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Análise Psicológica (2010), 1 (XXVIII): 227-240

O estado de arte do conceito de


psicopatia

CRISTINA SOEIRO (*)


RUI ABRUNHOSA GONÇALVES (**)

A psicopatia é uma das perturbações da antecedentes familiares e outros factores ambi-


personalidade mais estudada, atendendo ao entais. No entanto, a definição do conceito de
impacto negativo que os comportamentos psicopatia, e o impacto que esta perturbação
associados a esta perturbação possuem na apresenta nos contextos forense e clínico, impli-
comunidade onde o psicopata vive, nomeada- cam o desenvolvimento de mais investigações.
mente a forte relação com o cometimento de No sentido de enquadrar a importância deste
comportamentos criminais. Nos estudos conceito e definir o seu “estado de arte”, serão
criminológicos aparecem referidos, desde de apresentados neste artigo os aspectos que
sempre, determinados indivíduos que dispõem, definem o conceito de psicopatia e a sua
de forma continuada, de uma grande capacidade evolução. Procura-se assim, contribuir para uma
de agressão, tanto no sentido físico como no sistematização deste conceito tão importante
psicológico, e que englobam comportamentos de para a compreensão do fenómeno da crimina-
hostilidade e manipulação. Na verdade, a idade, e para a prevenção e intervenção nos
identificação de indivíduos que são responsáveis contextos da criminalidade com contornos de
por agressões sistemáticas, em muitas ocasiões maiores índices de reincidência e violência.
com grave dano para as suas vítimas, e que se
caracterizam por serem cruéis, irresponsáveis e
por não terem vida emocional real, nem sintomas O CONCEITO DE PSICOPATIA
característicos de enfermidade mental, possuem
todos os indicadores para se inserirem num Definir psicopatia, reveste-se de grande
diagnóstico de psicopatia. complexidade. Na verdade, a definição deste
De um modo geral, os estudos indicam que a conceito foi alvo de várias influências, quer em
psicopatia se manifesta numa série de condutas termos da sua evolução na vertente científica,
que são resultado de factores biológicos e da quer em termos da sua utilização ao nível da
personalidade, relacionados com uma série de linguagem de senso comum, onde este conceito
surgiu como sinónimo de “louco” ou
“criminoso” (Gonçalves, 1999b).
(*) Escola de Polícia Judiciária; Instituto Superior
de Ciências da Saúde Egas Moniz; e-mail A evolução científica do conceito apresentou
cristina.soeiro@pj.pt. vários percursos determinados por aspectos
(**) Escola de Psicologia, Universidade do Minho, sociais, morais e estereótipos associados à
Braga, Portugal; e-mail: rabrunhosa@psi.uminho.pt. comunidade científica (Gonçalves, 1999a). A falta

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de consenso relativamente à designação atribuída de “mania sem delírio” para designar aqueles
à perturbação em análise e aos indicadores que a indivíduos que mostravam acções atípicas e
caracterizam são os aspectos que marcaram esta agressivas. Em 1812 o americano Rush nos seus
fase de definição do conceito. Na verdade, como trabalhos atribuiu a insensibilidade dos
alternativa ao termo de psicopatia, surgiram psicopatas a um defeito congénito que, no
designações como perturbação de carácter entanto, não identificou (Cantero, 1993).
(Millon, 1981), perturbação da personalidade anti- Pritchard, um psiquiatra inglês, introduziu em
social (American Psychiatric Association – APA, 1835, o termo de insanidade moral para se referir
1980), perturbação da personalidade dissocial aos sujeitos cuja moral ou princípios de conduta
(World Health Organization – WHO, 1965, citado eram fortemente pervertidos e indicadores de
por Gonçalves, 1999b) e sociopatia (Partridge, comportamento anti-social. Prichard, seguidor da
1930) diversidade que introduziu limitações no escola ambientalista, foi o primeiro a atribuir a
enquadramento conceptual e avaliativo desta esta perturbação a influência do meio, propondo
perturbação grave da personalidade. como meio de intervenção, na psicopatia, o
Estas definições integravam indicadores recurso a medidas ambientais que possibilitas-
diversos da perturbação, sendo, por exemplo, o sem a estes indivíduos integrar-se num meio
conceito de perturbação de carácter muito adequado e ultrapassar assim o problema
abrangente, enquanto os conceitos de perturbação (Cantero, 1993).
da personalidade anti-social e de personalidade Esta concepção contribuiu para o desenvol-
dissocial e sociopatia se referiam principalmente vimento de escolas educativas para jovens com
aos indicadores comportamentais associados a comportamento desviante. A designação de
esta perturbação. insanidade moral, apresentada por Pritchard, foi
A definição clara de psicopatia é algo funda- posteriormente colocada em causa, já que este
mental, devido às suas implicações na investiga- termo surgia associado, igualmente, a outras
ção, diagnóstico, avaliação, intervenção e replica- anomalias psíquicas que não integravam a
bilidade de resultados na área de estudo referente psicopatia e porque o termo moral foi questio-
às perturbações da personalidade (Gonçalves, nado por vários actores sociais, desde a área
1999b). Atendendo à importância de uma clara jurídica até à religiosa.
definição deste conceito, serão analisados, no Koch, psiquiatra alemão, como resposta à
presente artigo, os aspectos mais relevantes que problemática introduzida por Pritchard, apre-
surgem associados a esta problemática. sentou em 1888 uma outra proposta de conceito
A evolução da definição do conceito de para esta perturbação da personalidade. Assim,
psicopatia pode ser dividida em dois grandes este autor apresentou o conceito de “inferiori-
momentos que são marcados pelo trabalho dade psicopática”, que definiu como uma
efectuado por Cleckley (1941/1976) e pelo anomalia de carácter, em grande parte devido a
desenvolvimento, a partir de 1952, da classifi- aspectos congénitos ou ainda a aspectos
cação das perturbações mentais realizada pela resultantes de enfermidade psíquica (Gonçalves,
Associação Americana de Psiquiatria (American 1999a).
Psychiatric Association) (cf. DSM-I; American Mas é Kraepelin entre 1896 e 1915, que
Psychiatric Association, 1952, citado por Soeiro, introduziu o termo de “personalidade psico-
2006), trabalhos que marcaram as definições mais pática”, conceito utilizado até aos dias de hoje.
recentes. Esta designação surgiu integrada numa tipologia
mais vasta de treze categorias base, elaborada
por este autor, e que procurava descrever um tipo
AS PRIMEIRAS ABORDAGENS DO de indivíduos com indicadores de comporta-
CONCEITO DE PSICOPATIA mento criminal anormal ou imoral (Lykken,
1995).
É pacífico que o conceito de psicopatia surgiu O início do século XX é marcado por um
do trabalho desenvolvido por Pinel em 1809, que conjunto importante de desenvolvimentos
de forma mais específica introduziu o conceito relativamente ao estudo da psicopatia,

