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7.

Viver segundo o Espírito e na


liberdade de Cristo – 5:1-26

Luiz Alexandre Solano Rossi[126]

O apóstolo Paulo inicia o capítulo cinco com uma forte


exortação para que os cristãos da Galácia mantivessem firme a
liberdade conquistada exclusivamente por Cristo. Se o evangelho
é apresentado como fonte de liberdade, a lei é apresentada como
espaço de aprisionamento. O pensamento paulino é cristalino ao
declarar que não é possível alcançar e liberdade por nós mesmos,
ou seja, por meio de um esforço pessoal. A obediência à lei conduz
apenas à prisão e Cristo à plenitude da liberdade (Gl 5:1-12):

1 Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente li-


vres. Portanto, sejam firmes e não se submetam de novo ao
jugo da escravidão. 2 Eu, Paulo, declaro: se vocês se fazem
circuncidar, Cristo de nada adiantará para vocês. 3 E a todo
homem que se faz circuncidar, eu declaro: agora está obri-
gado a observar toda a Lei. 4 Vocês que buscam a justiça na
Lei se desligaram de Cristo e se separaram da graça. 5 Nós, de
fato, aguardamos no Espírito a esperança de nos tornarmos
justos mediante a fé, 6 porque, em Jesus Cristo, o que conta
não é a circuncisão ou a não-circuncisão, mas a fé que age
por meio do amor. 7 Vocês estavam correndo bem. Quem
foi que colocou obstáculo para que vocês não obedeçam
mais à verdade? 8 Tal influência não vem daquele que chama

[126] Luiz Alexandre Solano Rossi é professor do PPGT da PUCPR e na


UNINTER (Centro Universitário Internacional). Mestre em Teologia pelo
ISEDET (BsAs), Doutor em Ciências da Religião (UMESP) e pós-doutor em
História Antiga (UNICAMP) e em Teologia (Fuller Theological Seminary).

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vocês. 9 Um pouco de fermento basta para levedar toda a
massa! 10 Confio no Senhor que vocês estão de acordo com
isso. Aquele, porém, que os perturba sofrerá condenação,
seja quem for. 11 Quanto a mim, irmãos, se é verdade que
ainda prego a circuncisão, por que sou perseguido? Nesse
caso, o escândalo da cruz estaria anulado! 12 Tomara
que aqueles que estão perturbando vocês se mutilem de
uma vez por todas!

Se Cristo é aquele que liberta, todos aqueles que seguem no


caminho como seus discípulos, vivem a conversão como um ato
de emancipação e, por consequência, o cotidiano da vida cristã
se apresenta como se fosse um libelo à liberdade. Se livres somos
por causa de Jesus, já não é mais necessário que vivamos como
se fôssemos escravos na casa do Pai. Permanecer firmes e não se
submeter novamente ao jugo da escravidão indica um processo
de olhar continuamente para o futuro e jamais voltar para sis-
temas, sejam eles quais forem, que escravizam a mente, o espírito
e impedem de caminhar livres em direção ao futuro.
Paulo é cristocêntrico e, por isso, rejeita energicamente qual-
quer possibilidade e concepção de que a salvação pudesse ser
realizada parcialmente por Cristo e parcialmente pelos esforços
humanos. A parcialidade significaria a anulação do que Cristo
fez na cruz. Paulo deixa claro que não há uma meia salvação por
meio de Cristo e, ao mesmo tempo, refuta a tese dos judaizantes
que declaravam que a fé em Cristo era insuficiente para a sal-
vação. Dessa forma, Paulo diz que se a circuncisão realmente for
uma necessidade imprescindível para a salvação, a obra de Cristo
teria sido insuficiente. A possível decisão de se submeter e se auto
prender num sistema legal, anulando o projeto de Cristo, possi-
bilitaria pensar que a circuncisão suplantava a graça e que Moisés
suplantava a Cristo. Paulo anuncia em alto e bom tom aos judai-
zantes, bem como aos cristãos da Galácia: a circuncisão e Cristo
são mutuamente excludentes.

