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sÆculum

REVISTA DE HISTÓRIA

N° 25 - Jul./ Dez. 2011


ISSN 0104-8929

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 1


UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitor: Rômulo Soares Polari
Vice-Reitora: Maria Yara Campos Matos

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


Pró-Reitor: Isac Almeida de Medeiros

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


Diretor: Ariosvaldo da Silva Diniz
Vice Diretora: Mônica Nóbrega

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Chefe: Gustavo Acioli Lopes
Sub-Chefe: Regina Maria Rodrigues Behar

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


Coordenadora: Carla Mary S. Oliveira
Vice Coordenadora: Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO - SÆCULUM


Ângelo Emílio da Silva Pessoa
Carla Mary S. Oliveira
Cláudia Engler Cury (presidente)
Elio Chaves Flores
Gustavo Acioli Lopes
João Azevedo Fernandes
Regina Célia Gonçalves
Regina Maria Rodrigues Behar
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano
Telma Cristina Delgado Dias Fernandes

Noadri Késsio Souza Borges


(Colaborador Mestrando PPGH-UFPB)

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sÆculum
REVISTA DE HISTÓRIA

Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Campus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V
Castelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - Brasil
Fone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <saeculum@cchla.ufpb.br>
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Copyright © 1995-2011 - DH/ PPGH/ UFPB
ISSN 0104-8929
Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira.

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;


desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;
Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.


A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.

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e no DOAJ - Directory of Open Access Journals (Lund University - Suécia)

Periódico avaliado como QUALIS B2 na área de História pela Capes

CONSELHO EDITORIAL

Antônio Paulo Resende (UFPE) Leonardo Guimarães Neto (CEPLAN)


Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG) Luiz Geraldo Silva (UFPR)
Carlos Fico (UFRJ) Maria de Lourdes Janotti (USP)
Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN) Pedro Paulo Funari (UNICAMP)
Ernesta Zamboni (UNICAMP) Peter Mainka (Univ. de Wüzburg)
Gisafran Mota Jucá (UECE) Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)
João José Reis (UFBA) Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)
João Paulo Avelãs Nunes (Univ. de Coimbra) Tereza Baumann (MN-UFRJ)
Jorge Ferreira (UFF) Valdemir Zamparoni (UFBA)

MISSÃO DA REVISTA
Sæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e,
a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da
mesma universidade. Sua frequência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e
debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo
espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Sæculum - Revista de História, ano 17, n. 25 (2011).


- João Pessoa: Departamento de História/ Programa
de Pós-Graduação em História/ UFPB, jul./dez. 2011.

ISSN 0104-8929

Semestral

268 p.

BC/UFPB CDU 93 (05)

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ISSN 0104-8929
João Pessoa - PB, n. 25, jul./ dez. 2011

Sumário
Editorial ................................................................................................................ 7

DOSSIÊ: HISTÓRIA E AFRICANIDADES


Organizadores: Elio Chaves Flores e Solange Pereira da Rocha

Um olhar sobre as Irmandades do Rosário dos Homens Pretos


nas terras sergipanas (1750-1835) ............................................................................. 11
Joceneide Cunha dos Santos
“Pela quantia de [...] poderá gozar de sua liberdade”:
as alforrias no município de Sousa/ PB (1792-1860) .................................................. 27
Maria da Vitória Barbosa Lima
A Câmara Municipal do Recife e o controle sobre as práticas
cotidianas das mulheres livres, libertas e escravas na primeira
metade do século XIX (1830-1850).............................................................................. 47
Grasiela Florêncio de Morais
Pampa negro: agitações, insubordinações e conspirações
servis no Rio Grande do Sul, 1863-1868 ...................................................................... 61
Mário Maestri
Africanos e crioulos libertos no Rio de Janeiro: legislação,
percepções políticas e mobilidade social
de ex-escravos (1870-1890) ........................................................................................ 77
Lucimar Felisberto dos Santos
Hierarquias e territórios da cultura material em torno das
senzalas: primeiras notas para uma abordagem antropológica
da Plantation ................................................................................................................ 97
Flávio dos Santos Gomes
Luiz Alberto Couceiro
Escravos e moradores na transição para o trabalho
assalariado em ferrovias em Pernambuco ................................................................ 115
Josemir Camilo de Melo
Reflexões sobre retratos de Manuel Quirino ............................................................. 131
Sabrina Gledhill
Nossas persistências históricas: caminhos das pedagogias
do Movimento Negro no Brasil ................................................................................... 141
Ivan Costa Lima

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A Catedral de São Salvador de Angola:
história e memória de um lugar mítico ....................................................................... 161
Patrício Batsîkama
Álvaro Campelo

ARTIGOS
Reflexões sobre um projeto de pesquisa em História comparada:
hagiografia, sociedade e poder na Península Ibérica medieval ............................... 183
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Leila Rodrigues da Silva
O triunfo da Quaresma: práticas romanizadoras na Freguesia
de Nossa Senhora d’Ajuda ....................................................................................... 195
Magno Francisco de Jesus Santos
Quando o Recife sonhava em ser Paris: a mudança de hábitos
das classes dominantes durante o século XIX .......................................................... 215
Sandro Vasconcelos da Silva

RESENHAS
Navegando com tubarões: a máquina e os homens
que fizeram o tráfico .................................................................................................. 229
João Azevedo Fernandes
A judicialização da História: tempo presente, as
dobraduras de racismo e ações afirmativas ............................................................. 235
Elio Chaves Flores
Eduardo Fernandes

ENTREVISTA
Africanidades, cotas e questões raciais
uma entrevista com José Jorge de Carvalho ............................................................. 245

***

Normas para publicação .................................................................................. 265

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EDITORIAL
A revista Saeculum, com o dossiê “História e Africanidades”, traz à comunidade
acadêmica e, esperamos, a um público não acadêmico, questões sobre a história e
as populações negras, procurando reconhecer, valorizar e (re)significar as práticas
culturais africanas no território brasileiro.
Os autores e as autoras dos estudos presentes nesse dossiê utilizam intensamente
do diálogo da História com outras áreas do conhecimento – Antropologia, Pedagogia,
Direito e Sociologia –, assim temos dez artigos de diferentes regiões do Brasil,
que utilizaram de temas e abordagens diversas para evidenciar as características
da escravidão no Brasil; biografias de intelectuais negros e ações pedagógicas
do Movimento Negro na contemporaneidade. Do exterior temos um artigo sobre
a catedral do Congo, um “lugar mítico” com uma memória, que contribuiu, na
atualidade, para formação de identidades culturais.
São duas as resenhas que compõem o presente dossiê, cujos livros são O Navio
Negreiro, de autoria de Marcus Rediker, e Ações Afirmativas: a questão das cotas,
organizado por Renato Ferreira, ambos foram publicados em 2011 e tratam de
assuntos envolvendo as relações raciais do Brasil. O primeiro aborda o tráfico
transatlântico que possibilitou a formação da sociedade brasileira, forjada com base
na exploração da mão-de-obra de africanos escravizados e de seus descendentes.
Uma história ainda presente na atualidade, uma vez que, o “passado escravista”
não passou e retoma-se a questão da “herança escravista” como um dos elementos
para se compreender as desigualdades raciais no Brasil. Sendo que ativistas da luta
antirracista e seus aliados têm defendido as políticas de ações afirmativas no ensino
superior como um dos caminhos para minimizar as assimetrias raciais. Desde então,
no debate público muitas polêmicas foram evidenciadas e formaram movimentos
favoráveis e contra as Ações Afirmativas, assim, a publicação do livro de Ferreira
contribui ao trazer ao público visões jurídicas sobre o tema aludido, nos mostrando
como o Brasil avançou na formalização de direitos, contudo, precisamos transformar
os discursos legais favoráveis à igualdade social em oportunidades para que as
pessoas negras possam superar as injustiças sociais/ raciais.
Dando continuidade à discussão do tema das relações raciais brasileira, temos
a entrevista com o professor José Jorge de Carvalho, da UnB, que aborda temas
variados, como a religião afro-brasileira, o folclore, a mestiçagem na América
Latina, o “racismo no ensino superior”, a intelectualidade negra e os movimentos
políticos negros, destacando, assim, vários elementos que propiciam reflexões sobre
a identidade brasileira e as injustiças sociais na contemporaneidade.
Finalizando, desejamos a todo(a)s uma boa leitura e reflexões sobre as relações
raciais nesse início do século XXI e, ao contrário de muitos de nossos antepassados,
não vamos ignorar ou negar a ideologia da democracia racial presente em nossa
contemporaneidade. Vamos enfrentar esse debate, tão necessário para a ampliação
da cidadania.
Os Editores

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UM OLHAR SOBRE AS IRMANDADES DO ROSÁRIO
DOS HOMENS PRETOS NAS TERRAS SERGIPANAS
(1750-1835)

Joceneide Cunha dos Santos1

Em 1813, a africana mina Rosa Benedicta, liberta, solteira e sem filhos vivia na
Vila de Santo Amaro, “mais famosa e rica de toda a Capitania”2, na Rua da Santa
Cruz, em casa própria. Ela se auto identificou como proveniente da Guiné. Veio para
o Brasil em tenra idade, possivelmente próximo a década de 50 do século XVIII,
e por isso não se recordava os nomes dos pais. Foi escrava de Ignacia Queiroz e
adquiriu sua alforria através da compra. Após tornar-se forra conseguiu adquirir
alguns bens dentre eles dois tabuleiros, um par de brincos de ouro no formato de
lagartixa, além de botões também de ouro dentre outras posses como uma escrava.
A mesma liberta era senhora da escrava Thereza a quem alforriou após a sua morte.
Rosa Benedicta fazia parte da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, sediada
na Vila citada. Entre as suas últimas vontades estava a de alforriar a sua escrava
e ser enterrada na Capela da sua Irmandade. Desejo esse que foi cumprido pelo
seu testador, o crioulo João Valentino. Rosa Benedicta possivelmente mercadejava,
sobrevivia do trabalho com o seu tabuleiro, com essa renda comprou a sua alforria,
uma escrava, construiu a casa que residia, e estava construindo uma segunda
quando faleceu. Sua escrava deveria ajudá-la nas vendas e por isso ela possuía
dois tabuleiros. Essa atividade foi interrompida quando adoeceu e foi ajudada
financeiramente pelo crioulo baiano João Valentino com quem também estabeleceu
uma relação de solidariedade, afinal eram dois estrangeiros em terras sergipanas.
Rosa Benedicta faleceu em 1816, possuindo dívidas com o crioulo João Valentim e
o instituiu como herdeiro no seu testamento, esse fato evidencia uma gratidão pelo
referido crioulo, quiçá um liberto3.
Através dessa breve narrativa tem se a notícia de uma mulher forra que participou
da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Santo Amaro possivelmente no final
do século XVIII e inicio do XIX, todavia inúmeras foram as mulheres que ingressaram
nessas associações, além delas homens, africanos e crioulos, brancos e pessoas de
cor. Os historiadores têm estudado as irmandades há algum tempo, incluindo as
dos Homens Pretos, e vários são os temas enfocados sobre essas, as construções
das capelas, a composição étnica dentre outros, no entanto, sobre as irmandades
em Sergipe o número de trabalhos é parco. Neste trabalho, pretendo pontuar alguns
aspectos das Irmandades do Rosário dos Homens Pretos de Sergipe, no interstício
de 1750 a 1835, analisando algumas categorias que faziam parte das citadas,
sobretudo as mulheres e os seus papéis nas irmandades, todavia, também apontarei

1
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia, docente da Universidade
Estadual da Bahia - campus XVIII. E-Mails: <jocunha@infonet.com.br> e <jocunha@uneb.br>.
2
Descrição do bispo D. Marcos Souza sobre a vila em 1808. Ver: SOUZA, Marcos Antônio. Memória
sobre a capitania de Sergipe, ano 1808. Aracaju: SEC, 2005.
3
Inventariada: Rosa Benedicta, 20 fev. 1816, Caixa 01/1764 ,Cartório Maruim, Arquivo Geral do
Judiciário de Sergipe.

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alguns elementos sobre os africanos e crioulos, bem como alguns aspectos da sua
organização. Para isso, utilizei os estatutos dessas associações, ofícios, testamentos
e inventários post-mortem. As fontes foram fichadas e as informações cruzadas. As
irmandades que tratarei são as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
de São Cristóvão, Santo Amaro, Lagarto, Estância e Vila Nova.
No final do século XVIII, houve um crescimento no número de engenhos nas
terras sergipanas. Em 1756, existiam 46 engenhos, no ano de 1798, 140 unidades
e em 1852, 680. E por conta desse crescimento ocorreu uma maior importação
de escravizados africanos, a lavoura precisava de braços. O Final dos Setecentos
também é o período em que a vida urbana em Sergipe se intensifica, o que contribuiu
para o surgimento de irmandades, capelas, ordens terceiras dentre outros. Com a
economia em efervescência, as famílias abastadas construíram casas nas vilas, assim
podiam fazer melhores negócios, participar das festas religiosas e da esfera política
da Capitania4.
Um indício do aumento no número de escravizados e dentre esses os africanos, é
o surgimento de irmandades de Homens Pretos nos Setecentos. No século XVIII há
notícias da existência das irmandades dos Homens Pretos em São Cristóvão, Estância,
Lagarto, Santo Amaro, Vila Nova e Rosário do Saco. A de São Cristóvão teve seu
compromisso aprovado em 1769, a de Lagarto em 1771, Estância em 1772, a de
Santo Amaro teve seu compromisso enviado para a Mesa de Consciência e Ordens
em 1783 e recebeu a provisão do Arcebispado da Bahia em 1786, a de Vila Nova
teve seu estatuto aprovado em 1800, por fim a de Rosário do Catete prestava contas
desde 1779. No entanto, até o momento só foram encontrados o compromisso de
três irmandades, a de São Cristóvão, Lagarto e Vila Nova5.
As irmandades eram associações de leigos que possuíam uma devoção
comum e cuja finalidade era a ajuda mútua, socialização e diversão. Para
João José Reis, as irmandades funcionaram com um espaço de construção de
identidade e de alteridade. Para Mintz e Price, as instituições criadas por africanos
no Novo Mundo ou que eles participavam com interação com os senhores
foram criadas nos primeiros anos após a chegada dos mesmos na América. As
irmandades são exemplos das instituições criadas pelos africanos dentro das
possibilidades do Novo Mundo e que permitiu os africanos se relacionarem com
pessoas livres, pobres ou não, em uma esfera que não era o da intimidade nem
o do trabalho. Utilizo aqui a ideia de instituição de Mintz e Price “(...) qualquer
interação social regular ou ordeira que adquira um caráter normativo e, por

4
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986, p.145-
146; NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
5
Estatutos das irmandades de Lagarto, São Cristóvão e Vila Nova. Compromisso da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila Nova Real do Rio São Francisco – Sergipe Del Rei.
AHU. Códice 1958; Compromisso da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos da Freguesia da
Vitória da Capitania de Sergipe Del Rei, IAN/TT, Chancelarias Antigas/Ordem de Cristo, Livro 292,
fls. 343v-347v; Compromisso da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos da Freguesia de N.S.
da Piedade da Vila do Lagarto, IAN/TT, Chancelarias Antigas/Ordem de Cristo, Livro 280, fls. 324-
327. Torre do Tombo.

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conseguinte possa ser empregada para atender a necessidades reiteradas”6.
As Irmandades Setecentistas

As irmandades religiosas incluindo as dos Homens Pretos de Sergipe constituem


um tema já visitado por alguns pesquisadores. Embora existam irmandades que não
foram estudadas como as de Brejo Grande e Santo Amaro. Thétis Nunes, uma das
estudiosas dessa matéria, afirma que muitos negros fizeram parte das irmandades
do Rosário em Sergipe, seguidas pelas de São Benedito7. Vanessa Oliveira também
concorda com a assertiva da autora citada, a primeira devoção dos negros em Sergipe
seria Nossa Senhora do Rosário e a segunda devoção mais popular São Benedito.
Oliveira conseguiu mapear quatro irmandades com devoção ao Santo Preto nas
terras sergipanas. As mesmas ficavam localizadas em Estância, São Cristóvão, Santa
Luzia e Laranjeiras e se fundiram com as do Rosário. E também havia irmandades
do Rosário que festejavam o citado santo, como a de Lagarto8.
Ressalto que essas irmandades possivelmente foram criadas algum tempo antes
da aprovação dos seus estatutos. Os Irmãos da Associação de São Cristóvão, por
exemplo, informa que não sabia da necessidade de se fazer o estatuto devido ao fato
de serem ignorantes, assim justificaram o fato de não terem feito o citado documento
anteriormente. Outro aspecto importante é que após 1765, os compromissos
das irmandades deveriam ser aprovados pela Coroa Portuguesa. Desse modo,
a Coroa exerceria um maior controle sobre as irmandades. Assim os citados
compromissos deveriam ser enviados para a Mesa de Consciência e Ordens em
Lisboa, anteriormente as autoridades aprovavam ou não utilizando as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia9.
No alvorecer do século XIX, as irmandades dos homens pretos proliferaram
nas terras sergipanas, possivelmente devido ao aumento na população escrava e
forra, africana e crioula, como também pelo acréscimo no número de vilas. Além
das já citadas, foram criadas as irmandades dos Homens Pretos nas vilas de Frei
Paulo, Itabaiana, São José, Propriá, Brejo Grande, Nossa Senhora do Socorro,
Itabaianinha, Divina Pastora e Laranjeiras10. Boa parte das vilas que elas estavam
localizadas eram pouco urbanas, o que conferia uma característica de rural às
associações.
Retornando aos estatutos, neles ficava explícito quem poderia participar da
confraria, se homens e/ ou mulheres, brasileiros e/ ou africanos e quais nações dos
últimos. Enfim esse documento apontaria a nacionalidade, a condição jurídica,

6
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991; MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da
cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Pallas; Universidade Candido Mendes, 2003.
7
NUNES, Sergipe Colonial II.
8
OLIVEIRA, Vanessa. A Irmandade dos Homens Pretos do Rosário: etnicidade, devoção e caridade
em São Cristóvão – SE (século XIX). Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal
da Sergipe. São Cristóvão, 2008; SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e
famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004.
9
BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986.
10
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos...

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estado civil, a cor e o sexo das pessoas que podiam ingressar na irmandade. Como
também, as finalidades da associação, os cargos existentes, bem como quem podia
ocupá-los também ficava explicitado nos estatutos. Dentre as finalidades era comum
constar à ajuda mútua. A confraria ajudava um irmão e/ ou a sua família, caso o
irmão adoecesse, ficasse em miséria, ou morresse. Outro escopo delas era o de
cuidar dos ritos ligados a morte, como missas, velórios e sepultamentos dos irmãos.
No século XIX, algumas delas tinham cemitério, e a maioria tinha um jazigo em
algum cemitério. Outro objetivo era organizar a festa da padroeira da irmandade
e as festas eram um momento importante das confrarias11. E por fim, em algumas
irmandades de homens pretos constava comprar a alforria dos irmãos12.
Ainda nos estatutos, constavam os cargos das associações religiosas e quem
podia ocupá-los, um olhar sobre as categorias que ocupavam os cargos percebe-se
quais grupos tinham o “domínio” da irmandade. Havia algumas semelhanças na
administração das irmandades, dentre elas nos cargos de tesoureiro, escrivão, juízes
e juízas, mordomos e mordomas eram comuns. Na de Vila Nova, havia ainda os
juízes de mesa e de coroa que a distinguia das demais.
Os mordomos e mordomas cuidavam de arrumar os altares, avisar aos confrades
o falecimento de algum irmão e participar dos enterros, ir às missas e iluminá-las.
Possivelmente havia separações dessas atividades entre os homens e as mulheres.
E, na de Vila Nova deveriam ainda esmolar para a festa da Nossa Senhora.
Outro cargo ocupado por homens e mulheres era o de juiz. Cabia aos juízes cuidar
das questões políticas e administrativas da irmandade, mas não eram responsáveis
por seus documentos. Como citado anteriormente, na irmandade de Vila Nova
havia a figura do juiz e juíza de coroa. Para Reginaldo e Almeida que estudaram a
irmandade de Vila Nova, a nomenclatura juiz de coroa seria um termo usado pelos
irmãos do Rosário de Vila Nova para disfarçar os reis negros.
As coroações dos reis negros em alguns momentos foram toleradas e em outras
ocasiões foram reprimidas. Elas eram aceitas quando ocorriam em ocasiões oficiais
do Estado Português, como casamento de reis dentre outros. Todavia, as citadas
coroações não eram bem vistas quando ocorriam nos momentos de folga dos
escravizados e organizada por eles, pois havia excessos com bebidas dentre outros
e por isso, foram proibidas essas coroações. Para Silvia Lara, entender quem estava
organizando a coroação dos negros é de suma importância para compreender os
sentidos da coroação e o tratamento que a mesma recebia das autoridades13.
No século XVIII, as coroações de reis negros encontraram nas irmandades um
lócus privilegiado, e no final dessa centúria foram reprimidas. No entanto, segundo
Reginaldo, as mesmas continuaram ocorrendo na Bahia Setecentista. Esses reis
11
REIS, A morte é uma festa...
12
QUINTÃO, Antônia. Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro
e em Pernambuco no século XVIII. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2002.
13
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravizadas e
identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas: s.r., 2005; ALMEIDA, Ivânia Maria. “Irmãos
de Cor e Crença...”: análise do compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Vila
Nova Real de El Rei do Rio São Francisco. Monografia (Graduação em História). Universidade
Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2005; LARA, Silvia. “Significados cruzados: as embaixadas de
Congos na Bahia Setecentista”. In: CUNHA, Maria Clementina (org.). Carnavais e outras F(r)estas.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.

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fariam doações nos momentos das festas e caso eles fossem escravizados, seus
senhores poderiam ceder dinheiro com o intuito que os reis cumprissem o seu papel
de provedores da festa. Pois, para um senhor ter um escravo ocupando o posto de
rei poderia lhe conferir status e prestígio14. Antonil recomendava, já no inicio do
século XVIII, que os senhores deixassem seus escravizados louvarem seus santos,
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e criassem seus reis, mas que evitasse o
consumo de aguardente. E que os gastos das festas não ocorressem por conta dos
juízes, mas sim do senhor de engenho15.
Os cargos de escrivão e tesoureiro eram ocupados por homens livres e/ ou libertos.
Na irmandade de São Cristóvão e em Lagarto além de homens e livres tinham
que ser brancos. O recorte racial é justificado devido à necessidade de que fossem
pessoas alfabetizadas e familiarizadas com os números, pois os mesmos se ocupariam
dos documentos da irmandade, como o livro de assento dos irmãos e das finanças
da instituição. Desse modo, acredita-se que possivelmente não haveria homens
negros no século XVIII que atendessem a esses critérios. Assim, as mulheres, bem
como os homens negros, africanos ou não, eram excluídas desses cargos. Segundo
Silva, nas irmandades de Cuiabá, com o decorrer do tempo, esses cargos também
foram ocupados por negros. A autora encontrou 10 negros que sabiam ler, de um
universo de 89 pessoas que detinham esses conhecimentos e que faziam parte da
irmandade dos homens pretos. Dentre os negros tinha um pardo, três crioulo, um
índio e cinco pretos16.
Os estatutos das três confrarias – de São Cristóvão, Lagarto e Vila Nova –
encontrados até o momento, mostram que os meios de arrecadação das confrarias
não diferem de outras estudadas por intelectuais sergipanos e nacionais. A
arrecadação se dava através das taxas de entrada e as do dia da festa da Nossa
Senhora, as anuidades, as esmolas e os valores pagos pelos não irmãos para serem
enterrados. E o pároco de Santo Amaro elencou as citadas formas de arrecadação
para a Irmandade do Rosário da sua Vila e acrescentou as ofertas dadas pelos fiéis
não irmãos. E através de dados retirados dos inventários de São Cristóvão, acrescento
os valores que os familiares pagavam para que as irmandades acompanhassem o
corpo do seu ente querido, bem como as taxas para que os sinos fossem tocados
no cortejo fúnebre.
A confraria de São Cristóvão e a de Lagarto tinham valores semelhantes para
o pagamento de entrada e no momento das festas, os valores eram dois tostões
para o homem solteiro e um cruzado caso fosse casado, esse valor seria pelos dois.
E para a festa, quatro vinténs se solteiro e meia pataca se casado, esse pagamento
correspondia ao valor também dos dois. Em Vila Nova, cada novo irmão ou irmã
pagaria duas patacas pela entrada. E em caso de estar velho ou moribundo, deveria
dar esmolas de 10 a 16 mil réis, ou seja, entrar na irmandade em um momento
próximo do falecimento custaria mais caro.

14
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas...
15
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas...; ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil.
3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982.
16
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, Irmãos no poder: a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). Dissertação
(Mestrado em História). universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2001.

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É difícil mensurar o que corresponderia alguns desses valores em Sergipe. Mas,
em Minas Gerais, no século XVIII, um comissário do Santo Ofício reclamando do
seu salário menciona que seis vinténs comprava um alqueire de milho em Portugal17.
E segundo Reginaldo, as pretas pobres pagavam ao senado em Portugal a taxa de
um cruzado para mercadejarem no mesmo período18. O cruzado equivaleria a 400
réis, o dízimo que a colônia pagava sobre a produção era calculado em cruzados19.
Assim, concluo que esses valores não eram tão pequenos, e requeria um acúmulo
por parte dos escravizados, fossem mulheres ou homens, africanos ou brasileiros
para ingressarem nas irmandades.
Um debate feito entre os estudiosos das irmandades é de quem seria responsável
pelo pagamento de taxas dos homens e mulheres escravizados nas irmandades, uma
vez que possivelmente alguns dos africanos e crioulos no interior das irmandades
estavam nessa condição. Possivelmente os senhores poderiam arcar com os custos
de alguns dos escravizados em uma atitude paternalista, no entanto, alguns homens
e mulheres podiam vender produtos da sua roça, prestar serviços para outros nos
seus momentos de folga. Em suma, alguns escravizados também custearam seus
custos na Irmandade e por fim tinha inadimplência nessas associações já que no
Estatuto consta um dispositivo que será cobrado dívidas dos irmãos falecidos, caso
esses tivessem como arcar com os seus débitos. Os irmãos e irmãs que ocupavam
cargos pagavam taxas maiores: Eufemia Rodrigues, uma liberta, devia à irmandade
mais de dez mil réis o que pode indiciar que a mesma podia ocupar um cargo na
irmandade, ou já ter ocupado ou ainda ter adquirido um empréstimo na sua confraria.
E no seu testamento, ela mencionou a citada dívida, possivelmente por saber que
seria cobrada ao seu herdeiro.
Havia ainda pessoas livres e ou libertas que deixavam esmolas para as irmandades,
como o caso de Domingos Gonçalves e Anna Porfíria que eram irmãos da Ordem
Terceira do Carmo, ou ainda de José Alexandre do Rosário que era irmão do Rosário
de São Cristóvão, todos doaram dinheiro ou bens nos anos 30 do século XIX20.
Todas essas formas de arrecadações permitiram a irmandade possuir algum capital
e com isso chegavam a emprestar dinheiro aos irmãos. Esse foi o caso da Confraria
do Rosário dos Homens Pretos de São Cristóvão que emprestou dinheiro ao irmão
José Pedro Ratty. Saliento que ainda desconheço sua origem, no entanto, era irmão
do Rosário e fez um empréstimo no valor de 100 mil réis a irmandade, para cuidar
de problemas particulares e se comprometendo a pagar o referido valor. Ele faleceu
em 1814 sem pagar a dívida, por isso, a irmandade cobrou-a da viúva e do irmão
do mesmo. No entanto, José Pedro Ratty era um pobre homem, e a irmandade
teve que se contentar com alguns objetos como fivela de ouro, mesa com gavetas
e um relógio21. Seria José Pedro um escravo que comprou sua alforria com valores
emprestados pela irmandade? Ou um liberto em dificuldades financeiras?
17
RODRIGUES, Aldair. C. “Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas
colonial”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, n. 57, 2009, p. 159.
18
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas..., p. 46.
19
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
20
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos..., p. 93.
21
Justificação Cível dos Irmãos da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, 21
jun. 1814, cx. 35. Cartório São Cristóvão, Arquivo Geral do Judiciário de Sergipe.

