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Isto não é Filosofia

Introdução Geral à Filosofia


Aula 01 – Filosofia: o que é e para que serve
Prof. Vitor Ferreira Lima
Licenciado em Filosofia (UFRRJ)

Sumário
1. Atitude cotidiana: senso comum e bom senso ................................................................ 2
2. Atitude filosófica ................................................................................................................. 4
2.1 Distanciamento da vida cotidiana ............................................................................... 4
2.2 Atitude negativa ........................................................................................................... 4
2.3 Atitude positiva ............................................................................................................. 4
2.4 Sócrates: o arquétipo da atitude filosófica ................................................................. 5
3. Reflexão filosófica .............................................................................................................. 6
3.1 Conteúdo: as três grandes questões ......................................................................... 6
3.2 Forma: clareza conceitual e encadeamento de raciocínios ..................................... 7
4. Uma definição é possível? ................................................................................................ 9
4.1 Filosofia como visão de mundo .................................................................................. 9
4.2 Compreensão racional da totalidade do universo ..................................................... 9
4.3 Fundamentação das teorias e práticas .................................................................... 10
5. Utilidade da Filosofia ....................................................................................................... 10
Bibliografia ............................................................................................................................ 11
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1. Atitude cotidiana: senso comum e bom senso

O modo como agimos e nos comunicamos contém várias crenças (factuais e


valorativas) pressupostas, isto é, aceitas como verdadeiras, não questionadas.
Algumas dessas crenças guardam conceitos, teorias e argumentos filosóficos, ainda
que não tenhamos disso consciência.
Por exemplo, perguntar “Que horas são?” e “Que dia é hoje?” pressupõe que:

• O tempo existe, passa e pode ser medido em horas e dias.


• O que já passou é diferente do agora e do que virá.
• O passado pode ser lembrado ou esquecido.
• O futuro pode ser desejado ou temido.
Do mesmo modo, dizer “Fulano ficou maluco” pressupõe que:

• Razão e loucura são diferentes.


• Razão se refere a uma realidade comum a todos.
• Maluquice se refere a uma realidade inventada.
• Existe uma realidade comum a todos, não partilhada por alguns.
De modo semelhante, dizer “Onde há fumaça, há fogo” pressupõe que:

• Existem relações de causa e efeito entre as coisas.


• Onde houver algo, certamente, há também uma causa precedente.
• A realidade é regida pelo princípio da causalidade.
Nesse sentido, dizer “Essa cidade é mais bonita que a de onde eu vim” e “Aqui
é maior que lá”, pressupõe que:

• Coisas, pessoas e situações podem ser comparadas e avaliadas.


• É possível julgar duas coisas pela qualidade (beleza, feiura, bondade,
maldade) e pela quantidade (maior, menor, mais, menos).
• Qualidades e quantidades existem, podemos conhecê-las e usá-las.
Quando se diz “O sol é maior do que vemos”, pressupõe-se que:

• A percepção humana alcança as coisas de modo diferente: como são em si


mesmas e como nos aparecem – tudo isso a depender de condições
variadas, como visibilidade, localização, movimento.
• O espaço existe e possui qualidades (perto, longo, alto, baixo), quantidades
(altura, largura, comprimento)
No momento em que nos exaltamos com alguém e o chamamos “Mentiroso!”,
pressupomos que:

• Falsidade e mentira são diferentes em sua relação com a verdade. A primeira


é uma questão factual, ao passo que a segunda é uma questão moral.
• Pessoas possuem vontade livre – afinal, se não possuíssem, não haveria por
que se exaltar com alguém que mente e que não podia agir de modo
diferente.
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A vida cotidiana, portanto, é plena de pressupostos filosóficos. Pressupostos


esses que não são questionados – são simplesmente aceitos como naturais, evidentes,
óbvios. Em larga medida, cremos em