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Didaticamente Paulo apresenta um contraste entre projetos
distintos e não intercambiáveis. Um contraste que pode ser vi-
sualizado entre as expressões “vocês” (Gl 5:1-5) e “nós” (Gl 5:5),
entre lei e fé, entre carne e espírito, entre aqueles que eram sedu-
zidos pelo rigor da lei e aqueles que permaneciam na liberdade
conquistada por Jesus Cristo. Assim Paulo, sabiamente e movido
pelo Espírito, está consciente de que não é a discussão ao redor
da circuncisão ou da não-circuncisão que realmente importa, ou
seja, as marcas físicas de pertencimento à família de Abraão ou
a ausência dessas marcas, não são a questão primordial. O que
de fato importa é a “fé”, todavia, não uma fé desidratada, rasa,
ineficaz e muito menos morta, mas uma fé dinâmica, esperan-
çosa, ativa e que tenha uma força eficaz, isto é, uma fé que age
por meio do amor.
O chamado de Deus à liberdade, mais do que um privilégio,
deve ser compreendido como uma responsabilidade. Não há em
Deus qualquer possibilidade de aprisionamento do ser humano.
A liberdade de Deus faz com que todos os que com ele se rela-
cionam seja, simultaneamente, livre. Assim, a liberdade não deve
ser considerada uma oportunidade para se fazer o que se deseja.
Trata-se sempre de liberdade que se relaciona com o outro. Não
seria adequado que alguém vivesse livre ao mesmo tempo em que,
para manter sua liberdade, aprisionasse os demais. No projeto de
Deus não há espaço para auto aprisionamento e, muito menos a
construção de muros que lançam as demais pessoas nas perife-
rias da vida. A liberdade em Paulo, por essas razões, não pode ser
reduzida a uma discussão teórica, mas vista como intensamente
prática. Assim o que diferencia viver segundo o Espírito é a nossa
sensibilidade para com os demais e como a rede de comunicação
com eles é construída. Consequentemente, qualquer atitude de
superioridade ou de comportamentos que causam divisão, não
pode ser tolerada, porque produziriam estática na rede de comu-
nicação. O amor não pratica o mal contra o próximo.

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O Espírito é o garantidor da vida em liberdade e, por isso,
faz da nova vida que se vive nessa dimensão um sinal de esperança
para a sociedade. Todos os que vivem sob o influxo do Espírito
devem demonstrar o fruto do Espírito em suas vidas e no com-
portamento social. O amor, a paz, a liberdade e a justiça do Reino
de Deus devem marcar o estilo de vida dos discípulos e discípulas
a fim de construir comunidades e sociedades plenamente liberta-
doras. Comunidades abertas, sem muros, integradoras, inclusivas
e jamais excludentes. Izidoro ajuda-nos a melhor compreender o
pensamento paulino em relação à comunidade da Galácia:

Para Paulo, a fé era a aceitação plena do evento de Cristo e


de seu intrínseco dinamismo de amor, entendida como im-
pulso operativo. A perspectiva cristológica e soteriológica
do discurso paulino comportava uma antropologia teoló-
gica e, igualmente, certa visão eclesiológica, marcada pela
opção fundamental da fé e do amor. Por isso, ela não exclui
ninguém e está aberta a todos os homens, judeus e pagãos,
escravos e livres, homens e mulheres[127].
13 Irmãos, vocês foram chamados para serem livres. Que
essa liberdade, porém, não se torne desculpa para vocês
viverem satisfazendo os instintos egoístas. Pelo contrário,
disponham-se a serviço uns dos outros através do amor.
14 Pois toda a Lei encontra a sua plenitude num só manda-
mento: «Ame o seu próximo como a si mesmo». 15 Mas, se
vocês se mordem e se devoram uns aos outros, tomem cui-
dado! Vocês vão acabar destruindo-se mutuamente. 16 Por
isso é que lhes digo: vivam segundo o Espírito, e assim não
farão mais o que os instintos egoístas desejam. 17 Porque os
instintos egoístas têm desejos que estão contra o Espírito,
e o Espírito contra os instintos egoístas; os dois estão em
conflito, de modo que vocês não fazem o que querem. 18*
Mas, se forem conduzidos pelo Espírito, vocês não estarão

[127] 2013, p. 125.

