Você está na página 1de 15

Revista Ibero Americana de Estratégia

E-ISSN: 2176-0756
admin@revistaiberoamericana.org
Universidade Nove de Julho
Brasil

Fernando Dolabela fala sobre empreendedorismo


Revista Ibero Americana de Estratégia, vol. 4, núm. 1, septiembre, 2005, pp. 13-23
Universidade Nove de Julho
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=331227106002

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Entrevista
Interview

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 11


F ernando Dolabela
fala sobre empreendedorismo

Fernando Dolabela Chagas, 59 anos, é um empreendedor do conheci-


mento ou o inverso [conhecedor do empreendedorismo], ou ambos. O
fato é que, desde 1999, com o lançamento da obra O segredo de Luísa – a
mais vendida no Brasil – mudou a forma de o ensino se relacionar com a
idéia do empreendedor.
Com sua “Pedagogia Empreendedora”, implantada em escolas de 121
cidades, Dolabela abre fogo contra uma cultura que prepara crianças e
adultos exclusivamente para um emprego. Depois de revolucionar o
ensino universitário de empreendedorismo no Brasil com a metodologia
desenvolvida em Oficina do empreendedor, Dolabela agora pretende ir
mais fundo e mudar a maneira de ensinar e aprender empreendedorismo
na educação básica, o que soa para ele como algo bastante razoável, por
experiência própria: rindo, revela que “[...] era o pior aluno da classe no
melhor colégio em Minas Gerais”.
Em sua empreitada literária mais recente, A ponte mágica, Dolabela
arrisca mais um grande passo na formação empreendedora. Em vez de
mudar os professores ou os alunos universitários, melhor mesmo é pensar
em formar crianças empreendedoras já aos 4 anos.

Obras do entrevistado

DOLABELA, F. O segredo de Luísa. 1. ed. São Paulo: Cultura Editores, 1999.

______. Oficina do empreendedor. 1. ed. São Paulo: Cultura Editores, 1999.

______. A vez do sonho. 1. ed. São Paulo: Cultura Editores, 2000.

______. Empreendedorismo – uma forma de ser. 1. ed. São Paulo: AED/Cultura


Editores, 2002.

______. Empreendedorismo – a viagem do sonho. Como se preparar para ser um


empreendedor. 1. ed. São Paulo: AED/Cultura Editores, 2002.

______. Pedagogia empreendedora. 1. ed. São Paulo: Cultura Editores, 2003.

______. A ponte mágica: como Luísa, aos 11 anos, cria sua primeira empresa para
realizar o seu sonho. 1. ed. São Paulo: Cultura Editores, 2004.

DOLABELA, F.; FILION, L. J. (Org.) Boa idéia! E agora? Plano de negócio,


o caminho mais seguro para criar e gerenciar sua empresa. 1. ed. São Paulo:
Entrevista

Cultura Editores, 2000.

DOLABELA, F. et al. Empreendedorismo: ciência, técnica e arte. Brasília, DF:


IEL-CNI, 2000.

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 13


Revista Gerenciais: O que é empreendedo- sua habilidade. Para quem quiser ampliar sua
rismo? É uma habilidade natural das pessoas capacidade, já existem técnicas que, embora não
ou uma técnica que pode ser ensinada? Qual componham um corpo científico, vêm demons-
o melhor ambiente para o desenvolvimento trando sua efetividade prática. É possível apren-
desse ensino (a família, a escola etc.)? der a ser empreendedor e é também possível que
se ofereçam a essas pessoas melhores condições
Fernando Dolabela: Empreendedorismo é a para o desenvolvimento desse potencial. Por isso,
capacidade de as pessoas, por meio de inovação, dizemos que não é possível ensinar – no sentido
oferecerem valor para as demais, em qualquer de transferir conhecimentos a alguém –, mas
área. Atualmente, é um conceito que se descola é possível que se aprenda a ser empreendedor.
da empresa e abrange todas as atividades Não é um jogo de palavras. Aprende-se a ser
humanas. Empreendedor não é apenas aquele empreendedor pelo convívio com outras pessoas
que cria uma empresa, mas aquele que, estando e, evidentemente, utilizando-se instrumentos,
em qualquer área (pesquisa, jornalismo, política, ferramentas e conhecimentos técnicos. Mas é
emprego em grandes empresas etc.), pode a ela importante considerar que, diferentemente do
agregar novos valores, valores positivos para a que acontece em outras áreas, esses últimos não
coletividade, por meio de inovações. Esse con- são a essência da coisa. O conceito de empreen-
ceito contém um enunciado ético que é oferecer dedor é muito livre. Não sendo uma ciência, o
valor para a coletividade e não somente para si empreendedorismo acolhe múltiplas definições;
mesmo, constituindo, assim, uma potencialidade há, no entanto, um elemento constante, uma ca-
da espécie humana. Dito de outra forma, não racterística essencial: o empreendedor é alguém
é uma questão de auto-enriquecimento, de que inova, alguém que oferece novo valor, sob
desenvolvimento do individualismo, mas, sim, a forma de produto, serviço, gestão, produção,
um fenômeno que deve ser entendido como a estética, política, sustentabilidade de indivíduos e
construção de comunidades. comunidades etc.
A capacidade empreendedora é algo que se pode
desenvolver, assim como se desenvolve o po- RG: Existe diferença de postura diante do
tencial para correr uma maratona, tocar piano, risco – elemento inerente ao negócio capita-
aprender a ler, fazer cálculos. É um fenômeno lista – de um proprietário-dirigente de uma
cultural, uma visão de mundo norteada pelas empresa e de um empreendedor?
relações que a pessoa estabelece, sua postura
em relação aos outros e a si mesma, em relação à FD: Essa é uma terminologia usada pelo pesqui-
natureza e à vida. O empreendedorismo também sador Louis Jacques Filion; ele diz justamente
é algo que pode ser aprendido. As pessoas que que uma pessoa que possua uma empresa não é,
não desenvolveram esse potencial provavelmente por esse fato, necessariamente empreendedora.
não receberam estímulos da sociedade, nos seus Vamos supor que alguém adquira, por exemplo,
núcleos mais fortes – família, escola e relações uma padaria, ou uma empresa qualquer, e nela
íntimas. Em síntese, nascemos empreendedores, não introduza nenhuma modificação, nenhuma
mas muitas vezes deixamos de sê-lo por influên- inovação; nesse caso, ele é um proprietário-
cia da família, da escola, das relações sociais. gerente ou dirigente que simplesmente administra
o negócio. Para Filion, trata-se apenas de um
RG: Há pré-requisitos ou informações que gerente-proprietário e não de um empreendedor,
facilitem a alguém tornar-se empreendedor? pois não basta possuir uma empresa; é preciso ter
a capacidade de inovar.
FD: Não há pré-requisitos, mas é necessária Quanto ao risco, a diferença entre o empreen-
muita informação. Atualmente, a pesquisa possui dedor e o não-empreendedor é a posição que
alguns conceitos importantíssimos para que o cada um deles assume diante do problema. O
candidato a empreendedor possa desenvolver empreendedor não gosta do risco, não o busca;