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identificando-se uma maior orientação para o descrição clínica mais detalhada da psicopatia e
estudo dos indicadores comportamentais desta suas diversas manifestações. São os critérios
perturbação (Cantero, 1993). clínicos a base da investigação desenvolvida
Entre 1923 e 1955 Schneider realizou por este autor. No seu livro “The Mask of Sanity”
importantes contribuições no campo da psico- (1941/1976) apresentou um perfil da psicopatia,
patia. Este autor utilizou o termo “personalidade indicando os traços mais significativos da
psicopática” como uma entidade integradora de perturbação: (1) Encanto superficial e boa
certas patologias, apresentando uma clara inteligência; (2) Inexistência de alucinações ou
distinção entre os conceitos de doença mental e de outras manifestações de pensamento
de psicopatia. O autor considerou ser errado irracional; (3) Ausência de nervosismo ou de
definir como doença mental uma perturbação manifestações neuróticas; (4) Ser indigno de
que tem por base traços psíquicos (Cantero, confiança; (5) Ser mentiroso e insincero; (6)
1993). A sua classificação baseava-se, então, nos Egocentrismo patológico e incapacidade para
traços disposicionais associados ao estudo da amar; (7) Pobreza geral nas principais relações
personalidade e das vivências que determinavam afectivas; (8) Vida sexual impessoal, trivial e
o desenvolvimento da mesma. Nesta perspectiva, pouco integrada; (9) Ausência de sentimentos de
a psicopatia está relacionada com desvios culpa ou de vergonha; (10) Perda específica da
quantitativos das características normais da intuição; (11) Incapacidade para seguir qualquer
personalidade, salientando-se, desta forma, a plano de vida; (12) Ameaças de suicídio
importância dos aspectos predisposicionais raramente cumpridas; (13) Raciocínio pobre e
(Gonçalves, 1999a). Este conjunto de incapacidade para aprender com a experiência;
indicadores está na base da sua tipologia das (14) Comportamento fantasioso e pouco
personalidades psicopáticas. recomendável com ou sem ingestão de bebidas
Schneider (1923/1955), classificou as alcoólicas; (15) Incapacidade para responder na
personalidades psicopáticas em 10 categorias generalidade das relações interpessoais; (16)
distintas: (1) Hipertímicos; (2) Depressivos; (3) Exibição de comportamentos anti-sociais sem
Inseguros; (4) Fanáticos; (5) Carentes de valor; escrúpulos aparentes. Para este autor a principal
(6) Lábeis de humor; (7) Explosivos; (8) característica do psicopata é a deficiente resposta
Apáticos; (9) Abúlicos; (10) Asténicos. Apesar afectiva face aos outros, o que explicaria a forte
desta tipologia, o autor chamou ainda a atenção relação com condutas anti-sociais.
para a identificação de diversas combinações É no trabalho de Cleckley (1941/1976) que se
com gradações diferentes. Segundo Gonçalves baseiam as definições mais recentes de psico-
(1999a), este trabalho corresponde a uma tenta- patia, principalmente as que se inserem numa
tiva de precisão do diagnóstico da psicopatia, vertente clínica do conceito. São os critérios
que teve já o contributo de outros autores como clínicos definidos por este autor que estão na
Koch e Kraepelin. base das investigações desenvolvidas, e que
As definições até aqui apresentadas podem ser assentam sobretudo no recurso a questionários
consideradas como as primeiras tentativas de de personalidade, entre os quais se destacam o
definir este conceito. Segue-se uma análise das Minnesota Multiphasic Personality Inventory –
definições mais actuais do conceito. MMPI (Hare, 1996; Hare & Cox, 1978).
Buss (1966) descreveu a psicopatia de acordo
com dois componentes distintos: sintomas e
AS ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS traços da personalidade. Os sintomas consistiam
DO CONCEITO DE PSICOPATIA em comportamentos centrados na busca de
estimulação, desrespeito pelas convenções,
A perspectiva clínica do conceito incapacidade para controlar impulsos ou adiar
gratificações, rejeição da autoridade e disciplina,
Uma das contribuições mais importantes na raciocínio pobre na avaliação de comporta-
definição actual de psicopatia deve-se ao mentos mas bom em situações e comporta-
trabalho de Cleckley, que proporcionou uma mentos associais e anti-sociais. Os traços de