16 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


Além dos empréstimos, o dinheiro arrecadado pela irmandade era gasto com
ornamentação de altares, acompanhamentos de enterros e com a realização deles,
construção de esfinges, pagamentos de missas, festas dos santos, além da construção
e reformas das capelas.
As Capelas

As cinco irmandades em estudo construíram suas capelas até 1841, o que também
evidencia uma organização das confrarias. A de São Cristóvão começou a sua
construção no inicio dos Setecentos, Rocha Pitta, a cita em 1724, já Thétis Nunes
afirma que sua construção foi iniciada em 1746 e concluída na segunda metade do
XVIII. Acredito que no momento de elaboração e aprovação do estatuto a capela não
estava concluída, pois não há menção a mesma no referido documento. Através de
Marcos Souza, sabe-se que a citada igreja em 1808 estava possivelmente concluída22.
Em Vila Nova, segundo o vigário Joaquim de Oliveira, em 1757 já existia a Capela
do Rosário23. No mesmo ano a capela da irmandade de Santo Amaro estava em
fase de conclusão, também não se sabe a data de término das obras da capela,
mas posso afirmar que na capela, em 1816, eram realizados inúmeros batizados de
crioulos e africanos24.
No início dos Oitocentos, 1818, a capela dos irmãos do Rosário da povoação
de Rosário do Catete já era construída, e era de pedra e cal, possuía dois altares
laterais, um com a imagem de São Benedito e outro com a imagem de Santa Ana,
além disso, tinha também dois confessionários, além de altares e púlpitos de madeira
e pintados25. Ou seja, era uma capela estruturada e com requintes arquitetônicos, o
que evidencia a circulação de dinheiro e/ ou bens na irmandade. A irmandade em
questão acertou com o mestre José Simão do Rosário o valor de 160 mil réis para
que ele fizesse o retábulo novo da igreja, esse valor seria pago em duas prestações
anuais. Os altares laterais podem indicar outras confrarias ou ainda devoções
familiares. A de Estância iniciou suas obras no final do XVIII e encerrou a construção
da sua capela em 1841. Algumas das pessoas que residiam na povoação no século
XVIII deixaram esmolas para a construção da citada Capela. Referente a capela
do Rosário de Lagarto sabe-se poucas informações de quando foram iniciadas
suas obras, apenas que ficou pronta em meados do XIX e que na segunda metade
do mesmo século passou por inúmeras reformas26. Em suma, logo após a criação
das irmandades elas se organizavam em torno da construção de suas capelas, em
seguida, faziam seus ornamentos.
Pinheiro mostra que os irmãos do Rosário de Mariana, Minas Gerais, no século
XVIII, esmolaram, cobraram as taxas, enfim utilizaram de vários recursos para

22
SOUZA, Memória sobre...
23
NUNES, Sergipe Colonial II, p.193
24
Conforme Relação dos lugares, povoações, distância da Freguesia à Vila Nova Real do São
Francisco, pelo Vigário Joaquim Marques de Oliveira. AHU – Bahia, doc. 2.708, anexo ao doc.
2.666, apud NUNES, Sergipe Colonial II, p.199; e Livros de Batismo, número 1. Arquivo Paroquial
da Paróquia Nossa Senhora da Piedade.
25
Relatório da Vistoria realizado pelo provedor, 9 dez. 1818, cx. 291, pacote 5, Mesa de consciência
e Ordens, Arquivo Nacional.
26
SANTOS, Entre farinhadas..., p. 73.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 17


acumularem dinheiro para construírem suas igrejas27. No caso de Sergipe, pouco se
sabe quais foram as estratégias utilizadas, no entanto, as igrejas foram construções
que ocorreram paulatinamente, e por isso os irmãos também podem ter utilizado de
vários expedientes para a construção de suas capelas. Segundo Vanessa Oliveira,
os irmãos do Rosário contavam com grandes doações para as construções das suas
capelas, como foi o caso da irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Divina
Pastora que Antônio Leonardo da Silveira e sua mulher Dona Anna Maria de São
Joaquim, doaram um terreno no valor de 120 mil reis para construir a capela28.
Todavia, acredito também que as contribuições dos irmãos não deveriam ser parcas,
pois os irmãos e o pároco de Santo Amaro se envolveram em um conflito em
1817 com os irmãos do Rosário da Povoação de Rosário do Catete. Os primeiros
reivindicavam o fechamento da confraria da povoação, já que não havia motivos
para existir duas irmandades com a mesma invocação e com igual público na referida
freguesia. Eles alegavam ainda que a irmandade da sede da vila de Santo Amaro
não possuía um sólido patrimônio e que a outra irmandade, a da povoação, era
posterior, e retirava valores da primeira, além de enganar e explorar os irmãos. Ou
seja, era uma disputa pelos irmãos e irmãs e pelas suas taxas.
Os africanos e africanas do Rosário

Os indícios mostram que nas cinco irmandades do Rosário dos Homens Pretos,
homens e mulheres, africanos, brasileiros e portugueses, escravizados, libertos ou
livres, brancos, pardos e pretos podiam torna-se irmãos.
Retornando a história de Rosa Benedicta percebe-se a participação de uma
africana na irmandade de Santo Amaro, além delas possivelmente inúmeros africanos
e africanas participaram dessas associações religiosas. E os estatutos indiciam
isso, dos três estatutos encontrados, dois fazem referência a nações africanas, o
de São Cristóvão e o de Vila Nova. E os dois colocam os africanos, angolas para
São Cristóvão e Ethiopinos para Vila Nova, em posição de destaque, pois os dois
grupos podiam ocupar cargos na irmandade. A minha hipótese para a não citação
aos africanos no estatuto da irmandade de Lagarto é devido ao pequeno número
de africanos na vila e por isso possivelmente não eram numerosos na irmandade
e, assim, pouco disputariam cargos na confraria.
Na irmandade de São Cristóvão, angolas e crioulos dividiam a mesa
administrativa, somando um total de quatro juízes, dois homens e duas mulheres e
quatro procuradores. Essa configuração evidencia como os angolas eram numerosos
na irmandade e possuíam uma relação amistosa e com alguns interesses comuns
aos crioulos, já que ambos dividiam a citada mesa administrativa. No entanto, esses
grupos além de possuírem interesses comuns também tinham os distintos e por isso
precisavam ser representados de forma distinta. Outro aspecto evidenciado através
da composição da mesa é que entre os africanos, os angolas possivelmente eram
hegemônicos nessa irmandade. No tópico seguinte mencionarei quem eram os
angolas.
27
PINHEIRO, Fernanda Aparecida. Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em
Mariana – Minas Gerais, 1745-1820. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2006.
28
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos..., p. 92.

18 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


Na segunda irmandade, a leitura do estatuto, indicia que a relação era conflituosa
entre ethiopinos e crioulos, pois os mesmos se revezavam no cargo de no cargo de
Juiz-Presidente, possivelmente o principal cargo da irmandade. Todavia, pode-se
nos questionar quem eram os ethiopinos?
As nações africanas: Angolas e Ethiopinos

Vários autores abordam a temática das nações africanas, dentre eles temos
Maria Inês Oliveira e Marisa Soares. Segundo a primeira, as nações africanas não
conservavam as culturas africanas. E, as nomenclaturas dadas aos africanos no tráfico
foram assumidas pelos próprios africanos. A identidade desses africanos sempre era
modificada, isso mostra a historicidade dos mesmos. Os etnônimos africanos eram
a base da identidade, no entanto foram realizadas outras alianças grupais entre
nações29. Ocorrendo assim uma reorganização da comunidade africana em torno
dos laços de nação, para isso, os africanos escolhiam entre seus pares, ou seja, os
da mesma nação, para serem os seus cônjuges, vizinhos, irmãos de confraria e
até mesmo para serem seus escravizados. Soares distingue dois termos, grupos de
procedência e étnicos. O primeiro corresponde a regiões amplas do comércio, e era
denominado por instâncias coloniais, ou seja, padres, traficantes dentre outros; mas
essas nomenclaturas eram incorporadas pelos africanos, pois esses termos marcariam
as fronteiras espaciais. Já o segundo termo, grupos étnicos marcava o local exato
que os africanos nasceram, seria a terra pátria.
Os africanos chamados de angolas por portugueses e brasileiros variou no decorrer
dos séculos e foram traficados da África Central. Essa região conheceu o tráfico no
inicio do século XVI e por volta de 1580, já eram traficados africanos da região do
Rio Cuanza para as Américas. Os guerreiros ngolas vendiam seus escravizados e
por isso atraíram a atenção dos portugueses para a região de Luanda e o reino do
Ngola ficou sendo conhecido como “angola” para portugueses e brasileiros. Aos
poucos além da região do Cuanza, também passaram a ser traficados africanos da
região do baixo rio Zaire, e os que viviam entre os rios Cuanza e Cumina, além do
interior de Luanda. Com a reconquista de Luanda pelos brasileiros, eles passaram
a conquistar Benguela. Angola no século XVII para os portugueses e brasileiros era
a região conquistada por Angola, e correspondia aos africanos traficados pelo porto
de Luanda. Dessa maneira, os africanos designados como angolas, correspondiam
a pessoas que viviam de diversas regiões da África Central, dentre elas as próximas
do Rio Cuanza, e que foram traficadas através do porto de Luanda30.
Esses angolas foram presentes no Brasil colonial e imperial, e Sergipe não foi
exceção e se fizeram presentes também na Confraria em São Cristóvão. A irmandade
dessa cidade é chamada no libelo cível como irmandade dos “A”. Acredito que o
“A” seria uma abreviação do termo angolas; pois na irmandade havia um casal de
juízes angolas e dois procuradores da mesma nação, saliento também que alguns
dos crioulos que faziam parte da irmandade podiam ser parentes, filhos e netos dos
angolas, assim não estariam distantes dessa nação.
29
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Viver e morrer no meio dos seus”: nações e comunidades africanas
na Bahia do século XIX. Revista USP, n. 28, 1995/1996, p. 175-193.
30
MILLER, Joseph C. “África Central durante a era do comércio dos escravizados, de 1490 a 1850”.
In: HEYWOOD, Linda (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 29-80.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 19


Para responder a segunda questão, que eram os ethiopinos, se faz necessário
algumas digressões. Segundo Anderson Oliveira, o século XVIII, foi um período que
alguns santos pretos chegaram ao altar dentre eles o já citado São Benedito, Santo
Elesbão, Santa Efigênia e Santo Antônio do Categeró. O autor cita Mott ao mencionar
que franciscanos e carmelitas divulgaram esses cultos no Brasil Setecentista, o que
mostra uma preocupação da Igreja com a chamada população de cor. Outro aspecto
é que o Clero utilizou a vida dos santos através das hagiografias como modelos
de virtude e de obediência para os homens brancos e da população mencionada.
Essas hagiografias podiam ser transmitidas através de músicas, tradições orais,
gestos e iconografia. No mesmo período, são escritas e publicadas em Portugal as
hagiografias de Santo Elesbão, Santa Efigênia e São Benedito. Frei José Pereira de
Santana, carmelita brasileiro, escreveu as hagiografias dos dois carmelitas pretos,
Santo Elesbão e Efigênia, entre 1735 e 1738, intitulada Os dois Atlantes de Etiópia.
Santo Elesbão, imperador XLVII da Abissinia, advogado dos perigos do mar & Santa
Efigênia, Princesa da Núbia, Advogada dos edifícios. Saliento que os carmelitas
também se fizeram presentes nas vilas de São Cristóvão, Santo Amaro, Vila Nova e
Lagarto, ou seja, em grande parte das vilas que estavam localizadas as irmandades
que estão sendo tratadas31.
Segundo o Frei José Pereira de Santana, Santo Elesbão era etiopino, o 46º neto
do rei de Salomão e da rainha de Sabá e imperador da Etiópia no século VI. Elesbão
foi o responsável pela expansão da Cristandade até o Mar Vermelho, vencendo os
árabes e judeus. Santa Efigênia também seria da nobreza, mas da Núbia, filha do
rei Egipó. Ela foi convertida, e em seguida batizada por Mateus. Segundo Oliveira, o
frei faz um discurso de predestinação a santidades dos dois santos. E nesse discurso
o local do nascimento e a família ocupavam lugares centrais32.
Para Oliveira, rememorar esses reinos, Núbia e Etiopia, através das vidas dos
santos possuía o intuito de afastar os africanos das lembranças referentes ao tráfico,
pois esses reinos estavam distantes do tráfico atlântico33. Ou seja, uma África que
deveria ser esquecida no processo de evangelização, importante seria rememorar
um continente já cristianizado, muitas vezes criando uma tradição cristianizada,
pois o cristianismo que lá existia era distinto do ocidental. Assim, a nomenclatura
de ethiopinos, no século XVIII, se refere aos africanos, possivelmente de localidades
distintas já que todos aos sul do Saara eram Etíopes, mas principalmente a africanos
cristãos. Lembro que a irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Vila Nova
surgiu no momento de difusão da hagiografia de Santo Elesbão, e possivelmente da
ideia que o Reino Etíope enquanto um reino cristão. Tânia Pinto cita um discurso de
Antônio Vieira no século XVII em Salvador se referindo aos negros como provenientes
da Etiópia. Ou seja, era comum entre os religiosos católicos fazerem essa associação,
entre negro cristão com os etíopes, ou de Etiópia com África. Por esses indícios,
acredito que os religiosos, principalmente carmelitas e franciscanos, fizeram essas
associações com os africanos que residiam em Vila Nova, e os que faziam parte da

31
OLIVEIRA, Anderson José M. Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008; NUNES, Sergipe Colonial II...
32
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos...
33
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos...

20 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


irmandade assumiram essa identidade de ethiopinos34.
Retornando ao estatuto da irmandade de Vila Nova, ele indicia a existência
de africanos de diversas nações. Pois no momento de entrada de novos irmãos
buscavam-se referências desses africanos com os do mesmo país, ou seja,
possivelmente com um irmão da mesma nação. Assim ethiopinos, eram africanos
de diversas localidades.
Na irmandade de São Cristóvão os angolas eram hegemônicos, e na de Vila
Nova, conforme mencionado anteriormente, africanos de diversas localidades que
se identificavam como cristãos dividiam o poder com os crioulos.
Relação de africanos e crioulos

Através dos estatutos é possível afirmar que a relação entre africanos e crioulos,
oscilou de região para a região na capitania e posterior província. Em São Cristóvão
e Lagarto, ela era possivelmente pacífica, já que na primeira ambos faziam parte
da mesa administrativa, e na segunda não faz menção nem a participação nem a
exclusão de nenhum grupo. Na confraria de Vila Nova provavelmente havia conflitos,
pelo cargo de juiz presidente, pois havia o revezamento entre ethiopinos e crioulos,
no entanto, havia crioulos e ethiopinos entre os juízes de mesa, evidenciando a
convivência dos dois grupos.
Na Vila de Santo Amaro, a história da já citada Rosa Benedicta também nos
indicia essa relação, de africanos e crioulos. Entre a africana Rosa e o crioulo João
Valentim foi estabelecida uma rede de alianças e de solidariedade. Através da história
de Rosa, vislumbra-se outra nação africana presente nas irmandades sergipanas, a
da Guiné que incluía os africanos nascidos na Costa da Mina.
Marisa Soares também encontrou escravizados da Guiné no Rio de Janeiro, e
com um olhar mais apurado, descobriu que esses eram os minas. Para essa autora,
o termo Guiné variou a significação no tempo. Inicialmente, em meados do século
XV, significava as primeiras terras que os portugueses alcançaram correspondendo a
costa ocidental do Senegal contemporâneo, no final do mesmo século correspondia
a região que ia do sul do Saara as terras de Angola. E, até o século XVIII o termo
continuou significando essa região, ou as terras citadas por Zurara, atuais Gâmbia,
Senegal, Guiné Bissau e Guiné35.
As mulheres nas irmandades do Rosário
Nos Setecentos, nasceu na vila sertaneja do Lagarto, em tão “remotas
distâncias”36, a escrava Eufemia Rodrigues, filha de uma escrava que pertencia
a uma senhora da família Dias. No entanto, no decorrer da sua vida foi vendida
juntamente com a sua mãe para o Reverendo Antonio Rodrigues Teixeira, de quem
34
PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia Colonial.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2000, p.135-
142.
35
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no
Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
36
Expressão utilizada pelo vigário Marcos Souza, que viveu em Sergipe no início do século XIX, ao
se referir à dificuldade que os filhos dos moradores de Lagarto tinham para ir estudar na capital de
Sergipe e na Vila de Santa Luzia.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 21


foi escrava alguns anos. Com o falecimento desse, Eufêmia conseguiu sua alforria
gratuitamente, possivelmente pelos bons serviços que prestou ao seu Senhor. Com
o passamento do Reverendo, ela também herdou algumas propriedades, como
uma casa com telhas, na mesma Vila que nasceu. Além desse bem, a escrava
tinha outros como uma escrava de nação Angola, a Gracia; outra casa, cujo
material utilizado na construção foi a taipa. Essa casa ficava em uma localidade
denominada Angola Caxorro, onde ela residia. Possuía também alguns móveis;
alguns deles foram herdados dos seus irmãos de quem já não tinha mais notícias.
Entre os móveis que possuía estavam uma mesa e um oratório com imagens. O
que evidenciava a sua religiosidade, possivelmente aprendida ou acrescida com o
convívio com o Reverendo.
Eufemia circulava em Lagarto e em outras Vilas como a de Itabaianinha, nesta
Vila também estabelecia relações comerciais, pois Antonio Martins, morador da
Vila de Itabaianinha, lhe devia dinheiro. Em 1772, ela ficou convalescente e por
isso resolveu expor suas últimas vontades em forma de testamento: alforriar uma
parte da sua escrava Gracia, deixando a possibilidade de ela poder trabalhar para
comprar a sua alforria. Outro desejo era o de pagar suas dívidas, dentre elas, uma
que possuía com a irmandade no valor de dez mil e quarenta réis, acrescidos de
oito mil réis de juros. Possivelmente, Eufemia fazia parte da Irmandade do Rosário
dos Homens Pretos de Lagarto e as taxas que deveria pagar para a irmandade,
estavam atrasadas. Outro débito era o que possuía com a sua já citada escrava
Gracia. No campo religioso, quis ser enterrada na Igreja Matriz de Nossa Senhora
da Piedade do Lagarto e mandou rezar missas para a sua mãe e seu irmão Luiz.
Eufemia Rodrigues, não casou, durante a sua vida, nem teve filhos, apenas criou
com amor um mestiço Antônio que se tornou seu herdeiro37.
Na última narrativa, vimos uma mulher, a Eufêmia, uma forra, que provavelmente
era irmã da Irmandade do Rosário de Lagarto. No entanto, além delas encontrei
outras mulheres brancas e de cor incluindo africanas que ingressaram nesses grêmios
religiosos.
No Brasil, em muitas irmandades negras as mulheres, além de serem aceitas,
tinham uma participação efetiva diferentemente de algumas irmandades dos
homens brancos; espaço que as mulheres brancas não eram aceitas ou tinham
uma participação limitada. Essa participação ativa das mulheres nas irmandades
negras tinha várias razões. Uma delas, devido ao mercado matrimonial no Brasil,
pois como os homens africanos eram maioria em relação às mulheres africanas,
eles precisavam criar estratégias para adquirir as núpcias e uma delas foi o de não
impedir a entrada das mulheres nas irmandades e em algumas irmandades o ingresso
delas foi estimulado. Outro motivo, possivelmente seja em virtude do papel que as
africanas tinham em algumas sociedades africanas.
Na irmandade do Rosário dos Homens Pretos da Baixa dos Sapateiros ou das
Portas do Carmo, as mulheres foram maioria, no decorrer dos Setecentos e muitas
delas ocupavam cargos de juízas ou mordomas, sendo escravizadas, libertas ou
livres. Para Reginaldo, as mulheres irmãs cuidavam dos irmãos enfermos, das

37
Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 02,Cartório São Cristóvão, Arquivo Geral do Judiciario de
Sergipe.

22 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


procissões, missas dentre outras atividades38. Ou seja, elas possuíam um leque
diverso de atividades. No entanto, Reis também aponta que houve irmandades
negras que tinham elementos do patriarcalismo, como na associação que existia
em Camamu. Nesta irmandade as mulheres deveriam cuidar das atividades que
eram femininas como, por exemplo, lavar as roupas brancas, costurar e consertar
as roupas necessárias para a missa39.
Em Sergipe, as mulheres podiam ingressar em todas as irmandades que os
estatutos foram encontrados. No entanto, os estatutos da irmandade de São
Cristóvão e Lagarto não mencionam a possibilidade da mulher entrar na irmandade
na condição de solteira ou casada sem o marido. No entanto na confraria da última
Vila sabe-se que era possível o ingresso de mulheres solteiras através da história de
Eufemia. Na de Vila Nova, de acordo com o seu compromisso, a mulher casada
podia ingressar no grêmio católico sem a presença do marido. E através da primeira
narrativa deste texto, a história de Rosa Benedita, posso afirmar que na confraria de
Santo Amaro também era possível a entrada de irmãs solteiras. Assim, acredito que
em todas as Irmandades dos Homens Pretos que existiam nas terras sergipanas as
mulheres podiam ingressar solteiras com ou sem filhos, casadas com ou sem seus
maridos ou ainda viúvas.
Na irmandade da mesma santa em Mariana, as mulheres ingressavam na confraria
com ou sem os seus consortes ou ainda na condição de solteiras ou viúvas40. E na
Irmandade do Rosário dos Homens Pretos da Baixa dos Sapateiros ou das Portas
do Carmo não se sabe se elas ingressavam na irmandade na companhia ou não
dos seus maridos, sabe-se que algumas delas eram casadas41.
As mulheres se fizeram presentes nas irmandades estudadas desde a sua criação,
ou seja, desde os Setecentos. Uma mostra disso é que Eufêmia, em 1772, já era
uma irmã com dívidas com a sua confraria. Consegui rastrear alguns vestígios de
mulheres que participaram das irmandades dos homens pretos. Além de Eufêmia,
e da citada Rosa encontrei algumas das mulheres que ingressaram nas irmandades
de Santo Amaro, Vila Nova, Rosário e São Cristóvão. Algumas delas brancas como
Francisca Maria da Silva irmã da confraria de Vila Nova, africanas como a Rosa
Benedicta, irmã da de Santo Amaro, livres como possivelmente era Rosa de Santa
Anna Gomes, irmã da confraria de São Cristovão; e libertas como a já conhecida
Eufemia. Assim, mulheres de diversas origens e que ocupavam lugares distintos
na sociedade conviviam nesse espaço religioso dominado por homens e mulheres
pretos, crioulos e africanos.
Além de estarem nessas irmandades, essas mulheres podiam ocupar cargos,
como o de juízas e mordomas, conforme já foi mencionado. Na de Vila Nova,
havia ainda as juízas de coroa. Para Reginaldo, possivelmente uma maneira que os
irmãos encontraram de disfarçar e manter os reis e rainhas na irmandade42. Várias
eram as relações de poder no interior das irmandades, crioulos x africanos ou
38
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas..., p. 203-209.
39
REIS, A morte é uma festa..., p. 58.
40
PINHEIRO, Fernanda Aparecida. Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em
Mariana – Minas Gerais, 1745-1820. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2006.
41
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas..., p. 201.
42
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas...

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ainda mulheres x homens. Os cargos eram divididos entre os diversos grupos que
se faziam presentes na irmandade. Assim, o papel das mulheres nas Irmandades
dos Homens Pretos era algo relevante, pois podiam ocupar alguns cargos. A
exceção era Vila Nova, onde o principal cargo era permitido apenas aos homens.
Nas irmandades sergipanas, além de participar da mesa, elas contribuíam nas
arrecadações no momento das eleições ou esmolando, ou ainda fazendo doações
para as construções das capelas. Na década de 30 dos Oitocentos, Rosa de Santa
Anna Gomes, possivelmente uma branca, pois fazia parte da Ordem Terceira do
Francisco em São Cristóvão, doou trinta mil réis para a construção da Capela de
São Miguel Arcângelo em São Cristóvão43. Segundo Vanessa Oliveira, essa devoção
também era das pessoas de cor44. Todavia, fazer parte de inúmeras irmandades
conferia prestígio. Além dos cargos e atividades citadas, essas mulheres também
cuidavam ou patrocinavam os ornamentos dos altares, por isso, a mesma Rosa
também deixou toalhas para a irmandade dos Martírios. Ela também doou dinheiro
para a irmandade do Rosário de São Cristóvão, ou seja, ela fazia parte das três
irmandades das pessoas ditas de cor, além da Ordem Terceira aonde quis ser
enterrada, possivelmente por ser a irmandade que ela tinha maior apreço. Ressalto
que a confraria dos Martírios ocupava um altar na Capela da Irmandade do Rosário
dos Homens Pretos.
Cristiane Silva pontua que boa parte das irmãs da confraria dos Homens Pretos
de Cuiabá eram africanas da nação mina, solteiras e com filhos e algumas delas
possuíam bens. Para a autora, as mulheres que pertenciam as irmandades exerciam
cargos de liderança por serem necessárias nas procissões, organizações de altares
e missas. Também tinham mais mobilidade nas cidades que os homens, e por
isso compravam suas alforrias e a de seus filhos. Essas mulheres também eram as
intermediárias entre mundo dos brancos e dos pretos45.
Traçando um perfil das sete mulheres encontradas até o momento na pesquisa
e que eram irmãs das confrarias do Rosário, há algumas informações reveladoras.
Três eram solteiras, três eram casadas, e uma delas o marido tinha abandonado, e a
restante era viúva. As duas que os indícios apontam como brancas, uma era casada
e a outra viúva. E as duas que os vestígios apontam como de cor eram solteiras e
sem filhos. Apenas uma das irmãs tinha filhos, a irmã Francisca Maria da Silva da
confraria de Vila Nova, que era uma das casadas. Outro aspecto é sobre a condição
jurídica das mesmas, duas eram livres, e outras duas libertas, as três restantes podiam
ser libertas ou livres. Ou seja, essas mulheres podiam circular livremente nas Vilas
que residiam, ir às capelas das suas irmandades para assistir as missas ou ainda
para cumprir outros ritos como rezar o Rosário, ir aos velórios e enterros dos irmãos.
Além de cuidar das atividades e cargos que lhes cabiam46.
Ressalto que não encontrei até o momento, mulheres escravizadas que faziam
parte das irmandades, no entanto, segundo os estatutos o ingresso delas era
permitido. Consultando as cartas de alforrias, percebi que alguns escravizados e
43
Testadora: Rosa de Santa Anna Gomes, Testamentos de São Cristóvão, caixa 69, Cartório São
Cristóvão, Arquivo Geral do Judiciario de Sergipe.
44
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos..., p. 56.
45
SILVA, Irmãos de fé...
46
Testamentos de São Cristóvão, caixas 67, 68 e 69,Cartório São Cristóvão, Arquivo Geral do
Judiciario de Sergipe.