14 R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005.


no entanto, sua percepção de risco é diferente, RG: A respeito da educação, da formação,
pois o julga inerente a qualquer processo. Por da perspectiva de tornar-se empreende-
isso, enfrenta o risco, consegue minimizá-lo até dor, fazer um curso na área ou aprender
certo ponto, mas continua a trabalhar conside- técnicas garante o sucesso? Como se pode
rando sua existência. avaliar se a formação capacitou de fato esse
O não-empreendedor tem uma percepção falsa, profissional?
de caráter psicótico, porque considera que, na
maior parte das situações, é possível viver sem FD: Diferentemente de outras áreas do conhe-
riscos. Isso não é aceitável, exceto para aqueles cimento humano, a qualificação não é garantia
acostumados à herança de privilégios oriundos da nem de capacidade nem de sucesso profissional.
estrutura de favorecimentos Você pode, por exemplo,
construída pela nobreza formar, preparar uma pessoa
ibérica, empenhada em “[...] o empreen- para ser médico; o sistema
garantir meios de inibir dedor é alguém educacional tem condições
e neutralizar os riscos de atestar a capacidade de
para sobrevivência de sua que inova, alguém quem se submeteu à forma-
casta. No Brasil, todas as que oferece novo ção acadêmica para clinicar,
atividades que não sejam
vinculadas a cartórios e a
valor, sob a forma fazer cirurgias com sucesso,
dadas certas circunstâncias.
empregos públicos são de de produto, serviço, Isso é importante e essen-
risco. Todas. Mas a socieda- gestão, produção, cial, porque chegamos, na
de perpetua essa percepção academia, ao estágio em
falsa de ausência de risco, estética, política, que se tem uma percepção
preconizando o estabele- sustentabilidade bastante acurada sobre a
cimento de vínculos com competência para exercer
instituições que essa mesma
de indivíduos e uma profissão. O mesmo se
sociedade considera muito comunidades etc.” dá em várias outras áreas da
estáveis. Esse é o motivo da atividade humana.
hierarquia das preferências No empreendedorismo, no
dos indivíduos no Brasil de hoje: almeja-se ser entanto, é muito difícil estabelecer uma cer-
empregado, em primeiro lugar, de um órgão tificação, afirmar que, se o indivíduo cumpriu
público; em segundo, de empresas estatais ou de determinado processo educacional, será capaz de
capital misto; em terceiro, de grandes empresas, empreender com sucesso. Não se chegou ainda a
de preferência multinacionais, e assim por diante. esse patamar. Ainda não é possível uma certifica-
Entre nós o conceito de estabilidade significa ção. Podemos somente afirmar que o indivíduo
estar vinculado a algo estável. Se não for pelo conhece e domina determinados preceitos e
nascimento (nobreza) que seja pelo casamento conceitos, tem conhecimento de certos procedi-
ou serviço público. mentos “habituais” para ser um empreendedor de
Por oposição a esse quadro, o empreendedor sucesso. É o máximo que se pode dizer. Tais pro-
afigura como pessoa muito mais realista – que cessos não garantem o sucesso, mas certamente
percebe, que entende, que aceita o risco como ine- sem eles a pessoa terá muito mais dificuldade de
rente à atividade humana e se dispõe a enfrentá-lo se estabelecer como empreendedor.
– do que outra para quem a ausência de risco é É diferente de outras áreas em que a certificação
uma meta. O empreendedor substitui o conceito é possível pelo estado da arte da especialidade,
anacrônico de estabilidade pela percepção de que, pelo nível de conhecimento etc. Empreender
Entrevista

para ser estável, é indispensável a capacidade de significa definir a partir do indefinido, percorrer
se movimentar em ritmo mais intenso do que as caminhos não percorridos. É uma atividade cuja
mudanças do mundo. substância envolve valores, crenças, visão de