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personalidade referem-se a relações interpessoais identificou a influência de duas posições
defeituosas ou uma incapacidade fundamental distintas na sua caracterização: uma das posições
para amar ou para estabelecer amizades baseava-se no trabalho de Pritchard (1985,
verdadeiras, inexistência de intuição própria, citado por Gonçalves 1999a) e do seu conceito
ausência de culpa ou vergonha e, por último, de insanidade moral, e a outra no trabalho de
uma fachada de competência e maturidade que Schneider (1923/1955), relativo ao termo de
mascaram uma inconsistência geral e a “personalidade psicopática” (Gonçalves, 1999b).
incapacidade para ser digno de confiança. Para Pichot a confusão surgiu quando a
Buss (1966) propôs ainda um padrão perspectiva inglesa recorreu ao termo germânico
tridimensional de características manifestas da e lhe atribui um significado que nem sempre lhe
psicopatia. Assim o psicopata é: (a) uma pessoa era aplicado, já que para Schneider a psicopatia
vazia e isolada; (b) não tem uma identidade não resultava forçosamente de uma inadequação
basilar e (c) não tem perspectiva de controlo do social. Segundo Pichot, esta confusão no uso dos
tempo. termos acabou por influenciar a elaboração das
McCord e McCord (1964) efectuaram uma classificações nosológicas das doenças mentais.
extensa revisão de literatura relativa ao conceito As classificações nosológicas das doenças
de psicopatia, de onde resultou a identificação de
mentais permitiram o desenvolvimento de uma
um conjunto de características que melhor define
abordagem categorial no que se refere à
esta perturbação. Segundo estes autores a
definição de psicopatia. Assim, nesta vertente de
psicopatia estaria relacionada com a “incapa-
estudo da perturbação salientou-se, em primeiro
cidade para amar” e a “ausência de sentimentos
lugar, a influência do conceito de personalidade
de culpa”. Estas características estariam na base
dos comportamentos anti-sociais apresentados sociopática de Partridge (1930, citado por
pelos indivíduos com este tipo de perturbação. Gonçalves, 1999a), que foi adoptado pela
McCord e McCord (1964) caracterizaram os American Pychiatric Association, na 1ª edição
psicopatas como pessoas associais, agressivas, do Manual de Diagnóstico e Estatística dos
altamente impulsivas, egocêntricas, com baixo Transtornos Mentais (DSM-I; APA, 1952, citado
limiar de tolerância à frustração e incapazes de por Cantero, 1993).
manter laços afectivos com outros humanos. O Partridge (1930) referiu-se ao conceito de
psicopata é assim descrito como possuindo uma personalidade sociopática para designar a
personalidade desajustada e regulada por desejos incapacidade ou falta de vontade de alguns
primitivos e por uma busca exagerada de sujeitos para se sujeitarem às leis da sociedade.
sensações. O uso deste conceito perdurou até à edição de
Perante este conjunto vasto de alterações da 1980, ano em que a DSM-III passou a utilizar o
personalidade que surgem associadas ao conceito termo de “perturbação da personalidade
de psicopatia, na sua vertente mais clínica, antisocial”, recorrendo ao conceito original-
muitas áreas de investigação deste tipo de mente empregue por Prichard e aos trabalhos
perturbação abandonam a utilização do mesmo, desenvolvidos por Robins (1966, 1978).
considerando-o como inoperante e moralista Robins (1966) desenvolveu uma descrição
(Doren, 1987). Este contexto levou ao desenvol- comportamental da psicopatia focalizada nos
vimento de outras perspectivas de investigação comportamentos observáveis, e, por conse-
com impacto na definição do conceito de quência, mensuráveis, não sendo necessário para
psicopatia. definir a perturbação, inferir sobre os processos
psicológicos subjacentes. Através desta
As classificações nosológicas e a perspectiva abordagem a autora procurou clarificar o
categorial de psicopatia diagnóstico de psicopatia, excluindo os indica-
dores que poderiam remeter para o diagnóstico
Pichot (1978, citado por Soeiro, 2006) ao de esquizofrenia, atraso mental, lesão orgânica
procurar fazer um ponto de situação ou comportamentos anti-sociais relacionados
relativamente à definição de psicopatia, com os consumos de substâncias.

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Segundo Robins (1966) esta opção visava critérios que definem a perturbação. Os
responder à necessidade de se estabelecerem indicadores que são considerados nestas versões
critérios psicológicos para um diagnóstico mais centram-se claramente em aspectos relativos ao
objectivo desta perturbação. Deste trabalho estilo de vida anti-social, e não em indicadores
resultou um diagnóstico de psicopatia baseado clínicos (sintomas interpessoais e afectivos)
em aspectos comportamentais, que podem ser (Hart, Cox, & Hare, 1995). Na verdade, estes
observados e medidos, não considerando os aspectos têm sido alvo de polémica já que,
factores de natureza clínica que definem esta segundo esta noção, se por um lado se reduz o
perturbação da personalidade. grupo de indivíduos que podem ser classificados
Deste modo, na versão da DSM-III-R com esta perturbação, a verdade é que os
(American Psychiatric Association, 1987) foram indicadores integram mais facilmente indivíduos
apresentados os indicadores fundamentais para a que apresentam comportamentos criminais (Hart,
definição desta perturbação. Assim, o conceito Cox, & Hare, 1995; Hare, Hart, & Harpur,
apresentado definiu a perturbação a partir de um 1991). Tal como o refere Gonçalves (1999a,b),
conjunto de comportamentos anti-sociais, já cerca de ¾ dos indivíduos presos em Portugal
identificados antes dos 15 anos de idade, mas que apresentam comportamentos que permitem que
persistiam ou se alteravam para outro tipo de sejam classificados como possuindo uma
comportamentos anti-sociais. Os comportamentos perturbação da personalidade de cariz anti-
que definiam a perturbação englobavam: a mentira social. Assim, na prática o que acontece, é
frequente, roubo, absentismo escolar, vandalismo, incluir os delinquentes comuns reincidentes,
fugas de casa e crueldade para com os animais e com um alargado historial delituoso, nessa
as pessoas. Estes comportamentos evoluíam para classificação, mas excluir muitos sujeitos
outro tipo de problemas mais complexos como a realmente psicopatas que não mostraram essa
ausência de responsabilidade financeira e familiar, actividade tão marcadamente anti-social.
incapacidade para efectuar projectos futuros e Apesar de a DSM-IV (APA, 1994, citado por
manter um posto de trabalho de forma contínua, Soeiro, 2006) considerar importante os sintomas
envolvimento em actos anti-sociais e criminais interpessoais e afectivos, na prática não
que poderiam culminar na prisão. apresenta uma orientação no modo como podem
Do ponto de vista comportamental eram ainda ser avaliadas (Hart, Cox, & Hare, 1995)1. Esta
referidos como indicadores importantes a limitação mantém-se na versão mais recente
agressividade e impulsividade e o envolvimento desta classificação a DSM-IV-TR (APA, 2002).
em experiências de risco, como condução veloz A DSM não constituiu a única classificação
sob a influência do consumo de substâncias das perturbações psicopatológicas com impacto
como álcool ou drogas. No que se refere aos na definição da psicopatia. Na verdade, a
aspectos emocionais, foram definidos como International Classification of Diseases (ICD-8,
centrais a ausência de sentimentos de culpa e a World Health Organization, 1965; ICD-10,
dificuldade em estabelecer relações afectivas World Health Organization, 1987, citado por
estáveis. Gonçalves, 1999b), baseando-se na terminologia
As edições posteriores desta classificação das de Schneider, coloca o conceito de psicopatia
perturbações psicopatológicas, a DSM-III-R como termo genérico para este grupo de
(APA, 1987) e a DSM-IV (American Psychiatric perturbações. O conceito de perturbação de
Association, 2002) mantiveram a noção de
“perturbação da personalidade anti-social”, se 1 “A ausência de empatia, imagem inflamada de si
bem que a última edição incluía já características próprio e o charme superficial são indicadores que têm
da psicopatia definidas por Cleckley (1976) e sido incluídos nas concepções tradicionais de psicopatia
apresentadas no trabalho de Hare (1991). e podem ser particularmente distintivos da perturbação
As versões mais recentes, DSM-IV (APA, anti-social da personalidade, e factores de predição de
recidiva na prisão, ou nos contextos forenses onde os
1994, citado por Soeiro, 2006) apresentam, actos criminais, delinquentes e agressivos podem não
assim, algumas alterações que correspondem a ser específicos” (American Psychiatric Association,
uma agregação, simplificação e alteração dos 1994, citado por Soeiro, 2006).