24 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


escravizadas ficavam livres com a condição de mandar rezar uma capela de missas.
Especulo que esses homens e mulheres escravizados que recebiam essa condição,
eram irmãos e irmãs do Rosário ou de outra confraria e por isso teriam acesso com
mais facilidade ao mandar rezar as missas. Em 1818, por exemplo, Arcanguêla,
crioula, que residia em São Cristóvão recebeu a carta de alforria de Vivência Ferreira
dos Anjos pelos bons serviços, com a condição do pagamento de 130$000 réis e
de mandar rezar duas capelas de missas47. Talvez Arcângela fosse uma das irmãs
cativas da irmandade do Rosário dos Homens Pretos da referida Vila.
Essas sete mulheres também tinham alguns bens; casas, móveis e escravizadas.
Três dessas eram senhoras de escravizadas e duas delas eram libertas. As três que
possuíam o bem escravo priorizaram ter escravizadas e isso pode ter ocorrido por
diversos motivos. Primeiro, as mulheres escravizadas eram mais baratas que os
homens escravizados, assim por elas não terem grandes fortunas, ter uma escrava
era a possibilidade de este Bem. Segundo, devido ao fato de duas delas serem
mulheres solteiras e talvez fosse mais fácil gerenciar uma mulher no cativeiro. Essas
escravizadas, pertencentes as irmãs, foram alforriadas completamente ou uma parte.
Mostrando que essas mulheres libertas criaram relações de solidariedade com essas
escravizadas, seja devido ao fato de possuírem uma origem jurídica comum ou por
serem mulheres. Outro aspecto é que essas senhoras não tinham filhos, e por isso
não tinha herdeiros diretos o que facilitava a disposição dos seus bens de acordo
com as suas vontades. Um exemplo da relação de parceria que se estabeleceu entre
as irmãs e suas escravizadas, foi o da forra Eufemia que devia dinheiro a sua escrava
angola Gracia, a quantia de onze patacas e doze vinténs.
Sobre as atividades laborais que essas mulheres exerciam há poucos indícios.
Rosa Benedicta, a africana que viveu em Santo Amaro possivelmente era do Ganho
e mercadejava. Atividade que possivelmente rendeu algum dinheiro, pois conseguiu
comprar alforria e adquirir alguns bens.
Segundo Reginaldo, a luta pelas alforrias explica a ausência de filhos de algumas
das irmãs libertas que ela pesquisou. Ter filhos seria uma opção ou um sonho para o
pós alforria, assim não transmitiriam a sua condição jurídica a sua prole. No entanto,
a alforria, muitas vezes era conseguida em uma idade já avançada e em alguns
casos já não era mais possível gerar filhos. O casamento também era mais fácil para
as mulheres forras, assim ao ficar libertas na maturidade diminuía as chances de
casamento e de possuir filhos48.
Na história da Rosa Benedicta, evidencia que o afirmei anteriormente, as irmãs
do Rosário dos Homens Pretos eram mulheres que se deslocavam espacialmente e
algumas socialmente. Outro aspecto cunhado nessa história é o local do enterramento,
no interior da capela. O cuidar da morte era algo relevante nas sociedades no período
estudado, e lembrando que uma das finalidades das irmandades era a de cuidar
dos ritos relacionados a morte. Por isso, alguns homens e mulheres procuravam as
irmandades para terem a garantia da realização desses ritos. Cinco dessas mulheres
foram enterradas nas Capelas das suas irmandades, as exceções foram as já citadas
Eufemia que desejou ser enterrada na Matriz e Rosa de Santa Anna Gomes que
47
Livro de notas, São Cristóvão, livro 4, 1818, Cartório São Cristóvão, Arquivo Geral do Judiciario
de Sergipe.
48
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas..., p. 199-200.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 25


solicitou ser enterrada na Capela da Ordem Terceira do São Francisco. No entanto,
no momento que a primeira irmã faleceu a sua irmandade não possuía capela, a
mesma foi erguida somente no século XIX, conforme já foi citado anteriormente. E a
segunda era uma branca que fazia parte de várias irmandades, e que possivelmente
escolheu ser enterrada na que mais refletia o grupo social que fazia parte.
Concluindo....
Nossa Senhora do Rosário foi a principal invocação dos homens e mulheres
pretos sergipanos, incluindo os africanos de diversas nações, destaco os angolas,
ethiopinos e minas. Uma parte das irmandades de Nossa Senhora do Rosário
dos homens pretos foram criadas no século XVIII e nesse século também foram
construídas suas capelas. As mulheres faziam parte das irmandades, de diversas
categorias como brasileiras e africanas, ocupavam um lugar de destaque e possuía
cargos importantes como o de juízas. Em dois dos estatutos há a menção a nações
africanas, em São Cristóvão a confraria era dominada também pelos angolas,
africanos e em Vila Nova, pelos ethiopinos, nomenclatura genérica que se refere
possivelmente a africanos cristianizados. Por fim, a relação entre africanos e crioulos
variou de região a região, pois em São Cristóvão os principais cargos eram divididos
entre os dois grupos, enquanto que em Vila Nova havia um revezamento entre os
grupos no principal cargo.

RESUMO ABSTRACT
Os historiadores têm estudado as irmandades há algum Historians have studied the brotherhoods for some
tempo, incluindo as dos Homens Pretos, e vários são time, including the Black Men, and many are focused
os temas enfocados sobre essas. No entanto, sobre on these issues. However, in Sergipe, brotherhoods on
as irmandades em Sergipe o número de trabalhos the number of research jobs is meager. In this paper,
é parco. Neste trabalho, pretendo pontuar alguns I intend to point out some aspects of the organization
aspectos da organização das Irmandades do Rosário of the Rosary of Black Men Brotherhood of Sergipe,
dos Homens Pretos de Sergipe, no interstício de 1750 a in the interstitium from 1750 to 1835, examining
1835, analisando algumas categorias que faziam parte some categories that were part of the aforementioned,
das citadas, sobretudo das mulheres e os seus papéis especially of women and their roles in the brotherhoods,
nas irmandades, todavia, também apontarei alguns however, also point out some elements about Africans
elementos sobre os africanos e crioulos. Para isso, utilizei and Creoles. For this, I used the statutes of these
os estatutos dessas associações, ofícios, testamentos e associations, crafts, wills and postmortem inventories.
inventários post-mortem. As fontes foram fichadas e as The sources were filed and the information, crossed.
informações cruzadas. As irmandades que tratarei são The brotherhoods that are the treat of Our Lady of the
as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos Rosary of Black Men of São Cristovão, Santo Amaro,
de São Cristóvão, Santo Amaro, Lagarto, Estância e Lagarto, Estancia and Villa Nova. Through readings
Vila Nova. Através das leituras das referências e da of references and documentation gathered so far, I
documentação coletadas até o momento, concluo que conclude that the Our Lady of the Rosary was the
a Nossa Senhora do Rosário foi a principal invocação main invocation of black men and women in Sergipe,
das mulheres e homens pretos em Sergipe, incluindo as including African and Africans from different nations.
africanas e os africanos de diversas nações. A relação The relationship between Africans and Creoles varied
entre africanos e crioulos variou entre as vilas. Por fim, among villages. Finally, women who were part of the
que as mulheres que faziam parte das irmandades não brotherhoods were not homogenous and occupied
eram homogêneas e ocuparam lugares de destaque. prominent places.
Palavras Chave: Irmandades de Nossa Senhora do Keywords: Brotherhoods of Our Lady of the Rosary
Rosário dos Homens Pretos; Sergipe; Irmãs do Rosário. of Black Men; Sergipe; Sisters of the Rosary.

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“PELA QUANTIA DE [...] PODERÁ GOZAR DE SUA
LIBERDADE”: AS ALFORRIAS NO MUNICÍPIO DE
SOUSA/PB (1792-1860)1
Maria da Vitória Barbosa Lima2

Introdução
Os últimos anos do Século XVIII operaram uma significativa mudança na Paraíba.
Foi durante essa época que a Capitania retomou sua autonomia política, pois, até
então, estava sob o domínio de Pernambuco3. A desanexação da Paraíba (1799)
possibilitou a retomada do seu desenvolvimento, embora seu crescimento econômico
estivesse, ainda, atrelado aos interesses dos grupos econômicos da Província vizinha.
Foi durante esse período que ocorreu a criação de novos municípios4, entre os quais,
o de Sousa. A antiga povoação, localizada na margem direita do Rio do Peixe,
confluente do Rio Piranhas, no sertão paraibano, em 1800, foi elevada à categoria de
vila, com a denominação de Vila Nova de Sousa, promoção devida ao crescimento
propiciado pela atividade criatória: o gado vacum. Essa atividade produtiva foi o
grande motor de desenvolvimento da região durante os séculos XVII e XVIII.
Revelam-nos, Galliza5 e Brandão6 que a atividade criatória, a princípio, não
necessitava da utilização de escravos nas fazendas. Essa afirmativa era revelada por
fatores como o caráter extensivo da atividade criatória, que limitava o número de
pessoas para o trabalho de manejo e, consequentemente, para o crescimento do
rebanho. Essa característica dependia, quase que exclusivamente, dos recursos naturais
e pouco exigia da interferência humana. A economia pecuarista apresentava, ainda,
outros aspectos que a tornavam atraente para aqueles que desejavam atuar nessa
área: era uma atividade que requeria baixo índice de investimento, em comparação
com a empresa açucareira; não sofria as flutuações dos preços no mercado externo;
1
Este artigo é parte de um capítulo de minha tese de doutorado defendida em 2010, na Universidade
Federal de Pernambuco.
2
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente realiza Estágio Pós-
Doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Informação da Universidade
Federal da Paraíba. E-mail: <toiavlima@hotmail.com>.
3
Em 1755, a capitania da Paraíba foi anexada à de Pernambuco. Esta ação se inseria no plano
de racionalização da política econômica pombalina de conter gastos e concentrar recursos e do
objetivo político de centralizar em Pernambuco o comando e a fiscalização de uma vasta região,
que não estava dando lucros. A Paraíba retoma a sua autonomia em 1799, após 44 anos sob o
domínio pernambucano. Sobre esse assunto, leia os trabalhos de: OLIVEIRA, Elza Régis. A Paraíba
na crise do Século XVIII: subordinação e autonomia (1755-1799). Fortaleza: BNB / ETENE, 1985;
ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba – Tomo I. João Pessoa: Imprensa Universitária, 1966;
CRUZ, Fábio Santiago Santa. Irmãs e Rivais: resistências paraibanas à influência do Recife (1870-
1889). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Brasília. Brasília, 2002.
4
Em 1800, além da criação de novos municípios, ocorreu a incorporação de novas terras à Paraíba,
como os municípios de Catolé do Rocha e Cuité, que pertenciam, anteriormente, ao Rio Grande
do Norte. Ver: ROHAN, Henrique Beaurepaire. Chorographia da Parahyba do Norte. [1870?],
Notação: 4, 3, 23 – Seção de Obras Raras, Biblioteca Nacional/RJ.
5
GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba (1850-1888). João Pessoa: Ed.
Universitária/ UFPB, 1979.
6
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do
século XVIII. Teresina: ed. Universitária/ UFPI, 1999, p. 41.

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propiciava maior mobilidade social que na região dos engenhos, pois o vaqueiro,
no regime de parceria, poderia alçar-se à condição de proprietário de curral, em
um prazo de cinco anos, caso seus animais resistissem aos problemas das secas.
Assim, todos esses fatores concorriam no sentido de que a atividade criatória,
no sertão paraibano, não implicasse em uma intensificação do uso da mão-
de-obra escrava. No entanto, ela se utilizou do trabalho escravo, embora nesse
espaço produtivo, não se limitasse ao manejo do gado, na ocupação de vaqueiro
– evidentemente, mais propícia ao homem livre – ou do “fábrica”, isto é, auxiliar
de vaqueiro. Porém, a mão-de-obra escrava foi usada em serviços de plantio e de
colheita das roças, para atender ao consumo das fazendas e dos cativos; exercia
serviços domésticos, realizava todos os serviços corriqueiros das fazendas, além
de atender aos desejos dos senhores de ostentarem um padrão de vida que os
diferenciasse do resto da população considerada socialmente inferior.
Os inventários de alguns fazendeiros setecentistas nos revelam certas características
da escravidão no sertão nessa época. Destacamos, para esse momento, dois
inventários: o de Antônio de Oliveira Ledo – filho de Teodósio de Oliveira Ledo,
um dos pioneiros na conquista e na colonização do sertão paraibano – datado de
1751, que afirmava possuir os seguintes escravos:
Um crioulo por nome André de idade de trinta annos [...],
Joaquim dos Gentios da Guiné de idade de sincoenta annos
[...] Manoel de Angola de idade desdezaseis annos [...] um
mameluco por nome Francisco de idade de doze annos,
Izabel Angola de idade de dez annos, duas crioulinhas
uma por nome Antônia outra por nome Anna: Declaro que
possuo mais uma escrava mameluca por nome Maria a qual
pelos bons serviços que della tenho recebido principalmente
pelo amor de Deos a forro e liberto sem pensão alguma7.
(Grifos nossos).
No inventário desse colonizador, percebe-se que sua escravaria era representada
por menores de 16 anos. O que chama a atenção, também, é a presença de escravos
mamelucos, isto é, filhos de brancos com índios, um dos quais, a escrava Maria,
recebeu alforria. A presença desses mamelucos revela a escravidão de indígenas,
mesmo em época em que existia uma legislação que proibia esse fato (a exemplo
das Leis pombalinas, promulgadas em 1755 e 1758, que abolia a escravização
indígena), e aponta para a hipótese de a mulher indígena ser uma das vias de
reprodução de mão-de-obra escrava no sertão, área que compreendia as terras da
antiga demarcação do município de Campina Grande até a fronteira com o Ceará.
Nessa época, este sertão era povoado por vários grupos da Nação Cariri, como os
Paiacu, os Sucuru, os Pegas, os Panatis, os Icó e os Ariú – apesar de muitos já se
encontrarem aldeados.
Em seu inventário, Antônio de Oliveira Ledo, revela-nos que deixava 1.400
cabeças de gado vacum e 189 cavalar, distribuídos em três sítios: Serra Branca,
Cruz e Bom Sucesso8. Quem cuidava desses rebanhos? Pelas evidências históricas,
7
Grifos nossos. SEIXAS, Wilson Nóbrega. Viagem através do sertão da Província da Paraíba. João
Pessoa: A União, 1985, p. 183-184.
8
SEIXAS, Viagem através do sertão..., p. 183.

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percebemos que o criador/colonizador contava com variados grupos sociais, como
os escravos africanos e seus descendentes (em geral em número reduzido), com
mamelucos na condição cativa e também de indígenas que viviam acostados a ele
e que desenvolviam afazeres na fazenda de gado. Outra hipótese, para o trato do
rebanho, consiste na utilização da mão-de-obra livre cooptada para tal atividade,
pela possibilidade de mobilidade social.
O inventário de Dona Eugênia dos Milagres, que foi casada com o capitão
Domingos Pinto Bandeira, teve seus bens inventariados em 1734. Esse casal possuía
patrimônio muito inferior ao de Antônio de Oliveira Ledo. Entre seus bens, constavam
262 cabeças de gado vacum, 30 bestas, 16 potros, além de dois escravos, Manoel
e Tereza, ambos avaliados em 100 mil réis9. Outra grande diferenciação entre o
casal e Antônio de Oliveira Ledo era em relação à propriedade da terra. Este era
um grande latifundiário, e aqueles, foreiros, que pagavam 10 mil réis de foro. O foro
foi outra modalidade de trabalho no sertão paraibano para aqueles que desejavam
ascender social e economicamente. Quem cuidava do rebanho de Dona Eugênia
e Pinto Bandeira? Era possível que o escravo Manoel desse conta do rebanho,
principalmente por ele ser composto por poucos animais.
Ressaltamos que a possibilidade de ascensão social não era restrita ao homem
livre pobre e “branco”, mas poderia ocorrer com homens de outras “cores”. Como
exemplo, temos a história de Ventura Soares Ferreira, um preto cuja procedência
desconhecemos, porém sabemos que foi escravo e que, depois, conseguiu sua
alforria e apareceu libertando sua esposa Francisca Pereira, de Angola, por havê-la
arrematado em hasta pública, em 1775. Vejamos um trecho da carta de alforria:
[...] no ano do Nascimento de Nosso senhor Jesus Cristo,
de mil setecentos e setenta e cinco, aos seis dias o mês de
setembro do dito ano, nesta Nova Vila de Pombal de N.
Senhora do Bom Sucesso, Capitania da Paraíba do Norte,
no meu escritório, apareceu Ventura Soares Ferreira, preto
forro, morador no sítio Mato Grosso, que vive de plantar
suas lavouras [...] que ele era senhor possuidor de mansa
e pacífica posse de uma escrava do gentio de angola, por
nome Francisca Pereira, que a houve por arrematação
que dela fez na praça pública, desta vila [...] e porque a
dita escrava era sua mulher, que tinha recebido em face
da igreja, por tal razão por onde ele libertou desde a forro
como de fato logo a forrou e lhe deu liberdade a execução
do cativeiro deste dia para sempre [...].10
Assim, para Ventura e sua esposa Francisca, o sertão propiciou condições para a
mobilidade social, representada pela liberdade jurídica e pela condição de morador
do Sítio Mato Grosso, em que vivia de “plantar suas lavouras”.
No início do Século, 1804, na Vila de Sousa, havia 7.243 habitantes, sendo 6.211
9
MORAES, Ana Paula da Cruz Pereira de. Em busca da liberdade: os escravos no sertão do Rio
Piranhas, 1700-1750. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Campina
Grande. Campina Grande, 2009, p. 121-122.
10
Grifos nossos. Carta de Alforria publicada em: SEIXAS, Wilson Nóbrega. O velho arraial de
Piranhas (Pombal). João Pessoa: Grafset, 2004, p. 196.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 29


pessoas livres e 1.249 escravas, os quais representavam 17,24% da sua população
total11, que equivalia a 13,19% da população escrava da Província que, nesse mesmo
ano, tinha 9.463 cativos. Em 1804, a região de Sousa, comparando-se com outras
povoações, em relação ao percentual da população escrava, tinha uma escravaria
que só era menor do que a da capital, com 2.345 escravos, ou seja, 24,78% dos
cativos da Província.
Paulatinamente, ocorreu o crescimento da população. Em 1852, 48 anos depois,
passou a ter 17.555 habitantes, sendo 14.109 livres e 3.446 escravos12, com um
crescimento de, aproximadamente, 215 almas por ano, equivalente ao total de 10.312
pessoas, provenientes da reprodução natural, da escravidão e da migração interna.
“Como se nascesse de ventre livre”: as cartas de liberdade
No município de Sousa, examinamos 171 cartas de liberdade, registradas entre os
anos de 1800 e 1858, por meio das quais foram libertados 177 escravos. Os dados
obtidos nas cartas e o seu cruzamento com outras fontes documentais, a exemplo
dos inventários, possibilitaram realizar considerações sobre as características do
liberto em Sousa. Primeiramente, elaboramos o seu perfil aproximado, destacando:
quem era mais alforriado se o homem ou a mulher; a cor da pele dos libertos; a
procedência; a idade dos que se libertavam e a que grupos pertenciam; os preços
que os escravos alcançavam e quem pagava a liberdade. No segundo momento,
estudamos a situação em que ocorria a alforria, desde a sua frequência, o tamanho
da escravaria, o local da alforria, se em área rural ou urbana; o estabelecimento de
laços afetivos que permitiram que os escravos formassem pecúlio para comprar a
liberdade. Também foi possível trabalhar com as diversas condições impostas ao
liberto para conseguir completar o processo de liberdade.
Nas cartas de liberdade, constam os nomes dos escravos, de seus senhores, quem
as escreveu (muitos deles não sabiam escrever ou estavam muito doentes e incapazes,
por isso solicitavam a terceiros que registrassem suas decisões no documento), nome
das testemunhas, local e data da redação; aparecem, também, em algumas delas,
o preço da compra da liberdade e o preço avaliado, assim como o estado civil do
escravo e sua filiação. Alguns desses elementos contidos nas cartas foram objetos
de análises dos itens subsequentes deste capítulo.
Vejamos como essas variáveis se desdobram na documentação estudada. A
alforria, na primeira metade do Século XIX, foi uma concessão dos senhores ao
escravo. Nas cartas, eles deixavam evidente esse gesto, pois forram seus escravos de
“livre vontade” e “sem constrangimento de pessoa alguma”. Partindo dessa ideia,
optamos por iniciar o estudo da liberdade em Sousa deslindando as características
de quem alforriava, como e a quantos alforriavam, para depois adentrarmos nas
histórias dos libertados.

11
Ver: Mapa dos habitantes que existem na paróquia da Vila Nova de Sousa no ano de 1804. AHU_
ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273. (CD 06).
12
Veja o Relatório do Presidente de Província, de 1854, João Capistrano Bandeira de Mello. Fundo
NDIHR, Arquivo do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional/ UFPB.

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TABELA 1
SEXO DOS SENHORES, MODALIDADE E ALFORRIADOS EM SOUSA (1800-1858)
HOMENS E
HOMENS MULHERES TOTAL GERAL
MULHERES*
Quantidade
Modalidade Quantidade Alforriados Quantidade Alforriados Quantidade Alforriados Alforriados
Senhores
Compra 36 38 25 29 22 24 83 91
Concedida 22 23 22 29 23 26 67 78
Compra e
03 08 -- -- -- -- 03 04** 04***
concedida
Total 61 69 47 58 45 50 153 177
Fonte: Livros de Notas de Sousa 1800-1858. Localização: IHGP – A2P2.
Obs.: * Constituído por casais e herdeiros, ou seja, pai ou mãe com filhos e filhas.
** Compra. *** Concessão.

Convém enfatizar que identificamos um total de 153 senhores. Quando o senhor


tinha um escravo alforriado por compra e outro por “concessão”, ele era enquadrado
no item “compra e concedida”. Nesse processo, foram detectados três senhores.
Como exemplo, temos o Padre Anacleto de Oliveira Ledo. Assim, resta, ainda,
esclarecer que, dos oito cativos elencados na modalidade “compra e concessão”,
consta que quatro conseguiram a alforria por compra, e os outros quatro, de forma
“gratuita”, perfazendo um total de 177 cativos, distribuídos em alforria concedida,
82 (46,3%), e por compra, 95 (53,7%).
As cartas de alforria de Sousa revelam que aqueles senhores que mais libertaram
seus cativos eram homens, cujo percentual correspondia a 61 (39,9% de 153); as
mulheres, a 47 (30,7%); e homens e mulheres, em conjunto, perfazem um total de
45 (29,4%). Contudo, se tomarmos homens e mulheres de forma individual, eles
correspondem a 108 senhores(as) que libertavam escravos, dos quais, os homens
correspondiam a 56,5% e as mulheres, a 43,5%. Entretanto, ressalvamos que o
documento não nos revela o estado civil em sua plenitude. Portanto, esses dados
são sujeitos a revisão quando do cruzamento com outros documentos, como por
exemplo, os registros de casamento para o mesmo período das “cartas de liberdade”.
Todavia, percebemos, em algumas justificativas para libertar o escravo, elementos
suficientes para quantificar o sexo dos senhores, a modalidade das alforrias e os
escravos que libertam.
Antes de adentrarmos mais nas análises sobre a liberdade dos escravos em Sousa,
nos anos de 1800 a 1858, convém esclarecer que procuramos utilizar a historiografia
voltada para a reconstrução das práticas socioculturais dos escravos e das relações
que eles mantinham com os demais grupos da sociedade para subsidiar esse estudo,
embora algumas obras historiográficas revelem áreas com grandes diferenças,
sobretudo econômicas, da província da Paraíba, porém, em relação à liberdade,
confirmam tendências ou se opõem às semelhanças.
De imediato, iniciamos com o estudo de Karasch13 porque ela estabeleceu o
perfil dos senhores que libertaram seus escravos no Rio de Janeiro. Para a autora,
13
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.

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os senhores se apresentaram como sendo todos adultos, porque crianças e órfãos
não tinham direito de alforriar. Assim, destacou a autora, ainda, dos mesmos: sexo;
residência urbana ou rural; condição jurídica; estado civil e ocupação. Karasch
concluiu que os homens (58%) libertavam mais seus escravos do que as mulheres
(42%). Portanto, são números próximos aos percebidos por nós, em Sousa, para o
mesmo período de estudo. Afirma, ainda, a autora que o sexo do dono do escravo
pode influenciar no modo de alforriar: homens tendem a alforriar os filhos tidos com
mulheres cativas, por exemplo, e as mulheres a conceder a liberdade condicional a
fim de garantir os serviços de sua escrava fiel até a morte. O que a autora parece
desconsiderar, em seu estudo, é que, sendo casada, a mulher estava sob a jurisdição
do marido, que era o cabeça do casal e, nesse caso, o nome dela pode não aparecer
na carta de liberdade ou mesmo a referência de que o senhor era ou fora casado.
Quanto à condição jurídica (status civil), no Rio de Janeiro, ficou evidente que a
maioria, aproximadamente 92, que correspondia a 6% dos senhores, era composta
de homens livres; mas havia 7,4% de libertos e um caso em que ainda era escravo.
A autora prossegue afirmando que quase todos eles eram senhores urbanos, livres
e homens de negócio. Mas o típico senhor que libertava não era aquele fazendeiro
que possuía muitos escravos, o “grande fazendeiro”, e sim, o homem de posição
social média, de profissão urbana, com uma pequena escravaria.
Concordamos com a ideia de que o sexo influencia o modo de conceder a
liberdade (vejamos a tabela 1, referente ao município de Sousa). Os senhores
(36) concediam mais a liberdade a seus escravos (38 - 55%) somente por meio de
compra; e as mulheres (22) alforriavam mais de forma gratuita a seus escravos (29
ou 50%). Sobre a condição jurídica de todos os(as) senhores(as) que libertaram
seus escravos, acreditamos que fossem livres, pois não há referência de que fossem
libertos ou escravos. Nas cartas de liberdade, são poucas as informações que temos
sobre o status civil dos que libertam, pois, quando elas não eram registradas com
o nome do casal – as registradas por indivíduos – eram raras as referências se se
tratava de solteiro ou qualquer outra estatuto civil. Apenas um homem solteiro e uma
mulher separada informam, de forma explícita, sua condição. Porém, conseguimos
identificar 53 (entre 153) ex-donos de escravos, que revelam sua situação civil no
ato de alforriar. Desse universo, temos: casais, 28 (53,9%); casados/separados,
quatro (5,8%) – esse grupo era constituído por três homens que não identificaram as
esposas e uma mulher que se declarou separada/abandonada pelo marido; solteiros,
oito (15,3%), sendo todos homens; e viúvos, 13 (25%) três homens e 10 mulheres.
Conseguimos perceber a ocupação de somente 20 senhores, que se declaram
como padres (sete), e militares (13), ocupando cargos de ajudante, alferes, capitão,
major, coronel e tenente-coronel. Esses donos de escravos, identificados com a
ocupação de padres e militares, em um primeiro momento, podiam ser classificados
como grupos urbanos, entretanto, transitam entre o universo rural e o urbano14. O
mesmo senhor que liberta seus escravos na cidade, em determinada época, em outro
momento, alforria seu outro escravo em sua propriedade rural. O caso de D. Mariana
Gonçalves Dantas é um exemplo: ela assina a carta de sua escrava Maria, na cidade
14
Na Paraíba, desconhecemos dados demográficos que nos possibilitem quantificar o(a)s senhore(a)
s pertencentes ao mundo rural e ao urbano. Esse motivo não nos permite fazer a relação entre as
alforrias urbanas e rurais.