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 15


mundo, autoconhecimento, auto-estima, rela- dora. O conhecimento é gerado pelo aluno. Tal
ções, capacidade de ler e entender o mundo, as conhecimento apóia-se em dois saberes: o sonho,
forças e interfaces que são importantes para sua a idéia, a oportunidade (que são originados do
atividade. Justamente por isso, porque nós não olhar que se pousa sobre o mundo) e o caminho
estamos diante da concretude acadêmica, é quase (a estratégia, a forma) para transformar esse
impossível certificar alguém, diplomar alguém sonho em realidade. Ninguém pode “transferir”
com a capacidade de sucesso na atividade em- tal conhecimento ao aluno – nem o professor,
preendedora. Empreendedorismo não é um tema nem os pais, nem os líderes. Simplesmente porque
acadêmico convencional. nenhum deles pode (porque não sabe) oferecer
caminhos. Educação, no nosso tempo, passa a ser
RG: Não sendo uma ciência, como fica a a capacidade de produzir os próprios caminhos.
relação deste com a universidade? Que O empreendedor é alguém que gera conheci-
papel pode ter o ensino superior na forma- mentos todo o tempo. Diferentemente do aluno
ção de novos empreendedores? O empreen- convencional, que aprende a ser especialista em
dedorismo poderia ser uma disciplina, determinado conhecimento técnico-científico, o
poderia ser utilizado formalmente na vida empreendedor é especialista no que não existe. É
acadêmica? por essas e outras razões que a prática pedagógica
ou andragógica deve ser outra.
FD: Essa é uma boa pergunta, que aponta para Mas é importante entender, apesar de o senso
um paradoxo. Não sendo ciência nem uma prática comum achar o contrário, que empreendedo-
dominada pela universidade (que empreende na rismo é um fenômeno coletivo e não individual.
área do saber e não de negócios), como ela pode Há um elemento fundamental na formação do
“ensinar” empreendedorismo? Esse é o trabalho empreendedor que é o que chamo de “sonho
que faço. As minhas metodologias para a educação coletivo”, ou a concepção de futuro que constrói
universitária (Oficina do Empreendedor) e para determinada comunidade. É esse desenho de
a educação básica (Pedagogia Empreendedora) futuro (que diferencia comunidades de aglome-
tentam oferecer uma mediação possível. Possuem rado humano) que inspira sonhos individuais, que
estratégias diferentes, em razão da idade e da ma- compõe o cardápio de escolha da atividade do
turidade intelectual e emocional dos estudantes, empreendedor.
mas seus princípios são os mesmos. E ambas fun-
cionam da mesma maneira: para adultos ou para RG: Qual seria então a prática pedagógica
crianças não há “ensino”, não há transferência adequada?
de conhecimento, não há resposta pronta, aliás,
a resposta é “proibida”; o professor não “ensina” FD: As metodologias que criei resolvem esse
e, além disso, não fornece respostas, pois nesta problema por meio do que chamo “metáfora de
acepção a resposta “desconstrói”. derrubada de muros”: a comunidade é convidada
Então, é possível, sim, organizar cursos de em- à comparecer à sala de aula e os alunos estimu-
preendedorismo mas numa perspectiva diferente. lados a aprender fora da escola – o campus por
As relações convencionais de professor-aluno são excelência do aluno empreendedor é a rua, e não
substituídas por uma relação mestre-aprendiz o campus universitário. Dá-se espaço ao real papel
de uma forma especialíssima: não se pode dar da comunidade, educadora e educanda. A chave
respostas. O mestre (que não é o professor é estabelecer uma conexão muito forte com a
universitário, mas um empreendedor real que é comunidade.
convidado à sala de aula) tem duas tarefas: contar Evitei empregar o termo “ensinar”, pois, como
a sua história (história da pessoa e não da empresa, vimos, não se ensina ninguém a ser empreen-
do criador e não da criatura) e, a mais nobre, dedor, transferindo conhecimentos, como um
fazer perguntas. A resposta, qualquer resposta, tema acadêmico convencional, como se faz com
é deletéria, extermina a capacidade empreende- matemática, geografia; aí você tem postulados,

