu o impulso inicial ao Estado egípcio. Nesse ponto, a
história do Egito se diferenciou da de outros vales e planícies aluviais, como o Tigre-
Eufrates e o Indo, que propiciaram o desenvolvimento das primeiras civilizações.
Atualmente, não há mais dúvida de que a região do Oriente Próximo pode
reivindicar a primazia do movimento em direção à civilização.
Nos anos 1950, investigações arqueológicas em Jericó, Hacilar e Çatal Huyuk, na
Turquia, proporcionaram uma nítida evidência de que a assim chamada “Revolução
Neolítica” já havia acontecido em 8.000 a.C. Não há testemunho comparável em
relação ao Egito; todo o período entre 10.000 a.C. e 5.000 a.C. deixou no país
pouquíssimos vestígios, e o conhecimento atual revela que o Egito, como precursor da
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civilização, foi comparativamente lento na mudança para a época da especialização
econômica.
Confrontado com o Oriente Próximo no que diz respeito à criação de cidades, o
Egito, mais uma vez, demorou a se desenvolver. Em meados do quarto milênio (3.500
a.C.), onde atualmente é o sul do Iraque, os sumérios ocupavam cidades relativamente
grandes; nessa época, os egípcios viviam em nada maior do que aldeias. Com grandes
templos citadinos e um governo civil, a Suméria parece ter estado centenas de anos à
frente do vale do Nilo, no que diz respeito ao desenvolvimento de um modelo
essencialmente urbano de troca e manufatura.
Os egípcios foram, entretanto, igualmente inovadores transformando diretamente
a aldeia em um Estado-nação que, além de cobrir amplo território, não era unificado
pelas fronteiras de uma cidade, mas por uma cultura comum e uma economia nacional.
Por volta de 3,100 a.C., quando a Mesopotâmia era um conjunto de pequenas Cidades-
Estados, o salto dado pelos egípcios lhes permitiu a conquista de uma unidade nacional.
Se nesse processo de unificação o Nilo, por sua mera existência física, foi um fator de
centralização, ele o foi ainda mais pelo exemplo de um esforço comunitário decisivo,
estimulado por ele.
As características determinantes do povo egípcio emergiram na segunda metade
do quinto milênio, durante o período badariano, e, sobretudo, no quarto milênio antes
de Cristo, dividido por conveniência arqueológica nos períodos Primeiro Naqada e
Naqada Tardio. Apesar de nascidos da mesma linhagem dos nômades que viviam nos
desertos, os egípcios que desceram para o vale do Nilo e para o delta se tornaram tanto
agricultores como navegadores autoconscientes, levando um tipo de vida diferente do
dos habitantes do deserto. Essa diferença não foi causada pela diversidade de raça, mas
de paisagem: assim como o povo da Líbia, ao ocidente, e da Núbia, ao sul, os nômades
permaneceram presos a um estágio inicial de desenvolvimento, enquanto os moradores
do Nilo progrediram firmemente explorando o rio e suas margens.
As primeiras organizações sociais do vale do Nilo foram povoações autônomas,
cada uma com um deus totêmico animal (frequentemente vacas ou touros). Durante o
quarto milênio, surgiram aldeias ou grupos de aldeias mais importantes, como os foci de
distritos, que foram os precursores dos posteriores nomos, áreas administrativas nas quais
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o Egito dinástico continuou a ser dividido ainda depois de a unidade ter sido assegurada.
Os chefes locais eram os antepassados dos futuros nomarcas, que, muitas vezes, podiam
traçar suas linhagens de poder até os próprios faraós. Os totens distritais se
transformaram em emblemas dos nomos, ornando escudos e estandartes, além de
aparecerem, paulatinamente, nos artefatos. Esses emblemas constituíram o panteão
original dos deuses egípcios, oferecendo a documentação mais antiga da história
da nação.
Desde tempos remotos, os habitantes do Nilo pintavam os olhos com
finalidades medicinais e estéticas, sendo que as paletas nas quais umedeciam o pó
resultaram em importantes objetos da arte cerimonial. Mais de uma dúzia dessas
notáveis paletas votivas sobreviveram desde o quarto milênio antes de Cristo;
retratam o aparecimento de unidades sociais cada vez maiores, representadas por
seus emblemas e acompanhadas por rudes hieróglifos. O imperialismo dessa
aldeia pode ser visto, em estágio bem avançado, na Paleta Tjehnu, no Museu do
Cairo, onde a coalizão dos nomarcas-chefes (leões, falcão e escorpião) é
representada pela captura de centros fortificados, cujas muralhas são derrubadas
por aríetes; o outro lado da paleta mostra o gado tomado na pilhagem.
A consolidação do vale e do delta em unidades maiores não foi
necessariamente um processo agressivo. Segundo tradição manifestada nas tardias
biografias das tumbas dos nomarcas, a honra maior era prestada aos chefes que
governavam sua região de maneira segura nos períodos de baixa do Nilo. Além de
expandir a terra fértil drenando pântanos e produzindo irrigações, esses
governantes criaram condições eficazes de armazenamento e distribuição. Uma das
distinções honoríficas mais antigas foi a de “Escavador de Canais”. A ênfase da
liderança era colocada na habilidade organizacional e na capacidade de inspirar
o esforço coletivo. Desse modo, os distritos se juntavam e se expandiam por um
processo voluntário de união.
Apenas no estágio conclusivo do desenvolvimento pré-dinástico a força
parece ter sido empregada para agrupar diversas unidades de médio porte em apenas duas
grandes e, eventualmente, em um país unido. Nesse processo, os deuses lutavam ao lado
dos homens: as figuras totêmicas dos distritos e povoados canibalizavam divindades
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individuais, absorvendo seus poderes. Tais lutas obscuras fundamentaram os mitos
posteriores e se manifestaram na história, constituindo a estrutura da politeologia do
Egito. Estabelecendo a teoria egípcia da vida e da morte, os combates mais importantes
foram o assassinato e o esquartejamento de Osíris por seu irmão Set e a briga constante
de Hórus, filho de Osíris, contra Set. Hórus, o deus-falcão, veio do Delta-Norte,
enquanto Set, associado a desertos e tempestades, do Sul. A identificação de Hórus com
o bem e a realeza, enquanto Set, em certo sentido, era vinculado ao mal, aos demônios e
aos estrangeiros, sugere que, em algum momento, o Delta-Norte dominou o Sul, apesar
de ter sido esse último que absorveu o Norte no período decisivo da unificação final.
O progresso do Egito em direção à unidade do Estado e a evolução de seu pensamento
religioso avançaram simultaneamente, interagindo a cada etapa do processo.