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personalidade dissocial, surge como uma simples nas suas reacções emocionais, são
designação específica, que em última análise capazes de simular estados emocionais e afectos
passou a ser considerado como sinónimo do para com os outros sempre que isso lhes permita
conceito de personalidade anti-social apresen- atingir os objectivos que pretendem.
tada pela classificação da American Psychiatric Karpman (1941, citado por Gonçalves, 2000)
Association. Atendendo ao maior impacto do distinguiu dois tipos de psicopatas: o sintomático
trabalho desenvolvido pela American Psychiatric e o ideopático. Posteriormente, este autor
Association, e considerando que no contexto apresentou uma outra tipologia que definiu por
dos EUA o termo dissocial possuía um enqua- tipo agressivo-predador e tipo passivo-parasita
dramento diferente de anti-social2, o último (Karpman, 1955, citado por Gonçalves, 1999b).
termo passou a ser mais utilizado nos trabalhos Procurando definir, de um modo geral, cada um
de natureza científica sobre as temáticas da anti- dos tipos apresentados por este autor, verifica-se
socialidade (Gonçalves, 1999b). que o primeiro corresponde a indivíduos com um
comportamento frio, agressivo e insensível e
O impacto da perspectiva tipológica com o objectivo de se apropriarem de tudo o que
desejam, enquanto no segundo possuem uma
Para além das concepções que se inserem aparente necessidade de ajuda e simpatia,
numa vertente clínica e categorial, pode ainda alcançando os seus propósitos de forma parasita.
ser identificado um conjunto de definições que Nesta linha de investigação podem ser
se inserem numa abordagem tipológica. igualmente consideradas as concepções de
Nos anos sessenta surgiram as definições e psicopatia que possuem por base os estudos
classificações de psicopatia que procuravam efectuados a partir de tratamentos estatísticos,
articular os indicadores da realidade com a principalmente com recurso à análise factorial.
definição do conceito. Inserido principalmente Estes estudos procuraram identificar grupos
numa abordagem clínica de psicopatia, cada (clusters) de traços de personalidade que
autor tendia a descrever esta perturbação em permitissem definir os vários tipos de
função da importância que dada a uma ou várias personalidades psicopáticas. Os trabalhos
características a ela associadas (Cantero, 1993). desenvolvidos nesta linha de investigação
A maior parte das definições eram centradas nos tiveram por base análise da história de vida dos
traços clínicos relativos ao egocentrismo, indivíduos, rating scales, questionários de auto-
ausência de empatia e sentimentos de culpa e de relato e inventários de personalidade (Gonçalves,
estabelecimento de relações afectivas com os 1999a). Importa considerar aqui os trabalhos
outros (Hare, 1970). desenvolvidos por Jenkins (1960, citado por
Nesta linha de investigação, Karpman (1961, Gonçalves, 2000), Quay e colaboradores (Quay,
citado por Gonçalves, 2000) definiu o psicopata 1965; Quay & Parsons, 1971) e Blackburn
como uma pessoa instável e emocionalmente (1971, 1978, 1986).
imatura. As suas reacções surgem simples e Considerando o trabalho desenvolvido por
provocadas por situações de frustração ou de Jenkins (1960, citado por Gonçalves, 2000),
algo que incomoda o psicopata. Não experi- este tinha por base a análise de grupos de
mentam ansiedade nem medo, as suas relações crianças com história de comportamento
sociais e sexuais são superficiais, as recom- delinquente. Da análise dos resultados do estudo,
pensas/castigos não têm qualquer efeito sobre o o autor obteve três tipos distintos de psicopatas:
seu comportamento imediato. Este autor refere, o primeiro grupo, que definiu como “não
no entanto, que estes indivíduos, apesar de serem socializado-agressivo” era definido por
tendências agressivas, crueldade, desafio à
2 Nos EUA dissocial refere-se aos contextos onde
autoridade e sentimentos inadequados de culpa;
os indivíduos apresentam dificuldades no o segundo grupo, definido por “sobre-ansioso”,
cumprimentos de regras sociais, enquanto o conceito
de anti-social se refere aos indivíduos que se caracterizava-se por timidez, apatia, sensibi-
apresentam incapazes quanto à tolerância das regras lidade e submissão; o terceiro grupo, designado
sociais, entrando em ruptura com as mesmas. por “socializado”, surge associado a grupos anti-