16 R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005.


princípios que são dominados por alguém (o pro- RG: Em relação ao ensino do empreen-
fessor) e que podem ser transferidos a outros. dedorismo para crianças e jovens, como
No empreendedorismo, não é possível fazer trabalhar as questões de investimento,
isso, não se “ensina”, não se transferem conhe- lucro para as crianças que estão na fase de
cimentos empreendedores. Não há alguém que brincar, de não separar muito bem fantasia
sabe, cuja função seria transferir conhecimentos de realidade. Como o senhor vê pedagogi-
para quem não sabe. O objetivo metodológico é camente essa questão?
criar uma “cultura” que permita ao aluno apren-
der sozinho. Então, a metodologia comporta e FD: Essa pergunta é interessante porque esse
resolve esse aparente paradoxo, estimulando a foi um desafio que tive de enfrentar quando
criação de um ambiente de geração de conhe- comecei a trabalhar com crianças. Seria um
cimentos. absurdo ensinar às crianças empreendedoris-
mo voltado para os aspectos mais concretos
RG: Existe um conhe- do mundo empresarial. A
cimento específico do pedagogia empreendedora
empreendedor? “Empreendedorismo que lida com crianças
não ensina [...] O não fala disso, mas de
FD: O que acontece amiúde
é que as profissões estão fun-
objetivo metodo- empreendedorismo puro
e simples, e o aluno é que
damentadas em dois fatores: lógico é criar uma vai escolher mais à frente
ciência (conhecimento cien- “cultura” que o que fazer, qual o alvo de
tífico) e especialização. No sua atividade. Ela lida com
empreendedorismo não há permita ao aluno construção de valores,
nenhum dos dois. Então o aprender sozinho.” com cidadania, ou seja,
empreendedor é uma pessoa com construção de valores
que entende do mundo, para a comunidade, com
entende do que a gente denomina “ambiente de a inovação, e abrange e acolhe qualquer área
negócio”, setor de atividades, o setor em que atua. da atividade humana. A opção pela empresa
Disso ele entende. Quem trabalha com jornalismo é exclusivamente do aluno. É ele que diz se o
entende das práticas do negócio de jornalismo; se seu sonho é abrir uma empresa. O professor
ele for um grande redator, não quer dizer, neces- não pode ser diretivo, propor verdades, induzir
sariamente, que, ao abrir um jornal, uma empresa o aluno a abrir uma empresa. Quando o aluno
jornalística, obterá sucesso. Um outro exemplo manifesta sua vontade nesse sentido, aí, sim,
ainda nessa área: ser o melhor aluno de jornalis- o professor e a metodologia estão preparados
mo não significa estar habilitado a ter um jornal para focar esse tipo de empreendimento. Não
de sucesso. Certamente um curso de jornalismo se pode dizer “abra uma empresa”, porque
habilita seus alunos a serem bons redatores, es- essa é uma opção pessoal. A única coisa que se
pecialistas em comunicação etc., porque aí existe pode fazer é estimulá-lo a ser empreendedor,
especialização, um conhecimento dito acadêmico. porque isso significa desenvolver algo inerente
No empreendedorismo não há nenhum tipo de à espécie humana: a capacidade de inovar,
controle do conhecimento que possa constituir de oferecer valores positivos para os outros e
um padrão científico, tampouco existe o recurso desenvolver os próprios potenciais, sua paixão,
da especialização. Assim, não há como certificar sua habilidade de ser protagonista, sua capa-
alguém com o título de empreendedor. cidade de criar, de ser autor de si mesmo, de
Não é a ciência que está sendo posta em xeque, construir o seu bem-estar e o dos demais. A
Entrevista

pois o empreendedorismo é um campo pré- nossa proposta é que ele seja empreendedor
paradigmático, não dispõe de padrões que possam sempre, a escolha do que fazer e como fazer
configurar uma ciência. será sempre do aluno.

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 17


RG: A educação convencional é adequada cooperação, democracia, estudo das oportuni-
ao aprendizado empreendedor? dades, inovação. Esses temas são muito valiosos
para o empreendedor.
FD: Vamos analisar o que acontece com um pro-
fissional preparado pelo nosso sistema educacio- RG: Mas por que o empreendedor precisa
nal. Tomemos como exemplo um engenheiro de de temas, tais como autoconhecimento,
software, um programador de computador. Como ideologia, transgressão?
ele se insere no mundo do trabalho? Ele é um
especialista e, para que trabalhe, é necessário que FD: Apesar de o senso comum achar diferente,
alguém lhe ofereça um emprego, alguém que crie empreendedorismo não é um fenômeno pura-
um cargo de “programador de computador”. Em mente econômico, mas cultural. A inovação,
termos simples, essa é a proposta de inserção no por exemplo, é essencialmente relacionada com
trabalho típica do industrialismo, que transformou valores de uma determinada comunidade. Não é o
o sistema educacional em formador de competên- conhecimento científico-tecnológico que garante
cias para a indústria (e, à imagem e semelhança, a inovação. É a cultura. Nós vivemos em uma so-
também para o comércio, os serviços, o terceiro ciedade mercadocêntrica, o que significa dizer que
setor, o governo etc.). os valores da economia são replicados nos padrões
Nesse modelo, a formação acadêmica é ditada das relações sociais. A competição por exemplo,
pela descrição de cargos criada na indústria. Tudo se pode ser saudável ao mercado, na vida social
que o indivíduo tem de fazer é transformar-se provoca exclusão.
em grande especialista na área de software, por Os economistas clássicos tomavam o empre-
exemplo, e ser especialista em software não é endedorismo como uma externalidade, algo
nenhum problema. Mas o problema surge quando lateral ao processo econômico. A concepção da
tal especialidade é também a única conexão com economia liberal, baseada na capacidade de o
o mundo do trabalho. O fetiche dessa era que já individuo racional produzir equilíbrio econômico,
terminou, mas cuja sobrevida é assegurada por transposta para a vida social, produz a concepção
respiração artificial e outros apareclhos da “UTI individualista do empreendedor. Não surpreende
do emprego”, é o curriculum vitae. Quando se o fato de a ciência da administração de empresas
transforma na única “linguagem” que permite ter concentrado todo seu esforço em otimizar a
ao indivíduo “comunicar-se” com quem oferece empresa e não em produzir a felicidade de um dos
empregos, aí, sim, ele está em maus lençóis. O recursos, o ser humano. O empreendedorismo é
conhecimento científico-tecnológico nunca foi tão a maior tentativa de entender a produção econô-
indispensável nem tão insuficiente. O indivíduo, mica tendo como eixo o ser humano. Não é uma
além de ser especialista, deve estar preparado para visão dominante, mas é a visão que tenho.
estabelecer múltiplas interfaces com o ambiente No Brasil, o empreendedorismo deve ter uma
externo. Ele não pode ser apenas especialista em prioridade: o combate à miséria por meio do
software, é preciso que também possua a capaci- desenvolvimento social. Não pode ser uma
dade de gerar o próprio emprego. Não pode lidar proposta de enriquecimento pessoal. Por isso,
somente com a complexidade proposta pelo seu o conceito trabalhado por mim está impregnado
campo de estudo; tem que lidar com a complexi- de um princípio ético: só pode ser considerado
dade das relações sociais, políticas, econômicas. É empreendedor alguém que ofereça valor po-
essa a “especialidade” do empreendedor: estabe- sitivo para outros e não que subtraia valor da
lecer múltiplas interfaces. sociedade. Além dos empreendimentos políticos
Ao enxergar o aluno como “mão-de-obra”, a que põem o “mensalão” acima dos interesses
educação baniu ou não inclui temas hoje mais im- sociais, além dos empreendimentos que se
portantes do que o be-a-bá tecnológico: autoco- servem do tráfico de drogas e de ilícitos de todo
nhecimento, auto-estima, sonho, inconformismo, tipo e os alimentam, há aquele empreendedoris-
transgressão, protagonismo, ideologia, política, mo que, mesmo legal, é antiético porque subtrai