CRONOLOGIA DA HISTÓRIA EGÍPCIA


Dinastias Período Data
Período Pré-dinástico 3.300 – 2.920 a.C.
I e II Período Protodinástico 2.920 – 2.670 a.C.
III - VIII Antigo Império 2.670 – 2.150 a.C.
IX e X Primeiro Período Intermediário 2.150 – 2.100 a.C.
XI e XII Médio Império 2.100 – 1.750 a.C.
XIII - XVII Segundo Período Intermediário 1.750 – 1.550 a.C.
XVIII - XX Novo Império 1.550 – 1.076 a.C.
XXI - XIV Terceiro Período Intermediário 1.076 – 712 a.C.
XXV - XXX Época Tardia 712 – 332 a.C.
XXXI Período Greco-Romano 332 – 30 a.C.

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DE CADA PERÍODO:


PERÍODO PRÉ-DINÁSTICO (3.300 – 2.920 a.C.)
As povoações do Vale do Nilo aglomeram-se em torno de dois centros
principais: ao norte (Baixo Egito), na zona do Delta, e ao sul (Alto Egito), em
Hieracômpolis (anteriormente chamada de Nekhen e depois de Kom el-Ahmar, ou
seja, “Morro Vermelho”). A necessidade de organizar uma vida social nos primeiros
centros proto-urbanos reforçou a necessidade de uma autoridade central que se
concretizou na figura do rei. Em Hieracômpolis, comprovou-se a existência de
alguns reis, como o Rei Escorpião (ou Selk) e Narmer (ou Menés). Menés, último rei
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do Período Pré-dinástico, conquista o Baixo Egito, unificou o país e considerado o
primeiro Faraó.

PERÍODO PROTODINÁSTICO (2.920 - 2.670 a.C.)


Horo Aha, que provavelmente assume o nome de Menés funda a I Dinastia e
estabelece uma segunda capital em Mênfis para poder controlar melhor o país
recém- unificado. Os reis das primeiras dinastias eram originários de Tis, ou Tinis,
um lugar ainda não localizado, mas que devia estar na região de Abido, no Alto
Egito; suas tumbas encontram-se no cemitério real de Abido.
I Dinastia (cerca de 2.920 – 2.770 a.C.)
Principais soberanos: Aha (Menés),Horo Zer (Rei Serpente),Qaa.
II Dinastia (cerca de 2.770 – 2.670 a.C.)
Principais soberanos: Hotepsekhemui,Peribsen,Khasekhemui.

ANTIGO IMPÉRIO (2.670 – 2.150 a.C.)


Zoser translada a capital para Mênfis e constrói a primeira pirâmide da
história egípcia em Saqqara.
Com Snefru, fundador da IV Dinastia, passa-se da pirâmide escalonada para
a pirâmide propriamente dita (Gize). Userkaffunda a V Dinastia, durante a qual se
reforça o culto da divindade solar. São construídas as pirâmides de Abusir e os
templos solares. Unas constrói sua pirâmide em Saqqara: pela primeira vez no
interior deste tipo de monumento são esculpidos os célebres Textos das Pirâmides.
Com o fim da VI Dinastia o poder real diminui e começam as tendências
independentistas.
III Dinastia (cerca de 2.670 – 2.570 a.C.)
Principais soberanos: Setnakht, Zoser, Sekhemket.
IV Dinastia (cerca de 2.570 – 2.450 a.C.)
Principais soberanos: Snefru, Khufu (ou Quéops), Khaf-re (ou Quéfren), Men-kau-Ra
(ou Miquerino).

V Dinastia (cerca de 2.450 – 2.300 a.C.)


Principais soberanos: Userkaf, Sahure, Neferirkare Kakai, Niuserré, Unas.
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VI Dinastia (cerca de 2.300 – 2.150 a.C.)
Principais soberanos: Teti, Pepi I, Merenré, Pepi II

I PERÍODO INTERMEDIÁRIO (2.150 – 2.100 a.C.)


Fase de declínio do poder central – dinastias VII e VII.
Os soberanos das dinastias IX e X estabelecem-se em Heracleópolis.
Numerosos reis efêmeros.

MÉDIO IMPÉRIO (2.100 – 1.750 a.C.)


Com a XI Dinastia inicia-se um período de grande prosperidade. Restabelece-
se o poder com uma dinastia de príncipes tebanos. Durante esta dinastia, o faraó
Mentuhotep ordena a construção em Deir el-Bahari de um grande templo funerário.
Amenemés 1 constrói a pirâmide norte de Lisht. Sesóstris I conquista a Núbia e
constrói a pirâmide sul de Lisht. Amenemés II constrói uma pirâmide em Dahshur,
Sesóstris II manda edificar a de el-Lahun e Sesóstris III erige outra em Dahshur.
Amenemés III edifica a pirâmide de Hawara junto com o grande templo funerário
anexo, conhecido pelo nome de Labirinto.
XI Dinastia (cerca de 2.100 – 1.955 a.C.)
XII Dinastia (cerca de 1.95 – 1.750 a.C.)
Principais soberanos: Amenemés I, Sesóstris I, Amenemés III.

II PERÍODO INTERMEDIÁRIO (1.750 – 1.640 a.C.) e PERÍODO DA


DOMINAÇÃO DOS HICSOS (1.640 – 1.550 a.C.)
Declina o poder real e a Núbia converte-se em Estado independente. Uma nova
dinastia (que já não descende dos soberanos tebanos) estabelece sua capital na parte
ocidental do Delta.
Os hicsos invadem o Egito e fixam sua capital em Aváris, no Delta. Introduzem a
biga puxada por cavalos. Por volta de 1550 a.C., o faraó tebano Amósis expulsa os
invasores.
XIII Dinastia – Cerca de 70 reis.
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XIV Dinastia – Grupo de reis menores, provavelmente todos contemporâneos da
XIII ou da XV Dinastia.
XV Dinastia (hicsos)
XVI Dinastia
XVII Dinastia – Numerosos reis tebanos.

NOVO IMPÉRIO (1.550 – 1.076 a.C.)


Tutmés I conquista a Núbia Alta. É o primeiro faraó que manda construir sua
tumba no Vale dos Reis.
Sua irmã Hatshepsut sobe ao trono e manda construir o templo funerário em
Deir el-Bahari. Tutmés III conquista a Síria e estende a influência do Egito no
Oriente Próximo. Tutmés IV remove a areia da esfinge de Gize. Amenófis III
entabula relações com os reis da Babilônia, da Síria e de Mitanni. Amenófis IV
substitui a antiga religião pela adoração de um deus único, o "Globo solar" e muda
seu nome para Aquenaton, deslocando a capital de Tebas para Amarna (Aquetaton).
Depois de sua morte a nova religião é abolida. Tutancâmon devolve a capital
a Tebas. Ele é sucedido por Ai. Seti I combate contra os líbios, os sírios e os hititas;
Ramsés II continua a guerra contra os hititas, e após a batalha de Kadesh (1274
a.C.) firma um tratado de paz.
XVIII Dinastia (cerca de 1.550 – 1.295 a.C.)
Principais soberanos: Amósis, Tutmés I, Tutmés III, Hatshepsut, Amenófis II, Tutmés
IV, Amenófis III, Amenófis IV, Aquenaton, Tutancâmon, Ai, Horemheb.
XIX Dinastia (cerca de 1.295 – 1.188 a.C.)
Principais soberanos: Ramsés I, Seti I, Ramsés II, Merneptah.
XX Dinastia (cerca de 1.188 – 1.076 a.C.)
Principais soberanos: Ramsés III, Ramsés IV, Ramsés IX, Ramsés X, Ramsés XI.