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mais submetidos à Lei. 19 Além disso, as obras dos instintos
egoístas são bem conhecidas: fornicação, impureza, liber-
tinagem, 20 idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira,
rivalidade, divisão, sectarismo, 21 inveja, bebedeira, orgias e
outras coisas semelhantes. Repito o que já disse: os que fazem
tais coisas não herdarão o Reino de Deus.[128]

A ideia da vida cristã como um andar é frequente no Novo


Testamento. Deve ser notado que o tempo do imperativo (pre-
sente) demonstra que Paulo não exorta os gálatas a fazer aquilo
que não fizeram antes; pelo contrário, conclama-os a “continuar
andando (vivendo) pelo Espírito”. Aqueles que andam no Espírito
certamente não satisfarão à concupiscência da carne. Este é
um resultado garantido àqueles que vivem segundo o Espírito.
Lopes[129] ao ampliar a percepção, acrescenta que “andar” cons-
titui um movimento com sentido, direção e qualidade.
O projeto de se viver segundo o Espírito traz uma realidade
nova na construção de comunidades. Viver segundo o Espírito
proporciona a construção de comunidades saudáveis ou comuni-
dades terapêuticas. Contrariamente, viver segundo o projeto da
carne produz relacionamentos tóxicos e, consequentemente, co-
munidade tóxicas. A expressão textual é forte: “para que a carne
não domine vocês”. O projeto de dominação da carne exige obe-
diência a um projeto que desestabiliza as relações interindividuais.
Se viver segundo o Espírito proporciona amor e serviço; viver se-
gundo a carne produz a destruição uns dos outros. Possivelmente
Paulo está dizendo que os cristãos precisavam reaprender a ser e
viver como verdadeiramente livres. Para Paulo, se eles brigavam
entre si e “devoravam um ao outro”, era o melhor exemplo de
que ainda viviam a pior da escravidão. Possivelmente o apóstolo

[128] Gl 5:13-21.
[129] 2011, p. 239.

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pensa “numa alcateia de animais selvagens precipitando-se cada
um contra a garganta do outro. E uma representação viva não só
da desordem total, como também da mútua destruição”[130]. A
forte imagem utilizada por Paulo faz menção a uma contradição
relativa ao ser humano, isto é, não mais percebido como imagem
e semelhança de Deus, ele é “transformado” em uma besta fera
que provoca violência, morte e destruição por onde passa. A
imagem, portanto, está no contraponto do amor mútuo, ou seja,
ao invés de construção de uma comunidade onde caibam todos,
implode-se a comunidade a partir de dentro. A liberdade propor-
cionada por Jesus não é um bem estático, mas sim uma virtude
que persegue objetivos e, por ser dinâmica, encontra-se diaria-
mente em movimento.
Viver segundo o Espírito traz a perspectiva de se pensar não
como acima e melhor do que os outros; leva a pessoa a reconhecer
que existimos para construir relações interindividuais amorosas
e relações de serviço; o amor não cria déspota e muito menos
hierarquiza as relações. Amor precisa ser considerado a partir da
dimensão da doação. Ama-se, nesse caso, plenamente; não se eco-
nomiza no amor, assim como jamais alguém será culpabilizado
porque amou demasiadamente. A liberdade realçada por Paulo
é uma liberdade para o amor. E o serviço requer ser pensado de
forma desinteressada. Muda-se os polos de interesse. As relações
de dominação, sejam elas quais forem, perdem o interesse justa-
mente porque quem gera o desejo de domínio, também gera o
desejo de morte de sua comunidade. Portanto, viver segundo o
Espírito é viver com fome e sede de Deus e, mais objetivamente,
uma peregrinação guiada pelo Espírito pelas trilhas do mundo a
caminho do Reino.