18 R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005.


humanidade: fábrica de cigarros, agrotóxicos, é vantajoso para todo mundo; a pessoa tem como
armas etc. respaldo uma estrutura sólida, sedimentada, a
empresa-mãe. Esta conhece, e muito, seu setor de
RG: Mudando um pouco o foco para a atuação, já tem clientes, isto é, o domínio do am-
criação de empresas via spin-off, ou seja, biente do negócio. Neste caso, o desenvolvimento
aquelas criadas a partir de grandes empresas tecnológico pode ser bem aproveitado, tornando
para aproveitar nichos de mercado, qual a o processo spin-off vantajoso para o indivíduo,
sua opinião sobre as vantagens e desvan- para o empreendedor e para a empresa-mãe.
tagens desse modelo de criação de novas Imagine, num centro de pesquisa da Petrobrás, a
oportunidades? quantidade de descobertas,
achados, inovações que
FD: Veja, o spin-off em “O conhecimento devem ser desprezadas por
alguns países está bem não estarem vinculadas ao
estruturado e tem sido
científico- core business (foco de negó-
considerado uma forma de tecnológico nunca cios) da empresa. Quantas
empreendedorismo bastante
efetiva, com vantagens para
foi tão indispensável pessoas poderiam aproveitar
melhor suas aptidões se
todos – o empreendedor, a nem tão insuficiente. houvesse essa mentalidade,
grande empresa e a socie- O indivíduo, além uma cultura de spin-off para
dade –, porque ele já nasce transformar essas novas
num ambiente especializa-
de ser especialista, idéias, produtos, em negócio
do, ou seja, com uma nova deve estar prepara- de sucesso – sem falar no
oportunidade de negócio
gerada dentro de uma
do para estabelecer baixo índice de “mortali-
dade” de empresas assim
empresa existente; a grande múltiplas interfaces criadas – numa relação custo/
empresa já está atuando no com o ambiente benefício vantajosa para toda
mercado e, assim, essa idéia a sociedade.
nasce amparada pelo conhe- externo.”
cimento do setor em que se RG: Há spin-offs “ami-
vai atuar, somada à prática, à maturidade etc. gáveis”, quando a empresa-mãe vê uma
Nesse sentido, o spin-off é o que está fazendo a oportunidade, um nicho de mercado em
diferença atualmente. É bom que se diga que o que não lhe interessa atuar e permite a um
spin-off sempre existiu; você encontra exemplos (ou grupo) de seus funcionários constituir
dele em várias organizações, em várias empresas. outra empresa para explorar esse nicho.
Agora, o que estamos fazendo é estruturar, induzir Essa fórmula seria mais vantajosa do que um
esse processo – muito interessante e altamente spin-off “não-amigável”, em que um antigo
vantajoso para a sociedade – de criar novas empre- funcionário (ou grupo) passa a ser um con-
sas. Em alguns países como a França, por exemplo, corrente direto? Pensando em geração de
já existe uma estruturação, uma legislação muito empregos, desenvolvimento econômico, qual
madura a esse respeito que privilegia, e protege os o modelo mais interessante para o Brasil?
empregados de empresas privadas que se lançam a
desenvolver um spin-off, oferecendo-lhes a possibi- FD: Nesse universo de possibilidades, existe
lidade de deixar o posto de trabalho e ficar fora, na nomenclatura muito ampla para definir tipos de
nova experiência, por um ano, prorrogável por mais spin-off (“a frio”, “a quente”, “induzido”). Temos
um; se não der certo, podem voltar para o cargo o spin-off clássico, tradicional, que oferece maior
Entrevista

que ocupavam; trata-se de uma série de apoios, segurança, em que a empresa-mãe vai “centrifu-
um conjunto de elementos de suporte importantes gar” uma atividade, criando um negócio e espe-
para que o spin-off se concretize. Dessa forma, ele rando um grande resultado. Nesse caso, há uma