III PERÍODO INTERMEDIÁRIO (1.076 - 712 a.C.)


Em Tânis, capital do Delta, nasce uma nova dinastia que enfrenta o poder
dos Grandes Sacerdotes de Tebas. A Núbia torna-se independente e o Egito perde o
controle sobre a Palestina. Alguns reis de origem líbia estabelecem-se a leste do
14
Delta; aumenta seu poder; Bubastis torna-se a capital e declina a importância de
Tebas. O Egito desmembra-se em pequenos estados. Os reis etíopes da dinastia de
Napata obtêm o controle do Alto Egito e também conquistam Mênfis. Durante a
XXIV Dinastia, os etíopes governam todo o Egito.
XXI Dinastia (cerca de 1.076 - 945 a.C.)
Principais soberanos: Smendes, Psusenes I, Psusenes II.
XXII Dinastia (cerca de 945 - 712 a.C.)
Principais soberanos: Shenshonq I, Osorkon I, Shenshonq II.
XXIII Dinastia (cerca de 828 - 712 a.C.) – Várias sucessões de reis reconhecidos
em Tebas, Hermópolis, Heracleópolis, Leontópolis e Tânis; ainda não se chegou a
um acordo sobre a origem exata e sua correta distribuição.
XXIV Dinastia (Saíta) (cerca de 724 - 712 a.C.)
Principais soberanos: Tefnakhte, Bakenrenef.

ÉPOCA TARDIA (712 - 332 a.C.)


É um período de prosperidade e desenvolvimento cultural. Após a
dominação etíope, advém a dominação assíria. Psamético de Sais derrota os assírios
e reunifica o país. O reino etíope de Napata separa-se definitivamente do Egito. A
XXVI Dinastia corresponde a um novo período de prosperidade; inicia-se a
construção de um canal que vai do Nilo ao Mar Vermelho, projeto que depois é
abandonado. Em 525 Psamético III é derrotado por Cambises, rei da Pérsia, e o
Egito torna-se província do império aquemênida. Nectanebo I funda a XXX
Dinastia, a última dinastia autóctone da história do Egito, e sob seu reinado se
constrói o primeiro pilono do templo de Amon em Karnak.
XXV Dinastia (cerca de 712 - 657 a.C.)
Principais soberanos: (NÚBIA E TEBAS): Kachta, Peye.
(NÚBIA E TODO O EGITO): Shabaka, Taharqa.
XXVI Dinastia (cerca de 664 - 525 a.C.)
Principais soberanos: Necho I, Psamético I, Necho II, Apries, Amásis, Psamético
III.
XXVII Dinastia (PERSA) (cerca de 525 - 405 a.C.)
15
Principais soberanos: Cambises, Dario I, Xerxes I, Artaxerxes I, Dario II.
XXVIII Dinastia (cerca de 405 - 399 a.C.)
XXIX Dinastia (cerca de 399 - 380 a.C.)
XXX Dinastia (cerca de 380 - 343 a.C.)
Principais soberanos: Nectanebo I, Nectanebo II.
II PERÍODO PERSA (cerca de 343-332 a.C.)

PERÍODO GRECO-ROMANO (332 a.C - 395 d.C.)


Em 332 a.C, Alexandre Magno ocupa o Egito. Depois de sua morte, o
general macedônio Ptolomeu, sátrapa do Egito, proclama-se faraó com o nome de
Ptolomeu 1 Sóter I. Em 163 a.C, inicia-se a influência romana. Em 48 a.C, César
desembarca no Egito para defender Cleópatra VII, deposta por seu marido e irmão
Ptolomeu XIII Filopátor. Em 31 a.C. Otaviano desembarca no Egito para lutar
contra Antônio, a quem o senado declarou inimigo do povo romano; derrota-o na
batalha de Actium e conquista Alexandria. O Egito passa a ser uma província
romana e em 395 torna-se parte do Império Romano do Oriente.
Dinastia Macedônia (cerca de 332 - 304 a.C.)
Principais soberanos: Alexandre Magno, Felipe Arideu, Alexandre IV.
Dinastia Ptolomaica (cerca de 304 - 30 a.C.)
Principais Soberanos: Ptolomeu Sóter I, Látero (o Salvador), Ptolomeu II, Filadelfo I
(Que ama a irmã), Ptolomeu III, Evérgeta I (o Benfeitor), Ptolomeu IV, Filopator I
(o Amigo do pai), Ptolomeu V Epifânio (o Ilustre), Ptolomeu VI, Filometor (o Amigo
da mãe), Ptolomeu VII, Neos Filopator, Ptolomeu Fisco VIII, Evérgeta II, Ptolomeu
IX, Sóter II Látiro (1º reinado), Ptolomeu X, Alexandre I, Ptolomeu IX, Sóter II (2º
reinado), Ptolomeu XI, Alexandre II, Ptolomeu XII, Dionísio I; Cleópatra VII;
Ptolomeu XIII, Neo Dionísio; Ptolomeu XIV, Theo Filopátor II; Ptolomeu XV
Cesário, dito Cesarião ou Caesarion (pequeno César).
O ANTIGO E MÉDIO IMPÉRIOS
Apesar de todos os registros, é difícil ter uma perspectiva das relações do Egito
com o mundo exterior e com o fluxo e refluxo da autoridade no Vale do Nilo. Há
16
grandes períodos de tempo a considerar, portanto é difícil saber exatamente o que
aconteceu e que grau de importância teve. Durante quase mil anos depois de Menés,
a história do Egito pode ser estudada isoladamente. Este período deve ser visto
como um tempo de estabilidade, quando os faraós eram invencíveis. No entanto, no
Antigo Império detectou-se alguma descentralização da autoridade, pois
funcionários provinciais revelam crescente importância e independência. O faraó
também precisava usar ainda duas coroas, e era sepultado duas vezes: uma no Alto
Egito e outra no Baixo Egito, pois esta divisão ainda existia. As relações com os
vizinhos não eram importantes, embora no final do Antigo Império fosse organizada
uma série de expedições contra os povos da Palestina. O Primeiro Período
Intermediário, que se seguiu, assistiu à inversão desta situação e o Egito foi invadido
em vez de ser o invasor. Sem dúvida a fraqueza e a divisão ajudaram os invasores
asiáticos a se estabelecerem por algum tempo no vale inferior do Nilo.
O Médio Império foi efetivamente inaugurado por um poderoso rei que
reunificou o reino a partir da capital em Tebas. Durante quase um quarto de
milênio depois de 2000 a.C, o Egito gozou de um período de recuperação e houve
nova ênfase na ordem e na coesão sociais. A condição divina do faraó mudou
sutilmente: ele não era apenas um deus, mas enfatiza-se que ele descendia dos deuses
e seria seguido por deuses. A ordem eterna continuaria inabalável, depois que maus
tempos fizeram os homens duvidarem. Também é certo que houve uma expansão e
um crescimento material. Grandes obras de recuperação de terras foram realizadas
nos pântanos do Nilo. Ao sul foi conquistada a Núbia, situada entre a primeira e a
terceira cataratas, e exploradas as suas minas de ouro. Também foram fundados
assentamentos egípcios ainda mais ao sul, no que mais tarde seria um misterioso
reino chamado Kush (ou Cuche). O comércio adquiriu traços mais elaborados do
que antes e as minas de cobre do Sinai voltaram a ser exploradas. No entanto, o
Médio Império terminou em meio a perturbações políticas e competições dinásticas.
O Segundo Período Intermediário, com duração aproximada de duzentos
anos, foi marcado por outra incursão de estrangeiros bem mais perigosos, os hicsos.
Pouco se sabe a respeito deles, mas é possível que fossem um povo semita que utilizou
a vantagem militar dos carros equipados com peças de ferro para conquistar a
17
soberania no Delta do Nilo. Aparentemente eles adotaram as convenções e os
métodos egípcios, chegando a manter a princípio os burocratas existentes, mas isto
não resultou numa assimilação, e na XVIII Dinastia, foram expulsos. Foi o início do
Novo Império: os egípcios venceram os hicsos depois de 1570 a.C, perseguindo-os
nos seus redutos ao sul de Canaã e no final ocuparam grande parte da Síria e da
Palestina.