• Tempo
• Realidade
• Qualidade
• Quantidade
• Verdade
• Objetividade
• Subjetividade
• Falsidade
• Mentira
• Vontade livre
• Liberdade
• Bem
• Mal
• Belo
• Feio
Na maioria das vezes, não precisamos saber o teor desses conceitos para lidar
com a realidade. Utilizamos vários deles em nossos atos e comunicações sem maiores
problemas, sem ter que parar a cada segundo para fazer uma indagação profunda a
respeito do que significam. A vida cotidiana, em grande parte, funciona – e funciona bem
– sem esses questionamentos. Ao senso que cada um possui sobre a realidade, sem
precisar dominá-la conceitualmente para – por assim dizer – viver bem, chamamos bom
senso.
Entretanto, em outras situações, essa postura se revela problemática. Não é
incomum que conduzamos nossa ação irrefletidamente, baseados apenas na imitação
do que comumente se faz. Nesse panorama, somos atravessados por preconceitos que
passam por verdades, apenas porque não os questionamos. Assumimos que a
realidade é tal qual nos aparece, visto que costumeiramente se apresenta dessa forma.
Tal postura é o que chamamos de senso comum.
Existem duas maneiras, portanto, de encarar nossa postura frente à realidade
quando não nos colocamos a questionar nossos pressupostos. Uma indica uma postura
favorável ao que fazemos, na maioria das vezes. Outra aponta uma postura ingênua e,
até mesmo, preconceituosa. Diante dessa distinção, o que não podemos é reduzir todas
as situações pré-reflexivas a um significado só, como se uma pessoa que não se põe a
questionar a si mesma fosse necessariamente alguém com uma postura simplória
diante da vida.
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2. Atitude filosófica
2.1 Distanciamento da vida cotidiana

Diferente do bom senso e do senso comum, a atitude filosófica não se contenta


em agir sem se questionar. Assim, pergunta-se pelos pressupostos sobre os quais
ninguém mais se pergunta, a realidade abrangente que listamos: “O que é o Tempo?”,
“O que é a Realidade?”, “O que é a Beleza?” etc.
Nesse sentido, a primeira característica da atitude filosófica é um
distanciamento da vida cotidiana – vale dizer, a do bom senso e do senso comum.
Agir filosoficamente implica não se limitar ao contexto particular em que uma situação
acontece, nem ao fluxo normal dos acontecimentos. Para utilizar uma situação
cotidiana, filosofar é, diante da pessoa amada, perguntar “O que é o amor?” e não
apenas se entregar ao arrebatamento do sentimento.

2.2 Atitude negativa

Uma segunda característica da atitude filosófica é negativa. O que isso quer


dizer?
Quer dizer que, diante de uma situação dada, a pessoa filósofa desconfia se o
que está diante de si é dado mesmo. Trata-se de uma decisão de não aceitar como
óbvio, como evidente as ideias, os fatos, os valores, os comportamentos do fluxo usual
da vida.
Trata-se de uma atitude negativa, porque é uma postura de não aceitar como
óbvio aquilo que é corriqueiro só porque é corriqueiro. Para a pessoa filósofa, ao
menos no início, não existe óbvio.

2.3 Atitude positiva

A terceira característica da atitude filosófica é positiva. Explico.


Após ter desconfiado do óbvio e ter se recusado a seguir o caminho que
usualmente as pessoas seguiriam, a pessoa filósofa investiga a questão que se colocou
em busca de justificações e explicações. Se a atitude negativa era a de interromper o
fluxo normal, a atitude positiva é de iniciar novamente o fluxo, mas dessa vez com uma
estratégia diferente – a de se perguntar “O que é?”, “Por que é?” e “Como é?”.
Perguntar “O que algo é?” implica investigar sua essência, seu significado e
seu conceito.
Perguntar “Por que algo é?” implica investigar sua origem e sua causa.
Perguntar “Como algo é?” implica investigar sua estrutura, seus componentes
e as relações entre seus componentes.
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Em outras palavras, a atitude filosófica positiva também indaga pelo conceito,


pela causa e pelo funcionamento da realidade em sentido abrangente, tal como antes
designamos.