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 19


cooperação entre a empresa-mãe e a empresa melhor, aumentando muito o potencial de sucesso
“centrifugada”; é possível utilizar todos os recur- desse grupo de empresas.
sos do spin-off, o que nem sempre ocorre quando
a operação se origina de uma ruptura. Há também RG: Nas transformações ocorridas na
várias formas de relação entre a empresa-mãe e economia capitalista em todo o mundo,
a nova: a primeira pode, por exemplo, reservar acompanha-se uma gradativa estruturação
uma parte da propriedade da “centrifugada” para de organizações e atividades ligadas ao
si. Geralmente o faz, sendo majoritária ou não; chamado terceiro setor. Como se manifesta
outra possibilidade é a empresa-mãe, mesmo sem aí o empreendedorismo? É diferente do
participação acionária na nova empresa, resolver empreendedorismo dirigido ao mercado
apoiá-la como estratégia de negócio. tradicional? O que vem a ser um empreen-
Já o spin-off “a quente”, de ruptura, também dedor social?
gera benefícios, mas talvez não aproveite toda a
potencialidade da relação com a empresa-mãe, FD: O terceiro setor é a grande novidade dos
pois foi gerado contra sua vontade. Há vários últimos tempos; é uma forma de organização
tipos de spin-off na sociedade, em empresas, social que não é complementar nem suplementar
centros de pesquisa, universidades; várias empre- à atividade do Estado. É um setor ainda em
sas de sucesso surgiram de processos desse tipo. processo de construção, seja dos conceitos que
Conheço spin-offs realizados há bastante tempo, o regem, do entendimento de seus limites, mas o
há cerca de 30 anos, mas de forma intuitiva. O que já se sabe é que o terceiro setor é uma área
que se pretende agora é dar uma estrutura a esse de intenso empreendedorismo, e essa é a grande
processo, de forma que seja passível de indução inovação, o grande fluxo de transformação da
e possa tornar-se uma política. Hoje o spin-off sociedade. Há vários conceitos do que seja
está-se transformando em estratégia de gestão e, empreendedorismo social; chamo de empreende-
evidentemente, nessa nova roupagem, aborda-se dorismo coletivo justamente aquela capacidade
apenas o modelo convencional, numa cooperação de desenvolver conectividade social, ou seja,
entre a empresa-mãe e a empresa spin-off. toda atividade para ser bem-sucedida tem de
construir a chamada cooperatividade sistêmica,
RG: Em que medida essa nova estratégia que é atuar na intersecção do primeiro, segundo
de gestão poderia incorporar o chamado e terceiro setores, coisa que nós, no Brasil, não
empreendedorismo interno ou corporativo? sabemos fazer muito bem. Você precisa ter o
governo, a sociedade civil e o mercado atuando
FD: No que toca ao empreendedorismo, você em conjunção, em cooperação para conseguir
tem o corporativo, que visa a tornar aquela produzir bem-estar social, para conseguir cons-
instituição mais empreendedora, mas que não truir empreendimentos com base em conceito
necessariamente gerará novos empreendimentos, que possa gerar desenvolvimento. Na minha per-
e o empreendedorismo que poderia resultar em cepção, o empreendedor coletivo é aquele que
uma inovação que, potencialmente, poderá gerar gera capital social, aquele cujo sonho é construir
um spin-off. Essas duas visões revelam um estilo capital social em uma dada comunidade. Isso é
de gestão, uma política de gestão; você tem de importantíssimo porque, sinteticamente, temos
fazer com que sua empresa seja inovadora, em- o empreendedorismo “do mal” e o “do bem”.
preendedora, com objetivos de desenvolver seu O primeiro, como já mencionei, não se refere
potencial, e que também seja capaz de abraçar, apenas ao que é ilegal, que lida com poluição, com
de acolher possíveis iniciativas de centrifugação tráfico de drogas etc., mas também àquele aceito
que venham a surgir. Com isso você aumenta pela legislação, pela sociedade, sem oferecer
muito o potencial da sua atividade; você pode valor positivo para o local – o desenvolvimento.
abraçar o mercado de forma mais sofisticada, mais Esse empreendedorismo, muito comum no Brasil
abrangente, sem perder a capacidade gerencial e, e em outros países, cá entre nós, é um empreen-