O NOVO IMPÉRIO
O Novo Império, no seu apogeu, foi internacionalmente muito bem-sucedido
e deixou ricas memórias físicas. Durante a XVIII Dinastia houve um tipo de
renascimento das artes, uma transformação das técnicas militares pela adoção de
equipamentos asiáticos, como o carro de guerra e, acima de tudo, uma forte
consolidação da autoridade real. É interessante notar também que neste período o
trono foi ocupado temporariamente por uma mulher, Hatshepsut. Por mais ou
menos um século o Egito conquistou mais glórias militares, e o esposo e sucessor
de Hatshepsut, Tutmósis III, levou os limites do Império até o Eufrates. Monumentos
registrando a chegada de tributos e escravos, ou casamentos com princesas asiáticas,
testemunham a soberania egípcia; internamente, o período geralmente é considerado
como o ápice da realização artística egípcia, embora possam ser encontradas
influências estrangeiras (de Creta).
No final do Novo Império, testemunhos de múltiplos contatos externos
começaram a demonstrar que o mundo fora do Egito já mudara em muitos
aspectos. Até mesmo Tutmósis III levou dezessete anos para dominar o Levante e
foi forçado a desistir da conquista de um vasto império governado por um povo
chamado mitani, que dominava a Síria Oriental e o Norte da Mesopotâmia. Mais
tarde, uma princesa mitani se casou com um faraó, e o Novo Império passou a
contar com a amizade deste povo para proteger os interesses egípcios naquela área.
O Egito estava sendo forçado a sair do isolamento que há muito o protegia. Mas os
mitanis sofriam crescente pressão do norte, dos hititas, um dos povos mais
importantes, cujas ambições e movimentos destruíram cada vez mais o mundo do
18
Oriente Próximo na segunda metade do segundo milênio antes de Cristo. E as
mudanças continuaram.
O Egito atingiu o apogeu em prestígio e prosperidade com Amenófis III
(c. 1410-1375 a.C). Foi a mais grandiosa época de Tebas, e este faraó,
adequadamente, foi sepultado no maior túmulo jamais preparado para um rei,
embora dele nada reste, exceto fragmentos das enormes estátuas que os gregos mais
tarde denominaram de Colossos de Memnon (herói lendário, supostamente etíope).
O seu sucessor, Amenófis IV, tentou uma revolução religiosa: substituir a religião
antiga pelo culto monoteísta ao deus-sol Aton. Para marcar a sua sinceridade, mudou
o seu nome para Akhenaton e fundou uma nova cidade, em Amarna, a 480
quilômetros ao norte de Tebas, onde um templo, com um santuário sem teto, aberto
aos raios do sol, se tornou o centro do novo credo. A oposição provocada pela
revolução religiosa de Akhenaton concorreu para limitar a sua ação em outros
campos. Enquanto isto, a pressão dos hititas se manifestava nas possessões egípcias;
Akhenaton não conseguiu salvar os mitanis, que perderam para os hititas, em 1372
a.C, todas as suas terras a oeste do Eufrates. Então, uma guerra civil precedeu o
desaparecimento do reino, cerca de trinta anos depois. A esfera de poder do Império
Egípcio começava a desmoronar.

