Gustavo Machado
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moralidade: a felicidade. Williams mostra como esse critério, por mais abrangente que seja,
não consegue dar conta de diversas atitudes fundamentais perante a vida, que embasam tanto
religiões como filosofias de vida, onde parece que o termo "felicidade" é uma caracterização
insuficiente das suas preocupações fundamentais.
● AS RELIGIÕES: O exemplo que ele fornece é de Lutero. "Mas, se a felicidade é em
última análise incompatível com o sofrimento excessivo, ou total, talvez possamos
aceitar perspectivas morais que rejeitem a noção de que a felicidade é a preocupação
com os nossos interesses. Conta-se que Lutero, ao ouvir a proposição de que a
Glücklichkeit (felicidade) seria o fim da vida humana, violentamente rejeitou a ideia e
disse: 'leiden, leiden, Kreuz, Kreuz" ('sofrer...a Cruz..."). Aqui poderia estar presente a
concepção de que o pecado do homem e a sua distância de Deus são tais que somente
uma vida de penitência e a consciência da maldade individual e coletiva poderiam
apropriadamente dar conta da situação. Essa concepção sem dúvida rejeitaria
instituições, perspectivas ou modos de vida que tendessem a eliminar os sofrimentos
mais fundamentais do homem, e apenas aprovaria, eventual ou perifericamente,
aqueles que suavizassem os sofrimentos menos espirituais. (...) A questão é que não
existem meios acessíveis para que o homem se reconcilie com Deus, nenhuma espécie
de projeto humano concebível para assegurar esse resultado (...). O homem devoto irá
obedecer a vontade de Deus, da melhor forma possível em sua condição desamparada,
e deve ter sempre a consciência dessa condição, mas não com o intuito de assegurar
para si ou para qualquer um a salvação, que é uma esperança distante; e, caso seja
rejeitado, ele não terá o direito de reclamar (...)." (Williams, 2005, pp. 126-8). O que
Williams quer mostrar com essa longa citação é que tal perspectiva é uma perspectiva
moral - "ela se propõe explicar a situação do homem de acordo com a conduta que se
espera dele; e de fato ela trata, desde o seu ponto de vista, daquilo que é fundamental
para a felicidade humana"(idem, ibidem, p. 128). Mas seria uma tremenda distorção
"representar essa moralidade como tendo por objetivo a felicidade humana: o objetivo
é, antes, que a vida reflita, em sofrimento e obediência, a deplorável condição
humana. Essa é certamente uma perspectiva muito diferente daquela que lida
diretamente com a felicidade; mas ainda assim seria impertinente não chamá-la de
moralidade." Idem, ibidem, p. 128.
● FILOSOFIAS DE VIDA: Do ponto de vista de uma estrutura secular, seu exemplo é das
perspectivas românticas perante a vida, "que falam de uma atitude de liberdade em
relação às imposições da vida; ou de 'honestidade' em relação aos próprios impulsos,
mesmo os destrutivos; ou do significado das experiências humanas". Idem, ibidem, p.
129. Ainda que tais perspectivas remetam aos ideais de certas pessoas, tem papel de
moralidade na medida em que eles fornecem um modelo de vida a ser vivida para seus
adeptos, mesmo não se constituindo como fundamento da sociedade como um todo.
→ Ainda assim, poderia estas perspectivas fazerem apelo a algo inerente à vida humana, algo
que tem que ser seguido ou regulado. A ideia de que exista um impulso mais profundo de uma
pessoa. Esta perspectiva combina em alguma medida: descoberta, confiança, risco, uma
relação entre submissão e incerteza. Ainda que esta questão exista e tem poder, exigindo uma
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resposta, jamais poderá se constituir uma moralidade completa, porque não diz nada ou quase
nada sobre a sociedade, a vida dos homens como um todo. Seja como for, os homens dão
valor a questões como submissão, confiança, incerteza, risco e mesmo desespero e
sofrimento, coisas que não podem ser relacionadas à ideia fundamental da felicidade.
→ Por fim, Williams aborda novamente a questão do bem-estar, assumindo que esta noção
possa ser tomada em um sentido mais abrangente e com maior significação que felicidade. Em
sentido extremo, algo como, “ser o que o homem deve ser”, sem relação com a satisfação.
Embora Williams afirme não ter resposta se o bem-estar, assim considerado, poderia não ser
rejeitado por ninguém (emergindo como critério legítimo para delimitar a moralidade), termina
assinalando que mesmo esta acepção de bem-estar do homem deixa de lado “os sistemas de
valores ou preceitos que não dão nenhuma atenção àquilo que entendemos como
necessidades ou desejos humanos”.