2.4 Sócrates: o arquétipo da atitude filosófica

Sócrates (469 a.C-399 a.C)1 é retratado nesses livros como o modelo de filósofo.
Um filósofo que não dissociava vida cotidiana de pensamento, de modo que não fornece
uma teoria sobre a totalidade das coisas – como o fizeram seus predecessores –, mas
uma prática filosófica. Vivia a perambular pelas ruas da cidade, seguido por ouvintes
e amigos que se deleitavam com seus discursos e com suas longas conversações.
Sua atitude fundamental era a de indagar as pessoas das questões mais
básicas. Sócrates insiste que sua posição é examinar a si mesmo e os outros, de modo
a colocar em teste aqueles que alegam ter conhecimento das coisas mais importantes.
Sua prática filosófica, segundo seu próprio relato, inicia quando um amigo seu,
Querofonte, retorna do Oráculo de Delfos, tendo-lhe perguntado se alguém seria mais
sábio que Sócrates, ao que retrucou a Pítia, sacerdotisa de Apolo, que não havia
ninguém mais sábio. A partir daí, considerando-se não mais sábio que seus
concidadãos, passou a tentar entender o que o Oráculo teria afirmado com aquela
posição. Esse procedimento caracteriza a quase totalidade do enredo básico em que
Sócrates aparece como protagonista.
Em uma situação, interroga pessoas envolvidas com a política de modo mais
direto. Em outra, interroga os poetas. E em uma terceira, interroga os artesãos. Em
todas essas categorias (amplamente respeitadas em Atenas), chega à seguinte
conclusão: sobre o que diziam saber – e pelo que eram também conhecidos e louvados
– na verdade nada sabiam. Ao que desabafa Sócrates:
A partir daí me tornei odioso [a eles e] a muitos dos circunstantes e, indo embora, fiquei então
raciocinando comigo mesmo – “Sou sim mais sábio que esse homem; pois corremos o risco de
não saber, nenhum dos dois, nada de belo nem de bom, mas enquanto ele pensa saber algo, não
sabendo, eu, assim como não sei mesmo, também não penso saber... É provável, portanto, que
eu seja mais sábio que ele numa pequena coisa, precisamente nesta: porque aquilo que não sei,
também não penso saber”. (Platão, Apologia de Sócrates, 21b)

A famosa frase “Só sei que nada sei” nunca foi dita por Sócrates. O que ele disse
foi: “corremos o risco de não saber [...] mas enquanto ele pensa saber algo, não sabendo
eu, [...] também não penso saber”. Em outras palavras, o filósofo expressa os limites do
seu conhecimento, não sua ausência total. Não se trata de uma ignorância no sentido
banal, trata-se de uma constatação de o quanto ainda não se sabe sobre o que se
assumia saber.
Em uma só postura, aponta para as atitudes filosóficas negativa e positiva.
Primeiro, desconfiança do conhecimento que pretensamente sabe. Segundo,
investiga-o em busca de sua essência, da origem e da estrutura. As duas posturas
em direção à realidade abrangente: beleza, justiça, virtude etc.

1
Para mais detalhes, ver Aula 03 do Curso de História da Filosofia: – Sofistas e Sócrates.
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3. Reflexão filosófica

Todas as pessoas somos seres pensantes e relacionais. Pensamos sobre nós


mesmas e sobre o ambiente. Relacionamo-nos conosco mesmas e com o ambiente.
Nesse sentido, reflexão filosófica significa movimento de volta do pensamento sobre si
mesmo, principalmente quando estão em jogo aquelas questões abrangentes. A seguir,
indiquemos qual o teor e a forma dessa reflexão.

3.1 Conteúdo: as três grandes questões

Para responder à pergunta “Mas sobre o que reflete um filósofo?”, é


esclarecedora a abordagem de Luc Ferry (1951-), filósofo francês contemporâneo. Sua
proposta é dividir a Filosofia em três dimensões: Teoria, Ética e Sabedoria, que se
desdobram nas seguintes perguntas:

• O que existe e como sabemos que existe?


• Como devemos nos comportar em relação aos outros?
• O que devemos fazer de nossa própria vida?
A primeira é elaborar uma Teoria. Em grego, theoria deriva de theion, divino, e
orao, visão. Etimologicamente, então, significa contemplar aquilo que é divino. Por
derivação de sentido, designa a contemplação daquilo que há de mais essencial, mais
significativo, mais importante na realidade. Nesse sentido, a teoria filosófica se divide
em duas: a compreensão da natureza do mundo e os instrumentos que temos para
conhecê-la.
O procedimento filosófico, então, parte de interrogações sobre como se estrutura
a realidade – como fizeram os pré-socráticos2.
Além disso, interroga-se sobre os meios que dispomos para acessar essa
estrutura. As investigação filosófica, assim, pergunta-se sobre se podemos captar a
realidade nela mesma ou se tudo o que temos são aparências – como procederam os
céticos, por exemplo3.
A segunda etapa é a Ética. Esse campo surge quando nos perguntamos como
viver com os outros humanos, que regras adotar, que comportamentos cultivar de modo
a sermos justos. Trata-se de uma demanda não mais teórica – contemplativa –, mas
prática. É o que fez Sócrates, quando resolve ignorar a phýsis e o kósmos e investigar
os limites de sua própria conduta na pólis, inquirindo seus pares sobre as virtudes que
diziam possuir.
A terceira é a sabedoria – ou salvação, como Ferry (2007, p 13) a denomina. E
ela assim se justifica:

2
Para mais detalhes, ver Aulas 01 e 02 do Curso de História da Filosofia: Filosofia Pré-socrática e Heráclito
e Parmênides.

3
Para mais detalhes, ver Aula 08 do Curso de História da Filosofia: Cinismo e Ceticismo.
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Se a filosofia, assim como as religiões, encontra sua fonte mais profunda numa reflexão sobre a
“finitude” humana, no fato de que para nós, mortais, o tempo é realmente contado, e de que somos
os únicos seres neste mundo a ter disso plena consciência, então, é evidente que a questão de
saber o que vamos fazer da duração limitada não pode ser escamoteada. [...] Em outras palavras,
a equação “mortalidade + consciência de ser mortal” é um coquetel que carrega em germe a fonte
de todas as interrogações filosóficas.

Para Ferry, o filósofo é aquele que, a princípio, não encara a vida como um
turista, mantendo relações superficiais com os lugares em que habita. Nesse sentido,
pode até optar por ser um turista, para ficar com a metáfora, porém essa opção é
necessariamente fruto de um pensamento, de uma reflexão, não da inércia em agir
como sempre se agiu. Depois de se perguntar – ou ao mesmo tempo em que se
pergunta – pela Teoria e pela Ética, o filósofo se pergunta pela finalidade ou o sentido
de todas as coisas, inclusive de sua própria vida. É aqui que o filósofo passa a dispensar
a vida filosófica (que nada mais é que a vida de amor pela sabedoria, cuja busca é
incessante) e passa a querer cultivar a vida sábia. Porém, o sábio, por definição não
mais busca e sim encontra – vive conforme a sabedoria que encontrou e vence, enfim,
o medo que a finitude desperta no ser humano.
Há algumas filosofias que subordinam a Ética e a Sabedoria à Teoria. Outras
que subordinam a Teoria e a Sabedoria à Ética. Há outra espécie de Filosofia, ainda,
cujo principal objetivo é garantir a Sabedoria, a salvação da finitude. E, para alcançar
esse objetivo, subordinam seja o que for.
A reflexão filosófica não apresenta uma resposta única. Na verdade, não há
Filosofia, mas filosofar, inúmeras maneiras de filosofar.

3.2 Forma: clareza conceitual e encadeamento de raciocínios

A reflexão filosófica, porém, não acontece de qualquer maneira. É isso que a


distingue do que o senso comum reage quando alguém diz algo pretensamente
inteligente:

• “Nossa! Você filosofou agora!”


É a famosa “viagem”. Quando alguém “viaja” nesse sentido é porque expressou
algo que pareceu impressionante, mas quase sempre foi só confusão mental de quem
expressou e incapacidade intelectual de quem recebeu a mensagem.
Ao contrário dessa situação, em primeiro lugar, a reflexão filosófica busca
trabalhar com clareza conceitual. Isso quer dizer que opera por procedimentos de
significação claros e acessíveis sobre os termos que utiliza.
Isso não implica que se saiba absolutamente tudo a respeito do que se investiga
– afinal, se já se soubesse, não haveria por que iniciar a investigação. Significa, sim,
que há um esforço para tornar claro, inclusive, aquilo sobre o que ainda não se
sabe.
Por exemplo, podemos não saber tudo sobre a Verdade, mas sabemos:

• O que não é (o não escopo):


o Uma invenção completamente aleatória da cabeça de alguém.
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o O mundo independentemente de quem o conhece.