20 R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005.


dedorismo muito deletério, muito nocivo, porque – que são muito bons, são do nível de Bill Gates
planta um núcleo aqui para gerar riqueza na – possam ter um ambiente favorável.
Suíça, ou investe, ou se estabelece na costa do Empreender exige uma escolha ideológica que
Nordeste, gerando lucro só para pessoas que responda à seguinte pergunta: a quem interessa
estão em São Paulo. Na o empreendedorismo? Para
verdade, subtraem valor mim, o empreendedorismo
das comunidades em que se “[...] se Bill Gates tem o objetivo de provocar
inserem; esse é o empreen- o desenvolvimento social.
dedorismo “do mal”, porque
tivesse nascido aqui, O empreendedorismo no
não é desenvolvimentista, e talvez fosse o dono Brasil tem de ser um forte
sim predatório. E nós, no
Brasil, não temos capacida-
de uma empresa de instrumento de combate à
miséria.
de de transformar PIB em cinco empregados Há pessoas que pensam
felicidade social, porque não e estivesse na assim: o empreendedorismo
temos capital social. Nesse é algo tão sofisticado que
cenário, está a importância garagem até hoje, deve estar ligado somente às
do empreendedor coletivo, dado o ambiente atividades de geração de alto
atento a essa capacidade,
que se refere à democracia,
hostil que criamos valor, às empresas tecno-
lógicas. É lógico que temos
à cooperação, à estrutura à atividade empre- de investir pesadamente nas
em rede. Então, na verdade, endedora [...] é empresas de base tecnoló-
o empreendedorismo “do gica, no empreendedorismo
bem”, aquele que gera feli- necessário fortalecer de alto valor agregado. É
cidade social, que gera bem- o ambiente para que evidente que devemos ter
estar social, só sobrevive, grandes empresas apoiadas
só existe num ambiente
nossos empreen- em políticas adequadas, pois
democrático, num ambiente dedores – que são uma economia forte nasce
de alta cooperação.
Vejo por aí pessoas dando
muito bons, são do da conjunção de grandes e
pequenas empresas. Mas
aula de empreendedorismo, nível de Bill Gates também devemos atentar
trabalhando com um con- – possam ter um am- para o empreendedorismo
ceito muito restrito, com que pode, como ocorre em
base numa percepção de
biente favorável.” várias partes do Brasil, ser
fortalecimento de individua- estimulado por meio do
lismos, de construção das individualidades; mas microcrédito de poucas centenas de reais e, com
o empreendedorismo é um fenômeno coletivo! isso, gerar dignidade, tirar da miséria e tornar
Veja bem, cada sociedade tem o empreendedor produtiva boa parte da população. Temos de
que merece, pois ela constrói um ambiente estar sempre atentos para não replicar paradigmas
para ele. Não adianta você preparar grandes concentradores de renda, conhecimento e poder.
empreendedores se a sociedade proporciona Esse é o grande erro que se vê por aí; propostas
um macroambiente que não consegue acolher de educação empreendedora copiadas de países
esse empreendedor. Eu diria, numa pequena desenvolvidos, em que o estoque de capital social
metáfora, que, se Bill Gates tivesse nascido aqui, faz com que o aumento do PIB chegue à base da
talvez fosse o dono de uma empresa de cinco população. Aqui, isso não acontece...
empregados e estivesse na garagem até hoje,
Entrevista

dado o ambiente hostil que criamos à atividade RG: Ou seja, empreendedorismo devia ser
empreendedora. Por isso, é necessário fortalecer uma atividade inclusive de governantes,
o ambiente para que nossos empreendedores uma política de governo?

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 21


FD: Veja bem, os governantes devem ser empre- mais empreendedora ou entre as mais
endedores, não o Estado. Este já demonstrou que empreendedoras. Que importância tem
não sabe fazer e que também não tem um tostão essa pesquisa para o Brasil e para onde seus
para empreender, em virtude de não poder gerar resultados apontam?
inflação pela emissão de papel-moeda e tampouco
infringir os limites da responsabilidade fiscal. FD: Essa pesquisa é importante porque, entre
Ao lado disso, vivemos num ambiente que fa- outras coisas, pôs o empreendedorismo nas
vorece historicamente as grandes empresas em primeiras páginas do noticiário econômico do
detrimento das micro e pequenas. Nos países Brasil e permitiu que se começassem a discutir
desenvolvidos existe preocupação diversa de abertamente as possibilidades, virtudes e proble-
fortalecimento da atividade de micro e pequenos mas do empreendimento no país. No entanto, é
empresários. preciso reconhecer que, de conjunto, o tema foi
Desde o Brasil-Colônia todo o contexto insti- muito mal-explorado, ensejou um ufanismo mal
tucional do Brasil tem sido desfavorável a quem localizado, indevido. A pesquisa deve ser enten-
queira criar uma pequena empresa. Esse é o perfil dida em toda a sua profundidade, para que não se
que precisa ser desmontado. Não estou dizendo coloquem no mesmo plano realidades tão distintas
para acabar com as grandes, pois há necessidade como as de Brasil e Japão, por exemplo, e se tirem
de um núcleo de grandes empresas fortes, muito conclusões impróprias.
mais fortes do que são hoje, mas não podemos Em síntese, a pesquisa confirma percepções
esquecer da malha imensa – a multidão infinita de preexistentes. Somos um povo empreendedor
micro e pequenas empresas que alicerçam uma que sobrevive em um ambiente desfavorável.
democracia econômica, provocam desenvolvi- Mesmo tendo uma população criativa, alegre, com
mento, geram inovação. vontade de fazer, de inovar, o Brasil impede e cria
O Brasil não tem uma história de inovação. obstáculos a quem queira empreender. O Brasil
Desde o período colonial, o Brasil vem sendo um institucional inibe a atividade empreendedora,
campo de extração em que inovação não tem o num grau talvez não igualado no planeta.
menor sentido. Quando não se extraíam metais, Essa é a leitura possível: dá uma enorme tristeza
nossos solos eram explorados até a exaustão por ver um país com tamanha capacidade empreen-
uma agricultura de baixíssima tecnologia. Como dedora ter sua população inibida pelas instituições
as terras eram quase infinitas, um solo semi- – aí incluídas as forças políticas, econômicas,
esgotado determinava que se avançasse para culturais, educacionais. O Brasil institucional é
a área vizinha, e para outra, e mais outra, até um peso que o Brasil empreendedor não tem
chegarmos à Bolívia! O território nacional foi-se condições de suportar.
expandindo por meio desse tipo predatório de
exploração do solo, em que não havia nenhuma RG: A globalização de mercados na qual
preocupação com sustentabilidade – palavra o Brasil está inserido – e lutando por con-
inexistente no Brasil-Colônia e, de certa forma, quistar espaços de comercialização de seus
até hoje. No século passado, a industrialização produtos – é um fenômeno criador ou des-
do Brasil foi apoiada não na inovação, mas em truidor de oportunidades empreendedoras?
subsídios, reserva de mercado, proteção a setores
específicos. Mas empreendedorismo relaciona-se FD: A participação num mercado globalizado e
com sustentabilidade... competitivo é uma coisa boa, em princípio. Se
você tem capacidade de realizar trocas interna-
RG: No levantamento anual feito pela cionais, de oferecer valor para alguém na Coréia,
inglesa London Business School e pelo no Vietnã, na Malásia, na França, no Japão, a
Babson College, dos Estados Unidos – o globalização é algo maravilhoso, pois não existe
Global Entrepreneurship Monitor –, desde nada melhor do que você poder vender, oferecer
2001, o Brasil vem figurando como a nação ao mundo e não apenas ao mercado interno, isto