→ Conclusão: Se a moralidade não é suprema, e nem é frutífero dissociar nossas razões ou
emoções em morais e não morais, isso abre a possibilidade de considerarmos como
igualmente relevantes para o nosso caráter e conduta outras emoções, virtudes e formas de
apreciar a nossa situação e de terceiros. Para ilustrar essa tese, tomemos o exemplo de dois
motoristas imprudentes, onde apenas um causa um acidente. A moralidade nos instaria a fazer
a pergunta de se é justo avaliarmos os dois diferentemente. Embora na prática tenhamos
pudores em avaliá-los diferentemente, nossa reflexão moral nos demanda que respondamos
negativamente. Mas seria isso tudo que pode ser dito da situação? Seria esse o único
esquema conceitual que teríamos para avaliar a ação e o agente? A nossa gramática moral
seria tão simplória? As considerações de Williams procuram marcar o oposto, que nossas
reações e experiência moral transcendem questões de justiça, suas motivações, reações e
virtudes correlatas - é dizer, a moralidade (ou ética, para ficar mais claro) é maior do que o
sistema moralidade, no qual a noção de justiça (e seus correlatos censura e culpa) é central.
O UTILITARISMO
Bernard Williams apresenta uma crítica à filosofia utilitarista, tanto na forma do utilitarismo dos
atos quanto na forma do utilitarismo de regras.
→ UTILITARISMO DOS ATOS: é a forma clássica do utilitarismo. Nesta, cada ação particular
deve ser avaliada por suas consequências, e deve se escolher, em cada caso, o curso de
ação que contribua para a maior felicidade do maior número de pessoas.
→ UTILITARISMO DAS REGRAS: nesta forma de utilitarismo, ao invés de se avaliar sempre
as consequências de cada curso de ação, recomenda-se seguir uma regra geral, pois se
considera que a adoção de regras (do tipo “não mentir”ou “não matar”ou “cumprir promessas”)
é em geral benéfica para a sociedade.
→ Williams começa definindo o utilitarismo como uma concepção que:
1. “sustenta que só existe UM princípio em moral: o de buscar a maior felicidade para o
maior número de pessoas”
2. “sustenta que felicidade significa prazer e privação de dor”
3. recomenda que diante de cada situação o agente moral se pergunte que curso de
ação traria maior felicidade para o maior número de pessoas [ou seja, como se verá,
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para nosso autor, a formulação menos incoerente do utilitarismo é o utilitarismo de
atos].
4. Destaca que por utilitarismo não entende no sentido amplo de uma “perspectiva que
afirmasse que uma ação será certa ou errada dependendo das suas consequências”
(consequencialismo). Mas que tomam a “felicidade como única coisa
intrinsecamente boa, para qual as ações e organizações sociais estão voltadas”.
→ OS ATRATIVOS DO UTILITARISMO
1. É um sistema moral não transcendental, ou seja, não faz apelo a algo exterior à vida
humana para fundamentar a moralidade. Dissocia a moralidade da religião, ao tomar o
prazer e a dor, noções que remetem a algo bastante concreto, como critérios do certo e
do errado. Obs: Williams lembra que, apesar de recusar um fundamento religioso para a
moral, o utilitarismo acaba por afirmar um tipo de moralidade cujo conteúdo é muito
compatível com a religião cristã. De fato, no capítulo cap. 2 de sua obra O Utilitarismo,
J. S. Mill afirma que não há oposição entre a moral cristã e a moral utilitarista; a nosso
ver, porém, Mill faz uma interpretação utilitarista do cristianismo, ao afirmar que a
finalidade desta religião é a felicidade humana.
2. Oferece uma definição muito aceitável e pouco discutível de seu bem fundamental: a
felicidade.
3. Afirma que os assuntos morais podem ser resolvidos por meio de cálculos empíricos
das consequências, ou seja, voltando-se para os fatos. Desta forma o utilitarismo
oferece um procedimento (o cálculo da quantidade de prazer e dor) para decidir que
decisão é a melhor a ser tomada em certa circunstância. “O pensamento moral se torna
empírico e, em casos de políticas públicas, uma questão de ciência social”.
4. Oferece um critério (O Princípio da Máxima Felicidade) para resolver os conflitos
morais, ou as situações que parecem “trágicas”. Obs: Situações trágicas são aquelas
nas quais qualquer opção pode parecer errada. Por exemplo: uma situação na qual seja
exigido sacrificar a vida de uma pessoa para salvar várias.
→ Após ter exposto o que aparece como vantagem da filosofia utilitarista, Williams vai apontar
alguns problemas nos pontos acima:
● Relativos a 2 :
○ a) Como passar da promoção da própria felicidade, coisa que todo mundo quer,
à promoção da felicidade de todos?