O PERÍODO DO DECLÍNIO
Amenófis IV mudou de nome porque quis apagar a lembrança do culto ao
antigo deus, Amon; o seu sucessor e genro também mudou de nome, de
Tutankaton para Tutankamon, para registrar a restauração deste culto e derrubar a
tentativa de reforma religiosa. O magnífico sepultamento de Tutankamon no Vale
dos Reis pode ter representado a gratidão por este seu feito, pois de outra forma o
seu breve reinado teria passado despercebido. Quando ele morreu, o Novo Império
ainda duraria dois séculos, porém seriam séculos de declínio acelerado, apenas
ocasionalmente interrompido. Os reis seguintes fizeram esforços para recuperar o
terreno perdido e às vezes conseguiram sucesso; na Palestina, as marés das
conquistas fluíram e refluíram, e numa determinada época um faraó se casou com
uma princesa hitita, como os seus antecessores haviam feito com princesas de outros
19
povos. Mas surgiram novos inimigos; nem mesmo a aliança com os hititas
representava mais uma salvaguarda. Os povos do Mar Egeu estavam em estado de
agitação, as ilhas “extravasavam os seus povos”, e “nenhuma terra os impedia de
avançar”, dizem os registros egípcios. Estes “povos do mar” eventualmente foram
vencidos, mas a luta foi dura. Por volta de 1150 a.C. também são abundantes os
sinais de desorganização interna. Um rei, Ramsés III, morreu em decorrência de
uma conspiração no seu harém; foi o último a conseguir algum sucesso na tentativa
de frear a crescente onda de desastres. Há notícias de greves e de problemas
econômicos nos reinados dos seus sucessores, constatando-se sintomas de
sacrilégio, com o saque dos túmulos reais em Tebas. O período do poder imperial
do Egito afinal chegara ao fim.
O mesmo aconteceu com os hititas e com outros impérios no final do segundo
milênio. Estava morrendo o mundo que servira de cenário para as glórias egípcias.
Grande parte da explicação do declínio egípcio deve ser procurada aí. No entanto, é
impossível resistir à sensação de que o fim do Novo Império expõe fraquezas
presentes desde o início. No final, a criatividade da civilização egípcia parecia
fracassar estranhamente. Reuniram-se recursos colossais de mão-de-obra, sob a
direção de funcionários civis, porém apenas para construir os maiores túmulos que
o mundo jamais viu. Empregou-se uma arte de qualidade refinada apenas para
construir túmulos. Uma elite altamente instruída, utilizando uma linguagem sutil e
complexa e tendo no papiro um material de conveniência insuperável, serviu-se dele
copiosamente em textos e inscrições, mas não deixou para a humanidade nenhuma
grande ideia filosófica ou religiosa. E difícil não perceber uma esterilidade
fundamental, um vazio, no âmago desse brilhante tour de force. Só a espantosa
capacidade de permanência desta civilização continua assombrando. Funcionou por
um período bastante longo, sofrendo pelo menos duas fases de considerável eclipse,
mas se recuperou e se manteve aparentemente imutável. Tão longa sobrevivência
representa um grande sucesso material e histórico, e o que permanece obscuro é a
razão pela qual ela teria sido interrompida. Afinal, até mesmo os poderes militar e
econômico do Egito pouco influíram no mundo de modo permanente e a sua
civilização nunca se expandiu para o exterior com sucesso.
20
É claro que nos tempos primitivos toda mudança social e cultural era lenta, e
muitas vezes imperceptível. Acostumados como estamos às mudanças, é difícil
percebermos a enorme inércia de qualquer sistema social bem-sucedido no mundo
antigo (ou seja, que permita aos homens lidarem eficazmente com o seu am biente
físico e mental). Naquele tempo a inovação era bem menos numerosa e muito mais
ocasional do que hoje. Comparado com a pré-história, o ritmo da história do antigo
Egito é rápido; no entanto, parece glacialmente lento se refletirmos que a vida
cotidiana deve ter mudado pouco entre Menés e Tutmósis III, um período de mais de
1.500 anos (comparável ao tempo que nos separa dos dias em que a Grã-Bretanha
deixou de ser romana). Só muito lentamente a tecnologia e as forças econômicas
conseguiram exercer pressões de mudança que hoje consideramos naturais. Quanto
aos estímulos intelectuais, não podiam ser fortes numa sociedade dedicada a
inculcar a rotina e preparar a morte.

A ESCRITA
Há mais informações a respeito da civilização egípcia primitiva do que de
qualquer outra em data tão remota. Desde o início os egípcios tiveram uma forma
de escrita, chamada “hieroglífica”. Era de origem pictográfica, ou seja, consistia de
pequenas figuras representando os nomes das coisas; com o tempo, elas passaram a
representar sons. Como era mais difícil de escrever do que o cuneiforme, o hieróglifo
não se espalhou tanto quanto aquele, embora tivesse vida igualmente longa; o último
exemplo conhecido desta escrita é posterior a 394 d.C. A partir daí, como se
perdeu o domínio desta escrita, ela se tornou ininteligível. Então, no começo do
século XIX, a “Pedra de Roseta” foi levada do Egito para a França. Era escrita em
grego, no posterior egípcio “demótico” 1, bem como em hieróglifos, o que
possibilitou a tradução e abriu caminho para a compreensão do antigo Egito como
1
A escrita demótica, ou sekh shat (escrita para documentos) para os egípcios, surgiu no início da 26º dinastia
do Egito (664-525 aC). Acredita-se que o Estado egípcio, na época de Psamético I, tendo em vista a
centralização da administração do país, empenhou-se para que a escrita demótica se tornasse padrão no
Egito.
Antecessora da demótica, a escrita hierática (do grego γράμματα ἱερατικά - grámata hiératiká - escrita
sacerdotal) já representava uma grande evolução em relação aos hieróglifos egípcios. Aos poucos, os
desenhos minuciosos e realistas dos hieróglifos deram lugar a representações abstratas, em uma escrita
cursiva, mais veloz, e realizada em um único sentido (da direita para a esquerda). A demótica, ainda mais
abstrata e rápida, se constituiu como uma reformulação da escrita hierática.
21
jamais acontecera antes, por conta do grande número de inscrições em túmulos,
monumentos e papiros que sobreviveram.
Desses hieróglifos emerge uma narrativa. Por volta de 3.000 a.C. o Egito já
era organizado em dois Impérios, o do norte e o do sul, o Baixo e o Alto Egito. Os
relatos nos falam de um rei do sul, chamado Menés, que conquistou o norte e
estabeleceu uma dinastia que permaneceu até 2.884 a.C. governando a partir de
Mênfis, no Baixo Egito. Foi um Império de aproximadamente mil quilômetros de
extensão, muito maior do que qualquer outro Estado contemporâneo. O simples
fato de ter estabelecido o direito de governar uma área tão grande foi uma conquista
impressionante. Mais surpreendente ainda, deu início a um período de cerca de dois
mil anos, no qual o Egito esteve em geral sob um único governante, um sistema
religioso e um padrão de governo e sociedade sem a intromissão de qualquer
importante influência do exterior. Houve altos e baixos; o Estado às vezes era forte
e próspero, às vezes fraco e pobre. No entanto, esta continuidade ainda surpreende
e possibilitou grandes realizações, cujos vestígios físicos por muito tempo têm
fascinado a humanidade como a maior e mais visível herança da Antigüidade.
Os registros históricos permitem que os estudiosos falem do antigo Egito
como uma série de dinastias em três grandes divisões cronológicas. A primeira,
denominada de Antigo Império, começou em 2.664 e terminou em 2.155 a.C.
Depois se segue mais ou menos um século de revoluções antes do início do Médio
Império, que começou em 2.051 a.C. e durou até 1.786 a.C., quando ocorreu
outro período de distúrbios que terminaria em 1.554 a.C. com o início do Novo
Império. Este esquema tripartite engloba dois períodos “intermediários” e as datas das
dinastias, podendo ser convenientemente encerrado no início do primeiro milênio
antes de Cristo, quando as grandes realizações egípcias ficaram para trás, embora
existisse um Egito independente e com governantes próprios até 30 a.C., quando
chegou ao fim com o suicídio da legendária Cleópatra.