o Um objeto no mundo que se descobre.
• O que pode ser (o escopo):
o Algo que depende tanto do mundo quanto de quem o pensa.
o Uma relação de correspondência entre pensamento e mundo.
o Uma relação de coerência entre o próprio pensamento.
o Uma relação de eficácia entre crença e realidade.
Um bom ponto de partida para ter clareza, portanto, é estabelecer o que não é
ou o que não sabemos sobre algo para, então, estabelecer o que é ou o que sabemos
sobre algo.
Em segundo lugar, a reflexão filosófica busca trabalhar com encadeamento de
raciocínios. Em outras palavras, constitui-se a partir de procedimentos de
demonstração encadeados de modo claro e acessível. Se o passo a passo do
raciocínio não pode ser acompanhado por outras pessoas, então o problema do
dogmatismo retorna.
Novamente, não é necessário ter o caminho antes de finalizada a investigação
– se é que é possível finalizá-la. Ainda assim, é preciso ter raciocínios encadeados,
inclusive, para que outros agentes racionais tomem parte na investigação e a
acompanhem, apontando erros e implementando acertos.
Por exemplo, podemos argumentar que a Verdade é uma relação de
correspondência entre pensamento e mundo, seguindo o seguinte caminho:

• O mundo em si mesmo é apenas a realidade.


• O pensamento em si mesmo é apenas a mentalidade de cada um.
• A verdade é algo que diz respeito à conexão entre os dois.
• Quando essa conexão é errônea, é de falsidade.
• Quando essa conexão é acertada, é de verdade.
• A verdade é uma relação de correspondência entre pensamento e mundo.
De modo encadeado, é possível compreender sobre o que se fala e questionar
o que se fala, a fim de implementar a reflexão, isto é, torná-la mais próxima daquilo que
se quer compreender. Pode-se apontar em que ponto do raciocínio não há clareza, em
que ponto do raciocínio há uma inferência que não deveria ter sido feita. Somente assim
é possível abrir espaço para a comunicação e, ao mesmo tempo, para possíveis
questionamentos. Sem esclarecer sobre o que se fala, a reflexão filosófica facilmente
se torna dogma, isto é, algo que depende única e exclusivamente da aceitação baseada
na confiança em quem comunica e não na capacidade cognitiva das pessoas que
querem investigar a realidade conjuntamente.
Em suma, a reflexão filosófica não é

• “Eu acho que”: opinião de cada um.


• “Eu gosto de”: preferência de cada um.
• “Dizem que”: pesquisa de opinião.
• “O filósofo x diz que”: opinião de uma autoridade.
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A reflexão filosófica é um questionamento inicial sobre um aspecto abrangente


da realidade em busca de respostas, por meio de um discurso com clareza conceitual e
encadeamento de raciocínios.

4. Uma definição é possível?

Não há apenas uma definição de Filosofia, existem várias tentativas. Encontrar


algo específico desse campo do saber enfrenta problemas, porque é preciso, ao mesmo
tempo, distingui-lo de outros e abarcar todos os filósofos que há. Se não for possível
distinguir Filosofia de outra coisa, nem incluir todos aqueles que sabidamente são
filósofos, então não estamos diante de uma definição satisfatória.

4.1 Filosofia como visão de mundo

Quando o senso comum pergunta:

• “Qual a sua filosofia de vida?”,


está querendo saber o conjunto de valores e práticas pelos quais alguém
compreende o mundo e a si mesmo e age em relação a eles. É a filosofia como visão
de mundo ou como sabedoria de vida.
O problema dessa concepção é que não estabelece diferença entre Filosofia e
religião, arte e ciência, por exemplo. Todas elas fornecem um conjunto de valores e
práticas pelos quais se pode compreender o mundo e a si mesmo, de modo a implicar
uma ação determinada.

4.2 Compreensão racional da totalidade do universo

Aqui, a Filosofia aparece como o campo do saber que investiga a realidade em


seu aspecto mais abrangente, de modo diverso da religião. A religião, pela fé, aceita
princípios indemonstráveis e até mesmo o que pode ser considerado irracional. A
Filosofia busca discutir e compreender os princípios da realidade sem recorrer à fé.
O problema dessa definição reside em conceder à Filosofia a tarefa de fornecer
uma explicação total sobre a realidade, elaborando um sistema universal. No entanto,
tal empreitada não é mais praticada por inúmeros filósofos que, caso a definição fosse
aceita, estariam automaticamente fora da Filosofia. Por exemplo, teriam que sair do rol
dos filósofos principalmente os filósofos analíticos4.