○ b) Será a felicidade realmente o objetivo da vida humana? Obs: Este ponto é
analisado por Williams, neste mesmo livro, no capítulo intitulado: “De que trata a
moralidade?”. Williams mostra que, para algumas perspectivas éticas, a
felicidade não é o único e nem o mais alto valor.
● Relativos a 4 :
○ a) E se a ação que trouxer a maior felicidade para o maior número for
considerada “errada”? (por exemplo: implicar em trair a confiança de alguém ou
em sacrificar um inocente) => de fato, um utilitarista não pode considerar errada
uma ação que contribua para a maior felicidade, mesmo que ela pareça errada
às nossas convicções mais arraigadas. “Eis uma das razões para dizer que a
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tragédia é impossível para o utilitarismo”.
○ b) Será que eliminar o conflito é realmente desejável? Vale dizer, que pela
aplicação do pricípio de máxima felicidade, a redução do conflito, a total
eliminação dos choques de valor, mostra-se como objetivo geral inquestionável
da moralidade.
→ AS CONTRADIÇÕES ENTRE OS ATRATIVOS DO UTILITARISMO
Williams também afirma que o utilitarismo não consegue realizar todas as suas promessas ao
mesmo tempo; que elas entram em contradição entre si. Retomemos a promessa feita pelo
utilitarismo de resolver os conflitos morais. Estes seriam resolvidos escolhendo-se a ação que
traz a maior soma de felicidade. Ora, só vamos poder saber, entre várias alternativas possíveis,
qual é a ação que traz a maior felicidade, se a felicidade for algo que se possa comparar e
somar. Um utilitarista como Bentham resolveu o problema simplesmente definindo a felicidade
como prazer e ausência de dor. Assim, diferentes formas de felicidade podem ser reduzidas ao
prazer e comparadas. Isto significa cumprir as promessas feitas pelos atrativos 3 e 4 acima.
Mas, neste caso, estamos ainda falando de felicidade, num sentido com o qual todos
concordariam (atrativo 2)? Será que todos concordariam que felicidade é igual ao prazer e à
ausência de dor? Williams examina este problema, e encontra uma inconsistência no
utilitarismo: ou ele cumpre os atrativos 3 e 4, que prometem resolver os conflitos morais, ou
cumpre o atrativo 2, apresentando uma definição aceitável de felicidade. Em outras palavras,
inconsistência se dá entre as duas exigências (E1 e E2) seguintes:
● E1 - A felicidade, para corresponder à idéia que muita gente faz dela (como exige o
atrativo 2), dificilmente pode ser definida apenas como prazer e ausência de dor. (Para
esclarecer este ponto, Williams acrescenta que “as pessoas incluem entre os
ingredientes de uma vida feliz coisas que necessariamente envolvem valores diferentes
do prazer – tais como integridade, por exemplo, ou espontaneidade, ou liberdade, ou
amor, ou expressão artística” - p. 147). Obs: De fato, o próprio J. S. Mill recusa definir
a felicidade apenas como um tipo simples de prazer. No cap. 2 de seu livro O
Utilitarismo, Mill introduz uma diferenciação qualitativa nos prazeres, ao falar de
prazeres inferiores (sensíveis) e prazeres superiores (prazeres intelectuais, o prazer
de dedicar-se ao outro, de desenvolver um talento, etc.). Para Williams , J. S. Mill está
certo em admitir que a felicidade envolve coisas diferentes do prazer; mas, ao fazer isto,
J. S. Mill deixaria de ser um utilitarista coerente. Em geral, os críticos do utilitarismo vão
apontar os problemas trazidos pela diferenciação entre tipos de prazer:
○ 1 - a definição de prazer fica extensa demais, e pode até incluir ações que
envolvem sacrifício, etc.; e
○ 2 - o que torna uma coisa “superior” a outra parece não ser o fato mesmo de
trazer ou implicar em prazer, mas alguma outra característica – e daí o
utilitarismo estaria afirmando valores diferentes do prazer.
● É preciso definir a felicidade de maneira simples, para ela funcionar como um critério de
resolução de conflitos (como exigem os atrativos 3 e 4). Disto surge dificuldades na
tentativa de satisfazer as condições utilitaristas para a “felicidade”.
○ Saída do utilitarismo: acusar e rejeitar certos projetos de felicidade como
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irracionais ou preconceituosos e propor sua própria ideia de felicidade. Trata-se
de uma estratégia circular: “a racionalidade utilitária é tomada como norma
para a definição de felicidade, a fim de excluir os tipos de felicidade que
constituiem uma objeção ao utilitarismo”. Além disso, neste caso analisam o
mundo do ponto de vista de certa moralidade e não fazendo com que este se
torne mais sensível a verdadeira moralidade.