32 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


de Sousa, porém nesse mesmo local possuía uma fazenda de criar gado em meação
com seu marido Domingos João Dantas. O cruzamento da carta de liberdade com
o inventário do falecido marido de D. Mariana nos possibilitou enquadrá-la entre
os senhores que concedem alforria em residência rural. Assim, dos 143 senhores
cujas residências foram identificadas, em Sousa, constatamos 42 senhore(a)s rurais
que alforriaram escravos, 101 senhore(a)s urbanos15; e 10 senhore(a)s que não
identificaram o local em que residiam.
A respeito das modalidades de alforria, em Sousa temos dois tipos: a alforria por
compra e a alforria concedida. Em Sousa, constatamos a existência de 95 (53,7%
de 177) escravos comprando a liberdade e 82 (46,8%) que a receberam de seus
senhores. Mas o estudo das cartas de liberdade nos fez perceber que elas não eram
concedidas de maneira simples como o primeiro olhar deixa perceber. Vejamos a
carta de liberdade do mulato João Francisco de Sá Barreto, adquirida em 1833:
[...] Disemos nos abaixo assignados legítimos herdeiros do
fallecido Cappitão Mor Francisco Antônio Correia de Sá que
entre os mais bens que pussessemos livres, e desembargados
bem assim hum escravo mulato, ou quase branco nascido
de nossa fallecida escrava Maria o qual de nome João
Francisco de Sá Barreto damos plena e inteira liberdade de
hoje para sempre, por havermos delle recebido a quantia
certa de quatrocentos mil reis em firmesa de que rogamos
a justiça de S.M.I. e C. o Senhor D. Pedro 2º, haja por
firme e valioza essa carta de liberdade [...] Acahuã sete de
outubro de mil oitocentos e trinta e trez = Francisco Antônio
Correia de Sá.16
Nesse caso, temos a compra realizada pelo alforriado, que denominamos de
simples, pois não apresenta condição alguma que o impossibilite de tomar posse
imediata de sua liberdade. Vale ressaltar que o escravo compra sua liberdade ou
outra pessoa faz isso por ele, questão que retomaremos mais adiante.
A carta do mulato João, escravo que foi de Francisco Duarte Coutinho, apresenta
outros elementos:
[...] Digo eu abaixo assignado que entre os mais bens que
pussuo de mança e passifica posse, livres e desembargados
e bem assim hum escravo de nome João [...] cujo escravo
o forro como de facto forrado o tenha de hoje para todo
sempre por preço e quantia de trezentos e sincoenta mil reis
15
Trabalhamos como residência rural todos aqueles senhore(a)s que identificaram o local como
sendo fazenda ou sítio. Com exceção de D. Mariana Gonçalves Dantas, através do inventário
de cujo marido conseguimos identificar sua moradia como rural. Todos os outros senhores que
passaram as cartas de liberdade na cidade de Sousa, povoações de Cajazeiras, São João e São
José registramos como urbanos. Contudo, esclarecemos que, com o uso de outros documentos, a
quantificação poderá ser modificada. Para as cartas de liberdade, veja os Livros de Notas de Sousa,
1800-1858, existentes no IHGP, e o inventário de Domingos João Dantas, no Acervo Particular de
Waldice Porto.
16
Grifos nossos. Ver: Livros de Notas de Sousa, 1833, fls. 3v-4, n° 20, Notação A2P2, Fundo:
Coleção de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja,
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 33


que recebi ao passar essa carta [...] ficando por isso liberto
como si forro nacesse, com a condição tão somente de mi
acompanhar, e servir em quanto eu vivo for, isto pela esmola
que lhe fis de forrar pelo diminuto presso assim a dito, e
depois de minha morte siguir o distino que lhe parecer como
livre que he [...] Arrojado seis de agosto de mil oitocentos e
quarenta e dois = Francisco Doarte Coitinho. 17
A liberdade de João foi uma compra condicionada. Por que isso aconteceu?
Era o ano de 1843, a alforria estava inscrita na política de domínio senhorial e as
relações senhores- escravos eram regidas pelo Código Filipino (1603), embora com
diferentes interpretações realizadas pelos jurisconsultos do século XIX18. As relações
entre senhor e escravo passam a sofrer a intervenção do governo imperial a partir de
1871, com a Lei Rio Branco, que não apenas libertou o ventre das mães escravas,
mas também normatizou, entre outros aspectos, o “direito” a compra da alforria pela
pessoa escrava, legalizando, assim, a prática costumeira do “pecúlio” (conseguido
pelos escravos através do trabalho, da doação ou mesmo de herança deixada por
parentes consanguíneos ou espirituais), como nos revelaram as cartas de liberdade
de João Francisco de Sá Barreto, em 1833, e João, em 1843, assim, como outros,
antes e depois deles.
Em 1833, o crioulo Secundo recebeu sua carta de liberdade com o seguinte teor:
Digo eu abaixo assignado que entre os mais bens que
possuo livres, e desembargados e bem assim um escravo
criollo de nome Secundo que tive por herança de minha
sogra [...] filho da criolla Maria, o qual pelos bons serviços
que tem prestado a mim e aos meos filhos, que todos
concordássemos [...] dou-lhe plena e inteira liberdade de
hoje para sempre e para firmeza do que rogo as Justiças de
S. M. I. e C. hajão por firme e valiosa essa carta de liberdade
para achando todas as faltas que nella ouver e a mesma
podera ser copiada em Notas19 (grifos nossos)
Temos, no caso de Secundo, um exemplo de alforria concedida incondicionalmente,
e a alegação para a atitude dos senhores foram os “bons serviços” executados pelo
crioulo a sua ex-senhora e aos filhos dela. As alegações para as concessões das cartas,
17
Grifos nossos. LN Sousa, 1843-1845, fls. 98-99, Notação A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
18
Os juristas como Teixeira de Freitas (1858) e Cândido Mendes (1870) apresentaram diferentes
interpretações sobre a venda de bens condicionados. O primeiro acreditava ser lícita a venda de
escravo condicionada e o segundo se contrapunha a essa ideia. Confira nas Ordenações Filipinas,
Título XI, “que ninguém seja constrangido a vender seu herdamento e cousas, que tiver, contra
sua vontade”, na nota 2. Este mesmo título faz referência à liberdade, porém não consta que o ex-
escravo para usufruir de sua liberdade, esta estaria condicionada ao tempo de vida do ex-senhor.
CODIGO FILIPINO ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Brasília: Senado Federal, 2004. p.
790.
19
Livro de Notas de Sousa, 1833, fls. 3v-4, Notação A2P2, Fundo: Coleção de Documentos Coloniais,
Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano.

34 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


fossem gratuitas ou onerosas, revelam, ainda, casos em que os escravos aparecem
como objeto do cuidado e do afeto dos(as) senhores(as), como a mulatinha Joana,
(1823), cuja senhora afirmou que lhe concedeu a liberdade pelo “grande amor
que lhe tinha” e por tê-la criado “em seus braços”; ou como Maria da Conceição
do Senhor, mulatinha de oito anos de idade (1834), cuja senhora declara que a
criou “como própria filha”. Em outras cartas, o escravo aparece sabendo intervir no
momento adequado, como Joanna, uma mulatinha de quatro anos que, em 1856,
por “diligência da mãe”, ou seja, mesmo sendo pequenina, sua mãe Jenoveva,
incentivava a criança a pedir a liberdade. A insistência foi intensa, tanto é que as
duas conseguiram que o senhor colocasse um preço por sua alforria, cujo valor foi
de duzentos e cinquenta mil reis.
Algumas cartas sugerem que os escravos desempenharam os papéis desejados
por seus senhores, como demonstram as alegações de “fidelidade”, “obediência”,
“lealdade”, “bom comportamento”, “paciente”, “verdadeiro amigo”. Existiam,
também, cartas de alforria em que, a liberdade dita “gratuita” tinha uma condição
imposta pelos senhores: a de que os escravos deveriam servir a eles ou aos seus
filhos, até a morte destes.
As alforrias por compra (simples, condicionadas ou coartadas) ou concedidas
(condicional ou incondicional) são compreendidas pela historiografia como
negociadas20, pois os escravos não recorreram às instituições judiciais para consegui-
las. Porém, tanto a compra por coartação quanto a concedida condicional pode
provocar problemas para o filho da mulher liberta/escrava que obtiver sua liberdade
nessas duas modalidades, pois sua definição jurídica pode ser compreendida por
juristas como sendo de escrava, e não, de liberta. Por outro lado, pode ocorrer o
inverso, e ela ser caracterizada como liberta. Portanto, o liberto condicional ou
coartado pode ficar preso a uma “vida de peteca”21, transitando entre a propriedade
e a liberdade. Outro problema pode ser propiciado pela impossibilidade de se
adequar às condições impostas no contrato de sua liberdade, como o não pagamento
dos valores impostos, pois isso pode provocar a revogação da carta. Os senhores
recorreram a esses expedientes para revogar as cartas de liberdade que concederam
a seus escravos, principalmente, até 1871, pois com a Lei Rio Branco, inadmitem-se
as revogações juridicamente.
Quanto às características do liberto, alguns estudos, no Brasil, apontam que
a mulher escrava era quem mais recebia a carta de liberdade, em números bem
superiores a sua proporção dentro da população escrava. No Rio de Janeiro, na
entrada do Oitocentos, a liberdade era obtida mais através da compra e, raramente,
concedida de forma gratuita e incondicional pelos senhores. Daqueles que a
conseguiram, dois terços eram mulheres, correspondendo a aproximadamente 64%.
Segundo Karasch, havia alguns motivos para que as mulheres fossem bem sucedidas
na obtenção da liberdade. O primeiro seria o preço alcançado no mercado, pois
20
Os estudos que se destacaram trabalhando com essa concepção foram: os de EISENBERG, Peter.
“Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX”. In: _____. Homens esquecidos: escravos
e trabalhadores livres no Brasil séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989, p.
255-312; REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade:
uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
21
Ver CHALHOUB, Visões da Liberdade...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 35


elas custavam, geralmente, menos que os homens, e as mais velhas e as africanas
custavam menos ainda.22 Por isso, as mulheres e, principalmente, as africanas,
poderiam economizar e juntar um pecúlio para comprar a liberdade, o que era
mais evidente na cidade, onde elas podem usar de tempo livre para vender frutas,
verduras, doces e outros produtos (nesse aspecto, as africanas são as mais bem
sucedidas no mercado).
O segundo motivo consistiria na preferência dos escravos em darem prioridade à
compra da liberdade de suas esposas, para que os filhos nascessem livres. A liberdade
desses homens era limitada pelos preços mais elevados, principalmente, quando
tinham uma profissão. Outra razão é o fato de as mulheres serem destinadas ao
serviço doméstico, o que propicia laços de afetividade com seus “patronos” e, em
consequência, a liberdade. Há casos em que alguns mantêm relações íntimas com
seus senhores ou com homens livres. Estes comprovavam a liberdade, enquanto
aqueles a restituíam gratuitamente.
Falci23 analisando as alforrias concedidas entre os anos de 1869 e 1875, em duas
localidades do Piauí – Oeiras, com um total de 116, e Teresina, com 47 – revela-nos
que o número de mulheres alforriadas era bem maior do que o de homens – elas
representavam 73,2% das alforrias. A liberdade fora concedida a muitas mulheres
e se ampliou depois da idade reprodutiva, ou seja, às mulheres que não davam
mais “crias”.
Em Sousa, para o período de 1792 a 1858, houve mais alforrias para as mulheres
do que para os homens, como demonstra a tabela 2, embora a distribuição de
alforrias entre escravos e escravas fosse menor que os padrões no Rio de Janeiro,
em Salvador e no Piauí. Naquele município, o percentual de homens libertados
foi de 44,1% (78 de 177), e as mulheres obtiveram 55,9% (99 de 177). Elas
conseguiram a liberdade com 11,8% a mais do que os homens, mas não foi devido
a sua capacidade de formar pecúlio e comprar a liberdade, pois a proporção, nessa
modalidade, é mínima: elas conseguiram 50,5% (48 de 95), e os homens, 49,5%
(47 de 95). No entanto, suas cartas foram concedidas em nome de relações de afeto
e de cumplicidade com seus senhores, na proporção de 62,2% (51 de 82) para
37,8% (31 de 82) dos homens.

22
Karasch afirma que o preço médio que uma escrava africana pagava para obter a sua liberdade,
no Rio de Janeiro, entre os anos de 1807 e 1831, era cerca de 136$829,09; enquanto que o preço
médio da escrava brasileira era de 151$602,63 e dos escravos, também brasileiros, de 167$568,33.
KARASCH, A vida dos escravos..., p. 452.
23
FALCI, Miridan Brito Knox. Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações sociais. Piauí,
1826-1888. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995, p. 117-223.

36 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


TABELA 2
TOTAL DE ALFORRIADOS POR SEXO EM SOUSA (1792-1858)
PERÍODOS MULHERES HOMENS % MULHERES
1792-1809 03 01 75,0
1810-1819 01 01 50,0
1820-1829 22 16 57,8
1830-1839 27 22 55,1
1840-1849 11 08 57,9
1850-1858 34 28 54,8
DESCONHECIDO 01 02 33,3
TOTAIS POR SEXO 99 78 55,9
TOTAL GERAL 177
Fonte: Livro de Notas de Sousa 1792-1858, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de
Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja,
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
A tabela 3 demonstra que, em Sousa, durante praticamente todo o Século XIX,
a população de escravas foi maior que a de escravos, numa proporção de uma ½
para um , inclusive as mulheres livres de cor foram superiores numericamente aos
homens, exceto no ano de 1872, em que eles superam o número delas. Portanto,
temos diferenças sobre os estudos apresentados por Karasch, no Rio de Janeiro, e
o de Falci, no Piauí.
TABELA 3
TOTAL DA POPULAÇÃO NEGRA POR SEXO EM SOUSA (1804-1872)

ESCRAVOS LIVRES DE COR


Anos Mulheres Homens % Mulheres Mulheres Homens % Mulheres
1804 667 582 53,4 1783 1504 54,2
1805 628 576 52,1 1829 1531 54,4
1872 739 637 53,7 5908 6979 45,8
Fontes: 1804 e 1805) Mapa dos habitantes da paróquia da Vila Nova de Sousa (1804 e 1805).
AHU-ACL-CU-014, Cx. 46, D. 3273. (Cd 06); 1872) Recenseamento da Província da Parahyba do
Norte (1872). Localização: <http://biblioteca.ibge.gov.br/>. Acesso em: 22 ago. 2011.
Algumas hipóteses foram construídas para explicar o predomínio das mulheres
em Sousa, apesar dos poucos dados sobre o município, assim como para toda
a Província. A primeira, que acreditamos ser a mais consistente, foi a de ordem
econômica. Desde o período colonial, a Paraíba contou com um número pouco
expressivo de escravos africanos, o que dificultava o atendimento às necessidades
dos senhores de engenhos, dos rendeiros e dos lavradores de cana. Esses senhores se
queixavam das cheias dos rios e dos muitos períodos de seca que os descapitalizavam,
impedindo-os de pagar seus impostos e de comprar escravos24. Atrelada a essa
hipótese, imbricada de tal forma, que se torna difícil sua separação, é uma motivação

24
Ver os documentos: CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao rei D. Afonso VI, de 23 fev. 1658.
AHU-ACL-CU-014, Cx. 1, D. 43. (Cd 01). CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe
regente D. Pedro, de 17 jan. 1674. AHU-ACL-CU-014, Cx. 1, D. 89. (Cd 01). REQUERIMENTO
dos oficiais da Câmara da Paraíba ao rei [D. Pedro II], anterior a 7 jan. 1701. Localização: AHU_
ACL_CU_014, Cx. 3, D. 240 (Cd 01).

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 37


de caráter geográfico. Os navios carregados de escravos deixaram a Paraíba, talvez,
devido a sua fragilidade econômica, fora de suas rotas e iam descarregar os escravos
no porto de Pernambuco, o que os tornavam mais caros para os senhores paraibanos.
A proximidade da Paraíba com Pernambuco se evidencia, também, pelo desvio da
produção para o mercado dessa Capitania.
Em 1804 e 1805, os mapas de exportação de Sousa, produzidos pelo capitão-mor
da Vila, Patrício José de Almeida, demonstram que todos os produtos (algodão, gado
vacum, cavalar, couro, sola e tabaco em corda) foram enviados para os portos de
Recife, Aracati e Goiana, e nenhum produto foi destinado aos portos da Paraíba25.
A leitura da carta de liberdade de Thomaz, angola, confirma a ideia, pois seu senhor
o comprou “na praça de Pernambuco”, aos cinco anos de idade26.
A explicação sobre o pequeno número de escravos na Paraíba não esclarece por
que o número de escravas supera o de escravos. Acreditamos que aqueles senhores
que possuíam pouco capital para empregar em mão-de-obra davam preferência
às mulheres para, a partir delas, aumentar, através da reprodução natural, a sua
escravaria. Outro elemento importante, que reforça o predomínio das mulheres
escravas em terras sertanejas tem a ver com o tráfico interno. Segundo Medeiros27,
durante o período colonial, viajantes andavam pelo sertão para comprar escravos que
seriam enviados para as regiões das minas. As vendas desses escravos recapitalizavam
os senhores, que podiam investir em mão-de-obra mais barata, mulheres e crianças,
ou mesmo na produção. Galliza28, em seu estudo sobre o declínio da escravidão
na Paraíba, na segunda metade do Século XIX, reafirma que uma das causas da
diminuição da população escrava na Província foi o trafico provincial para as áreas
do café, principalmente, Rio de Janeiro e São Paulo. Sabemos que a preferência,
nessas áreas, era pela mão-de-obra masculina.
A leitura das cartas de liberdade permite, ainda, trabalhar, brevemente, três
questões presentes na historiografia da escravidão brasileira, que estão relacionadas
à idade, à naturalidade e à frequência com que os libertos obtêm a liberdade. Em
Sousa, não foi possível perceber a desproporção entre escravos e alforriados em
faixa etária menos produtiva. Do universo de 177, conseguimos identificar a idade
de 92 libertos. Destes, constataram-se 34 (37,0%) crianças alforriadas29, 28 (30,4%)
velhos30 e 30 (32,6%) adultos31. Considerando apenas o grupo de crianças, ficou
evidente que era comum alforriar as do sexo feminino – 24 (de 34). Em relação à
modalidade, observou-se a predominância das liberdades concedidas, sendo 19
desse modo e 15 através da compra. Das alforrias concedidas, os senhores, em
muitas cartas, alegaram que forravam as crianças “por amor que lhes tinha”, “por
25
Veja o mapa dos produtos exportados pela Vila Nova de Sousa, anos de 1804 e 1805. AHU-ACL-
CU-014, Cx. 46, D. 3273. (Cd 06).
26
Veja o Livro de Nota de Sousa, 1822, fl.6v-7v, n° 17, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de
Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
27
MEDEIROS, Maria do Céu. “O trabalho na Paraíba escravista”. In: ______ & SÁ, Ariane Norma
de Menezes. O trabalho na Paraíba: das origens à transição para o trabalho livre. João Pessoa: Ed.
Universitária/ UFPB, 1999, p. 17-99.
28
GALLIZA, O declínio da escravidão…
29
Compreendemos como crianças aqueles com idade de zero a 14 anos.
30
Consideramos as pessoas idosas com 50 ou mais anos.
31
Pessoas com a idade produtiva, entre 15 e 49 anos.

38 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


tê-las criado em seus braços”, “por tê-las como filhas” e poucos expressaram “por
amor a Deus”, “por bons serviços” e “benevolência” ou “vontade pessoal”. Poucas
dessas crianças receberam suas cartas com condição. Registramos apenas duas, a
de Idalina (1854), mulata, de mais ou menos seis meses de idade, que tinha por
obrigação servir sua ex-senhora até que esta morresse32, e a de Joaquina (1855),
parda, então com um mês e 25 dias, sob a condição de se conservar na casa de sua
ex-senhora até o falecimento desta33.
Mas muitas dessas crianças foram alforriadas pelos esforços dos seus familiares,
principalmente as mães, por cujos “bons serviços” os senhores concediam a liberdade
aos filhos. Às vezes, as crianças eram alforriadas na pia, no momento do batismo.
Em Sousa, conseguimos identificar a liberdade de três crianças: Antônia34, nove anos
de idade, uma mulata, cuja carta foi passada em 1854; e os irmãos Marcelina, de
quatro anos, crioula, e Pedro, de dois anos, em 1857, e registrada no mesmo ano35.
Os “bons serviços” prestados pelos pais ou parentes das crianças possibilitaram
que os senhores aceitassem valores inferiores ao preço que a criança obteria no
mercado. Essa foi uma das justificativas dadas pelos senhores ao esclarecerem o
porquê do valor dos libertandos. Foi o que ocorreu com crianças escravas, em Sousa.
Avôs, mães, pais acumularam pecúlio para comprar a carta de liberdade. Maria,
mulatinha de sete meses, obteve sua liberdade por compra realizada pela avó36,
em 1836, pela quantia de 55 mil réis. Sua carta foi registrada em 1845. Damiana,
cabra de idade de 11 para 12 anos, obteve a alforria com os esforços da mãe, que
comprou sua liberdade em 1825, por 100 mil réis37. Os irmãos Joze, de 11 anos,
e Vitalina, de nove, obtiveram a liberdade através de seu pai, João Francisco, um
homem livre, que os comprou, respectivamente por 100 e 140 mil réis38.
Os escravos idosos obtinham sua liberdade na mesma proporção modal, isto
é, 14 (de 28) compraram a liberdade, e 14 (de 28) a receberam a título gratuito.
No cômputo geral, entre os idosos, novamente as mulheres conseguiram superar
numericamente os homens, pois foram 19 (de 28) contra nove (de 28). Ressalte-se

32
Veja Livro de Notas de Sousa, 1854-1855, n° 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
33
Veja Livro de Notas de Sousa, 1856, nº 33, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
34
Veja Livro de Notas de Sousa, 1854-1855, nº 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
35
Veja Livro de Notas de Sousa, 1857-1858, nº 35, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
36
Veja Livro de Notas de Sousa, 1845-1849, nº 29, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
37
Veja Livro de Notas de Sousa, 1822-1825, fl. 144v-145, nº 17, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
38
Veja Livro de Notas de Sousa, 1844-1855, fl. 9-10v, nº 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 39


que as crioulas, escravas nascidas no Brasil, predominaram: foram 16 contra três
escravas africanas. Estas eram todas “pretas”, de “nação Angola”. Conseguiram a
liberdade, duas, por meio de compra: Joanna, de “idade avançada”, em 1849, e
Izabel, 50 anos, em 1853, e que teve sua alforria condicionada a servir sua senhora até
que esta falecesse39. E por concessão, recebeu Rosa40, africana de 70 anos, em 1855.
Com referência à frequência da distribuição das alforrias, os estudos apresentam
as conclusões mais variadas e divergentes possíveis. Mattoso41 observou em Salvador,
Bahia, uma conjuntura econômica desfavorável para os senhores no século XIX, e
que contribuiu para a aceleração das alforrias. Esses senhores, carentes de dinheiro
para estimular a produção, recorriam à venda de seus direitos sobre o cativo. Sobre
o Rio de Janeiro, Karasch enfatiza o fator demográfico. Como o porto do Rio era um
dos grandes importadores de escravos no Século XIX, a cidade tinha um contingente
muito elevado de cativos, principalmente, de africanos, o que tornava mais viável a
concessão de alforrias gratuitas ou a permissão para que os escravos comprassem
sua própria liberdade.
Os senhores estavam renovando os seus “estoques” de cativos, trocando os
antigos escravos por outros mais jovens, com mais vigor e força produtiva. Eisenberg42
(1989) percebe dois momentos distintos da frequência da alforria em Campinas, no
Século XIX. O primeiro, referente à primeira metade do Século, fora consequência do
crescimento econômico e da população escrava, visto que a taxa de crescimento das
alforrias parecia próxima ou igual à taxa de crescimento populacional. O segundo,
correspondente à segunda metade, foi decorrente das campanhas abolicionistas,
em que as alforrias refletiam as correlações de força na sociedade, em torno da
escravidão. De um lado, um grupo hostil à escravidão e, do outro, os escravistas.
Nessa correlação de forças, grupos contrários à manutenção do sistema escravista
exerciam fortes pressões e minavam o poder dos senhores de escravos. Em São
Paulo, foi criado o Grupo dos Caifazes, abolicionistas radicais de maior atuação43.
Histórias que se entrelaçam: escravos e senhores
A complexidade que envolve a construção da liberdade pode ser percebida, em
alguns casos, no corpo da redação da carta de alforria, que nos permite compreender
fragmentos do processo de liberdade e aferir sobre o universo das relações entre
senhores e escravos, possibilitando a reconstrução de microbiografias de liberto(a)s
e “patrono(a)s”. Vejamos algumas delas. Em 1825, aparece, nos livros de notas de
Sousa, o registro da carta de liberdade de Damianna, cabra, de idade de 11 para
39
Veja Livro de Notas de Sousa, 1849, nº 29, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano; e o Livro de Notas de Sousa, 1844-1855, nº 32 Notação: A2P2, Fundo:
Coleção de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja,
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
40
Veja Livro de Notas de Sousa, 1844-1855, fl. 39-39v, nº 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
41
MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
42
EISENBERG, “Ficando livre...”, p. 255-312.
43
Para mais informações sobre os caifazes sugerimos a leitura de: CONRAD, Robert. Os últimos anos
da escravatura no Brasil (1850-1888). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; e, ainda,
IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. São Paulo: HUCITEC, 1988.