4
“filosofia analítica Corrente de pensamento filosófico que se desenvolveu sobretudo na Inglaterra e nos
Estados Unidos a partir do início deste século, com base na influência de filósofos como Gottlob Frege,
Bertrand Russel, George Edward Moore e Ludwig Wittgenstein, dentre outros. Caracteriza-se, em linhas
gerais, pela concepção de que a lógica e a teoria do significado ocupam um papel central na filosofia,
sendo que a tarefa básica da filosofia é a análise lógica das sentenças, através da qual se obtém a solução
dos problemas filosóficos. Há, no entanto, profundas divergências sobre as diferentes formas de se
conceber esta análise.” (JAPIASSÚ, MARCONDES, 1990, p. 100)
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4.3 Fundamentação das teorias e práticas

Na visão de Marilena Chaui (2002, p. 17), A Filosofia se ocupa com

• As condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e


verdadeiro;
• A origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e
culturais;
• Compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano
individual e coletivo;
• Transformações históricas dos conceitos, das ideias e dos valores.
• A consciência e suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória,
linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade,
desejo e paixões.
• Estudo e interpretação de ideias ou significações gerais como: realidade,
mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença,
repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança etc.
Ainda nessa concepção, a Filosofia se faz mediante uma atividade de

• Análise das condições da ciência, da religião, da arte, da moral;


• Reflexão da capacidade do conhecimento, do sentimento e da ação;
• Crítica das ilusões e preconceitos individuais e coletivos, das teorias e
práticas científicas, políticas e artísticas.
O maior problema dessa definição é que se pretende abrangente demais de
modo a se confundir com outras áreas do conhecimento, como Sociologia, Psicologia e
Antropologia, por exemplo. Não está claro qual a abordagem que distingue a Filosofia
dessas ciências. Chaui gosta de usar as palavras “reflexão e crítica” para designar a
atividade filosófica. Porém, todas as ciências são reflexivas e críticas. Tais ações não
são específicas do procedimento filosófico.

5. Utilidade da Filosofia

Um dos maiores erros de quem pretende defender a Filosofia é dizer que ela é
inútil. Geralmente, quem assim procede tem uma concepção sobre utilidade que é, para
dizer o mínimo, simplória.
Utilidade, nesse sentido, é utilidade mercadológica, isto é, alguma finalidade que
possa ser traduzida em um produto para ser vendido no mercado. Alguns defensores
da Filosofia têm aversão ao mercado, porque confundem mercado com sociedade de
mercado, isto é, com o modo de produção capitalista. Sendo contra algumas
consequências nefastas dessa economia, são contra tudo que a ela pode ser associado.
Esquecem-se que o mercado é muito mais antigo que a sociedade de mercado e que a
Filosofia – pasmem! – nasceu justamente no mercado, ou seja, na ágora grega, que era
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a praça pública, local das discussões coletivas e centro de compra e venda ao mesmo
tempo.
Utilidade, porém, pode ser compreendida de modo diverso.
Útil é tudo aquilo de que se pode tirar algum proveito, alguma vantagem. O que
é proveitoso e vantajoso costuma depender de que contexto se fala, porém é razoável
pressupor que ao menus um proveito pode ser buscados por qualquer pessoa
interessada:

• Compreender a realidade (objetiva, subjetiva ou intersubjetiva) para melhor lidar


com ela, seja para preservá-la, seja para transformá-la.
Nesse sentido, é célebre este trecho de Marilena Chaui (2002, p. 18):
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar
pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender
a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações
humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade
os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a
felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes
que os seres humanos são capazes.”

A Filosofia é útil para todos, mas não para qualquer um.

Bibliografia

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 12º ed. 5ª imp. São Paulo: Editora Ática, 2002.
FERRY, Luc. Aprender a viver. Tradução de Vera Lucia dos Reis. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
PLATÃO. Apologia de Sócrates; Eutífron; Críton. Introdução, tradução do grego e
notas de André Malta. Porto Alegre: L&PM, 2011.

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