[130] GUTHRIE, 2011, p. 172.

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Paulo é de uma habilidade impressionante ao alterar o con-
ceito de liberdade que a maioria está acostumada. Ele nos ensina
que jamais pode ser considerado livre aquele que prescinde dos
outros e nãos os serve por amor. A percepção de Guthrie segue
nesse sentido: “O amor verdadeiro deve ser mútuo e não pode
colocar seus próprios interesses em primeiro lugar”[131]. Mas ele
vai além ao afirmar que se engana que a liberdade tenha sido
conquistada por meio de nossas próprias forças e/ou capacidade
intelectual. A liberdade existe somente enquanto conquistada por
Jesus que, de fato, nos libertou de tudo o que poderia nos impedir
de viver nossa verdadeira vocação de discípulos de Jesus. Para
Paulo, a vocação para a liberdade somente tem sentido se vivida
para o serviço das demais pessoas. Tanto a fé quanto a liberdade
podem se tornar distorcidas se separadas do amor desinteres-
sado. Liberdade como vocação é sinal de que ela não nasce de
dentro para fora. Trata-se de um chamado de Deus que jamais
abandona os que chamou[132]. E, mais do que isso, a vocação
para a liberdade é plenamente democrática ao atingir todos os
discípulos e discípulas.
A liberdade apresentada por Paulo conduz a uma prática
de serviço mútuo que implica, naturalmente, a dimensão inter-
pessoal e se realiza por amor. Todavia, aqueles que entendem a
liberdade como autonomia individualista em relação com as de-
mais pessoas, não é capaz de se impor limites e, por isso, acaba
sendo arrastado pelos apetites desordenados da carne, ou seja,
das tendências egoístas que se aninham no coração humano e o
escravizam perenemente. É justamente por isso que aqueles que
optam por se fechar em si mesmos e se deixam dominar pelos im-
pulsos da carne, são convidados pelo apóstolo a se abrirem para

[131] 2011, p. 171.


[132] COTHENET, 1995.

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o Espírito e se deixarem guiar por ele. Uma possível conclusão
derivada dessa reflexão é que a liberdade cristã é carismática, ou
seja, somente é possível onde Espírito esteja presente e atuando. É
o Espírito que transforma o batizado e o emancipa da escravidão
da lei a que estava submetido e o capacita para o serviço a Deus e
aos demais. Da presença carismática do Espírito brota um novo
estilo de vida regulado não pela letra que mata, mas regulada pela
lei do Espírito que, simultaneamente, dá vida e destrói o pecado.
O que fazer com a liberdade quando a conquistamos? Qual o
propósito específico que o senso de liberdade nos traz?
Viver segundo o Espírito ou segundo o projeto da carne são
reveladores de qual seja a verdadeira identidade do discípulo, ou
seja, de onde vem a motivação mais profunda dele e onde o poder
que realmente guia a sua vida é encontrado. Paulo, a partir do
tema da liberdade em Cristo, não está defendendo a noção de que
o discípulo pode fazer qualquer coisa. Há na mente de Paulo um
diagrama em que ele coloca em polos opostos a carne e o espí-
rito que se encontram em permanente batalha. Dessa forma, a
perspectiva paulina, encontrada em sua orientação pastoral aos
gálatas, o mais importante é que a identidade esteja profunda e
necessariamente ligada a Jesus Cristo e que, o discípulo habitado
pelo espírito, viva sem precisar da lei judaica e muito menos sem
a exigência da circuncisão como sinal distintivo e identitário. Se o
discípulo está livre desse peso, a motivação e o poder do espírito
permitem que ele também esteja livre das armadilhas do paga-
nismo e do comportamento que o acompanha. A lógica de Paulo
é muito clara: quem vive segundo o espírito produz os frutos do
espírito e quem vive partir do projeto da carne produz um com-
portamento típico não somente contrário ao projeto de Jesus, mas
também o negando. Nessa perspectiva, a vida segundo o Espírito
cria fé onde não havia fé, e envolve discípulos e discípulas numa
nova peregrinação de vida, que permite que cada um deles e delas