40 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


12 anos. Nesse documento seu ex-senhor, Joaquim Joze do Espírito Santo, afirmou
que, “sem constrangimento algum”, recebeu da mãe da dita liberta a quantia de 100
mil réis por sua liberdade. Não temos informação se a mãe de Damianna era liberta
ou escrava, porém ela não mediu esforços para conseguir a alforria de sua filha44.
Aos oito dias do mês de março de 1854, compareceu, provavelmente o pai, ao
Cartório, na Vila de Sousa, para registrar a carta de liberdade da mulatinha Antônia,
de nove anos de idade, apesar de não ter sido denominado pelo Tabelião. Essa
poderia ser uma história como outras registradas nos documentos sobre a escravidão
no Brasil, ou seja, um pai registrando a liberdade de sua filha. Contudo, a carta de
Antônia nos revela que ela era filha legitima de Joanna (escrava de Agustinho [sic]
Alves Correa) e de João Francisco. Outra peculiaridade dessa história é que João
Francisco não era um homem liberto ou forro, mas livre e, como tal, foi registrado
no documento pelo senhor Agustinho Alves Correa. A “mulatinha” Antônia foi,
segundo seu ex-senhor, alforriada na pia, apesar de não informar quando ocorreu
o batismo, mas sua carta foi concedida em 3 de março de 1854, quando tinha
aproximadamente nove anos, e a carta foi escrita em Cabasso, residência do seu
ex-senhor, com as devidas testemunhas e assinaturas reconhecidas pelo Tabelião.45
Um mês após esse primeiro registro, em 8 de abril de 1854, novas três cartas de
liberdade foram registradas. Para nossa surpresa e – por que não dizer? – alegria,
elas pertenciam a Joanna, esposa de João Francisco, e a dois outros filhos do
casal, Joze e Vitalina. A liberta e seus dois filhos, agora também libertos, obtiveram
a liberdade porque o marido e pai conseguiu, com seus esforços, amealhar uma
pequena fortuna de 450 mil réis. Esclarecemos a utilização da expressão pequena
fortuna, em comparação com os dados dos bens obtidos no inventário de Domingos
João Dantas, realizado em 1853. Assim, pelo valor dos bens arrolados, foi possível
perceber que, com a quantia despendida por João Francisco para libertar sua família,
ele poderia comprar, na hipótese de já possuir um sítio, 26 vacas, solteiras ou paridas,
por 17$000 réis a cabeça, ou mesmo uma parte de terras no Sítio Malhada, com
posse de parte de um açude, com água para matar a sede de 11 cabeças de gado,
que poderia comprar juntamente com o sítio. Evidentemente que Joanna também
poderia ter contribuído para a aquisição do dinheiro para a compra de sua liberdade
e a de seus filhos, mas o que ficou explícito foi que, pelos “serviços” por ela prestados
ao senhor, foram facilitadas as alforrias. Vejamos um trecho da carta:
Diz eu [Agustinho Alves Correa] abaixo asignado que entre
os mais bens que possuo de mança e pacifica posse, livres
e desembaraçados e bem assim huma escrava por nome
Joanna, cabra de idade de trinta e oito anos, cuja a forro por
duzentos mil réis, que recebi da mão de seu marido João
Francisco, em moeda corrente do nosso Império, o que a
forro ser esse preço por lucros de crias que tem dado [...].46
44
Veja Livro de Notas da Vila Nova de Souza, nº 17, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
45
Veja Livro de Notas da Vila Nova de Souza, 1854-1855, nº 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
46
Grifos nossos. Livro de Notas Vila Nova de Sousa, 1854-1855, fl. 8v, n° 32, Notação: A2P2, Fundo:

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 41


Portanto, mesmo que Joanna não tenha conseguindo juntar um pecúlio em
dinheiro, ela conseguiu, através dos “bons serviços” e dos filhos que teve, abater o
preço de sua alforria e a concessão gratuita da filha Antônia. Esse acontecimento
também se reflete na alforria de seu filho Joze, de idade de 11 anos, que foi alforriado
por 100 mil réis, e sua outra filha Vitalina, de nove anos, aproximadamente,
libertada por 140 mil réis. Ambos receberam esses preços por “serem crias da casa”.
Provavelmente, obteriam outros valores caso fossem provenientes de compras ou
de herança, e, sobretudo, sem os serviços prestados pela mãe ao ex-senhor.
Em 29 de julho de 1856, já na cidade de Sousa, compareceu uma pessoa não
identificada, da parte do crioulo Raimundo, no Cartório do Tabelião, para registrar
sua carta de liberdade. Ele pertencia ao Padre Ignácio de Souza Rolim, sacerdote
secular da Freguesia de Sousa, que obtivera o cativo como herança de sua mãe,
ainda em “tenra idade”. Raimundo recebeu sua alforria como concessão de seu
senhor, entretanto, ele alegava as seguintes condições para alforriá-lo.
[...] o qual liberto, e de facto libertado o tenho de hoje
para sempre; pelo que pudera elle gozar de plena e inteira
liberdade como se forro nacesse, impondo-lhe todavia o
onus de prestar-o sem rezerva ao serviço da Igreja de Nossa
Senhora da Piedade athe o seo acabamento. Se entretanto
algum dos meos laterais herdeiros por minha morte intentar
em juizo ou fora delle alguma acção contra essa minha livre,
expontania, e deliberada disposição, pesso ás Justiças deste
Imperio, não adimitão a sua requisição.47
A igreja de Nossa Senhora da Piedade era a matriz da povoação de Cajazeiras.
Pela Lei Provincial nº 5, de 29 de agosto de agosto de 1859, nesse lugar, foi criada
a Freguesia de Nossa Senhora da Piedade48. O padre Ignácio de Souza Rolim foi
o líder espiritual e o grande incentivador da instrução no sertão. Em Relatório de
1858, o Presidente da Província, B. Rohan, afirmava:
Não posso deixar de fazer menção especial de um collegio
de instrução secundária, fundado na cidade de Cajazeiras
pelo digno sacerdote e benemérito cidadão Revmo. Ignácio
de Souza Rolim; é elle um foco importante de instrucção,
não só para os sertões desta província como para os do
Ceará e Rio Grande do Norte; conta [o Colégio de Padre
Rolim] noventa e cinco escolares.
Ora, no sertão paraibano, haver escolas destinadas ao ensino das primeiras letras
era muito difícil. Era a época das “cadeiras isoladas”. De acordo com Pinheiro49,
a “[...] criação e a extinção de cadeiras isoladas estavam sujeitas ao mandonismo
Coleção de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja,
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
47
Grifos nossos. Livro de Notas de Sousa, 1856, fl. 34-35, n° 33, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
48
ROHAN, [1870?].
49
PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na
Paraíba. Campinas: Autores Associados; São Paulo: USF, 2002, p. 37.

42 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


dos coronéis e à troca de favores nas diversas instâncias do poder estatal, além de
fazer parte do jogo de interesses políticos das facções que então se autodefiniam
como conservadores e liberais”.
O Padre Ignacio Rolim nasceu no mesmo ano da instalação da Vila Nova de
Sousa, em 1800. Saiu de Sousa para estudar no Seminário de Olinda, com 22 anos,
permanecendo nesse local por três anos. Retornou à sua povoação para ensinar e
exercer o sacerdócio. Desde 183650, ministrava aulas em Cajazeiras, em local pró-
ximo à casa dos pais, e quando a procura se tornou maior, fundou o colégio em
1846, que crescia segundo a chegada de novo grupo de alunos. O Padre Ignacio
Rolim morreu aos 99 anos de idade, em um dos quartos do colégio que fundou.
Na família Rolim, temos mais um caso de cativo libertado. Trata-se de João,
escravo que foi do Doutor Manoel de Souza Rolim. Sua carta registrada em 28
de julho de 1852, na Vila de Sousa, foi apresentada por sua mãe, a parda Maria,
também liberta, e concedida na própria Vila de Sousa, aos 27 de julho 1852. Opta-
mos por colocar a carta de liberdade de João na íntegra, por apresentar elementos
particulares na sua escrita. Diz o Doutor Manoel Rolim:
[...] constituisem a minha sustancia; ou pelo provimento
do estudo e lição do direito natural, e dignidade da pessoa
humana, direito impresentivel e absoluto, que por mais
que mil circonstancias por titulares o queirão – mo de ficar
elle a maneira da hua, colocado em seca e Nobre posição
infinitamente superior a ellos, zomba, ou antes nem sequer
attenção por essa aos ladros de tais cains; ou por genio e
indole hum poco propurço a liberdade, e justiça, sempre
sintimentos, de que me prezo, de eterna averção ao
cativeiro, [...]: vendo por outra parte huma monstruozidade
entre huma sociedade de racionais catholicos hora proebir-
se despoticamente o cazamento, que o Divino Instituidor
de axar livre a todos sem execpção de livre ou Escravo,
outrora vender-se hum dos conjuges, separando desta
sorte o homem, o que Deus ajuntou; agora não me porei
ao mesmos muito menos, qui tendo a liberta Maria tido por
ligitimo Matrimonio tantos filhos, ninhum se-lhe conceda em
sua viuveis, para lhe diligenciar licitamente alguns socorros.
Portanto visto que minha Mai [...] feito voluntaria doação
de hum delles, xamado João; eu aceito a doação, e por
esse papel o restituo a sua liberdade (pois a natureza não
feis distinção de livre nem Escravo), e como livre se tratará,
pois por essa carta de alforria o fica sendo de hoje para
sempre, io intrego desde já a dita sua Mai para dispor delle
com Autoridade de Mai, conhecendo elle que pelo exposto

50
Em 1836, por Lei Provincial, foi criado o Liceu Paraibano. Em 1843, a Província tinha 20 escolas
elementares, com um total de 656 alunos de ambos os sexos. Em 1854, a Paraíba tinha 1343
alunos, de ambos os sexos, matriculados em suas escolas. Veja PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira.
Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba. Campinas: Autores Associados;
São Paulo: USF, 2002.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 43


nesse papel, elle fica constituido nenhuma obrigação mais
estreita de ser bom filho, pois que hé mais em atenção a élla
do que a élle que eu o forro, todavia por pretexto ninhum,
pessoa alguma pudera reduzi-lo jamais ao cativeiro. Souza
vinte e sete de Julho de mil oitocentos e cincoenta e doies.
Manoel de Souza Rulim = Enquanto porem o dito João
não xegar a idade de governar-se [...], eu Authorizo aos
meos Irmãos homens, que entao mora no lugar, para ter
inspecção sobre elle, afim que trabalhe e não ofenda a
pessoa alguma, nem pratique viciozos custumes. e dezejo
que elle obedeça aquelle a quem se assentar, obedecendo
para não andar absoluto, más trabalhando para sua Mai e
elle passar. Manoel de Souza Rulim. Ao menos emquanto o
Juis de Orffaos não tomar conta delle, ou entrega-lo a hum
tutor ou curador. Manoel de Souza Rulim [...].51
O texto da carta é uma ferrenha defesa dos ideais iluministas, que ganharam
bastante legitimidade e consenso no Século XIX. Manoel Rolim contesta, através do
direito natural, o mesmo que foi usado para escravizar as nações ditas “bárbaras”, a
longa tradição de desigualdades aceita e postulada como natural entre os homens,
pois o “[...] Divino Instituidor de axar livre a todos sem execpção de livre ou Escravo”.
O senhor concedeu a liberdade a João, para que ele pudesse cuidar da mãe, visto
que “[...] tendo a liberta Maria tido por legitimo Matrimonio tantos filhos, ninhum
se-lhe conceda em sua viuveis, para lhe diligenciar licitamente alguns socorros [...]”,
porquanto os homens separaram o que Deus uniu, o marido, da mulher e a mãe,
do filho.
Entretanto, faz-se necessário um exame do “patrono” de João. O Doutor Manoel
de Souza Rolim era irmão do Padre Ignacio de Sousa Rolim. Aquele ensinou, na
escola criada pelo irmão, latim e francês. E foi possivelmente nessa época, que
concedeu a liberdade a João. Na década de 1870, esse senhor foi para o Crato,
Ceará, para ministrar aulas aos filhos do senhor Francisco Ferreira de Mello, e, entre
eles, estava Joaquim Ferreira de Mello, mais tarde Vigário Geral do Arcebispado
do Ceará52.
Nas letras de Manoel Rolim, emerge, também, a contradição entre suas ideias
liberais e as dos seus pais. Ele obteve João em herança de sua mãe, aceitou a doação
para restituir a liberdade do cativo e entregá-lo à mãe. Seus pais foram senhores de
terras e de escravos na povoação de Cajazeiras. A contradição presente na família
Rolim exemplifica o liberalismo brasileiro, que abraçou a liberdade para poucos em
detrimento de muitos.
Em Sousa, os aspectos do perfil do alforriado evidenciado foram que, durante o
período estudado, a maioria da população escrava era feminina, parda, crioula, em
idade produtiva, porém não havia especificação detalhada, antes de 1872, em que
51
Grifos nossos. Livro de Notas da Vila Nova de Sousa, 1852, fl. 10-11v, n. 30, Notação: A2P2,
Fundo: Coleção de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio
Maroja, Instituto Histórico e Geográfico Paraibano.
52
PIRES, Pe. Heliodoro. Padre Inácio Rolim: um trecho da colonização do Norte e o Padre Rolim. 2.
ed. Teresina: Gráfica do Estado do Piauí, 1991, p. 71-72.

44 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


estava empregada; as alforrias registradas revelam que foram distribuídas entre as
escravas pardas, portanto crioulas, em idade produtiva; e houve baixo percentual
de alforrias de idosos, fossem mulheres ou homens. A maior incidência de alforrias
foi por meio de compra, sendo que os homens escravos eram os principais com-
pradores. As mulheres as obtiveram, em maior percentual, sobretudo, através da
concessão “gratuita”, em nome de relações de afeto e de cumplicidade com seus
senhores. As alforrias condicionais alcançaram 41,5%, um significativo percentual
entre as concedidas, mas a maioria, entre elas, foram as incondicionais, com 58,5%.
As cartas de alforria por compra (onerosa) podem indicar que o indivíduo recém-
liberto sobreviveria na sociedade desenvolvendo trabalho livre como agricultor, car-
pinteiro, entre outras atividades que realizava ainda em cativeiro, ou naquelas para
as quais adquiriu habilidade após a liberdade. A liberdade jurídica foi importante
porque, além da possibilidade de melhor desfrutá-la, havia a perspectiva de o liberto
ascender socialmente entre os livres. Os que receberam suas alforrias condicionais
se desdobravam entre a propriedade e a liberdade, a “vida de peteca”. Porém, para
essa população liberta, apresentou-se outra problemática: a questão da cidadania.
Para os africanos libertos, entendidos como estrangeiros, havia legislação específica
para que pudessem permanecer no país; a outra opção era a naturalização. Porém,
tanto o naturalizado quanto o crioulo liberto e o livre, eram considerados cidadãos
de segunda classe, cidadãos incompletos, com limitados direitos civis.

RESUMO ABSTRACT
Este estudo discute alguns caminhos empreendidos This study discusses some ways carried out by
pelos escravos em busca da liberdade, através das slaves in search of freedom, through writs of
cartas de alforrias referentes ao município de manumissions referring to the town of Sousa,
Sousa, Paraíba, século XIX. Examinamos 171 Paraíba, 19th century. A total of 171 writs of
cartas de liberdade, registradas entre os anos de manumissions were examined, registered during
1800 e 1858, por meio das quais foram libertados the period between 1800 and 1858, by means of
177 escravos. Apresentamos considerações sobre which 177 slaves were set free. Comments about
o perfil do liberto em Sousa, destacando: quem the characteristic of the free one were presented,
era mais alforriado se o homem ou a mulher; a in Sousa, by pointing out some aspects such as:
cor da pele dos libertos; a procedência; a idade who was mostly manumitted whether the man or
dos que se libertavam e a que grupos pertenciam; the woman; the skin color of those set free; their
os preços que os escravos alcançavam e quem origin; their age and to what group they took part;
pagava a liberdade. Estudamos, ainda, o the prices provided for the slaves and, finally, who
estabelecimento de laços afetivos entre escravos paid for their freedom. It was also researched the
e senhores, a formação de pecúlio para comprar establishment of affective bonds between slaves
a liberdade. Também foi possível trabalhar com and masters, and the formation of savings in order
as diversas condições impostas ao liberto para to buy freedom. Several conditions imposed to the
conseguir completar o processo de liberdade. free for attaining the freedom process were also
Percebemos que as histórias de vida dos libertos analyzed. Life histories of those set free revealed
revelaram que elas se entrelaçavam com as de that they entangled with those of their masters,
seus senhores, na própria relação do ato de in their own relation in the act of manumitting.
alforriar. Keywords: Slaves; Manumissions; Sousa;
Palavras Chave: Escravos; Alforrias; Sousa; Paraíba; 19th Century.
Paraíba; Século XIX.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 45


PAMPA NEGRO: AGITAÇÕES, INSUBORDINAÇÕES E
CONSPIRAÇÕES SERVIS NO RIO GRANDE DO SUL,
1863-1868
Mário Maestri1

1863-1864: Senzalas sem Paz no Meridião Rio-Grandense

Em 1863, o movimento emancipacionista fortalecia-se no Brasil. Após treze


anos da interrupção do tráfico transatlântico, a população escravizada, crioula ou
ladinizada, começava a contar com apoios entre a população livre na luta pela
libertação. Havia muitos anos, a abolição realizara-se no Uruguai e na Argentina2.
Nesse ano, a guerra de Secessão nos USA enfuriava, sinalizando a destruição do
cativeiro na grande nação. A escravidão tornava-se excrescência jurídica nas Américas
e a liberdade, direito civil a ser conquistado pela população feitorizada do Brasil.
No novo contexto, houve clara evolução das revoltas servis no Rio Grande do
Sul, que não passaram mais a apontar apenas obsessivamente para a fuga para os
matos ou para as fronteiras3. Agora, os cativos organizavam-se para reivindicar a
emancipação, de posição de força. Projetos que pressupunham esforço organizacional
e nível mínimo de elaboração política. A crise política no Prata [1864-1870] deu
também um novo sentido à busca das nações do Prata. Houve maior envolvimento
de homens libertos e homens livres nesses sucessos e aumentou o medo das
autoridades de que as notícias sobre eles se disseminassem na escravaria.
Insubordinação de Escravos
Em princípios de janeiro de 1863, informado que nas “fazendas de agricultura”
do cirurgião Antônio José de Moraes, no termo de Taquari, região a uns cem
quilômetros a noroeste de Porto Alegre, apareceram “indícios de insubordinação de
escravos”, o delegado de Polícia enviou, no dia 8, o “inspetor de quarteirão”, com
“alguns praças”. O destacamento prendeu dois cativos tidos por “aliciadores de seus
parceiros”, parecendo “entrarem as fazendas no curso regular de seus trabalhos”.
Muito logo, como “alguns pretos procuraram embargar a passagem da escolta”
“reforçada”, o delegado de Polícia enviou “força do Corpo Policial” e o cirurgião
Moraes, a quem “os escravos prestando obediência, pediram perdão”. Os dois
acusados foram enviados para Porto Alegre para serem “interrogados” e sete cativos
homiziaram-se no mato. Em resposta às informações sobre os fatos, o conselheiro
João Vieira Cansanção de Sinimbu, ministro e secretário de Estado dos Negócios da

1
Doutor em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Professor titular do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. E-Mail: <maestri@
via-rs.net>.
2
Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975; ISOLA, Ema. La esclavitud en el Uruguay desde sus
comienzos hosta su extinción (1743-1852). Montevidéu: Facultad de Humanidades y Ciencias,
1975.
3
Cf. MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul, EDUCS,
1984.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 61


Justiça, na Corte, recomendou “terminantes providencia para a punição” daquela
“insubordinação de escravos”4.
Em 25 de fevereiro de 1863, o presidente da Província enviou ao chefe de
Polícia de Pelotas correspondência reservada sobre “as seduções empregadas pelo
preto liberto Sebastião Maria”, suspeito de conspirar para a “insurreição de grande
número de escravos” em Pelotas, o grande polo escravista sulino5. A presidência
da Província recomendava que se procedesse, com o “menor estrépito que for
possível”, “incessante vigilância a fim de prevenir os efeitos que porventura tivessem
provocado” a ação do liberto.
A presidência da Província perguntava sobre a repercussão da agitação e,
sobretudo, se Sebastião “obrava” “por movimento próprio” ou fosse, eventualmente,
“instrumento de algum plano tenebroso” de “algum agente ou súdito” da Inglaterra.
O liberto seria interrogado e levado, “com cautela e segurança para a cadeia da
cidade de Rio Grande, a bordo de “algum dos vapores de guerra da flotilha” que
transportavam tropas para a guarnição de Pelotas e Rio Grande. Determinava
igualmente que o liberto recebesse “nota de culpa” por “crime de insurreição” e que
fosse mantido na cadeia sem “comunicação com escravos, ou qualquer liberto que
não inspire inteira confiança”6. A referência e o temor à interferência da Inglaterra
era devido à questão Christie [1862-1865], então em curso7.
Reclamando a Liberdade
Meses mais tarde, em agosto de 1863, ocorreria tentativa insurrecional, no
segundo distrito da Aldeia dos Anjos [Gravataí], nas proximidades de Porto Alegre.
A paróquia de Nossa Senhora dos Anjos fora fundada para abrigar guaranis
missioneiros trazidos das Missões, quando do recuo luso-brasileiro para Rio Pardo,
após a Guerra Guaranítica [1753-1756]8. Na segunda década do século 19, a
população nativa já desertara em grande parte a aglomeração9.
Informado de movimentos conspirativos entre a escravaria de “diversas fazendas
da região”, o subdelegado de Polícia do distrito comunicou o fato ao chefe de
Polícia, que partiu na noite de 25 de agosto, para a região, à frente de uma “escolta
do corpo policial”. Ao chegar ao local, encontrou já em “diligências”, “praças da
Guarda Nacional”, convocadas pelo comandante do corpo do distrito.
No dia 26, chegaram dezessete “escravos presos” e, cinco outros, no dia
seguinte. Após interrogatório, acertou-se que, desde maio, os cativos da fazenda
de Francisco Maciel “aliciavam” cativos para “levantarem-se contra os senhores,
tomarem-lhes as armas e o dinheiro, e reclamarem depois sua liberdade, exigindo
pela força, se lhe a não dessem”. Os cativos da fazenda “evadiram-se logo que
perceberam a proximidade” das forças policiais. Os conspiradores contavam com
4
Arquivo Nacional, série IJ (1) 585; Arquivo Histórico do RGS (AHRGS), códice B.1.112.
5
Cf. GUTIERREZ, Ester J. B. Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.
Pelotas: UFPEL; Mundial, 1993.
6
AHRGS, Códices A.5.110. Correspondência do presidente da Província a diversas autoridades.
7
Cf. CONRAD. Os últimos anos..., p.57 et seq.
8
Cf. SEVERAL, Rejane da Silveira. A Guerra Guaranítica. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1995.
9
Cf. CASAL, Pe. Manuel Aires de. “Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro”. In:
__________. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil – Tomo I. São
Paulo: Cultura, 1943, p. 101.

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apoio nas “fazendas vizinhas” e enviaram “emissários” para o Pinhal, Passo Grande
e Sapucaia10.
O movimento eclodiria na quarta-feira, 26 de agosto – um dia após a repressão ao
movimento. Os cativos planejavam “reunirem-se no Passo do Butiá”, para “alistarem-
se”. Após acamparem no campo do Chará, atacariam a povoação da Aldeia dos
Anjos, no dia 30, domingo. De lá, partiriam para o Passo Grande, “onde reunidos
todos”, marchariam para Porto Alegre. Um chefe do movimento, que se entregara no
dia 28, e outros prisioneiros, confirmaram o plano. O delegado conclui seu relatório,
escrito em 29 de agosto, assegurando que a “tranquilidade” fora restabelecida. Os
cabeças do movimento, já presos, seriam processados. Os menos envolvidos, foram
imediatamente “castigados corporalmente”, com a licença dos proprietários11.
A conspiração era movimento singular, nos objetivos, amplitude e organização.
No mínimo durante quatro meses, cativos da fazenda de Francisco Maciel aliciaram
companheiros das propriedades vizinhas e em outros pontos do distrito. Eles
concentrariam as forças nos dias 26, 27, 28 e 29 de agosto e, no domingo, atacariam
a Aldeia dos Anjos e, após nova reunião no Passo Grande, partiriam para Porto
Alegre. Esperavam, iniciado o movimento, receber novas adesões. Pretendiam
reivindicar a liberdade de uma posição de força.
A Conspiração de Taquari
Em novembro de 1864, descobriu-se plano de cativos para saquear a vila de
Taquari e, após sequestrar mulheres, fugir para o Estado Oriental, onde enfuriava
a guerra civil e receberiam certamente a proteção do Partido Blanco. Informada
em 19 de novembro, a presidência da Província enviara na manhã seguinte, para
aquela vila, “vapor”, pelo rio Taquari, afluente da margem esquerda do rio Jacuí,
com um oficial, dez soldados, “armamentos e munição” e o juiz de Direito interino
da 2ª Vara Criminal, José Alves de Azevedo Magalhães, para investigações. Este
último informara que o plano da “insurreição” seria “insensato e que nem poderia ser
levado a sério, sendo o susto dos habitantes mais imaginário do que real”. Segundo
o delegado de Polícia, as fazendas do distrito teriam mais de oitocentos cativos.
Não fora falso alarme. Em ofício ao presidente da Província, de 20 de novembro,
Azevedo Magalhães declarava que, em interrogatórios feitos após a descoberta da
conspiração, soubera-se que os cativos “Boaventura, Domingos, Carlos, Bento, João
e Joaquim, aliciados pelo liberto João Marçal”, convidaram “diversos parceiros”
para se reunirem, em um dia não marcado, no cemitério, para “dali marcharem”
sobre a vila e, após apoderarem-se de armas e dinheiro, “retirarem-se para o Estado
Oriental. Uma cativa, de propriedade de Francisco Caminha, soubera do plano e o
denunciara. Falava-se na região que chegara do Uruguai, onde estivera “refugiado”,
“um preto irmão de dois escravos implicados”. Nos interrogatórios, o cativo Joaquim
acusou dois destacados cidadãos da vila como responsáveis pelos fatos12.
Em ofício de 25 de novembro, o delegado de Polícia da região comunicava que
os cativos Joaquim e Domingos, de Antônio José de Oliveira; a escrava Ventura,

10
Arquivo Nacional, Série IJ (1) 585.
11
Arquivo Nacional, Série IJ (1) 585.
12
Arquivo Nacional, série IJ (1) 586, Correspondência do presidente da Província ao ministro e
secretário de Estado de Negócios da Justiça, 29 de novembro de 1864.

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de Damásia Joaquina da Silva; Antônio, de Cândido d’Abril; Bento, de Manuel da
Silva Pinto, e Carlos, de José Mendes da Silva foram denunciados como implicados
em crime de tentativa de insurreição. Como hábito, os menos comprometidos
foram apenas açoitados, com a anuência dos proprietários13. Tratava-se de plano
insurrecional para fugir para o Estado Oriental, onde as tropas imperiais haviam
ingressado em setembro, agravando a crise e ensejando, a seguir, o grande conflito
de 1865-1870.
Em dezembro de 1864, em Pelotas, o bacharel João Marcelino de Sousa Gonzaga,
presidente da Província [2.5.1864-20.06.1865] relatara ao ministro da Justiça, na
Corte, a descoberta de plano insurrecional de cativos em Porto Alegre. Apesar de
não dispor ainda de dados precisos, descria da notícia, nascida do “espírito público
da província”, impressionado “com a gravidade da situação” no Uruguai. Propôs
igualmente que Porto Alegre teria “muita população livre e poucos escravos” e pedia
licença para proceder contra “libertos”, entre eles ex-praças do Exército, possíveis
causadores dos “receios de insurreição”14. Nos fatos, a população servil da capital
não era diminuta, como proposto. Mesmo exportando cativos para o Centro-Sul,
23% da população porto-alegrense conhecia o cativeiro – sem contar os libertos e
negros livres15.
Os Orientais e a Grande Conspiração de 1865

Mais do que vãs temores agitavam a província sulina em 1865. Em seu Relatório
sobre sua administração do Rio Grande, João Marcelino escreveria: “No princípio do
corrente ano [1865], houve um estremecimento geral proveniente de suspeitas da
existência de um plano de insurreição servil”. Novamente, para ele, não seria “plano
combinado”, mesmo reconhecendo a agitação em “alguns termos da Província”.
Na ocasião, repreendeu as “autoridades locais” que acionaram “ostensivamente”
a Polícia e louvou o delegado de Polícia de Pelotas, pelo “critério e discrição”, ao
tomar, “sem ostentação”, as medidas precaucionais. Registrou temer a participação
de orientais do Partido Blanco16.
A agitação no Rio Grande agravara-se com o ingresso das tropas imperiais no
Uruguai, em setembro de 1864, com o apoio dos colorados. Em fins daquele ano,
as tropas do Império cercaram Paissandu, ferrolho oriental sobre o rio Uruguai.
Tentando reverter a difícil situação, à espera do aliado paraguaio, em 27 de janeiro
de 1865, a cavalaria blanca atacou Jaguarão, na fronteira com o Uruguai17. Em seu
Relatório, João Marcelino acusou uruguaios vivendo no Rio Grande de tentarem

13
Arquivo Nacional, série IJ (1)586.
14
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul [AHRGS], Porto Alegre, Caixa 74, correspondência do
presidente da Província com o Ministro da Justiça, ofícios 286 e 287.
15
Cf. ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860). Passo
Fundo: UPF, 2002, p. 64.
16
GONZAGA, João Marcelino de Souza. Relatório com que o Bacharel João [...] entregou a
administração da Província de São Pedro do Rio Grande ao Ilmo. e Exmo. Sr. Visconde de Boa
Vista. Porto Alegre, Typ. do Rio-Grandense 1865, p. 20 et seq.
17
Cf. BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do
Plata: Argentina, Uruguai e Paraguai – Da colonização à guerra da Tríplice Aliança. 2. ed. Brasília:
Editora da UnB, 1995; BARÁN, José Pedro. Apogeo y crisis del Uruguay pastoril y caudillesco.
[1839-1875] Montevideo: Banda Oriental, 2007.