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-sociais, com envolvimento em grupos com que 52% de psicopatas primários e 8% de
história de roubo e ausências da escola e de casa psicopatas inibidos tinham história de reinci-
(Gonçalves, 1999a). dência de actos violentos.
Quanto ao trabalho de Quay e colaboradores Estes dados foram igualmente confirmados
(Quay, 1965; Quay & Parsons, 1971), este por trabalhos desenvolvidos posteriormente por
permitiu a identificação de dois factores que Lykken (1995), Levenson, Kiehl, e Fitzpatrick
permitiram definir a psicopatia: a delinquência (1995) e Ross, Lutz, e Bailley (2004). Destes
psicopática, que integrava aspectos como fraca estudos resultou uma tipologia que define os
moralidade, rebeldia, impulsividade, e ausência psicopatas primários como indivíduos insen-
de laços familiares; e a delinquência neurótica, síveis, pouco ansiosos, calculistas, manipulativos
que correspondia a tendências agressivas e e mentirosos, e os psicopatas secundários, que
impulsivas, sentimentos de culpa, remorsos, genericamente se considera que sofrem de uma
tensão e depressão. Posteriormente foi identifi- desordem neurótica, que estimula o comporta-
cado por Quay (1977, citado por Gonçalves, mento impulsivo por eles apresentado.
1999a) mais dois grupos de indivíduos, levando Estes trabalhos envolveram uma abordagem do
ao desenvolvimento de uma tipologia definida conceito de psicopatia, que desencadeou o
por quatro factores: “sub-socialização” e “socia- desenvolvimento de uma tipologia que dicotomiza
lização”, “défice de atenção” e “ansiedade- o comportamento destes indivíduos em psico-
-retraimento-disforia”. Estes trabalhos deram patas primários e secundários, e que ainda hoje é
suporte aos estudos da perspectiva clínica, alvo de discussão e controvérsia (Blackburn,
desenvolvidos por Karpman (1955, citado por 1993; Blackburn & Coid, 1998; Ross, Lutz, &
Gonçalves, 1999b) e de Lykken (1957), já que Bailley, 2004), já que autores como Hare (1991,
replicaram uma divisão factorial para definir 2003) defendem uma definição do conceito
psicopatia semelhante à apresentada pelos unidimensional (Soeiro, 2006).
autores da vertente clínica. Assim, o psicopata
agressivo corresponde à designação de psicopata
primário, enquanto o psicopata neurótico corres- A abordagem dimensional do conceito de
ponde à caracterização do psicopata secundário. psicopatia
Os trabalhos desenvolvidos por Blackburn
(1971, 1975, 1986), com base em amostras de Enquadrando uma abordagem unidimensional
agressores violentos e com recurso ao MMPI, do estudo do conceito de psicopatia, surgem os
confirmaram igualmente os dados anteriores. trabalhos desenvolvidos por Robert Hare. Este
Nos seus estudos Blackburn conseguiu obter autor é um dos investigadores que mais contribuiu
duas dimensões distintas em que os agressores para o estudo do conceito de psicopatia e para a
podeiam ser diferenciados: os sub-controlados e sua avaliação.
os sobre-controlados. Destes trabalhos resultou A noção de psicopatia que Hare (1991, 2003)
uma tipologia que subdividia os psicopatas em apresenta opõe-se a uma abordagem tipológica do
quatro subgrupos: (1) psicopatas primários; (2) conceito, tal como é apresentado pelos trabalhos
psicopatas secundários; (3) psicopatas inibidos; de Levenson, Kiehl, e Fitzpatrick (1995) e Ross,
(4) psicopatas conformados (Blackburn, 1984). Lutz, e Bailley (2004). Na verdade, estes autores
Howells e Hollin (1988, citado por referem que a sua tipologia, associada à definição
Gonçalves, 2000) afirmaram que estes quatro da psicopatia, corresponde ao mesmo tipo de
subgrupos podiam ser encontrados na população dados obtidos por Hare (1991), apesar de não
prisional e que existiam diferenças na considerarem o conceito de psicopatia como
personalidade e no comportamento entre os unidimensional. Contudo, Hare (1980, 1991) não
subgrupos. Assim, os psicopatas primários aceita esta divisão dos psicopatas em dois tipos de
apresentavam baixa ansiedade e elevada extro- indivíduos, já que os seus estudos são reveladores
versão, ao contrário dos psicopatas secundários dos vários critérios/dimensões que definem a
que eram definidos como introvertidos e com desordem e não de tipos diferentes de perfis a ela
elevada ansiedade. Blackburn (1984) verificou associados.