○ Outro problema apontado por Williams: coerente com sua “concepção” de
moralidade, Williams rejeita tratar as coisas no âmbito meramente teórico como
no item acima. Volta-se então para os fatos, para as situações concretas,
assinalando que “diversos valores quantificados em função dos recursos
são confrontados com valores que não são de maneira nenhuma
quantificáveis nos mesmos temos”. Há muitos valores dificilmente
mensuráveis: qual é o valor de uma floresta, diante dos empregos gerados por
uma hidrelétrica? Qual é o valor da parte antiga de uma cidade, diante do
conforto que pode advir com a construção de novos edifícios? Assim, os
utilitaristas estão em última análises comprometidos com a ideia de que não
existem valores incomensuráveis. Propor que todos os valores podem ser,
finalmente, comparados, significa, em última análise, transformar todas as
relações em relações monetárias (p. 149). Não por acaso, o utilitarismo é
adotado nas sociedades em que os critérios econômicos são preponderantes, “a
quantificação do dinheiro é a única tradução óbvia do critério utilitarista, que é a
comensurabilidade do valor”.
A tese defendida por Williams é a de que há valores não mensuráveis – nem tudo pode ser
medido e calculado, como quer o utilitarismo.
→ PROBLEMAS DO UTILITARISMO DAS REGRAS(151-160)
O “utilitarismo das regras” surge para resolver algumas dificuldades:
● A principal é relativas às situações nas quais o cálculo utilitarista leva a recomendar
uma ação considerada errada (que entra em contradição com nossas convicções
morais mais fortes). Exemplo: Imagine uma situação na qual a condenação de um
inocente é condição necessária e suficiente para evitar grandes males. Neste caso, o
Princípio da Maior Felicidade parece obrigar o utilitarismo a recomendar esta ação. No
entanto, muitos a consideram, mesmo assim, errada. Obs: O ponto central aqui é o
conflito entre utilidade e justiça. Este ponto é tratado longamente por J. S. Mill no
cap. 5 de seu livro O Utilitarismo . Ele defende a ideia de que as regras de justiça se
fundamentam em desejos e necessidades absolutamente fundamentais do ser humano
– e portanto essenciais para a maior felicidade do maior número de pessoas. Embora
ele mesmo não fale de “utilitarismo de regras”, muitas ideias ali expostas já apontam
naquela direção.
● O cálculo utilitarista ao procurar prever as consequências futuras de uma ação,
trabalhará sempre com uma margem significativa de incertezas, com informações
incompletas, donde se segue resultados precários.
→ RESPOSTA DO UTILITARISMO DAS REGRAS
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No utilitarismo das regras o Princípio de Felicidade Maior seria aplicado na adoção de certas
regras e não na contabilização de ações específicas. Neste caso, que diz respeito à justiça,
como em outros (o cumprimento de promessas ou a regra de não mentir) em geral o correto é
obedecer à regra geral (“não se deve punir um inocente”; “não se deve mentir”) ao invés de
avaliar as consequências de cada caso específico. Isto se justifica não porque estas são regras
morais absolutas ou transcendentes, mas porque o fato de todos respeitarem estas regras,
sem questioná-las em casos específicos, é muito útil para a sociedade, contribuindo para a
maior felicidade do maior número. Passamos assim do “utilitarismo de atos”, que pensa a
consequência de cada ação, para o “utilitarismo de regras”, que afirma que o correto é que, em
geral, todos sigam aquelas regras que são boas para a sociedade como um todo.
Os utilitaristas comparam esta situação com o que podemos, aplicando ao caso de Minas
Gerais, chamar de “modelo da conta de luz”: é mais vantajoso para a CEMIG mandar
correspondência de cobrança a todos os clientes, mesmo para aqueles que gastaram tão
pouca energia que o preço da expedição da carta é maior que valor a receber, do que pagar
funcionários para identificar os casos nos quais a regra não se aplica. Também em moral, é
mais vantajoso em geral seguir algumas regras do que avaliar, caso a caso, as consequências
de sua aplicação.
→ CRÍTICA DE WILLIAMS
● O utilitarismo das regras utiliza um modelo com consequências hipotéticas da aplicação
imaginária de uma regra. Ao fazer uso de um raciocínio generalizante, que lida com
consequências imaginárias, ele se afasta ainda mais das consequências reais das
escolhas individuais. Ou ainda, “quanto mais gerais se tornam as bases do cálculo
utilitarista, mais casos existirão cujos cálculos individuais produziriam resultados
diferentes; logo, maior o número de equívocos que estarão sendo tolerados”. Tem-se
claramente uma contradição com as razões de ser do utilitarismo, exigência realista de
que a moralidade repouse sobre consequências calculáveis e não em uma tradição,
costumes etc...