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“desencaminhar” cativos para facilitarem a invasão18. Porém, após o ataque a
Jaguarão, Paissandu foi tomada, em 2 de janeiro de 1865, e Montevidéu rendeu-se,
em 20 fevereiro, comprometendo a intervenção paraguaia e, talvez, as articulações
para a sublevação de cativos sulinos.
Quando da invasão oriental, os jornais sulinos não respeitaram as recomendações
de discrição. O Diário de Rio Grande, de 1º de fevereiro de 1865, informou:
O estafeta de Jaguarão chegou ontem de tarde, com cartas
de 29, às 7 horas da noite. Os blancos atacaram de fato
aquela cidade, mas não a penetraram, e foram repelidos
com toda a energia [...]. [...] O inimigo retirou-se com direção
a Bagé, depois de 30 horas de resistência, arrebanhando
para mais de três mil cavalos e muitos escravos [...]. Uma
carta de Arroio Grande noticia que o número de escravos
arrebatados pelos vândalos subia a cem.19
Arroio Grande encontra-se a uns cinquenta quilômetros a nordeste de Jaguarão.
O assalto da cavalaria blanca criou movimento de pânico. Em 31 do janeiro
de 1865, o presidente da Província escrevera ao conselheiro Pedro Carlos de
Beaurepaire-Rohan [1812-1894, ministro e secretário de Estado dos Negócios da
Guerra:
No dia 28 [de janeiro] [...] recebo a participação que me
fez o comandante da fronteira de Jaguarão [...], de ter sido
invadido o nosso território por uma força de – blancos –,
que passara no passo da Armada, no rio Jaguarão, distante
da cidade do mesmo nome quatro léguas; bem como que se
supunha que igualmente tivessem invadido o nosso território
pelos passos de São Diogo e Centurião [...].20
Os exageros seriam corrigidos. As tropas uruguaias eram inferiores aos dois
mil homens propostos e o combate não fora renhido. Os invasores teriam tido
uns “quatro mortos e seis feridos”; os brasileiros, “um morto e cinco feridos”21. O
presidente da Província acreditava “haver muita exageração” na afirmação de que
levaram “três mil cavalos e um número muito avultado de escravos” e “raptadas
algumas mulheres”, pois não haveria “pelas imediações das fronteiras, na zona por
eles percorrida, grande quantidade de cavalos” ou de “escravos”22. O que era uma
inverdade, devido ao importante polo escravista charqueador de Jaguarão.
Alarmismo
A imprensa refletia a intranquilidade dos escravistas. O Diário de Rio Grande,
de 2 de janeiro de 1865, noticiava:
Consta-nos que sua excelência o sr. presidente da Província

18
GONZAGA, Relatório com que o Bacharel João...
19
Diário de Rio Grande, Rio Grande, 1º fev. 1865.
20
Correspondência [Anno 1865]. Typografia Nacional: Rio de Janeiro, 1865, p. 10.
21
Correspondência [Anno 1865], p. 13.
22
Correspondência [Anno 1865], p. 13.

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recebeu ontem parte oficial de Jaguarão, que confirma tudo
quanto dissemos [...]; com diferença porém que o inimigo
tomou caminho de Santa Vitória, e não de Bagé. Consta-
nos também que a maior parte dos escravos arrebatados
tem fugido das fileiras blancas e procurado a casa de seus
senhores.23
Muito logo, ao temor motivado pela invasão se acrescentaria o medo de
insurreição servil.
O Comercial, também de Rio Grande, em sua edição de 6/7 de fevereiro,
noticiaria, por primeiro, problemas com os cativos na região: “Foi ontem [dia 5]
recolhido à cadeia, por ordem do sr. delegado de Polícia, o escravo do sr. Manoel
Antonio Lopes, por nome Bonfim, chefe dos sublevados de Santa Izabel.” A revolta
teria ramificações no distrito de Taim e suspeitava-se da participação de uruguaios24.
A vila de Santa Izabel, no canal de São Gonçalo, que liga a lagoa Mirim e dos Patos,
sediava diversas charqueadas, com importante escravaria.
Em 7 de fevereiro, o delegado de Polícia de Jaguarão notificara a presidência
da Província:
Do segundo distrito da freguesia do Arroio Grande [termo
de Jaguarão], me foram remetidos oito escravos, sendo
ali presos como suspeitos e convenientes na insurreição
da escravatura que devia ter lugar na ocasião em que
fosse invadida nossa fronteira pelas forças do governo de
Montevidéu. Pelo depoimento do preto Florêncio, escravo
de Marcos José da Porciúncula, que parece ser o que se
encarregou de falar aos outros escravos, e declara que foi
convidado para isso pelo oriental José Benito Varella, que
muitos dias antes da invasão o convidara para que passasse
para o Estado Oriental, dizendo que seria esse início de
gozar a liberdade. 25
O delegado acreditava que “algum plano” fora “combinado” e que abortara
por “circunstâncias, por ora desconhecida” e prometa seguir “nas mais severas
indagações”, pois tinha “denúncia de alguns escravos moradores nesta cidade
[Jaguarão], como cúmplices” na conspiração26.
Mais tarde, em ofício de 18 de fevereiro, o presidente da Província, em Pelotas,
comunicava ao ministro da Justiça, que seguia “para a província de Santa Catarina
o oriental Benito Varella, ex-vice-cônsul de Jaguarão”. Ele fora preso, na freguesia
de Arroio Grande, por “suspeita de aliciador de escravos para insurgirem-se” e que,
devido à intranquilidade “geral na província” causada pelas “suspeitas mais ou menos
fundadas de insurreições de escravos”, efetuaram-se “muitas prisões e castigos”,
já que a população “enxerga em cada oriental um aliciador” exigindo “sua prisão
e deportação”. O presidente assinalara que indagações posteriores levavam a crer

23
Diário de Rio Grande, Rio Grande, 2 fev. 1865.
24
O Commercial, Rio Grande, segunda e terça-feira, 6/7 fev. 1865.
25
AHRGS, Delegacia de Polícia, Jaguarão, 1865, pasta III.
26
AHRGS, Delegacia de Polícia, Jaguarão, 1865, pasta III.

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que as suspeitas sobre oriental Benito Varella fosse infundadas27.
Em 8 de fevereiro, o jornal O Comercial, de Rio Grande noticiava:
Segue preso no vapor Guarani, o oriental José Benito
Varella, que foi remetido do Chasqueiro, pelo respectivo
subdelegado do distrito, em conseqüência de andar
aliciando escravos [...]. Se o sr. Varella assim procedia é
para admirar, porque sendo casado com senhora brasileira
e tendo filhos e netos brasileiros... Talvez que o sr. Varella
esteja inocente, assim o cremos.28
Desde que assumira como vice-cônsul uruguaio em Jaguarão, em 1857, Benito
Varella destacara-se pela em favor de afro-uruguaios escravizados ilegalmente, o
que motivara sérios atritos com os escravistas da região29.
Medos Fundados
Pelotas, Jaguarão e Santa Izabel, polos charqueadores, com importantes
concentrações de cativos, despertavam preocupações, em momento de confronto
com forças blancos do Uruguai, que abolira a escravidão, em inícios dos anos
1840. Porém, a escravidão de fato ou velada, era praticada nos departamentos
setentrionais do Uruguai, nas estâncias pastoris de rio-grandenses. Tal situação fora
uma das razões da exigência, por aqueles criadores, de intervenção imperial, já que
o governo oriental esforçava-se para fazer cumprir a abolição na região30.
Ao saber do ataque a Jaguarão, o presidente da Província pensara imediatamente
nos cativos da pequena povoação de Santa Izabel:
As quatro horas da madrugada de 29 [de janeiro] saiu o
vapor para Jaguarão. Expedi próprios [mensageiros] em
todas direções, ativando a reunião de forças. Mandei intimar
a todos os charqueadores residentes na povoação de Santa
Izabel (18 léguas distantes de Jaguarão), para nos iates,
transportarem todos os seus escravos para a margem oposta
do rio São Gonçalo.31
Ainda em Pelotas, preocupado com a situação, o presidente da Província mandara
a escuna Bojuru para Santa Izabel, na manhã de 20 de fevereiro. O tenente Jacinto
Furtado de Mendonça Paes Sena, comandante da companhia de Aprendizes de
Marinheiro do Rio Grande do Sul, a bordo da escuna, fundeada diante de Santa
Izabel, anunciava que chegara na madrugada de 23 à destinação, tendo falado
apenas no dia seguinte com o subdelegado da região, que morava a oito léguas de
Santa Izabel.
27
Arquivo Nacional, série IJ (1) 585, Correspondência do presidente da Província ao ministro e
secretário de Estado de Negócios da Justiça, 18 fev. 1865.
28
O Commercial, Rio Gande, quarta-feira, 8 fev. 1865.
29
LIMA, R. Peter de.‘A nefanda pirataria de carne humana’: escravizações ilegais e relações políticas
na fronteira do Brasil meridional. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 2010, p. 117 et seq.
30
Cf. PALERMO, Eduardo Ramón Lopez. Tierra esclavizada: el norte uruguaio en la primera mitad
del siglo 19. Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, 2008.
31
Correspondência [Anno 1865], p. 10.

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O tenente comunicava que os ânimos estavam sossegados e que já retornavam
as “famílias” que, temendo um levante servil, “se haviam retirado”. Informava que
o subdelegado, dispondo de “gentes bastante”, não julgava necessário que “os
presos” fossem conservados a bordo da escuna Bujuru. Entretanto, as notícias sobre
a conspiração não se restringiam a Santa Isabel, Arroio Grande e, talvez, Jaguarão32.
A Conspiração de Piratini

Em 8 de fevereiro, O Comercial reproduzia correspondência de 4 daquele mês,


de Piratini, vila a uns oitenta quilômetros a noroeste de Pelotas:
[...] estamos desde 29 do passado [janeiro], em alarme,
não por medo dos blancos, mas sim pela escravatura e
emigrados [...]. Anteontem [2 de fevereiro] apareceu a
notícia de haverem convites entre os escravos para se
sublevarem; isto foi descoberto e já se acham na cadeia
16 dos tais, entre eles o cabeça. O dia marcado dizem
seria amanhã [5 de fevereiro]. Todas as famílias estão
muito assustadas. Amanhã seguem para essa cidade sete
emigrados que por aqui vagaram e trata-se de prender todos
os mais que existem em grande número [...]; pois consta
até que parte dos convites foram feitos por eles mesmos.33
O Comercial seguia informando: “Chegou ontem [dia 7] uma força conduzindo
um número considerável de presos, uns desertores do exército e outros orientais
matreiros, remetidos pelas autoridades de Piratini, os quais foram recolhidos à cadeia
civil”34. Os uruguaios seriam a seguir enviados para a capital.
No dia 17 de fevereiro, o Diário de Rio Grande publicava longa carta de
correspondente em Piratini, do dia 10. Com a notícia da invasão de Jaguarão,
38 soldados da Companhia da Infantaria da Guarda Nacional de Piratini, sob a
chefia de seu capitão, Querubim Candido, e demais oficiais, partiram em “socorro
dos jaguarenses”, em 31 de janeiro. Ao chegarem “no mesmo dia, à freguesia
das Cacimbinhas, a uns vinte quilômetros a sudoeste de Piratini, já com mais de
sessenta praças”, não encontraram a “reunião de cavalaria” que já estava “para
o lado de Candiota”, onde se incorporariam às tropas de João da Silva Tavares,
barão de Serro Alegre.
Tendo sido o capitão Querubim Candido informado por “cidadão mui
respeitável”, Manuel Luís d’Ávila, de “veementes indícios” sobre uma “haitiada”
no município, retrocedeu com seus homens e acampou no passo de Manuel Lucas
da Costa, onde lhe foi entregue, à noite, por seu escravizador, o cativo Cassemiro,
tido como um dos líderes do movimento. Após mandar prender os conspiradores,
que, em muitos casos, foram encontrados armados, Querubim Candido retornou
a Piratini, levando também a João Castelhano, tido como sedutor – aliciador – dos
cativos, e um índio, talvez agregado na região. Os “dez crioulos [da província]
presos” se uniram aos “sete orientais que estavam na cadeia”.
32
AHRGS, Marinha, Lata 536, maço 72.
33
O Comercial, Rio Grande, 8 fev. 1865.
34
O Comercial, Rio Grande, 8 fev. 1865.

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Segundo o Diário de Rio Grande, a delegacia de Polícia interrogou os detidos e
“providenciou energicamente”, o que resultou na prisão de mais de trinta cativos. A
insurreição eclodiria na noite de 4 de fevereiro, e os “insurgidos, com divisa branca no
chapéu” [do partido blanco], saqueariam Piratini e, com seus parentes, engrossariam
as “fileiras ‘branquilhas’”. Na noite de 6 de fevereiro, teriam sido remetidos para
Pelotas oito desertores da infantaria da primeira linha e sete orientais, entre eles o
primeiro-sargento Ambrózio, presunto “principal motor da projetada insurreição”.
O Diário de Rio Grande assinalava o perigo de repetirem-se tragédias iguais às de
“Spartacus em Roma, e Tossaint-Louventure em São Domingos”, quando a fronteira
era “poluída” “por uma horda de vândalos”35.
A Insurreição da Capororoca
Segundo o “Mapa dos presos que frequentam a cadeia civil da vila de Piratini”,
durante 1865, de 3 de janeiro de 1866, três vagas repressivas abateram-se sobre os
cativos do município, com treze suspeitos presos no dia 2; oito, no dia 3; nove, no dia
6 e, finalmente, três, no dia 9 de fevereiro. Assim, 33 cativos foram aprisionados e
indiciados. Entre eles, não se encontra Cassemiro, tido como cabeça do movimento.
No mapa, encontram-se anotados os nomes de seis homens livres, todos
“indiciados na insurreição de escravos”, apesar dos nomes aportuguesados,
possivelmente orientais acusados de insuflarem a revolta. Todos ingressaram no
cárcere antes da prisão de Cassemiro, em 2 de fevereiro. João José Romeiro foi preso
em 29 de janeiro, dois dias após o ataque oriental a Jaguarão; Manoel Centurião,
no dia 30; o primeiro-sargento Ambrózio Martinho, Valentino Foppo, Santana
Sabento [?] e São Gonçalves [?], no dia 31. Eles foram enviados para Pelotas, em
5 de fevereiro36.
O inquérito aberto pelo delegado de Polícia de Piratini, em 6 de março, arrola
os cativos prisioneiros e seus proprietários: Domenciano, de dona Carlota Vandin;
Fortunato, de José de Brum de Souza; Mateus, de dona Constância da Rosa; André,
de Urbano da Rosa; Guilherme, da viúva Euzébia Vandin; Antônio, de João Correia
de Souza; Damião, de João Correia de Souza; Cassemiro, de João Antônio d’Avila;
Antônio e Pedro, de José de Oliveira Madeira; Lino, da viúva Maria d’Ávila; Tomé,
de José Olino da Rosa; Silvano e Alexandre, de José Pimentel de Mello; Fidelis e
Lívio, de Francisco de Lima Simões Pires. Apenas doze foram interrogados e três,
pronunciado como réus37.
Segundo os autos do inquérito, a conspiração iniciara, no mínimo, em meados
de janeiro de 1865, possivelmente por iniciativa do oriental Ambrózio de Tal, o
primeiro-sargento citado pelo Diário de Rio Grande, que andava, “imigrado”,
“vagabundeando” pelos campos do município, visto em “convivência” com o
cativo Tomé, de 36 anos. Os autos sugerem o envolvimento certo do cativo Tomé
e, bastante incerto, de André, da mesma idade. Interrogados, os dois juraram terem
35
Diário de Rio Grande, Rio Grande, 17 fev. 1865; APERGS, Piratini, 1ª Vara civil e de crime,
1.1.1863-31.12.1869.
36
MAPPA dos presos que frequentarão a cadeia civil da villa de Piratiny, durante o anno de 1865,
com declaração de nome, crime e data das entradas e saídas na prisão. Piratini, 3 de janeiro de
1866. AHRGS. Documentação judiciária, Piratini, 1866.
37
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul [APERGS], Piratini 1ª Vara civil e de crime,
01.01.1863-31.12.1869.

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rejeitado o convite para participarem da revolta. Tomé disse ter sido aliciado pelo
“preto André” e este, por Cassemiro.
O cativo Cassemiro, de 26 anos, teria tomado a frente da iniciativa, levando a
imprensa a apontá-lo como possível cabeça. Segundo os autos, convidara os cativos
Alexandre, André, Antônio, Demenciano, Felisberto, Guilherme, José, Lino, Pedro,
Silvano e Tomé. Dentre estes, José, de 27 anos, declarara que fora convidado,
inicialmente, pelo oriental Ambrózio, em meados de janeiro, que prometera levá-lo
ao Estado Oriental, “pois assim ficaria livre do cativeiro e que seu senhor não o
poderia ir [lá] buscá-lo.” O mesmo convite que o oriental José Benito Varella teria
feito a Florêncio, em Arroio Grande, talvez na mesma época.
O Orgulho da Revolta
Sem negar participação destacada, Cassemiro declarou que fora convidado
por Tomé, o “cabeça ou o influente” da conspiração. Afirmou que Tomé ficara
responsável pelos convites na parte norte do município, e ele, na parte sul. Declarou
que, após reunirem os arrolados por ambos, assaltariam, na noite de domingo, 5 de
fevereiro, Piratini, para roubarem “armamento, roupa e tudo o mais que pudessem
levar, assim como moças brancas”.
Cassemiro propôs que, “todos, no dia da reunião”, se apresentariam “com uma
fita branca no chapéu para serem conhecidos” e que os conspiradores seriam entre
“vinte e tantos ou trinta”, que declarou, quase orgulhoso, “prontos para marcharem”.
No total, foram interrogados doze cativo, que confirmaram os convites para “fugarem
para o Estado Oriental”, após o saque de Piratini, e jurarem, à exceção de Cassemiro,
terem rejeitado a proposta.
Teria sido forte a pressão dos proprietários pela libertação dos seus cativos,
após a correção que certamente receberam. A maioria dos 33 cativos aprisionados
permaneceu poucos dias na prisão. Dois, foram libertados após um dia de cárcere;
oito, após dois dias; cinco, após quatro dias; dois, após cinco dias; dois, após seis
dias; um, após oito dias; três, após onze dias; um, após dezessete dias; dois, após
dezoito dias; dois, após dezenove dias e um, após 24 dias.
Era grande a dispersão dos cativos envolvidos na conspiração. Entre os
proprietários de cativos arrolados pelo “Mapa” da prisão de Piratini, apenas José
Dutra de Andrade possuía três conspiradores; todos os outros, possuíam dois ou
um. Piratini era região dedicada à produção pastoril, na qual, em geral, as unidades
produtivas possuíam em torno de meia dúzia de cativos campeiros. Dos 34 suspeitos,
apenas três foram declarados réus. Com os interrogatórios e depoimentos realizados
em Piratini, a Justiça instruiu processo, por crime de insurreição, contra Tomé,
André e Cassemiro. Os autos reafirmam o plano insurrecional, com envolvimento
de oriental ou orientais blancos.
Moças Brancas
A conspiração previa reunião, na estrada que ia para Bagé, no “lugar denominado
Capororoca” [nome de árvore], no sábado, dia 4, para assalto, na noite de domingo,
dia 5, venda de Piratini, para obter o armamento necessário à rapina da vila. Os
cativos pretendiam apropriar-se de “armamento”, de “roupas” e do “que pudessem
encontrar”. Outra localidade menor, a capela da Luz, seria atacada. Antes da fuga

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para o Uruguai, sequestrariam as “moças brancas”, como declarara Cassemiro, e
matariam os “homens brancos”.
Os conspiradores eram solteiros e campeiros, atividade à qual associavam,
segundo parece, a função menos digna de “lavradores”. Em geral, os cativos
campeiros conheciam condições de existência superiores aos assenzalados. Por
razões próprias à produção, o trabalhador pastoril, cativo ou livre, raramente se
casava, realidade que se manteve no mínimo até os anos 197038. Os conspiradores
contavam com a participação inicial de vinte a trinta cativos, certamente montados,
pois a conspiração envolveu cativos campeiros. Os chefes do movimento pensavam
engrossar o movimento convidando durante a “marcha” outros cativos e levando,
“amarrados”, os que resistissem.
Tomé, André e Cassemiro haviam nascido e crescido em Piratini. Interrogados,
os proprietários afirmaram que os conheciam desde o nascimento, ou quase, e
que tinham tido, sempre, “bons precedentes” e servido como “bons escravos”. Os
sedutores e principais da insurreição seriam, segundo voz corrente, os orientais
Ambrózio de Tal e João Materina [?]. A referência direta do cativo José, de 27
anos, ao convite do primeiro-sargento oriental Ambrózio e a concordância sobre a
“fita branca no chapéu”, como distintivo da conspiração, não deixa dúvidas sobre
a influência oriental blanca direta no plano.
Ao serem interrogados, os cativos explicaram a [pretensa] rejeição a participarem
na revolta na fidelidade aos escravizadores complacentes, retomando discurso
escravista: Alexandre não queria sair “da casa de seu senhor”; Domenciano disse
que “sua senhora o tratava bem”; Lino “vivia bem” “em companhia de sua senhora
velha”; Pedro afirmou que “seu senhor nunca lhe dera motivo para fugir”, etc.
Ao contrário, Tomé declarou que declinara do convite que André lhe fizera porque
“vinham os Blancos para cá e que [de] toda a maneira”, ele e seu sedutor, estariam
mal. Tratando-se ou não de erro de transcrição [mal por bem] a inesperada reflexão
do cativo corroborava sua ligação com o sargento Ambrózio, sua participação na
conspiração e conhecimento da situação conflituosa no Uruguai.
Silêncio Absoluto
As autoridades perguntaram aos interrogados por que não denunciaram a
conspiração. As respostas variadas registraram a dificuldade em superar a contradição
entre a proposta de terem rejeitado participar no mote e o silêncio absoluto mantido
sobre o projeto de saque à cidade, de sequestro das sinhazinhas, de morte dos
sinhozinhos e de fuga para o Uruguai.
Demenciano disse que o convite era “mísera sassoada”. Lino, que silenciara
por medo de Cassemiro. Silvano não fizera “cargo do convite louco”. José fora
ameaçado de morte pelo oriental. Pedro não quisera ser chamado de “inverdadeiro”,
nem “comprometer-se” a si e a Cassemiro. André fizera pouco “caso do convite”.
Antonio obedecera à ordem de silêncio da “crioula Antônia”. Felisberto não quisera
“saber [de] semelhante asneira”, etc.
38
MAESTRI, Mário. “O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-
grandense (1680-1964)”. In: __________ & LIMA, Solimar Oliveira (orgs.). Peões, vaqueiros &
cativos campeiros: estudos sobre a economia pastoril no Brasil. Passo Fundo: UPF Editora/ CNPpq,
2010, p. 212-300.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 71


A documentação não revela como a conspiração fora denunciada. Segundo a
cronologia das prisões, registrada no “Mapa” dos presos da cadeia pública de Piratini,
o plano poderia ter sido revelado por algum uruguaio, preso nos últimos dias de
janeiro. Cassemiro, apresentado por parente de seu proprietário, fora preso apenas em
2 de fevereiro. O certo é que a conspiração circulara entre a escravaria, por talvez mais
de um mês, sem transpirar. Cumplicidade nascida talvez das relações interpessoais
dos envolvidos, todos campeiros e, possivelmente, crioulos do município.
Em 4 de julho de 1865, o promotor público de Jaguarão, João Franco de Oliveira
Souza, declarava que não encontrara nos autos matéria para “um despacho de
pronuncia contra” os réus. Portanto, em teoria, no final do mês, após quase cinco
meses de prisão, Tomé, André e Cassemiro seriam devolvidos aos escravizadores.
Os proprietários foram absolvidos das custas do processo. O Mapa da prisão de
Piratini registra a libertação de André, em 27 de julho de 1865, enquanto Tomé
teria sido libertado apenas em 2 de novembro. Não temos registro positivo sobre o
destino de Cassemiro39.
A condenação a longos anos de prisão por insurreição punia mais os proprietários
do que os cativos que, não raro, cometiam atos imputados como crimes e se
apresentavam, buscando na prisão uma quase liberação. Nesses anos, um cativo
campeiro valia uma boiada! Longas condenações de três dezenas de cativos
significariam sério golpe na economia de Piratini. A justiça escravista privada tinha
suas regras e recursos.
Como punição, os cativos podiam e foram castigados fisicamente, em forma mais
ou menos rígida. Era comum que após serem libertados, perdessem privilégios e
fossem vendidos para longe de suas relações e da terra em que nasceram. Talvez,
muito logo, Tomé, André, Cassemiro e outros envolvidos na tentativa insurrecional
da Capororoca tenham sido alforriados, sob pagamento, como milhares de outros
cativos, para partirem, não raro algemados, para os campos de guerra do Paraguai.
O Perigo Negro
O pânico vivido pelos escravizadores levou-os a pequenos “pogrouns” contra
cativos, libertos e negros livres. Segundo o Diário de Rio Grande, de 17 de fevereiro,
na vizinha vila de São José do Norte, a polícia seguia averiguando e castigando “aos
pretinhos crioulos do 1°. Distrito” tido como “insolentes ‘capadócios’” e “amigos
da vadiação.” Entre os “surrados” estavam o “célebre Manuel Cambão e Adão, de
Mostardas” e “Maximiano, escravo do Jerônimo Marinho Falcão”40.
Segundo o jornal, de 19 de fevereiro, espiões orientais eram vistos em todos
os cantos e “patrulhas de particulares, a cavalo” secundavam a polícia, em Rio
Grande, São José do Norte e Canguçu. Em 15 de março, o jornal publicava carta
de seu correspondente em Canguçu, de 26 de fevereiro, que temendo escrever
explicitamente sobre os fatos, registrava o medo, ódio e desprezo para com os
libertos e cativos:
[...] os moradores [...] desta vila, não tendo aqui uma
força qualquer armada, que pusesse a coberto suas vidas,

39
APERGS, Piratini, 1ª Vara civil e de crime, 01.01.1863-31.12.1869.
40
Diário de Rio Grande, sexta-feira, 17 fev. 1865.