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Hare (1970) caracterizou o psicopata como 2001; Hare, 1991). Tal como é referido por
alguém incapaz de mostrar empatia ou Cooke e Michie (2001), para definir psicopatia é
preocupação genuína por outrem, que manipula e importante considerar o contributo dos três
usa os outros para satisfazer os seus próprios indicadores, que possuem igual peso na carac-
desejos. Estes indivíduos, segundo este autor, terização do constructo.
apresentam ainda uma sinceridade superficial, A proposta de definição do conceito de
que os torna capazes de convencer aqueles que psicopatia a partir de um modelo de três factores,
usou e a quem prejudicou, da sua inocência ou em substituição do modelo de dois factores de
da sua motivação para mudar. Hare (1991), introduz um debate em torno do
O trabalho desenvolvido por Hare (1991) papel do comportamento anti-social na carac-
apresenta claramente a influência dos estudos de terização do constructo psicopatia. Na verdade, o
Cleckley (1941/1976) e de McCord e McCord papel do comportamento anti-social, definido
(1964). Assim, para este autor, a psicopatia é como um sintoma no modelo bi-factorial de Hare
definida como um constructo unidimensional (1991), é apresentado como uma consequência da
composto por dois factores correlacionados psicopatia nos resultados obtidos pelos trabalhos
(Hare, 1980, 1991; Harpur, Hasktian, & Hare, de Cooke e Michie (2001) e Cooke, Michie, Hart,
1988; Hart, Hare, & Harpur, 1992): um dos e Clark (2004). A forte relação estabelecida entre
factores está associado aos aspectos clínicos psicopatia e a variável comportamento anti-social
(interpessoais e afectivos) que definem esta surgiu da associação que existe entre esta
perturbação da personalidade e o outro mais perturbação da personalidade e a criminalidade e a
associado aos aspectos comportamentais que violência típica das amostras estudadas (Hare,
definem o termo de estilo de vida anti-social. Cooke, & Hart, 1999, citados por Cooke, Michie,
Hare apresenta uma definição de psicopatia que Hart, & Clark, 2004; Hart & Hare, 1997, citados
engloba um conjunto de traços de personalidade por Cooke, Michie, Hart, & Clark, 2004). Esta
e comportamentos socialmente desviantes, relação, tal como já foi referido, surge relacionada
devendo os indivíduos apresentar características com a psicopatia, não apenas no modelo de Hare
dos dois tipos de indicadores para serem (1991), mas também nos critérios de diagnóstico
classificados como psicopatas. Este modelo de apresentados pelos diferentes sistemas nosoló-
dois factores torna-se, na última década, o gicos. Contudo, a natureza da associação entre
dominante no que se refere à definição de psicopatia e comportamento anti-social não é
psicopatia (Skeem, Mulvey, & Grisso, 2003). clara (Cooke, Michie, Hart, & Clark, 2004;
Na sequência do trabalho desenvolvido por Cooke, Michie, & Hart, 2006).
Hare (1980, 1991) e Hart, Cox, e Hare (1995), e Assim, a diferença apresentada pelo modelo
numa tentativa de estudar a replicação deste dos três factores de Cooke e Michie (2001), não
constructo de dois factores em termos está relacionada apenas com a subdivisão em
transculturais, foram desenvolvidas investiga- duas partes do Factor 1 do modelo de Hare
ções que defendem que o conceito de psicopatia (1991), que integra os aspectos clínicos da
deve ser definido não por dois mas por três perturbação e que separa os indicadores inter-
factores (cf. Cooke, 1997, 1998; Cooke & pessoais dos afectivos. A principal discussão
Michie, 2001): o primeiro factor foi definido por centra-se na eliminação dos indicadores relativos
estilo interpessoal arrogante e dissimulado; o aos comportamentos anti-sociais, mantendo
segundo factor corresponde a uma deficiente apenas os aspectos comportamentais relativos à
experienciação dos afectos; e o terceiro factor foi impulsividade e irresponsabilidade. Esta posição
definido por estilo de comportamento impulsivo é igualmente defendida por autores como
e irresponsável. Nesta perspectiva, a definição de Lilienfeld, Purcell, e Jones-Alexander (1997,
psicopatia integra três facetas distintas, uma citado por Soeiro, 2006), que partindo dos
relativa a aspectos de natureza interpessoal, aspectos definidos por Cleckley (1941/1976),
outra relativa a aspectos afectivos e outra que consideram que o comportamento antisocial não
considera indicadores de natureza comporta- é necessário nem suficiente para o diagnóstico
mental (Cleckley, 1941/1976; Cooke & Michie, da psicopatia. Deste modo, estes autores

234
consideram que esta definição, centrada nos defesa da “hipótese de consequência”, quando se
dois factores de Hare (1991), se encontra conta- considera o papel dos indicadores relativos ao
minada por factores não específicos relativos ao comportamento anti-social, na definição do
comportamento desviante e anti-social. conceito de psicopatia.
Como resposta a esta posição apresentada Em primeiro lugar, estes autores defendem
por Cooke e Michie (2001) e ao modelo de três que as definições clínicas mais clássicas de
factores para definir o conceito de psicopatia, psicopatia (Cleckley, 1941/1976; Karpman,
Hare (2003) apresenta um novo modelo de 1961, citado por Gonçalves, 2000; McCord &
quatro factores com a mesma finalidade de McCord, 1964) não definem o comportamento
caracterização da psicopatia. Assim, Hare (2003) anti-social como um sintoma central na
apresenta uma nova proposta relativamente aos caracterização da perturbação. Este aspecto é
sintomas de psicopatia e que engloba os três reforçado por Schneider (1950/1958, citado por
factores apresentados por Cooke e Michie (2001) Gonçalves, 1999b) e por Cleckely (1941/1976)
e um quarto factor que considera os indicadores que consideraram a possibilidade de que muitos
relativos ao comportamento anti-social. A indivíduos com psicopatia não apresentam
análise dos indicadores que definem o conceito história de comportamento anti-social, tendo
de psicopatia segundo esta estrutura de quatro Scnheider afirmado que o comportamento anti-
factores é aprofundada e confirmada em Hare e -social deve ser considerado como secundário
Neuman (2006), ao serem comparados os indica- para a definição desta perturbação da personali-
dores que caracterizam os instrumentos criados dade. Esta mesma posição foi apresentada por
para a avaliação da psicopatia a partir da Lykken (1995) ao considerar que, apesar dos
Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R – Hare, psicopatas apresentarem risco elevado para se
1991). envolver em actos criminosos, nem todos
Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) estudam sucumbem a este risco.
a adequação de cada um dos modelos referidos Em segundo lugar, Cooke, Michie, Hart, e
anteriormente e defendem que os indicadores Clark (2004) defendem que existem indicadores
relativos ao comportamento anti-social não de que determinados sintomas da psicopatia são
podem ser considerados como uma manifestação a causa da exibição de condutas anti-sociais: os
directa da perturbação psicopatia, para amostras sintomas interpessoais como grandiosidade,
com características culturais distintas. Na implicam os psicopatas em actos criminosos
verdade, não confirmam a adequação do modelo sádicos, motivados por desejos de controlo;
de Hare (2003) relativamente à introdução de um limitações afectivas como a ausência de empatia
quarto factor que integra os indicadores relativos e a ansiedade resultam numa dificuldade em
ao comportamento anti-social e desviante. inibir os pensamentos violentos; a impulsividade,
Considerar o comportamento anti-social como por sua vez, surge associada ao cometimento de
um sintoma, implica integrá-lo como um indi- actos criminosos sem que o sujeito tenha
cador importante para a avaliação e diagnóstico presente a consequências associadas a este tipo
da psicopatia. Os dados empíricos obtidos por de actos (e.g., Blackburn, 1993; Blackburn &
Cooke e Michie (2001) e Cooke, Michie, Hart, e Coid, 1998)
Clark (2004) na análise das qualidades psico- Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) referem
métricas de um dos instrumentos mais utilizados como terceiro ponto fundamental a análise dos
para a avaliação da psicopatia, a PCL-R (Hare, aspectos qualitativos que definem o comporta-
1991, 2003) e a sua versão reduzida PCL:SV mento anti-social, e que se distinguem dos
(Hart, Cox, & Hare, 1995) permitem, contudo, sintomas da psicopatia. Na verdade, enquanto o
aceitar a possibilidade do comportamento anti- comportamento anti-social está relacionado com
-social ser considerado como uma consequência actos, os restantes sintomas da psicopatia
da psicopatia. relacionam-se com traços de personalidade.
Mas, para além dos indicadores empíricos, Blackburn (1987) defendeu que um diagnóstico
Cooke, Michie, Hart, e Clark (2004) referem baseado em actos e traços da personalidade é
ainda quatro argumentos de natureza teórica na feito recorrendo a critérios que integram domí-