A REALEZA EGÍPCIA
A civilização egípcia se corporificou no Estado propriamente dito, centrado
em Mênfis, capital do Antigo Império. Mais tarde, no Novo Império, a capital se
22
estabeleceu normalmente em Tebas. Estas duas cidades foram grandes centros
religiosos e tinham um complexo de palácios, e não verdadeiramente cidades com
vida independente do governo. Isto aconteceu em parte porque os reis do Egito não
surgiram como “grandes homens”, numa comunidade do tipo Cidade-Estado que
originalmente os incumbisse de representá-la. Também não eram homens comuns,
como os outros, subordinados aos deuses que governavam todos os homens,
grandes ou pequenos. Os próprios reis deveriam ser deuses. Num estágio inicial, os
monarcas egípcios já possuíam uma impressionante autoridade, como demonstram
as enormes imagens dos primeiros monumentos; herdaram-na, em última instância,
dos reis pré-históricos, donos de uma santidade especial devida ao seu poder de
garantir prosperidade através de uma agricultura bem-sucedida. Acreditava-se que
eles controlavam as enchentes e as vazantes anuais do Nilo, nada menos do que a
própria vida das comunidades ribeirinhas. Os primeiros rituais conhecidos da
realeza egípcia se relacionam à fertilidade, à irrigação e à recuperação da terra. As
primeiras representações de Menés mostram-no escavando um canal.
No Antigo Império apareceu a idéia de que o rei, ou faraó, era o senhor
absoluto, logo venerado como um deus. A justiça é “aquilo que o faraó ama”, o mal
“aquilo que o faraó odeia”; ele possui onisciência divina e portanto não necessita
de um código de leis para guiá-lo. Mais tarde, no Novo Império, os faraós seriam
representados com a estatura heróica dos grandes guerreiros: aparecem em seus carros
como poderosos guerreiros, esmagando os inimigos e corajosamente matando
animais em sacrifício. Porém, a realeza egípcia permanecia sagrada e temível. “Ele é
um deus a quem devemos a vida, pai e mãe de todos os homens, único e sem igual”,
escreveu um egípcio, funcionário civil do faraó, por volta de 1.500 a.C.
Nesta época o Egito possuía uma elaborada e impressionante hierarquia de
burocratas. Em geral os mais importantes vinham da nobreza, alguns poucos tendo
sido sepultados com uma pompa que se rivalizava à dos faraós. Famílias menos
eminentes forneciam milhares de escribas para o quadro de funcionários e para o
serviço de uma elaborada máquina de governo. Eram treinados numa escola especial
23
em Tebas e o seu etos2 pode ser percebido através dos textos que enumeram as
virtudes necessárias para se ter sucesso como escriba: dedicação aos estudos,
autocontrole, prudência, respeito aos superiores, atenção escrupulosa para a
inviolabilidade de pesos, medidas, propriedades de terra e normas legais.
No entanto, grande parte dos egípcios era constituída de camponeses que
forneciam a mão-de-obra para as grandes obras públicas e o excedente que
sustentava a classe nobre, a burocracia e a grande estrutura religiosa. A terra era
suficientemente rica, e melhorava cada vez mais com técnicas de irrigação que foram
algumas das primeiras manifestações da notável capacidade de mobilizar esforços
coletivos demonstrada por tanto tempo pelo governo egípcio. Hortaliças, cevada e
um tipo de trigo eram as principais colheitas que se estendiam ao longo dos canais
de irrigação; assim garantida, a dieta era suplementada com aves domésticas, pesca
e caça (abundantes na arte egípcia). Pelo menos no início do Antigo Império, o gado
era usado para tração e aragem. Com pequenas alterações, foi esta a agricultura
que sustentou o Egito até os tempos modernos.

AS CONSTRUÇÕES EGÍPCIAS
Também foi possível construir obras públicas em pedra, insuperáveis à época.
As casas e as construções agrícolas eram feitas de adobe e não pretendiam desafiar a
eternidade. Palácios, túmulos e memoriais dos faraós eram outra questão, tanto social
quanto administrativamente, além de triunfos da arquitetura. Sob a direção de um
administrador, milhares de trabalhadores e às vezes regimentos de soldados eram
destacados para cortar, primeiro com ferramentas de cobre e depois de bronze, e
colocar em posição, manualmente, enormes blocos de pedra cuidadosamente
adornados, e muitas vezes entalhados e pintados de forma elaborada. Com a ajuda
exclusiva de alavancas e plataformas móveis (não existiam guinchos, roldanas nem

2
‘Éthos’, “costume”, é uma palavra grega, das áreas da antropologia e da sociologia, aportuguesada para
etos, que representa o conjunto das características distintivas de um povo, grupo ou comunidade,
nomeadamente no que diz respeito a atitudes, hábitos e crenças, marcando suas realizações ou manifestações
culturais.
24
talhas) e com o uso de colossais rampas de terra, foi produzida uma seqüência de
construções ainda hoje surpreendentes.
As mais famosas são as pirâmides que dominam o grande complexo de
construções destinadas a abrigar o faraó depois da morte. Entre as pirâmides da
Terceira Dinastia, em Saqqara, perto de Mênfis, destaca-se a Pirâmide de Degraus,
obra-prima do primeiro arquiteto conhecido, Imhotep, chanceler real, mais tarde
deificado como deus da medicina e reverenciado como astrônomo, sacerdote e
sábio. O início da construção em pedra lhe foi atribuído, e é fácil acreditar que algo
tão sem precedentes quanto esta pirâmide de pouco mais de sessenta metros de
altura fosse visto como prova de um poder divino.
Durante a Quarta Dinastia, no entanto, pirâmides ainda maiores foram
concluídas em Gizé. A Pirâmide de Quéops demorou vinte anos para ser
construída e uma enorme quantidade de pedra (entre cinco e seis milhões de
toneladas) foi trazida até o local, de uma distância de até oitocentos quilômetros.
Esta construção colossal está perfeitamente orientada, e os seus lados, de cerca de
230 metros de comprimento, variam menos de doze centímetros. Não é de admirar
que as pirâmides mais tarde figurassem entre as sete maravilhas do mundo. Elas
também não eram os únicos grandes monumentos do Egito. Em outros locais havia
grandes templos, palácios e os túmulos do Vale dos Reis.
Estas enormes obras públicas explicam por que os egípcios mais tarde foram
considerados grandes cientistas: ninguém conseguia crer que estas construções não
exigissem o mais refinado conhecimento matemático e científico. No entanto,
embora a agrimensura egípcia fosse altamente capacitada, e os funcionários públicos
egípcios fossem perfeitos engenheiros civis, a matemática elementar era suficiente
para construir como eles fizeram. Bastavam competência na mensuração e
manipulação de certas fórmulas para calcular volume e peso, e foi só até este ponto
que a matemática egípcia chegou. Os egípcios não rivalizaram com os babilônios nas
ciências.
As inscrições que registraram as observações astronômicas egípcias
mereceram séculos de respeito dos astrólogos, mas o seu valor científico era limitado
e a sua qualidade de previsão era relativamente de curto prazo. A única realização
25
consistente foi o calendário. Os egípcios estabeleceram o ano solar de 365 dias, que
dividiram em doze meses, cada um de três “semanas” de dez dias, com cinco dias
extras no final do ano (arranjo que, deve-se lembrar, foi revivido em 1793, quando os
revolucionários franceses procuraram substituir o calendário cristão por outro mais
racional).