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passe do poder escravizador da avareza e do individualismo da
antiga ordem da injustiça que conduz à morte, para a liberdade da
nova ordem regida pela liberdade de Jesus Cristo. E porque não
afirmar que a fé fundamentada em Jesus se materializa mediante
o amor que se canaliza no amor mútuo.
Caso estejamos livres para Deus estamos livres para amar o
próximo. Dessa forma, livres para ser guiado pelo espírito para
uma nova vida caracterizada pelos frutos do Espírito. Trata-se, de
fato, de se reconstruir e construir a comunidade a partir de um
projeto de renovação e perpetuação da vida, que só é possível sob
o impulso do Espírito (Gl 5:22-26).

22 Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência,


bondade, benevolência, fé, 23 mansidão e domínio de si.
Contra essas coisas não existe lei. 24 Os que pertencem a
Cristo crucificaram os instintos egoístas junto com suas pai-
xões e desejos. 25 Se vivemos pelo Espírito, caminhemos
também sob o impulso do Espírito. 26 Não sejamos ambi-
ciosos de glória, provocando-nos mutuamente e tendo inveja
uns dos outros.

Paulo é um hábil artesão de palavras a fim de provocar


contrastes vívidos e que não deixam lugar para a instalação da
dúvida. Um desses contrastes é entre obras da carne e frutos do
espírito. São opções de vida que se encontram em polos diame-
tralmente opostos e que não se misturam. São projetos de vida
que determinam o futuro de cada pessoa e de sua comunidade.
Se recordarmos a lista das obras da carne dos versos 19-21, con-
cluiremos que uma sociedade composta de pessoas que em sua
maioria assumem aquelas obras como regra de vida, provavel-
mente estará distante da felicidade e da prosperidade individual
bem como comunitária. Cothonet ratifica e amplia a questão

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dizendo: “tudo o que põe em perigo a vida comunitária procede
da carne”[133].
Guthrie é preciso em sua explicação:

A mudança de “obras” para “fruto” é importante porque re-


move a ênfase do esforço humano. A linguagem figurada que
ele emprega é especialmente sugestiva para transmitir a ideia
de crescimento espiritual, em notável contraste com a dete-
rioração que segue as atividades da carne. É significativo o
uso do singular “fruto” ao invés do plural, porque este último
sugeriria produtos diversos, enquanto o verdadeiro alvo de
Paulo é demonstrar os vários aspectos da única colheita.
Nenhuma destas qualidades que Paulo menciona pelo nome
pode ser isolada e tratada como uma finalidade em si mesma.
A metáfora do fruto, frequentemente usada no ensino de
Jesus, foi incluída em algumas outras ocasiões nas Epístolas
de Paulo, e a mais interessante delas é a de Efésios 5:9, onde
ocorre, como aqui, imediatamente após uma referência ao
caráter ético do reino[134].

Gerar frutos indica a naturalidade do processo, ou seja, uma


árvore frutífera não se esforça para que seus frutos, no tempo
apropriado, surjam por entre seus galhos e suas folhas. Frutos
não são, portanto, coisas que podemos tentar arduamente fazer
sem a cooperação do espírito, isto é, ele não pode ser criado ar-
tificialmente e muito menos simulado; jamais é um produto de
laboratório produzido sob os rigores de temperatura e pressão.
Mas não apressemos o raciocínio nem sejamos apressados em
concluir: não se trata de uma questão de se relaxar e deixar que
surja naturalmente em algum momento. A fim de que a passivi-
dade se instale na vida do cristão, Paulo, no verso 25 enfatiza que

[133] 1995, p. 83.


[134] 2011, p. 178.