72 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


honra de suas famílias e propriedade, de algum assalto de
ladrões, assassinos, ou de algum atentado da parte de nossos
AMIGOS (invertido) de cor BRANCA (invertido) ou dos
blancos; de seu motu próprio [...] formaram uma companhia
de voluntários [...] se apresentavam todas as noites dezoito
homens, fazendo patrulha, e outros aquartelados [...]. Esta
medida era útil e proveitosa em vários sentidos. 1° era um
respeito que impunha e em que as famílias confiavam [...].
2°. Impunha respeito aos tais pretinhos [sic], no caso de
quererem – batucar – e tanto receavam que ninguém já via
um passeador noturno desta laia [sic].41
Em 18 de fevereiro, o Diário de Rio Grande noticiara a descoberta de uruguaio
em uma senzala:
Em Pelotas foi encontrado, na noite de anteontem, um
‘oriental’ dentro da senzala dos escravos da xarqueada
do sr. Heleodoro da Azevedo e Souza; que ‘não sabendo’
como ali fora transportado, foi conduzido para a cadeia
por ‘inocente’.42
Crescia o medo de “emissários” e “espiões” estrangeiros. Lia-se no mesmo
jornal, de 19 de fevereiro de 1865, quando o domínio imperial sobre o Uruguai
transformava Francisco Solano López e o Paraguai nos inimigos temidos: “Consta-
nos que temos na província espiões do selvagem Lopez do Paraguai e que aí pelo
Rio Grande vagueia um de tantos, que tendo recebido daquele tirano porção de
onças [...]. Olho vivo com ele”43.
O Que Aconteceu?
A documentação sugere projeto articulado por enviados do Uruguai, que
associaria o ataque da cavalaria blanca a Jaguarão com o abandono das senzalas em
Cacimbinhas, Santa Izabel, Arroio Grande e Piratini e, talvez, em outras regiões do
sudeste sulino, com datas em torno do dia 4 e 5 de fevereiro. A prisão de uruguaios
blancos acusados de seduzirem os cativos e um registro indiscutível de tal ação, em
Piratini, reforçam a hipótese. É também crível que parte da agitação nas senzalas
nascesse do ataque blanco a Jaguarão e da esperança de possível derrota imperial,
que facilitaria fugas individuais ou coletivas.
A “Proclamação” do general Basilio Munhoz, escrita no Uruguai, em 20 de janeiro
de 1865, portanto, alguns dias após os primeiros convites do uruguaio Ambrózio aos
cativos de Piratini, registra que as forças blancas contavam, ao assaltar Jaguarão,
com a possibilidade da revolta servil na fronteira:
Proclamação. O general em chefe do exército da vanguarda
da República Oriental do Uruguai. Soldados! Vamos pisar
o território que o império do Brasil nos há usurpado, é

41
Diário de Rio Grande, 15 mar. 1865.
42
Diário de Rio Grande, Rio Grande, sábado, 18 fev. 1865.
43
Diário do Rio Grande, Rio Grande, domingo, 19 fev. 1865.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 73


necessário que com vosso patriotismo reconquistemos
seu domínio, fazendo tremular nele nossa bandeira, e dar
a liberdade aos desgraçados homens de cor que gemem
debaixo do jugo da escravidão, que a humanidade reprova
[...].44

Porto Alegre: Cativos & Paraguaios na Luta pela Liberdade

Em novembro de 1865, uma carta anônima denunciava conspiração servil em


Porto Alegre. Ela teria sido enviada ao ministro da Guerra, na Corte, que a passara
ao presidente da Província, que a expedira ao comandante das Armas do Rio Grande
que a entregara ao chefe de Polícia da Província. Finalmente, este último determinara
ao subdelegado do segundo distrito de Porto Alegre que investigasse a denúncia,
que se comprovou como falsa. O cativo Manoel, “de Lourenço de tal, alemão”,
citado como conspirador, havia muito fora vendido para fora da província. O preto
Augusto, de José Inocêncio Pereira, também denunciado, vigiado, comportara-se
corretamente, ao igual que Pompeu, de Maria Joaquina Corte Real. O vice delegado
acreditava que a “denúncia anônima” não teria “fundamento”. Também foram
vigiados sem resultados os cativos Martinho e Clemente.
Em junho de 1868, foi descoberta em Porto Alegre importante conspiração.
Os cativos Dionísio, Patrício e Teodoro, do negociante Francisco Ferreira Porto,
arregimentaram importante escravaria para rebelar-se, à noite, quando das festado
do Espírito Santo. A data fora transferida para a noite de São João, 24 de junho,
por Patrício, cabeça do movimento, que crera que “desgraças desnecessárias se
poderiam dar nessa noite, com mortes de mulheres e crianças”, pois reinaria “grande
confusão”, quando os “insurgentes” tomassem a “praça do palácio [atual praça da
Matriz]”, que estaria “cheia de povo a assistir aos fogos e festas”. Temia-se também
que a confusão malograsse o plano45.
Patrício encomendara a um cativo do capitão Manoel Joaquim, morador do
Caminho do Meio [av. Osvaldo Aranha], “doze dúzias de cabos de lança para
neles encravar-se facas e quaisquer outros instrumentos”, para servirem de lanças.
Os sublevados se reuniriam na chácara do Caminho Novo, do proprietário dos
conspiradores, para partir, a uma da madrugada, em divisões, para tomarem o
quartel da Guarda Nacional, onde sabiam “que dormia pouca gente”, o “Laboratório
Pirotécnico” e do “Arsenal de Guerra”. Pretendiam assim apoderar-se de armas, entre
elas, “dois rodízios”, no Laboratório Pirotécnico. Um grupo de rebeldes assaltaria
e libertaria os presos da Cadeia, para que aderissem ao movimento. Os cativos
planejavam entrar na cidade dando “vivias”, que seria obtida com a revolta.
A conspiração ultrapassou os marcos da população escravizada porto-alegrense.
Sob interrogatório, Patrício confessou que os conspiradores aliciaram para o
movimento os “prisioneiros paraguaios” que, transferidos para Porto Alegre,
perambulavam com a grande liberdade na capital. Para a revolta, fora contatado o

44
Correspondência [Anno 1865], p. 13; destacamos.
45
CUNHA, Rui Vieira da. “Escravos Rebeldes em Porto Alegre”. In: MENSÁRIO do Arquivo Nacional.
Rio de Janeiro, ago. 1978, p.11-15; Correspondência do Presidente da província de São Pedro do
RS ao Ministro da Justiça. AN, série IJ 591.

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paraguaio Gabino Flores, que comunicara o plano, no mínimo, aos seus patrícios
Toribio Palácios, Julião [sic] Flores e Miguel Cacere que, interrogados foram obrigados
a confessar que estavam cientes da conspiração. Defenderam-se apenas dizendo que
haviam acreditado que o “escravo estava embriagado”. Entretanto, por “prevenção”,
segundo parece, ao menos parte dos soldados prisioneiros dormira no quartel, na
noite do Espírito Santo. O que permitiria, certamente, que participassem do entrevero.
Sem maiores resultados, as autoridades investigaram os soldados, através de “dois
paraguaios de toda a confiança”, sem maiores resultados, o que não impediu que
tomassem medidas precatórias contra os quatro indigitados.
Plano Detalhado
A conspiração de junho de 1868 destaca-se pela coerência do plano articulado
e pelo inteligente e oportuno envolvimento dos prisioneiros paraguaios. O ataque e
a captura de armas, nos principais centros militares da capital, era projeto arriscado
mas factível, ao menos em parte. O movimento dos cativos porto-alegrenses explicita
também as limitações objetivas dos trabalhadores escravizados nesse momento
histórico. Em processo de queda de peso absoluto e relativo na população brasileira,
tendo diante de si proprietários escravistas unificados e bem armados, sem poderem
articular projeto alternativo de sociedade, em momento em que superar as fronteiras
não lhe garantiriam a liberdade, pretendiam, com as armas na mão, exigir a liberdade.
O envolvimento dos prisioneiros paraguaios sugere talvez eventual plano de fuga para
o Paraguai, ainda que, nesse momento, a estrela guarani estive já em queda livre.
Como em muitos outros casos, o movimento foi denunciado por um cativo,
Antônio Maria, de Gabriel Francisco de Oliveira, morador “no lugar denominado
Mato Grosso do Distrito de Belém”, que convidado para participar da revolta
pelo “pardo Dionísio”, denunciara o plano ao seu escravizador, que o comunicou
ao chefe de Polícia, Belarmino Peregrino da Gama e Melo, em 9 de junho. O
alcaguete Antônio Maria aceitou buscar maiores informações junto os conspiradores,
principalmente sobre depósitos de armas, sem resultados. Os organizadores da revolta
tinham consciência da pouca confiança que podiam depositar em muitos de seus
companheiros de cativeiro. Obrigados a ampliar a adesão ao complô, conchavavam
“sem reserva” os cativos confiáveis e convidaram, os incertos, confiáveis “para um
baile”, no local de onde partiriam para assaltar a cidade.
O cativo Antônio Maria foi recompensado com a liberdade. A presidência
da Província pagou a elevada soma de 1:400$000 réis ao seu proprietário e
comprometeu-se em não obrigá-lo a assentar praça para partir para o Paraguai,
destino talvez pior do que a vida sob a escravidão. O proprietário do alcaguete
comunicara às autoridades que não o venderia, se fosse mandado para a guerra,
já que, “para semelhante” Antônio Maria “não queria” “ser liberto”. Depoimento
inarredável sobre sentimento entre os escravizados sobre aquele conflito, em meados
de 1868.
A alforria certamente foi divulgada entre a população cativa da capital. As
autoridades provinciais destacaram, ao aprovarem a libertação, que ela serviria
“para tornar vigilantes outros escravos, denunciando ao “Governo iguais atentados”.
Não foi porém aberto processo de “insurreição” contra os conspiradores, castigados
fisicamente, “de acordo com os seus senhores”, pois “não chegara a haver tentativa,

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e só preparo, do plano”. O historiador Rui Vieira da Cunha, que retirou esses
importantes sucessos do olvido, lembra que, a pesar da sua importância, o presidente
da Província achara por bem não os incluir no seu relatório oficial, sobre os principais
acontecimentos de 1868.

RESUMO ABSTRACT
Nos anos 1863-68, com população escravizada During the 1863-68’s, with its creole and
crioula e ladinizada, o Rio Grande do Sul ladinizada slave population, Rio Grande do Sul
conheceu importante ciclo de agitações e experienced an important cycle of unrest and
conspirações de trabalhadores escravizados. A slaves conspirations. Emancipated slaves’ and,
eventual participação de libertos e, sobretudo, de particularly, free men’s participation was mostly
homens livres, deveu-se em grande parte à crise due to the crisis in Plata region – 1864’s Empire
então em curso na bacia do Prata – intervenção intervention in Uruguay and 1865-70’s Paraguay
do Império no Uruguai, em 1864, e Guerra da War. These movements’ aim was to claim liberty or
Tríplice Aliança, em 1865-70. Esses movimentos promote flights to Uruguay, governed by Partido
destinavam-se a reivindicar a liberdade de posição Blanco, which fighted to make slave abolition be
de força ou promover fugas para o Uruguai, sob respected in the north of the country.
governo do Partido Blanco, que lutava para fazer Keywords: Slaves Insur rections; Urban
respeitar a abolição da escravatura no norte do Insurrection; Rio Grande’s Slavery.
país.
Palavras Chave: Insurreições escravas;
Insurreição urbana; Escravidão Rio-Grandense.

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A CÂMARA MUNICIPAL DO RECIFE E O CONTROLE
SOBRE AS PRÁTICAS COTIDIANAS DAS MULHERES
LIVRES, LIBERTAS E ESCRAVAS NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XIX (1830-1850)

Grasiela Florêncio de Morais1


O cenário do Recife oitocentista

O Recife, em fins da década de 1820, tornou-se a sede política e administrativa da


província de Pernambuco. Além disso, por servir de entreposto comercial, firmou-se
como espaço de transferência e circulação de riquezas produzidas regionalmente.
Assim, a “Veneza Americana” se tornou um centro urbano expressivo ampliando os
seus limites físicos e o seu quantitativo populacional2. Segundo Raimundo Arrais,
“essa expansão refletiu-se numa certa especialização dos seus bairros centrais”3 –
São Frei Pedro Gonçalves (era a área portuária e, por isso, concentrava o comércio
atacadista exportador e importador); Santo Antônio (em seus limites se encontravam
as repartições públicas e uma ampla malha comercial); Boa Vista (considerado o
bairro residencial) e, por último, o bairro de São José (criado em 1844, oriundo
do desmembramento da porção sul da freguesia de Santo Antônio). Esses bairros
compunham o cenário urbano da cidade.
O crescimento do Recife foi sendo favorecido pelas atividades desempenhadas
em seu porto que abastecia não só os seus arrabaldes, mas também as províncias
vizinhas, tais como a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Ademais, contava com
uma malha diversificada de bens e serviços que representava um forte atrativo para
investidores, em particular, os europeus e para a população local seduzida pelas
possibilidades de melhores de condições de vida. As ruas, as praças e as pontes do
Recife presenciavam diariamente um constante burburinho de transeuntes embalados
pelos inúmeros cânticos e vozerios da numerosa escravaria e da numerosa parcela
de sujeitos pobres livres que davam um tom muito peculiar à cidade. Esta intensa
valorização do modo de vida urbano passou a ser pensado e redefinido sob a ótica
das elites dirigentes do Estado.
1
Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura
Regional da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Esse trabalho acadêmico contou com
o financiamento da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco
(FACEPE). Docente do Curso de Licenciatura em Pedagogia do Programa de Educação à Distância
da Universidade Aberta do Brasil/ Universidade Federal Rural de Pernambuco.
2
Conforme uma contagem realizada em 1828 por Figueira de Mello, o Recife possuía um total de
25.678 habitantes, distribuídos pelas três freguesias centrais – Recife, Santo Antônio e Boa Vista.
Desse total, 17.743 eram indivíduos livres – os libertos também estavam incluídos nessa mesma
categoria – e os 7.935 restantes eram escravos. Anos depois, em 1856 foi realizada outra contagem
que indicou um total de 40.977 habitantes na capital, significando um aumento de quase 60% do
total da população na cidade. Esses dados nos servem como referência, mesmo sabendo-se que
estas informações não traduzem a realidade. A este respeito ver CAVALCANTI JR., Manoel Nunes.
“Praieiros”, “Guabirus” e “Populaça”: as eleições gerais de 1844 no Recife. Dissertação (Mestrado
em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2001, p. 23-24.
3
ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX.
São Paulo: Humanitas/ FFLCH/ USP, 2004, p. 113.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 47


Para essas autoridades, em virtude de sua condição de capital e dos valores lhes
atribuídos na época, o Recife deveria normatizar e racionalizar os seus espaços por
meio de técnicas capazes de impulsionar tanto o seu embelezamento quanto o seu
melhoramento material e moral. Dessa maneira, se procuraria acabar com os “maus
hábitos” e os “maus costumes” do velho passado colonial visto simbolizarem o atraso,
pois “ser independente era tornar-se igual, civilizar-se era virar branco e europeu”4
e, por que não citadino? Afinal de contas, o lugar da civilização e do progresso era
a cidade; onde a ciência e a razão se responsabilizariam pela sua boa condução,
administrando a reconstituição do seu passado e projetando-a no futuro, a fim de
superar possíveis equívocos que viessem representar empecilhos a construção da
“nova ordem” que se queria impor a sociedade5.
A promoção da modernização denotava ordenamento social e deveria estar em
consonância com os padrões disciplinares – tais como, as leis, as posturas municipais,
os aparatos policiais, entre outros. Nesse caso, para se adequar aos paradigmas da
civilização, além de bela, a cidade também deveria ser um espaço são e seguro
capaz de coibir os modos de fazer e de viver de sujeitos tidos como “bárbaros” ou
“selvagens”, na maior parte das vezes, descritos como “perigosos”. Tais conceitos
foram comumente atribuídos a numerosa parcela de indivíduos pobres livres, de
libertos e de cativos visto as suas práticas não atenderem as pretensões civilizatórias
tão almejadas. Por esta razão, os seus passos estavam submetidos à constante
vigilância das autoridades citadinas. Conforme nos aponta Robert Pechman, “da
população, cuidaria a polícia [...]; da cidade, cuidaria o urbanismo”6.
Ao buscar ares mais civilizados o Recife imperial pretendeu remodelar os seus
espaços geográficos, os modos e as modas de seus habitantes por meio de vestes
à europeia. Mas, ainda assim, perdurariam algumas das suas antigas práticas e
contornos sociais que tanto caracterizavam o cotidiano turbulento de suas ruas, becos
e travessas labirínticas. O projeto de modernização se deu sob muitas incoerências;
não conseguindo abarcar a todos os segmentos sociais (em particular, as classes
menos favorecidas socialmente) e solucionar certos problemas considerados crônicos,
tais como a violência, o desemprego e a miséria social.
Contudo, apenas pretendemos apontar as tentativas de controle social
empreendidas pelo Estado, sob o respaldo de determinados instrumentos coercitivos7

4
CARVALHO, Marcus Joaquim M. de. “De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e
escravidão no Recife, 1822-1850”. Afro-Ásia, Centro de Estudos Afro-Orientais, Salvador, n. 29/
30, 2003, p. 58. Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/>. Acesso em: 20 fev. 2008.
5
Para Astor Diehl, “a idéia de progresso está profundamente ancorada na mentalidade e nas
estruturas coletivas do pensamento das culturas históricas dos países industrializados e mesmo
naqueles que estão engatinhando no processo de modernização.” Dessa maneira, há muito atuou
nos horizontes da consciência histórico-coletiva alimentando sonhos e utopias, que na maior parte
das vezes não foram sequer concretizadas. DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória,
identidade e representação. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 21-44.
6
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002, p. 17.
7
No que se refere aos instrumentos de controle social criados pelo Estado, para lhes auxiliar na
consumação do “projeto normatizador” podemos apontar: os aparatos policiais, as posturas
editadas pela Câmara Municipal, o discurso jurídico e o emergente discurso médico (expresso na
criação do Conselho de Salubridade Pública, em 1845) entre outros. No entanto, é sabido que
esses meios não foram suficientes para atingir tal fim.

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criados para atuar com mais vigor no espaço público, a fim de conter e corrigir os
“maus hábitos” das pessoas na cidade, pois, dessa forma se procurava “fabricar” um
novo sujeito social que não representasse empecilho ou ameaça aos interesses da
nova nação. Portanto, quanto aos instrumentos de controle, a nossa atenção recairá
sobre os poderes de mando e desmando dos “agentes da municipalidade”, ou melhor,
sobre as ações da Câmara Municipal do Recife no que concerne à regulação do
comércio varejista de alimentos, assim como, visamos perceber de que maneira essas
medidas recaíam sobre as mulheres populares que vendiam pelas ruas da cidade.
A Câmara Municipal do Recife na passagem para o século XIX, em virtude dos
constantes burburinhos, sobretudo, no campo político e econômico teve o seu
corpo estrutural e institucional transformado pelas decisões do Governo Imperial,
assim como as demais Câmaras do país na época. A Constituição de 1824 foi o
primeiro marco divisor de tais mudanças ao impor restrições às entidades camarárias
apenas às funções administrativas e as excluí de suas antigas atribuições judiciárias.
Portanto, entre as suas funções municipais caberia a edição de posturas policiais e a
aplicação de suas rendas (Art. 169º). Com poderes limitados e atuando meramente
como polícia administrativa, esta estaria ainda submetida ao jugo deliberativo dos
Conselhos Gerais de Província (a partir do ano de 1834, passariam a Assembleias
Provinciais) e dos presidentes de província (Art. 82º)8.
Contudo, esta legislação não tratou com especificidade as matérias a serem
desenvolvidas como posturas que só serão regulamentadas quatro anos depois, na
Lei Imperial de 1º de outubro de 1828. Ao procurar uniformizar a administração
municipal, mediante essa lei, o Governo Imperial procurou determinar as atribuições
das Câmaras em todo o Brasil e orientar as matérias das posturas policiais de suma
importância para compor o quadro normativo sobre as práticas cotidianas dos
indivíduos a fim de garantir não só a ordem, como também o aformoseamento das
vias públicas. Para isso, cada instituição camarária teria autonomia para elaborar
as suas próprias posturas de acordo com as suas realidades locais, contanto que
estivessem orientadas pela “cartilha” da dita letra da Lei. Conforme o Artigo 71º,
[...] as Camaras deliberarão em geral sobre os meios de
promover e manter a tranquilidade, segurança, saúde,
e commodidade dos habitantes; o asseio, segurança,
elegancia, e regularidade externa dos edifícios, e ruas
das povoações, e sobre estes objectos formarão as suas
posturas que serão publicadas por editaes, antes, e depois
de confirmadas.9
A Câmara Municipal do Recife, por sua vez, seria condicionada por esses debates
e imposições legislativas do Governo Imperial. Além de ter o “poder de editar”
os códigos de posturas, teria também o papel de fiscalizar pelo seu cumprimento
perante a população, para isso, contaria com um quadro de funcionários para “poder
policiar” as suas respectivas jurisdições, com o intento de promover melhorias no
funcionamento e na estética urbana da cidade. Todavia, para tal fim, sofreria com
8
CONSTITUIÇÃO Política do Império do Brazil de 1824. Disponível em: <http://www2.camara.gov.
br/>. Acesso em: 12 abr. 2009.
9
Grifos nossos. COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1828, Art. 71º da Lei Imperial de 1º de
Outubro de 1828, p. 85. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/>. Acesso em: 12 abr. 2009.

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muitos empecilhos tanto de ordem humana (reduzido quadro de funcionários, em
particular, o de fiscais) quanto de ordem material (tais como, a receita que não cobria
as inúmeras despesas da repartição); ademais, acreditamos ser a constante resistência
e “desobediência” dos habitantes os seus maiores motivos de preocupações.
Eram poucos os fiscais da Câmara que atuavam frente à numerosa população
da cidade. Em cada freguesia havia um fiscal para dar conta do cumprimento das
“novas regras” impostas, para isso, deveriam cuidar em observar os hábitos pouco
aceitáveis dos indivíduos; vigiar as condições de salubridade e segurança das vias
públicas; denunciar os desmazelos dos prédios urbanos e punir conforme o editado
pelas posturas. Porém, por serem copiosas as suas funções, ainda poderiam ter o
auxílio dos juízes de paz e dos aparatos policiais embora que, na maior parte das
vezes, a ajuda era diminuta e precária.
Entre as inúmeras atribuições da Câmara do Recife, atentaremos apenas nas suas
tentativas de regulação da economia local, ou seja, no controle sobre o comércio
varejista movimentado na cidade, no período em tela. Tal domínio era essencial,
afinal de contas, o setor varejista, além de abastecer todo o mercado consumidor,
também empregava um grande contingente de trabalhadores, como caixeiros,
vendedores ambulantes, locatários de quitandas, ou proprietários de tavernas,
botequins e casas de secos e molhados10, salientando que, boa parte desses serviços
era desempenhada pela numerosa escravaria e pela considerável parcela de homens
e de mulheres pobres livres que competiam cotidianamente por clientela.
Em meio a estes espaços, vendiam-se de tudo um pouco, além de gêneros de
primeira necessidade, “bebidas espirituosas”, rendas, tecidos, artefatos em geral, até
mesmo produtos “atravessados”, ou melhor, produtos contrabandeados que não
passavam pelo crivo das autoridades municipais. Isso nos leva a imaginar quantas
coisas tidas como irregulares pela Câmara não passaram despercebidas pelo seu
jugo normatizador. Pelas ruas, cais, pontes e praças circulavam muitas pessoas a
venderem seus produtos, bem como, serviços e outras interessadas em comprá-las,
mas, para isso, era preciso usar o poder de barganha para “pechinchar” e para
conseguir obter bons lucros.
A parcela popular feminina permeava estes dois lados, tanto na condição de
clientes quanto de vendedoras do comércio local. Todavia, interessamo-nos apenas
em percebê-las na segunda posição, como vendedoras. Logo, muitas questões vieram
à baila, tais como, primeiramente quem eram estas mulheres? De que maneira
atuavam nesse mercado? Por que usualmente atuavam? E de que forma foram
atingidas pelas ações da Câmara do Recife? Para esse fim, precisamos nos debruçar
sobre o universo dessas mulheres populares (livres pobres, libertas e escravas) que
em seus cestos, barracas ou tendas buscavam vender seus gêneros e garantir as suas
sobrevivências e a de seus familiares.

10
SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte Imperial: enfrentamentos e negociações
na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). Tese (Doutorado em História). Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, 2007.

50 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


Na rua, na ponte, no cais e na praça:
o mundo do trabalho das vendeiras e das boceteiras na cidade.
Esses arcos são remanescentes da velha ponte [...] o que
fica do lado do Recife, chamam-no Capelinha de Nossa
Senhora [...] a passagem inferior é estreita, mesmo para
um único veículo; mesmo assim, é tomada, durante o dia,
por numerosa quitandeiras com seus tabuleiros, e, à noite,
por vagabundos que ali vão dormir.11
[...] Eis-nos, portanto, tranquilamente instalados em nossa
nova residência [...] quando uma vintena de negras grita sob
as janelas, em todos os tons de que a voz humana é capaz,
laranja, banana, doces e outras mercadorias para vender.12
Ao pisarem em Recife, bem como em outras cidades brasileiras da época, os
estrangeiros ao caminharem pelas ruas se depararam com o colorido dos trajes
e tabuleiros; com a diversidade dos vozerios e cantigas das mulheres vendeiras e
boceteiras13 empregadas no pequeno comércio ambulante de gêneros de primeira
necessidade e de miudezas que proporcionavam um tom todo singular a paisagem
da cidade. Além do cenário, certas práticas sociais causaram um sentimento de
estranhamento por parte desses viajantes que, talvez por isso, não deixaram de
descrevê-los e criticá-los.
Quanto às mulheres que atuavam no mercado de “portas afora”, empregavam-
se não apenas como vendeiras; porém, também como aguadeiras, lavadeiras,
prostitutas entre outras atividades que realizavam habitualmente na esfera pública. No
trato do “comércio miúdo” predominavam os negros, mestiços e forros e, sobretudo
as mulheres de origem social menos remediada – pobres livres, forras e cativas –
que garantiam diariamente o abastecimento de gêneros diversos e, sobretudo o
de gêneros comestíveis (frutas, verduras, quitutes, pescado e aves) imprescindíveis
ao funcionamento da cidade. Entre estas mulheres, uma minoria possivelmente
conseguiu acumular algum pecúlio expressivo, podendo obter a posse de um ou
mais escravos(as) para as auxiliar ou até mesmo substituí-las no desempenho de
tais funções nas ruas da cidade14.
11
KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil: Províncias do Norte.
São Paulo: Martins, 1972 [1842], p. 78.
12
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil (1793-1820). 11. ed. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco; Ed. Massangana, 2002, p. 67.
13
O termo boceteira referia-se às mulheres empregadas no pequeno comércio ambulante de miudezas,
rendas e até mesmo de quitutes que ficavam acomodados em caixas (ovais ou cilíndricas) de
madeira fina, com a tampa vistosamente adornada e que tinham o nome vulgar de bocetas. Para
atuarem como boceteiras, além ser necessário obter a licença junto à Câmara da Cidade, deveria
se cumprir com o pagamento de tributo municipal. Cf. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais
Pernambucanos – Vol. 9 (1824-1833). Recife: FUNDARPE, 1984, p. 345.
14
Ao estudar as condições de vida das mulheres forras ao longo do século XVIII e princípio do
século XIX, a historiadora Sheila de Castro Faria mencionou que “a ascensão social decorrente das
atividades mercantis era significativa, porque os diferentes níveis de comércio poderiam enriquecer
a muitos que o praticavam. Mas, em função dos estigmas sociais que pesavam sobre as atividades
mercantis, este enriquecimento, entretanto, não foi acompanhado de prestígio social, mesmo se
tratando do grande comércio, ou “comércio de grosso trato”. Portanto, no que cabe às mulheres
do comércio miúdo ou de pequeno trato ter a possibilidade de se “fazer riquezas” não era garantia

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 51


Afinal de contas, a capital era o local onde uma considerável parcela da numerosa
escravaria e dos pobres livres se concentrava e onde se localizavam as principais
atividades econômicas da província, por esta razão, estabelecendo-se uma caótica
contiguidade espacial do mercado, onde a força de trabalho se vendia ou se alugava.
Assim a dinâmica do comércio local e a da atividade doméstica15 poderiam garantir
oportunidades para as mulheres pobres livres, libertas e escravas, embora a elevada
concorrência pelo mercado em muito contribuísse para a diminuição das vagas de
emprego e achatamento de seus jornais.
Apesar dos “rígidos” códigos patriarcais de conduta16 que impeliam as mulheres
a evitarem o contato com o mundo da rua foi, nessa esfera, onde muitas em virtude
de suas duras condições de vida forjaram papéis sociais ao buscarem garantir o seu
sustento diário, bem como onde também procuravam por divertimento com os seus
pares. O discurso hegemônico anunciava a rua como um lugar maculado e perigoso.
Segundo Gilberto Freyre, pelas ruas a pé só passavam “negros de ganho, muleques
de rua” fazendo travessuras e “mulheres públicas” à procura de amantes17. Portanto,
ainda que não fossem meretrizes, ao circularem pelas ruas, praças e pontes da
cidade as mulheres que faziam o comércio ambulante de gêneros secos e molhados
poderiam inevitavelmente ser confundidas e até mesmo tratadas como “mulheres
de vida pública”.
Cabe esclarecer que existiam diferenças no comércio de pequeno trato feito na
cidade do Recife. De acordo com o historiador Maciel Carneiro, “subdividia-se em
comércio fixo (vendas) e em comércio volante (usualmente associado às mulheres
de tabuleiro).” As vendeiras poderiam ser jornaleiras ou até mesmo proprietárias de
vendas, lugar onde “recebiam toda a gama de desclassificados sociais”18. As vendas
ou tabernas eram tidas como redutos de convivência da “gente torpe”, marcada por
calorosas confusões e por frequentes bebedeiras e, por tais razões, eram alvos do
controle dos fiscais da Câmara e da repressão dos aparatos policiais.
O comércio volante era predominantemente caracterizado pela mão-de-obra
feminina. Na cabeça equilibravam os seus cestos ou tabuleiros repletos de frutas,
quitutes, fazendas entre outros artefatos que transitavam de um lado para o outro
nas ruas centrais da cidade. As suas mobilidades e peculiares práticas de espaço lhes
possibilitavam fazer o elo entre o universo da rua e da casa. Como alfineta Gilberto
Freyre, as negras vendeiras e boceteiras ao venderem seus bicos e doces às iaiás
nos sobrados se entretinham em conversas e mexericos alheios e, por vezes, até se

de se obter status social, mas salientamos que apenas um minoria conseguia enriquecer mediante
tal prática. FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres forras: Riqueza e estigma social”. Tempo, Rio de
Janeiro, vol. 05, n. 09, jul. 2000, p. 77-78. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/>.
Acesso em: 20 mar. 2010.
15
As atividades de “portas adentro” também empregavam uma parte considerável das mulheres
populares que se ocupavam como cozinheiras, mucamas, amas-de-leite, amas-secas, entre outras
atividades.
16
Aqui entendemos o patriarcalismo como um contexto relacional, um processo tenso de cuja
construção as mulheres também participavam.
17
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
urbano. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 152.
18
SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de
vendeiras e criadas no Recife do século XIX (1840-1870). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2004, p. 105.