A RELIGIÃO EGÍPCIA
A vida religiosa do antigo Egito também surpreendeu muito os estrangeiros.
Mesmo escrevendo em uma época na qual o dinamismo da fé do povo tinha se
esgotado e apenas as formas, em vez da essência, prevaleciam, Heródoto descreveu os
egípcios como as pessoas mais religiosas do mundo. Num período anterior,
principalmente durante a segunda metade do quarto milênio antes de Cristo, quando a
teocracia egípcia se desenvolvia, a intensidade da fé era tanta que excluía por completo as
considerações puramente seculares. Não se sabe ao certo o motivo desse acontecimento,
mas é possível que ele resulte do fato de os egípcios terem constituído a primeira
civilização a conceber a continuação da vida após a morte. No vale do Nilo, eles logo
observaram que os corpos enterrados no limite com o deserto eram quase sempre
preservados indefinidamente da decomposição, o que pode tê-los levado ao
desenvolvimento da noção de eternidade e ao realce da importância transcendente
da religião na breve duração da vida humana terrena.
Ao longo do quarto milênio, eles enterravam seus mortos em túmulos cada
vez mais elaborados, que, com uma variedade e riqueza de bens crescentes,
poderiam proporcionar ao morto uma existência confortável pela eternidade afora.
O assassinato e esquartejamento de Osíris foram reconstituídos e revivificados
como paradigmas da salvação humana. Além disso, em consequência da
observação cosmológica no âmbito dos ciclos diários e anuais, os egípcios também
examinaram o milagre do Sol e do Nilo, os dois maiores destaques no cenário do
país. O Sol se levantava infalivelmente no leste e se punha no oeste; em nenhuma
outra região do mundo, esse movimento era tão explicitamente digno de confiança
quanto ali. Em diferença contrapontística a tal renascimento diário, havia a
renovação anual do rio; um hino dizia:
26
“Fazeis o Nilo no mais baixo dos mundos e lhe trazeis a inundação
e a baixa, assim como as fizestes, para que a humanidade se
sustente.”
A conjunção desses dois processos, evidentemente miraculosos e ordenados pela
divindade, tornou o Egito um país rico, em cuja prosperidade se podia confiar. A
preservação dos corpos na areia indicava que a felicidade podia ser prolongada por
tempo indefinido. Inevitavelmente, os egípcios concluíram que os poderes divinos eram
benéficos; a partir de então, a intensidade de suas emoções religiosas não surgiu do medo,
mas de um sentido profundo de gratidão.
No entanto, continua sendo difícil entender uma estrutura difusa como a
religião egípcia. Ela não foi vista conscientemente como uma força crescente e viva:
era um aspecto da realidade, a descrição de um Cosmo imutável. Mas esta também
pode ser uma visão equivocada: precisamos nos lembrar de que os conceitos e as
distinções que hoje assumimos como certos não existiam para os antigos egípcios.
Por exemplo, o limite entre a religião e a magia quase não importava para eles.
Qualquer que fosse a definição de religião no antigo Egito, durante quase
toda a sua civilização, os antigos egípcios demonstram uma tendência notável e
consistente para buscar, por meio da religião, um meio de penetrar na diversidade do
fluxo de experiências comuns para atingir um mundo imutável, mais facilmente
compreendido através da vida que os mortos ali levavam. Talvez o pulsar do Nilo
seja detectado aqui também; a cada ano ele varria e renovava tudo, mas este ciclo
era sempre recorrente, imutável, era a corporificação de um ritmo cósmico. A
suprema mudança que ameaçava os homens era a morte, a pior expressão da
decadência e do fluxo que constituía a experiência comum. A religião egípcia
parece desde o início obcecada com isto: afinal, suas incorporações mais familiares
são as múmias e as riquezas tumulares das câmaras funerárias preservadas em nossos
museus. No Médio Império chegou-se a acreditar que todos os homens, e não
apenas o rei, poderiam esperar a vida em outro mundo. Assim, por meio do ritual e
do símbolo, por meio da preparação do processo, o homem teria de se apresentar
diante dos seus juizes no outro mundo; precisaria se preparar para uma vida após a
morte com razoável confiança de que poderia conseguir o bem-estar imutável que em
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princípio lhe era oferecido. Portanto, a visão egípcia da vida após a morte diferia da
versão sombria dos mesopotâmios; nela os homens poderiam ser felizes. A luta que
durou séculos para lhes assegurar tal resultado explica o zelo obsessivo e esmerado
que aparece na preparação dos túmulos e na condução dos mortos até o seu lugar de
descanso eterno.
O panteão egípcio era enorme. Havia cerca de dois mil deuses e vários cultos
importantes, alguns originários de divindades animais pré-históricas. Um dos
deuses, Hórus, o deus falcão, era também o deus da dinastia. Esses animais sofreram
uma humanização lenta e incompleta; artistas colocavam cabeças animais em corpos
humanos. Os relacionamentos se reorganizaram em novos padrões, quando os faraós
procuraram obter vantagens políticas por meio da consolidação dos cultos. Assim, o
culto a Hórus foi consolidado como o do deus sol, de quem o faraó chegou a ser
considerado a encarnação.
Mas a história não termina aí. Mais tarde Hórus passou por outra
transformação, surgindo como filho de Osíris, a figura central do culto nacional, e
de sua consorte, Ísis. Esta deusa da criação e do amor era provavelmente a mais
antiga de todas - sua origem também remonta ao tempo pré-dinástico; é uma
evolução da deusa-mãe da ubiqüidade, da qual sobrevivem provas de todos os
lugares do Oriente Próximo no Período Neolítico. Ísis permaneceu durante muito
tempo, e a sua imagem com o pequeno Hórus nos braços sobreviveu na iconografia
cristã da Virgem Maria. Entre as variações mais famosas, de cunho doutrinário
especulativo, deve-se incluir a tentativa de um faraó do século XIV a.C. de
estabelecer o culto de Aton, outra manifestação do Sol, considerado a primeira
religião monoteísta.