22 R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005.


é, deslocalizar o comércio. Muitas nações estão sobre nossa conversa. Existe algum aspecto
sendo prejudicadas com a globalização, mas é que queira destacar ou alguma mensagem
preciso que o planeta perceba a necessidade de que o senhor pretenda deixar para nossos
uma transição ainda mais cuidadosa em termos leitores?
globais para que as diferenças já tão fortes não
sejam acentuadas pelo processo. FD: Gostaria de transmitir uma mensagem aos
O Brasil não pode ter medo da globalização. A educadores, estudantes da Uninove, de gradu-
riqueza de qualquer nação está na capacidade de ação e pós-graduação; em suma, aos leitores da
os seus cidadãos oferecerem Revista Gerenciais. Quero
valor para o planeta. Mas chamar a atenção desse
não podemos continuar “O empreende- público para certa visão do
com o baixo nível de capital dorismo é a única empreendedorismo, uma
humano que temos nem visão parcial, uma visão,
com a convivência com os
saída para uma digamos, intuitiva do que
restos de autocracia que sociedade como é empreendedorismo. É
ainda dão forma à nossa
sociedade.
a brasileira, que um ramo muito novo do
conhecimento, de três
está globalizada e décadas, e ainda não há uma
RG: O Brasil como “o precisa desenvolver avaliação madura, em todos
país mais empreen- os setores da sociedade
dedor” não pode ser
a capacidade de brasileira, sobre o potencial
reflexo do desemprego inovação em todos do empreendedorismo. Isso
crescente e de pessoas
que, não conseguindo
os seus níveis, porque os cursos de admi-
nistração e os de economia
colocação no mercado utilizando a alta historicamente nunca trata-
de trabalho, tentam tecnologia como ram o empreendedor como
ter o próprio negócio? eixo do desenvolvimento
instrumento de econômico.
FD: É exatamente esse combate à miséria.” O empreendedorismo é
o ponto e devemos ter a única saída para uma
cuidado ao analisar afoi- sociedade como a brasilei-
tamente pesquisas como a mencionada. Num ra, que está globalizada e precisa desenvolver a
momento de desaceleração econômica, de baixa capacidade de inovação em todos os seus níveis,
oferta de empregos, é evidente que a taxa de utilizando a alta tecnologia como instrumento de
empreendedorismo de um país tende a subir. A combate à miséria. Concomitantemente, tenho
maior parte da população, por não ter acesso à vivido experiências em comunidades pobres,
educação formal de nível, não consegue chegar muito pobres, miseráveis, inseridas num ambiente
a postos de trabalho na forma de empregos de tráfico de drogas, cuja juventude responde ao
razoáveis. Então ela tenta “se virar”. O brasi- estímulo de empreendedorismo e consegue empre-
leiro é “virador”, não aceita a miséria de forma ender, fugindo do cerco do tráfico e da miséria.
resignada; ele luta e busca o próprio sustento, É preciso que as pessoas entendam isso, é preciso
de forma empreendedora. Para crescer, o Brasil que o empreendedorismo seja percebido como um
dos palanques anuncia a criação de empregos. tema universal, como a nossa alfabetização para
Mas muitos miseráveis só o são porque estão o desenvolvimento. Há realmente que se prestar
empregados! atenção à relação entre empreendedorismo e
Entrevista

desenvolvimento social – que podem andar juntos


RG: Para finalizar, gostaríamos de deixá-lo ou não, dependendo da escolha ideológica, ética,
à vontade para tecer algum comentário adotada previamente.

R. Gerenciais, São Paulo, v. 4, p. 11-23, 2005. 23

Você também pode gostar