235
nios conceptuais distintos. A mesma posição é seja discriminatório em termos de diagnóstico da
apresentada por Widiger e Lynam (1998) e psicopatia.
Lilienfeld (1994). Esta separação entre os aspectos da personali-
O quarto aspecto de natureza conceptual dade e os critérios relativos ao comportamento
sugere que o comportamento anti-social resulta anti-social podem facilitar, em termos teóricos, o
da influência de um conjunto variado de factores estudo da relação entre a psicopatia e o
de natureza biológica, psicológica e social. Na comportamento desviante e, em termos práticos,
verdade, no estudo do comportamento criminal, a clarificação dos critérios de avaliação facilitam
indica que a psicopatia é apenas uma das causas, a decisão a ser tomada relativamente à
podendo encontrar-se igualmente como fonte de classificação, avaliação de risco de violência e
causalidade as desordens psicóticas, o atraso tratamento dos indivíduos em contexto clínico/
mental, uso e dependência de substâncias ou /forense (Soeiro, 2006).
outras perturbações da personalidade (Cooke,
Michie, Hart, & Clark, 2004).
Perante este conjunto de dados conceptuais e O “ESTADO DE ARTE” DO CONCEITO DE
empíricos, a definição do conceito de psicopatia PSICOPATIA
necessita, segundo a perspectiva de Cooke et al.
(2004) e Cooke, Michie, e Hart (2006) de uma Após a análise dos aspectos relacionados com
redefinição que deve considerar os factores do a definição de psicopatia, verifica-se que são
comportamento desviante e anti-social como diversas as influências que se encontram
consequência da psicopatia e não como um associadas à sua caracterização e que, por isso,
sintoma desta desordem da personalidade. A originaram várias definições do constructo.
definição de psicopatia deve, segundo esta pers- Apesar desta diversidade, observa-se, no entanto,
pectiva, eliminar os critérios que se encontram uma evolução relativamente ao consenso sobre
relacionados com o comportamento desviante e os indicadores deste constructo (Gonçalves,
anti-social. 2000; Soeiro, 2006).
Como forma de sistematização, Blackburn
Nesta perspectiva Cook, Hart, Logan, e
(1992) identifica três formas distintas de utilização
Michie (2004) apresentam uma nova proposta no
do conceito de psicopatia, na literatura. Uma que
que se refere à identificação de domínios que
se relaciona com a ideia de desvio/deterioração,
definem e permitem avaliar a psicopatia. A
pessoal ou psicológica, em relação à normalidade,
avaliação compreensiva da personalidade
baseada na tradição de Schneider e reconhecida na
psicopática (Comprehensive Assessment of
ICD-10 (World Health Organization, 1987, citado
Psychopathic Personality – CAPP) corresponde por Gonçalves, 1999b). A segunda define o
a um modelo que define a psicopatia em cinco conceito como um desvio/deterioração social,
domínios: (1) Domínio da vinculação, que avalia apresentando o comportamento desviante e anti-
as dificuldades do psicopata em estabelecer social um lugar de destaque na explicação da
relações interpessoais; (2) Domínio comporta- perturbação. Esta influência está presente na
mental, que analisa os problemas relativos ao DSM-IV-TR (American Psychiatric Association,
planeamento e cumprimento das tarefas e 2002). A terceira perspectiva de psicopatia é
responsabilidades; (3) Domínio cognitivo, que definida por Blackburn como híbrida, já que
reflecte os problemas com a adaptabilidade e conjuga os aspectos da deterioração da
flexibilidade mentais; (4) Domínio da personalidade, enquanto desvio social, com os
dominância, relacionado com questões de gestão critérios clínicos associados à perturbação. Os
do poder e controlo; (5) Domínio do Self, que autores que melhor exemplificam esta concepção
define problemas relacionados com a identidade são Cleckley (1951/1976) e mais recentemente
e individualidade do psicopata. Hare (1991, 2003).
O CAPP pretende diferenciar os domínios ou Segundo Gonçalves (1999a) as definições de
áreas da psicopatia dos seus sintomas, procu- psicopatia podem ser agrupadas em quatro
rando elaborar um instrumento de avaliação que abordagens distintas: as concepções tipológicas,