A ARTE E A TECNOLOGIA DOS EGÍPCIOS


Os deuses ocupam um lugar proeminente na arte egípcia antiga, mas o
conteúdo desta é muito maior. Baseia-se num naturalismo fundamental, que
embora restrito pelas convenções de expressão e gesto, durante dois milênios
proporcionou a esta arte, inicialmente de uma bela simplicidade, e mais tarde, num
estilo mais decadente, um encanto e uma comunicabilidade que atraem. Permitiu
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um retrato realista de cenas da vida cotidiana. Apresenta temas rurais de agricultura,
pesca e caça; mostra artesãos trabalhando nos seus produtos e escribas fazendo os seus
deveres. Durante cerca de dois mil anos os artistas tiveram condições de trabalhar
satisfatoriamente na mesma tradição clássica, ao mesmo tempo em que recebiam
influências estrangeiras, com uma força central e uma solidez inabaláveis. Tais
qualidades foram uma das características visuais mais impressionantes do Egito para
um visitante nos tempos antigos; o que ele via era um todo, a mais longa e mais
forte tradição contínua de toda a história da arte civilizada.
Parte da antiga arte egípcia sobreviveu graças à invenção de folhas de papel
feitas com do papiro (no começo da Primeira Dinastia): sobrepondo feixes de
medulas desta planta, dispostos entrecruzados e amassados até formarem uma
folha homogênea. Esta foi uma verdadeira contribuição para o progresso da
humanidade. Fez mais pela comunicação do que os hieróglifos. O papiro era mais
barato do que a pele (da qual era feito o pergaminho) e mais conveniente (embora
mais perecível) do que as tabuletas de argila ou as placas de pedra. Portanto, seria a
base mais geral de correspondência e registro no Oriente Próximo até em plena era
crista, quando a invenção do papel chegou do Extremo Oriente (e herdou do
papiro o seu nome). Pouco depois do surgimento do papiro, escritores começaram
a colar folhas num longo rolo: assim os egípcios inventaram tanto o livro quanto o
material no qual o primeiro deles seria escrito. Grande parte do que sabemos a
respeito da Antigüidade nos chegou através do papiro.
A suposta habilidade de religiosos e magos e a espetacular materialização de
feitos políticos na arte e na arquitetura explicam em grande parte o contínuo
prestígio do Egito. No entanto, ao analisarmos comparativamente a sua civili zação,
ela não parece muito fértil nem muito abrangente. A arquitetura em pedra é a
única inovação importante num longo período desde o advento da leitura e da
escrita; os egípcios inventaram a coluna. A história da tecnologia sugere um povo
lento em adotar novas habilidades, relutante à inovação, quando o salto criativo rumo
à civilização já havia sido dado. Não há prova definitiva da presença da roda de oleiro
antes do Antigo Império; apesar da habilidade dos ourives e dos caldeireiros, a
fabricação do bronze só aparece no segundo milênio antes de Cristo e o torno
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mecânico ainda muito mais tarde. A rabeca foi praticamente a única ferramenta de
multiplicação e transmissão de energia de que dispunham os artesãos egípcios.
Embora o papiro e a roda fossem conhecidos ainda na Primeira Dinastia, o Egito
estivera em contato com a Mesopotâmia durante dois mil anos antes de adotar as
cegonhas nos poços, já usadas havia muito tempo para irrigar a terra naquele outro
vale fluvial.
A vida dos egípcios pobres era difícil, mas não o tempo todo. O seu maior
fardo deve ter sido o serviço obrigatório. Quando estes serviços não eram recrutados
pelo faraó, o camponês desfrutava de considerável tempo de lazer, enquanto
esperava que as inundações do Nilo trabalhassem por ele. A base da agricultura
também era suficientemente rica para sustentar uma sociedade complexa e variada,
que incluía uma ampla gama de artesãos. Graças aos relevos em pedra e às pinturas,
sabe-se mais das suas atividades. E sabemos mais do que das dos seus pares da
Mesopotâmia. A grande divisão dessa sociedade se dava entre os instruídos, que
podiam ter acesso ao serviço estatal, e o resto. A escravatura era importante, mas
parece ter sido uma instituição menos fundamental do que em outros locais do
antigo Oriente Próximo.

AS MULHERES NO ANTIGO EGITO


Em épocas posteriores a tradição realçou a sedução e a afabilidade das
mulheres egípcias. Isto ajuda a nos dar a impressão de uma sociedade que lhes
concedia maior independência e uma condição mais elevada do que a recebida pelas
suas irmãs em outras civilizações. Deve-se atribuir certa importância a uma arte que
representa as damas da Corte vestidas em belos e reveladores tecidos de linho,
lindamente penteadas e adornadas de jóias, usando cosméticos cuidadosamente
aplicados, cujo fornecimento merecia muita atenção dos mercadores egípcios. Não
se deve dar peso excessivo a isto, mas até mesmo a impressão pictórica da maneira
pela qual as egípcias da classe governante eram tratadas, é importante e revela
dignidade e independência. Os faraós e as suas consortes - e outros casais nobres -
são por vezes retratados também com uma intimidade de sentimentos não
encontrada em parte alguma na arte do antigo Oriente Próximo antes do primeiro
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milênio antes de Cristo, sugerindo uma verdadeira igualdade emocional que
dificilmente pode ser considerada acidental.
As belas e atraentes mulheres representadas em muitas pinturas e esculturas
podem refletir certo potencial político do seu sexo, inexistente em outros lugares.
Na prática, muitas vezes o poder era transmitido pela linhagem feminina. Uma
herdeira conferia ao marido o direito à sucessão; daí haver grande preocupação com o
casamento das princesas. Muitos casamentos reais uniam irmão com irmã,
aparentemente sem efeitos genéticos insatisfatórios; alguns faraós se casaram com
suas próprias filhas, talvez mais para evitar que alguém se casasse com elas do que
para garantir a continuidade do sangue divino. Algumas consortes exerceram
importante poder, e uma chegou até a ocupar o trono, fazendo questão de aparecer
nos rituais com uma barba cerimonial postiça, usando roupas masculinas e
adotando o título de faraó.
Também há muita presença feminina no panteão egípcio, notadamente no
culto a Isis, o que é sugestivo. A literatura e a arte enfatizam que o respeito pela
esposa e pela mãe ultrapassava os limites do círculo da nobreza. Tanto as histórias
de amor quanto as cenas da vida familiar destacam um erotismo suave,
descontração e informalidade. Algumas mulheres sabiam ler e escrever, e há uma
palavra egípcia para designar a mulher escriba, mas é claro que não havia muitas
ocupações oferecidas à mulher fora do lar, exceto as de sacerdotisa ou prostituta. No
entanto, as mulheres abastadas podiam dispor dos seus bens e os seus direitos legais
parecem em muitos aspectos semelhantes aos das mulheres sumérias.

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