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os gálatas precisam se alinhar com o Espírito, isto é, ver o efeito
que o Espírito quer produzir para refletir como isso aconteceria.
Cristãos que geram frutos são, decididamente, aqueles que
pertencem ao tipo de comunidade que Deus deseja construir; e os
frutos serão verdadeiramente parte de quem nos tornamos. Paulo
está realmente preocupado com a comunidade da Galácia:

A comunidade da Galácia, através da influência desagre-


gadora dos agitadores, estava se tornando agressiva, com
algumas pessoas pensando que eram muito importantes,
como se fossem superiores a outras pessoas. Se o espírito
está trabalhando – e, se o espírito não está, então isso é tudo
menos uma comunidade cristã – a inveja e a rivalidade mú-
tuas devem ser expelidas[135].

Negar os frutos do Espírito seria o mesmo que afirmar as


obras da carne. Quando se enfatiza a necessidade de amor, pa-
ciência, generosidade e outros frutos, revela-se simultaneamente,
a atitude que se relaciona com a verdade e com o evangelho.
Assim, reforça-se o positivo – frutos – ao não dar espaço para
que o negativo – obras da carne – crie raízes nos relacionamentos
comunitários.
Os frutos, a meu ver, devem ser socialmente interpretados.
Nesse sentido a opção seria a de não reduzir os frutos a qualidades
interiores, intimistas e subjetivas. Dentro do contexto das relações
interindividuais, de construção de comunidades terapêuticas e de
amor mútuo, os frutos necessitam ser lidos de forma socialmente
responsável, ou seja, como tudo o que aumenta a sensibilidade
para com as necessidades dos outros e contribui para a formação
de comunidades onde caibam todos e todas, uma sociedade mais
justa, pacífica e tolerante e que permita que as pessoas vivam a
liberdade socialmente responsável. Os frutos do Espírito, dessa
forma, permitem que as pessoas façam escolhas responsáveis re-

[135] WRIGHT, 2020, p. 94.

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lativas ao bem-estar de todos. É importante salientar que para
Paulo o fruto do Espírito não pode ser colhido sem uma renúncia
radical à carne. É preciso crucificá-la com suas paixões, desejos
e projetos justamente porque ela ameaça a vida da comunidade.
Vamos nos aproximar minimamente dos significados dos
frutos e perceber seu alcance sóciocomunitário:
Amor: trata-se de um fruto que se encontra no coração do
evangelho. Todavia, não deve ser confundido com sentimenta-
lismo superficial. Enfim, um amor que se encontra no coração de
Deus: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu
filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas
tenha a vida eterna (Jo 3:16) e que se manifesta como regra de
vida para todos os discípulos e discípulas: “Ninguém tem maior
amor do que aquele que dá a vida por seus amigos”.
Alegria: Paulo faz da alegria um dos sinais do Espírito. A carta
aos Filipenses, conhecida como a carta da alegria, escrita no ca-
tiveiro é exuberante em demonstrar como a alegria se apresenta
e se consolida na vida dos discípulos: “Alegrai-vos sempre no
Senhor! Repito: Alegrai-vos!” (Fp 4:4). Deve-se lembrar que não
se trata de uma alegria passageira, fugaz, líquida que escapa por
entre os dedos das mãos.
Paz: na paz reside a serenidade que se contrapõe ao caos das
obras da carne. Se nas obras da carne temos um retorno ao caos
primordial, na vivência da paz o mundo é reordenado.
Longanimidade: se refere à condição de resistir firme diante
das tensões e pressões da vida. Se pensarmos em paciência, deve-
ríamos compreendê-la como uma paciência ativa e proativa. Pode
também significar aquele que podendo reagir de forma vingativa,
opta por seguir amando.
Benignidade: pode ser compreendida como gentileza; uma
disposição para ser gentil e bondoso com os outros;
Bondade: refere-se a uma bondade ativa que coloca o discí-
pulo em movimento, energizando-o para a prática do bem.