236
dimensionais, categoriais e clínicas. Para este Esta diversidade de estudos permitiu analisar
autor, os trabalhos desenvolvidos por Hare quais os indicadores que melhor definem esta
inserem-se na abordagem dimensional, apesar de perturbação da personalidade, possibilitando o
salientar a forte influência de autores oriundos desenvolvimento de uma forte relação entre os
da vertente clínica. aspectos empíricos relacionados com a avaliação
De uma forma geral, e como resultado do que dos indicadores de psicopatia e os aspectos
até aqui foi exposto, pode considerar-se que o conceptuais, relacionados com a definição do
conceito de psicopatia pode ser definido por um constructo. A revisão do modelo e do respectivo
conjunto de características ou traços de instrumento que o originou, pode então levar a
personalidade (Cleckley, 1951/1976; Hare, 1991, alterações na vertente teórica do constructo,
2003) que podem estar presentes em indivíduos demonstrando a importância da articulação que
com ou sem história de anti-socialidade e que pode ser estabelecida entre a prática e a teoria.
surgem desde a infância, piorando na adoles- Do ponto de vista teórico, considerando os
cência e persistindo na fase da adultez aspectos referidos ao longo deste artigo, ficam
(Gonçalves, 2000). Deste modo, define-se aqui o por analisar dois problemas fundamentais no
contorno de uma perturbação da personalidade, estudo da psicopatia: um, é se o conceito de
salvaguardando-se os aspectos relacionados com psicopatia deve ser definido de uma forma
o papel do comportamento anti-social como categorial ou dimensional; e outro é se existem
sintoma ou como consequência desta pertur- dois tipos de psicopatas – primários e
bação (Soeiro, 2006). secundários.
Quanto à articulação, quando se considera o Quanto ao estudo da relação entre uma
conceito de psicopatia, entre uma abordagem abordagem categorial, centrada num conjunto de
dimensional (e.g., Hare, 1991, 2003) e uma critérios que definem a desordem (e.g., DSM-IV-
abordagem tipológica (e.g., Blackburn, 1971, TR; APA, 2002) e a dimensional, que considera
1984, 1986) os dados relativos aos estudos sobre os atributos clínicos específicos da psicopatia, os
a psicopatia primária e secundária parecem resultados das investigações, parecem mostrar
indicar que esta abordagem apresenta um que não faz sentido reduzir esta perturbação a
contributo importante para a compreensão do aspectos relativos ao estilo comportamental, tal
fenómeno. Para alguns autores (cf. Gonçalves, como é apresentado pela abordagem categorial.
1999a,b), estas duas abordagens podem mesmo No contexto da discussão relativa à existência
ser vistas como conciliáveis, principalmente de uma divisão entre psicopatas primários e
quando se considera o estudo de populações secundários, autores como Hare não consideram
com história criminal. os segundos como psicopatas verdadeiros. No
entanto, alguns dos estudos mencionados (e.g.,
Lykken 1995; Blackburn & Coid, 1998) mostram
DISCUSSÃO que esta distinção faz sentido (cf. Soeiro, 2006).
Cook, Hart, Logan, e Michie (2004) defendem
De um modo geral, pode considerar-se que que um modelo de 5 factores se encontra mais
existem várias definições de psicopatia. A sua próximo do trabalho desenvolvido por Cleckley
utilização é influenciada por vários aspectos (1941/1976) e por McCord e McCord (1964), já
como sejam, o país, a legislação e a tradição que ao centrar a definição de psicopatia em
científica. indicadores específicos relativos à personali-
Um dos aspectos interessantes que ressaltam dade, permite afastar o impacto de índices não
da análise da área de estudo da psicopatia, quer específicos relativos ao comportamento anti-
em termos teóricos, quer práticos, é o grande -social e colocar de forma mais firme o conceito
impacto, nas últimas décadas, que o trabalho de psicopatia, no domínio das perturbações da
desenvolvido por Hare (1991) possibilitou na personalidade. A contra proposta de Hare (2003)
realização concertada de investigações em e Hare e Neumann (2006), com a apresentação
diferentes contextos (forense, clínico-forense e de uma estrutura de quatro factores, insere-se
clínico) e em diferentes realidades culturais. claramente na problemática da definição de qual

237
o papel do comportamento anti-social na Blackburn, R. (1993). The psychology of criminal
explicação do conceito de psicopatia, definindo conduct: Theory, research and practice. New
York: Wiley.
esta variável como um sintoma de psicopatia.
Assim, a questão persiste: o seu papel será de Blackburn, R., & Coid, J. W. (1998). Psychopathy and
sintoma ou de consequência da perturbação? the dimensions of personality disorder in violent
offenders. Personality and Individual Differences,
Esta é uma questão importante, para esta área de
25, 129-145.
estudo e para a compreensão do comportamento
criminal, que merece uma análise mais detalhada Buss, A. (1966). Psychopathology. New York: Wiley.
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239
RESUMO ABSTRACT

Este artigo tem como objectivo efectuar uma The aim of this article is to make an analysis of the
análise do conceito de psicopatia, tendo presente a sua concept of psychopathy, bearing in mind the
evolução e as principais questões que se colocam na implication of the concept in the study of criminal
sua relação com o estudo do comportamento criminal. behaviour. We analyze the most important factors
São analisados os principais indicadores que that characterize the several perspectives related with
caracterizam as perspectivas clínica, categorial,
the conceptualization of psychopathy: the clinical,
tipológica e dimensional do conceito de psicopatia,
categorical, typological and dimensional perspectives
assim como os principais aspectos que as diferenciam.
No final do artigo é discutido o impacto, quer em of the concept. Is also discussed the impact, both
termos teóricos quer empíricos, dos aspectos que são theoretical and empirical, of the aspects that are
defendidos como centrais, na definição de psicopatia, defined as essential in the definition of psychopathy,
para cada uma das abordagens apresentadas. for each of the approaches presented.
Palavras-chave: Comportamento criminal, Key-words: Anti-social personality, Criminal
Personalidade anti-social, Psicopatia. behavior, Psychopathy.

240

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