● Williams acredita que a comparação com o modelo da conta de luz não se aplica
perfeitamente ao caso do utilitarismo (154-156). Tese central: O utilitarismo das regras é
um fracasso. Esta revisão da filosofia utilitarista não resolve a dificuldade apontada
acima, de conciliar seus princípios com as convicções morais, porque resta o fato de
que, em algumas situações concretas, pode-se provar que será realmente mais
vantajoso violar uma regra do que segui-la. Obs: Ou, como escreve Cláudio Costa:
“Apesar de tudo isso, o utilitarismo de regras encontra-se aberto a uma objeção que
considero fatal. É que sempre podemos imaginar situações nas quais as regras
precisam ser violadas! Imagine que um astronauta desça à terra tendo em sua cápsula
um microorganismo que pode se espalhar pelo ar e contra o qual os seres humanos
não possuem a menor resistência. As pessoas que tiveram contato com o
microorganismo na colônia de Marte foram todas rapidamente dizimadas. O astronauta
encontra-se fechado em uma cápsula e a única solução que resta é deixá-lo morrer,
pois abri-la seria arriscado demais... A regra de respeito à vida humana é aqui
derrogada por considerações utilitárias.”
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● O utilitarismo surgiu como aparato crítico contra crenças morais vitorianas, que
consideravam irracionais, como fizeram Bentham e Mill. Todavia, os utilitaristas
modernos empregam mais esforços em reconciliar o utilitarismo com as crenças morais
existentes. Ainda que seja compreensível a tentativa dos utilitaristas modernos de
contestar ações compatíveis com a formulação clássica (paixão pela justiça, oposição a
experimentos úteis em pacientes senis, uso de napalm sobre certas pessoas), menos
utilitaristas e menos coerentes se tornam ao caminharem nesta direção.
O utilitarismo não consegue ser coerente com sua admiração por muitos valores humanos que
se opõem ao Princípios da Maior Felicidade (p. 159). [A questão de fundo é : As regras morais
que muitos afirmam como princípios fundamentais (como, por exemplo, os princípios de justiça)
valem absolutamente? O utilitarismo em qualquer uma de suas formas, tem que optar, em
última instância, pela resposta negativa. As regras morais se submetem ao Princípio da Maior
Felicidade. Já outras posições em moral, como a filosofia kantiana afirmarão o valor de certas
regras independentemente de suas consequências.
→ O UTILITARISTA NÃO PODE QUERER QUE AS PESSOAS ACREDITEM NO
UTILITARISMO (p. 160-165)
Nas páginas finais, o autor defende a ideia de que o utilitarismo é uma teoria que em geral
torna a sociedade pior, pois diminui a exigência moral das pessoas. Ou ainda, possui a
capacidade de aniquilar a si próprio, tão logo seja posto em prática. Williams ilustra esta
questão com o seguinte raciocínio:
● Williams faz uma analogia do exemplo com a Lei de Gresham que diz que moedas
valorizadas tendem a desaparecer quando circulam num sistema monetário depreciado.
Ou ainda, "a moeda má expulsa a moeda boa". Isto porque, se todos agirem somente
com a preocupação de evitar o maior mal, podem admitir ações que compactuem com o
mal menor. Assim, quase ninguém agirá segundo princípios mais exigentes, recusando-
se a compactuar com ações más. Torna-se assim uma característica do sistema ações
abjetas com caráter preventivo. Donde se segue que o mais provável é uma escalada
de ações preventivas cujas consequências, segundo os próprios padrões utilitários,
“serão piores do que se o processo nunca tivesse sido levado adiante”. Neste quadro de
coisas o utilitarista pode ser levado a concluir que os resultados alcançados seriam
melhores não “fosse pelo fato de o mundo estar repleto de um emaranhado de
utilitaristas e vilões”. Esta situação levou alguns utilitaristas a concluírem que o melhor é
que a maioria das pessoas hajam como não utilitaristas que só deveria ser conhecido
por uma elite responsável. Donde se segue que o mundo que poderia satisfazer às
aspirações utilitaristas seria um mundo no qual o utilitarismo simplesmente não
existisse, exceto talvez sob forma minoritária e inoperante. De modo que, seja o
utilitarismo verdadeiro ou falso, em nome da maior felicidade, é melhor que as pessoas
não acreditem nele.