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Fé: no sentido de fidelidade aos padrões do projeto de Deus
que conduz à construção de relacionamentos sadios; também
pode significar alguém que é digno de confiança.
Mansidão: que, ao ser cultivada, conduz a pessoa ao de-
senvolvimento da harmonia e ao afastamento de episódios que
favoreçam a discórdia. Trata-se, por isso, de um fruto que possi-
bilita a construção de pontes em ambientes comunitários que se
acostumaram a construir muros de separação.
Domínio-próprio: pode ser compreendido como a subjugação
dos interesses pessoais aos interesses de Jesus e da comunidade.
O melhor exemplo de domínio próprio, seguindo Guthrie, é Jesus
Cristo “que jamais enfatizou sua própria vontade, mas nunca
deixou de impressionar os demais com o poder da sua persona-
lidade”[136]. E Roldán amplia a percepção dizendo que o conceito
de domínio próprio nasceu no helenismo e implica abstinência,
temperança, autodisciplina e autodomínio[137].
A perícope finaliza – “Não sejamos ambiciosos de glória,
provocando-nos mutuamente e tendo inveja uns dos outros”
(Gl 5:26) – fazendo referência explícita novamente a comporta-
mentos negativos que devem ser evitados por aqueles que vivem
no Espírito a fim de que a comunidade não seja tóxica. O pri-
meiro comportamento é não ser ambicioso de glória, ou seja, o
comportamento narcisista, arrogante que hierarquiza e humilha
as pessoas deve ser rejeitado; a humildade é o padrão esperado; o
segundo comportamento se refere a não provocar os outros, isto
é, não desafiar os demais; certamente que onde o Espírito controla
não há combates entre as pessoas porque todos são guiados pelo
mesmo Espírito e, finalmente, o terceiro comportamento se refere
a não ter inveja. A inveja mina por baixo as relações interindi-
viduais e, feito um cupim que age silenciosamente, destrói por

[136] 2011, p. 180.


[137] 2019, p. 1530.

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completo as relações construídas por longo tempo. A percepção
de Paulo é irretocável: podemos discernir o fruto do Espírito
nas pessoas que se relacionam com seus semelhantes baseados
na humildade e, simultaneamente, agem solidariamente em seus
múltiplos sofrimentos, evitando a dimensão da arrogância; usam
também o poder não para dominar, mas para promover o ser-
viço que, transcendendo todas as barreiras construídas, produz
a igualdade.

Conclusão
Viver segundo o Espírito produz um caráter ético que conduz
o discípulo e discípula de Jesus a ser sal e luz da terra ou, em outras
palavras, a viver a fé de com responsabilidade pública. Assumo as
palavras de Costas e reproduzo abaixo como um itinerário que
transforma o viver segundo o Espírito numa liturgia diária.

A transformação da vida pessoal de mulheres e homens por


parte do Espírito se corresponde com seu comportamento
externo na sociedade e sua contribuição de bem-estar no
mundo. Aqueles que afirmam haver nascido do Espírito
devem mostrar o fruto do Espírito em sua vida pessoal e so-
cial. Ademais, a antecipação da liberdade futura da nova vida
em Cristo se faz evidente na vida atual da comunidade de
fé. A paz, a liberdade, a justiça e o amor que são marcas do
Reino devem caracterizar o estilo de vida pessoal e comuni-
tária dos crentes. O sinal que o Espírito provê para infundir
esperança no mundo através da comunidade eclesial se con-
firma pelo serviço libertador que presta o povo de Deus ao
mundo.[138]

[138] 1989, p. 59.

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Referências
COSTAS, Orlando. A vida no Espírito. In: Boletim Teológico 10. São
Leopoldo: FTL, 1989.
COTHENET, E. A epístola aos Gálatas. São Paulo: Paulinas, 1995.
GUTHRIE, Donald. Gálatas – Introdução e comentário. São Paulo:
Vida Nova, 2011.
IZIDORO, José L. Identidades e fronteiras étnicas no cristianismo da
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LOPES, Hernandes D. Gálatas, a carta da liberdade. São Paulo: Hagnos,
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ROLDÁN, Albert F. Carta a los Gálatas. In: Comentario Bíblico
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WRIGHT, N.T. Paulo para Todos – Gálatas e Tessalonicenses. Rio de
Janeiro: Thomas Nelson, 2020.

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