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prestavam a fazer favores como levar e trazer recadinhos amorosos dos namorados
para as meninas, facilitando futuros encontros dos apaixonados19.
Todavia, concordamos com Michelle Perrot ao afirmar que “agir no espaço público
não é nada fácil para as mulheres”20, independentemente de sua condição social.
Muitas vezes, em consequência de suas dificuldades de sobrevivência infringiam os
padrões morais da época, agrediam e eram vítimas da violência física e moral de seus
pares; assim como, sofriam com as ações das autoridades citadinas que intervinham
em todos os níveis da vida social. Tanto a presença quanto a permanência desta
parcela feminina nas ruas da capital era vista de maneira pejorativa e com
insegurança pelos representantes do poder municipal que mediante a imposição
de “novas regras” e posturas procuravam com frequência diminuir os seus espaços,
controlar os seus horários e os seus modos de atuação nos logradouros públicos.
Todavia, as normas de controle social impostas à sociedade são em determinadas
circunstâncias incompatíveis com a maior autonomia requerida pelo mercado
informal desempenhado por escravas, forras e pobres livres21.
Há muito a Câmara Municipal do Recife e as elites dirigentes discutiam o problema
do vaivém das mulheres populares pelas ruas da cidade. Tais preocupações foram
impressas em jornais da época e relatavam o constante receio das autoridades com
os seus ajuntamentos, os seus vozerios e os seus divertimentos. Em 05 de agosto
do ano de 1831, o juiz de paz da freguesia de Santo Antônio, Felix José de Lira ao
se referir ao lugar das Cinco Pontas, menciona que “[...] em muito contribuiria para
prevenir desordens o fazer com que se recolham as suas casas logo depois das 8
horas da noite, todas as negras que costumam vender pelas ruas ou praças desta
cidade [...]”22. Já do outro lado da ilha, elas escandalizavam os pruridos da Câmara.
Um dos pontos de referência do trottoir situava-se na atual Rua do Imperador23.
As reclamações não se reduziam apenas à freguesia de Santo Antônio e, além
das autoridades citadinas, outros cidadãos faziam suas queixas. Na maioria das
vezes, criticavam o pouco empenho da polícia, por não conseguir conter as ofensas
à ordem, e exigiam a implantação de novas posturas para coibir tais ações indigestas
na cidade. Para o juiz de paz do bairro da Boa Vista, José Francisco Ferreira Catão,
estabelecer um horário “permanente” para as negras vendeiras se recolherem seria
crucial por “prevenir as frequentes desordens noturnas”24. No dia seguinte, a este
respeito se pronunciou o juiz de paz do bairro de São Frei Pedro Gonçalves (Recife)
que publicou em edital a seguinte proibição:
Faço saber a todos os senhores de escravos, ou outras
quaisquer pessoa, que venderem pelas ruas ou Praças desta
Freguesia [...], que logo depois das oito horas da noite, se
19
De acordo com o periódico oitocentista O Carapuceiro, “enquanto houver boceteiras vendedeiras
de bicos e rendas, o deus frecheiro não há de padecer falta de bons procuradores”. Cf. FREYRE,
Sobrados e Mucambos..., p. 131.
20
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p.146.
21
SILVA, Pretas de honra..., p. 76.
22
Diário de Pernambuco, Recife, 5 ago. 1831, n. 167, p. 678. Acervo do APEJE – Arquivo Público
Jordão Emereciano.
23
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife,
1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998, p. 63.
24
Diário de Pernambuco, Recife, 5 ago. 1831, n. 167, p. 679.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 53


recolham a suas casas, e quem contrário fizer pagará pela
primeira vez a multa de dois mil reis, e pela reincidência o
dobro [...].25
O aviso não se resumia às negras vendeiras, estendia-se aos donos(as) de
escravos(as), bem como aos demais sujeitos (homens e mulheres) livres e forros que
vendiam pelas ruas e praças da dita freguesia. Apenas a proibição parecia não ser
suficiente para conter tais abusos em “horas de silêncio” e, talvez por esta razão, a
cobrança da multa de 2$000 réis possivelmente era uma tentativa de não deixar a
regra virar letra morta. Quanto ao valor cobrado, era bastante considerável, afinal
tamanha quantia não se fazia com tanta facilidade. No emaranhado cotidiano, a
dita lei dificilmente funcionou a contento das autoridades, pois não era tarefa fácil
combater os “costumes noturnos” da população, ou melhor, coibir as suas vivências
nos logradouros públicos em “horas privadas”.
Por meio da imprensa periódica, outros queixosos também procuravam tornar
público as suas insatisfações e preocupações acerca das diversas “desordens”
cometidas pela parcela feminina na capital, em especial, referiam-se àquelas que
se dedicavam ao comércio local. Em razão disso, com certa frequência, alguns
anunciantes evidenciavam os seus pruridos à ordem e, do mesmo modo, solicitavam
uma posição mais enérgica das autoridades municipais e policiais frente às vendeiras,
boceteiras e quitandeiras. No dia 19 de maio de 1836, o jornal Diário de Pernambuco
publicou uma nota que fazia a seguinte solicitação:
[...] pede-se encarecidamente ao subprefeito, deste (sic)
as suas vistas para o pátio de N.S. do Terço, onde sempre
passa, mande retirar as quitandeiras para a praça que
a Câmara lhe marcou, porque não só tomam o trânsito
como também [animazeão aos pacíficos moradores] com
palavras [indecentes] e [escandalosas], e fazem da mesma
rua lugar onde se deita o lixo não há de custar tão pouco
as desalojar, porque são [valentonas estas pretinhas] por
terem o patrocínio das vendas. 26
Em caráter de cobrança, a queixa publicada foi dirigida à autoridade do
subprefeito27, a quem solicitava uma maior atenção e vigilância sobre o Pátio de
N.S. do Terço, situado no bairro de Santo Antônio, pois, em detrimento das normas
municipais determinadas pela Câmara, em seus limites se concentravam numerosas
“quitandeiras”, que, além de “tomarem o trânsito” da rua com as suas taboletas e
fogareiros, “animazeão” com os seus pares “aos pacíficos moradores” com o uso
25
Diário de Pernambuco, Recife, 6 ago. 1831, n. 168, p. 684. Acervo do APEJE – Arquivo Público
Jordão Emereciano.
26
Diário de Pernambuco, Recife, 19 mai. 1836, n. 109, p. 4. Acervo do APEJE – Arquivo Público
Jordão Emereciano.
27
O subprefeito compunha o quadro de funcionários da Prefeitura de Comarca do Recife (1836-
1842). O mesmo estava subordinado ao comando do prefeito de comarca que, por sua vez, exercia
as funções de chefe de polícia. Assim o subprefeito era encarregado de patrulhar as ruas da cidade
conforme as orientações e determinações do prefeito. Quanto a aludida instituição foi instituída em
Pernambuco, pela Assembleia Legislativa Provincial por meio de Decreto Lei de n. 13, datado de
14 de abril de 1836. Cf. COLEÇÃO de Leis da Província de Pernambuco, Lei n.º 13, de 14 de abril
de 1836. Acervo do APEJE – Arquivo Público Jordão Emereciano.

54 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


de termos “indecentes” e gestos “escandalosos”. Ademais, em tom depreciativo,
denuncia que “estas pretinhas”, ou seja, possivelmente, referia-se às cativas que
viviam do ganho; não recolhiam o lixo diário por elas produzido, assim causando
um forte “mau cheiro” no pátio e em seus arredores.
Em linhas gerais, podemos entrever que o queixoso não compactuava com tais
condutas “indigestas” dessa parcela feminina, pois as concebiam e as compreendiam
como sendo prejudiciais à “saúde pública” e, acima de tudo, ofensivas à moral
e aos bons costumes. Por outro lado, mostra-nos também os modos e os gestos
“miúdos” e “persistentes” dessas representantes do “belo sexo”28. Assim entrevemos
que os seus hábitos tidos como “expansivos” (tais como: o falar alto; usar termos
indecentes; circular “fora de horas”; agressividade etc.) eram aspectos que faziam
parte de seus códigos culturais, expressões construídas cotidianamente em prol de
suas lutas pela sobrevivência.
Contudo, o controle infligido sobre estas mulheres não se limitaram as
determinações de horários permitidos para a sua circulação. Conforme já vimos, a
Câmara do Recife gozava de certos poderes para interferir em instâncias diversas
sobre a cidade e sobre os costumes dos seus habitantes. Dessa forma, estabeleciam
as regras do permitido e do proibido a fim de “educar” os modos da população, o
seu intento era impor os elementos civilizatórios da “nova ordem”. Portanto, cabe-nos
compreender como as mulheres pobres livres e as cativas foram parar nas “malhas
de poder” dos agentes da Câmara. Como tiveram as suas vidas e práticas reguladas
por esta instituição? De que maneira foram pensadas e retratadas em suas medidas?
Nos manuscritos da Câmara do Recife, encontramos ofícios que discorrem sobre
a necessidade de se determinar lugares próprios para a venda de gêneros a retalho,
em particular, os de primeira necessidade. Acreditamos ser uma das alternativas
encontradas pelas autoridades municipais, pois, ao concentrarem o grande
contingente de escravos(as) e de pobres livres que se dispersavam pela cidade em
pontos centrais, facilitariam a vigilância sobre esses segmentos. Embora as praças
e as ribeiras já atuassem nesse sentido, esses espaços pareciam não dar conta do
número corrente de infrações e desordens em que os fiscais comumente reclamavam.
Em sessão extraordinária de 23 de julho de 1831, os membros da Câmara falam
do quanto seria importante “transferir as vendas de carnes secas dos armazéns da
Rua do Colégio e da Praia do mesmo Colégio, para as casas da Ribeira”, porque
além do forte cheiro da carne que em muito incomodava a vizinhança, o mais
preocupante era a “concentração de meretrizes escandalosas” e de “mendigos
com moléstias contagiosas” que “privavam estes espaços para usos desonestos”29.
No entanto, na data citada, nenhuma postura foi elaborada a esse respeito. Só em
meados de 1833, a Câmara deliberou interinamente uma postura adicional que
pretendeu controlar a venda de determinados gêneros na cidade, ou melhor, a carne
seca e o pescado, bem como também restringir os lugares onde esses eram vendidos

28
O termo “belo sexo” foi usualmente utilizado em alguns periódicos do Recife oitocentista, tais
como o jornal O Carapuceiro. Tal expressão era empregada para se referir às mulheres de condição
livre e que gozavam de certo status social. No entanto, aqui o utilizamos para designar a todas as
representantes do gênero feminino, ou seja, nesse cenário incluímos as mulheres populares: livres,
forras e escravas.
29
A aludida sessão foi publicada no Diário de Pernambuco, Recife, 5 ago. 1831, n. 167, p. 679.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 55


na cidade. Além do forte odor que esses alimentos emitiam, a preocupação com
a sua qualidade e asseio eram constantes. Nesse termo, as formas com as quais
deveriam ser transportados e armazenados já haviam sido tratadas no Título 4º do
código de posturas de 183130.
Entretanto era preciso regulamentar com mais vigor tanto a venda desses
alimentos quanto os espaços em que eram vendidos, tendo em vista as constantes
queixas das elites dirigentes acerca das “desordens” que se sucediam nesses lugares,
pondo em risco a “conservação da saúde pública” e os “bons costumes”. Portanto
determinou-se que a partir de 01 de outubro de 1833 ficava “proibida a venda das
carnes salgadas e peixes secos nos armazéns da Rua da Praia do Colégio, e das mais
ruas desta cidade”. Para os contraventores da dita ordem a pena era de 30$000
réis e mais oito dias de prisão31. No que cabiam às “vendedeiras do pescado fresco
ou salgado”, conforme o §2.º da dita postura adicional, “somente poderiam vender
nas casas da praça nova da Ribeira”, caso não obedecessem à postura teriam de
pagar a multa no valor de 8$000 réis32.
Em 1840, outra postura adicional procurava cercear ainda mais os limites de
comercialização de tais víveres. Logo, nesses termos, tal postura exigia que “os
armazéns de carnes, peixes, couros, tabuleiros” só seriam “permitidos em ruas
secundárias”33 das freguesias de São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antônio e Boa
Vista. Meses depois, a Câmara anunciava em quais as ruas, os largos e as praças
não mais se deveriam comercializar os referidos gêneros. Além da Rua da Praia do
Colégio e de seus arredores, foram incluídas as principais ruas da cidade, tais como:
a da Cadeia; Cais e Travessa Nova da Alfândega; Rua da Madre Deus; da Cruz;
Praça da Independência; Rua do Queimado; Largo do Rozário; Rua da Camboa
do Carmo; Largo de Nossa Senhora do Terço; Rua das Cinco Pontas; Praça da Boa
Vista; Rua da Conceição, entre outras.34
Ora, essas regras e imposições não tentavam apenas intervir nas práticas de
venda do pescado e da carne, bem como coibir os habituais ajuntamentos e derriços
entre os segmentos populares. Como vimos, as sociabilidades da maior parte desses
sujeitos simbolizavam perigo e desordem para as elites dirigentes. Por isso, prezavam
dar fim aos seus vozerios, aos seus divertimentos e às suas condutas tidas como
30
Segundo o §6.º do Título 4.º as carnes deveriam ser conduzidas para os talhos em carroças, cavalos
ou em cestos cobertos de pano branco e limpos, ficando absolutamente proibido a condução na
cabeça de pretos, sem ser em cestos cobertos sob pena de 2$ reis. Ver postura municipal em
detalhe: Diário de Pernambuco, Recife, 26 ago. 1831, n. 182, p. 741. Acervo do APEJE – Arquivo
Público Jordão Emereciano.
31
OFÍCIO de Posturas Adicionais do Presidente da Câmara Municipal do Recife, José Antônio
Camelo, ao Presidente da Província, de 13 set. 1833. Câmaras Municipais, cód. 11, fl.123 – 123 v.
Acervo do APEJE – Arquivo Público Jordão Emereciano.
32
OFÍCIO de Posturas Adicionais do Presidente da Câmara Municipal do Recife, José Antônio
Camelo, ao Presidente da Província, de 13 set. 1833. Câmaras Municipais, cód. 11, fl.124 – 124 v.
acervo do APEJE – Arquivo Público Jordão Emereciano.
33
Mediante o Art. 1º do Título 2.º das Posturas Municipais Adicionais, os armazéns de carne, peixes,
couros, tabuleiros só seriam permitidos em ruas secundárias. A multa prevista era de 30$000 réis
para os contraventores. Cf. Diário de Pernambuco, Recife, 4 jul. 1840, n. 143. Acervo do APEJE –
Arquivo Público Jordão Emereciano.
34
OFÍCIO de Posturas Adicionais do Presidente da Câmara Municipal do Recife, Joaquim Bernardo
de Figueiredo, ao Presidente da Província, de 5 set. 1840.Câmaras Municipais, cód. 19, fl.34 – 36.
Acervo do APEJE – Arquivo Público Jordão Emereciano.

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reprováveis, a exemplo das condutas “escandalosas” das meretrizes. A presença de
mendigos e vadios nos mercados, feiras e ribeiras também era algo incômodo e,
por isso, alvo das políticas de controle das autoridades locais. Mas alguns populares
não se reduziam com facilidade às “malhas do poder” do Estado, pois com o uso de
“artimanhas” e “gestos hábeis” conseguiam se desvencilhar da “estrita” vigilância
que sofriam no Recife.
Quanto às vendeiras de pescado impedi-las de transitarem com seus cestos e
tabuleiros pelas ruas possivelmente lhes causaram muitos prejuízos e dificuldades
na obtenção de seus ganha-pães diários. Estas mulheres possuíam suas próprias
dinâmicas de espaço e provavelmente já contavam com clientela certa em
determinados lugares da cidade, a aproximação com os seus clientes poderia ser
garantia de negócio. No entanto, ao serem proibidas de manter essas transações, ou
melhor, ao restringirem os seus espaços às casas da Ribeira além da forte concorrência
com outras vendeiras estariam mais susceptíveis a sofrer uma forte vigilância dos
fiscais da Câmara e dos aparatos policiais.
As casas da Ribeira, por sua vez, pertenciam ao patrimônio material da Câmara
Municipal do Recife que as arrematava a terceiros e se “destinavam a venda do
pescado, verduras, frutas, como para depósito das farinhas que dos arrabaldes
afluíam, entre outros gêneros de primeira necessidade”35. Logo, as casas eram em
geral arrematadas para as vendedeiras, quitandeiras, pombeiras (vendedoras de
aves) e para todos aqueles que as empregasse no comércio de pequeno trato. Ao
estabelecer que as vendeiras vendessem pescado apenas nas “casinhas das praças”,
a Câmara poderia também estar vislumbrando a possibilidade de ocupar as ditas
casas alugando-as para estas mulheres, afinal com a medida a procura pelos espaços
possivelmente aumentaria e os preços dos aluguéis poderiam se elevar gerando bons
rendimentos para a receita da Câmara.
Contudo, parece que isso não veio calhar e em determinadas ribeiras da cidade
as casas continuariam revolutas. Em ofício datado de 26 de setembro de1838, o
presidente da Câmara do Recife descreve que na Praça da Boa Vista não havia
“quitandeiras, pombeiras e almocreves que ocupem todas as casinhas da mesma,
resulta sempre ficarem parte delas fechadas, e daqui não se animando os lançadores
a oferecerem maior lance, pela certeza das que devoluto ficar”, o que traria prejuízos
para a Câmara36. Enquanto boa parte das casinhas dessa ribeira permanecia
desocupada, os seus arredores geralmente se encontravam repletos de mulheres.
Desse modo, as ribeiras eram pontos chave no cenário do comércio local na
cidade. Ao mesmo passo, por centralizar várias atividades em seu espaço, facilitava
também uma maior vigilância das autoridades citadinas que reunidas procuravam
reprimir as infrações de posturas e crimes. A atuação dos aparatos policiais
possivelmente era ostensiva e registrou prisões referentes às mulheres: por fuga,
quando cativas; por brigas; por bebedeiras e por desordens em geral. No dia 04 de

35
OFÍCIO do Presidente da Câmara Municipal do Recife em Sessão Ordinária, ao Presidente da
Província, de 26 set. 1838. Câmaras Municipais, cód. 17, fl. 69 – 69 v. Acervo do APEJE – Arquivo
Público Jordão Emereciano.
36
OFÍCIO do Presidente da Câmara Municipal do Recife em Sessão Ordinária, ao Presidente da
Província, de 26 set. 1838. Câmaras Municipais, cód. 17, fl. 69 – 69 v. Acervo do APEJE – Arquivo
Público Jordão Emereciano.

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setembro de 1837, “Eliodora Maria, Themotea do Paraizo e Maria Theodora dos
Santos”, todas “pardas”, foram remetidas “pela guarda da Ribeira da Boa Vista,
por estarem em brigas”37. Em 1839, foi a vez de “Perpetua, preta, escrava de João
Pacheco Queiroga”38 ser presa pelo mesmo crime.
A aglomeração de boceteiras, vendedeiras e de negras de ganho na ribeira
promoviam disputas acirradas pela clientela, para isso, era preciso saber a “arte de
negociar” e gerir os seus próprios produtos para conquistar o mercado. Assim parte
delas possuía territórios demarcados para o desempenho do trabalho cotidiano, nos
quais partilhavam espaços com suas companheiras e parceiras de labuta, conforme
nos mostram as iconografias da época, ou seja, tanto nas ruas quanto no âmbito
doméstico as mulheres foram retratadas em grupo. Pelas ruas trafegavam com barris
ou cestos sobre a cabeça, com água ou víveres em geral que carregavam de um
lado para o outro com o intento de exibir seus artefatos aos demais transeuntes.
Entretanto, algumas relações pela sua fragilidade poderiam terminar em confrontos
pessoais, disputas e querelas. Assim o difícil convívio comunitário entre muitas se
encerrou na cadeia pública.
A imposição das posturas municipais e até mesmo a constante ameaça de punição
(multa e até prisão) aos possíveis contraventores não foram meios suficientes para
fazer com que as autoridades conseguissem deter o domínio sobre a sua população.
As mulheres populares continuaram em seus vaivéns pela cidade como nos mostra
os próprios registros de época. Por não se enquadrarem às “novas regras” e por
desobedecerem a “ordem” algumas foram parar na cadeia pública. Nos documentos
policiais, não lhes faltam registros de prisões por desordens, bebedeiras, agressões,
insultos, desacato, furto. Entretanto, ainda assim, continuaram com os seus “modos
de ser” e os seus “modos de agir” na cidade, para isso, mostraram-nos que eram
representantes do “belo sexo”, mas estavam longe de ser “sexo frágil”.

37
OFÍCIO do Prefeito de Comarca do Recife, Francisco Antônio de Sá Barreto, ao Presidente da
Província, de 04/09/1837. Prefeitura de Comarca do Recife, cód. 03, fl. 83. Acervo do APEJE –
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano.
38
OFÍCIO do Prefeito de Comarca do Recife, Francisco Antônio de Sá Barreto, ao Presidente da
Província, de 19 ago. 1839. Prefeitura de Comarca do Recife, cód. 10, fl. 83. Acervo do APEJE –
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano.

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RESUMO ABSTRACT

Este trabalho versará sobre as relações, em nada This work will focus on relations, in unfriendly,
amigáveis, travadas entre os fiscais da Câmara fought between the inspectors of the municipality
Municipal do Recife e as mulheres populares of Recife and popular women (free, blinders and
(livres, forras e cativas) durante a primeira metade slave) during the first half of the nineteenth century
do século XIX (1830-1850). Centraremo-nos (1830-1850). Pay attention us in the strategies
nas estratégias elaboradas pelas autoridades developed by local authorities outside the control
municipais frente ao controle do comércio urbano of urban commerce (retail trade) practiced mainly
(comércio a retalho) praticado, sobretudo, por by women for this portion of streets, squares
esta parcela feminina pelas ruas, praças e pontes and bridges of the capital. In this scenario, when
da capital. Nesse cenário, ao oferecerem os seus offering their services for public places in order to
serviços (como, vendeiras, aguadeiras, meretrizes, secure their daily bread and their families, these
lavadeiras, cozinheiras etc) pelos logradouros women are confronted with the city authorities,
públicos a fim de garantirem o seu pão diário e o which in time, facing many difficulties to meet
de seus familiares, estas mulheres se confrontavam the requirements of municipal, trying to “watch”
com as autoridades citadinas que, por sua vez, and “educate” their peculiar ways of living and
enfretavam muitas dificuldades para fazer cumprir working in the city.
as exigências das posturas municipais, ao tentar Keywords: Women; Recife; Câmara Municipal.
“vigiar” e “educar” os seus peculiares modos de
viver e de agir na cidade.
Palavras Chave: Mulheres; Recife; Câmara
Municipal.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 59


AFRICANOS E CRIOULOS LIBERTOS NO RIO DE
JANEIRO: LEGISLAÇÃO, PERCEPÇÕES POLÍTICAS E
MOBILIDADE SOCIAL DE EX-ESCRAVOS (1870-1890)
Lucimar Felisberto dos Santos1

Diversas arenas de conflitos foram erguidas em diferentes sociedades escravistas


diante de processos de emancipação dos africanos e seus descendentes. Os escravos,
os libertos, os fazendeiros, os ex-senhores, e o Estado digladiaram em torno das
concepções e significados de liberdade e escravidão. Para os recém-libertados
estava em jogo expectativas e projetos (individual, coletivos e familiares) quanto
à nova condição jurídica e à manutenção de autonomia e valores constituídos na
experiência da escravidão: o direito de reordenar suas vidas de acordo com suas
próprias percepções de vida, trabalho e remuneração sobre ele. O objetivo deste
artigo é analisar as perspectivas de acesso aos tributos da liberdade e à mobilidade
espacial envolvente por parte dos libertos. Refletindo, mormente, a cerca dos riscos
e expectativas da experiência de liberdade no Rio de Janeiro. Especialmente – tendo
em vista os embates em torno da manutenção da ordem pública – da organização do
trabalho, e do tipo de cidadania pensado pelas elites dirigentes. O contexto específico
para o qual se buscará chamar atenção pretende servir de base na perspectiva de
dialogar com as lógicas de sobrevivência dos libertos e as condições de forjarem
significados diferenciados do padrão normativo do comportamento social esperado
para eles após a aquisição da liberdade. Trazer à tona algumas possibilidades do
que seriam as expectativas dos libertos em relação à experiência de liberdade e, em
alguma medida, às expectativas atribuídas a eles pelas elites dirigentes serão alguns
recursos utilizados nesta reflexão.
A Trajetória de Escravos da Família Telles Cosme dos Reis
Em 17 de outubro de 1876, finalmente, era concluída a primeira listagem aprovada
com os escravos selecionados pela Junta Classificadora do Município Neutro para
receberem alforrias. A medida atendia ao artigo 3o da Lei no 2.040, de 28 de setembro
de 1871. Esta, para além de tornar livre o ventre das cativas – transformando em
ingênuos seus filhos nascidos a partir da sua aprovação –, estabeleceu a criação do
Fundo de Emancipação de Escravos em todo Império2. Para exequibilidade deste
dispositivo da lei, em cada província e no Município Neutro foram instituídas juntas
responsáveis pela administração dos recursos pecuniários a serem recolhidos para
promoção das alforrias e, de antemão, para a classificação dos escravos a serem
contemplados a partir de critérios previamente definidos3. Representaria um duro
1
Doutoranda em História na Universidade Federal da Bahia. Bolsista do Programa Internacional de
Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford. E-Mail: <lucrioularj@ig.com.br>.
2
A lei ficou conhecida como Lei do Ventre Livre porquanto, entre outras coisas, ela libertava o
ventre da cativa. Seguindo a condição ao ventre, seriam ingênuos os filhos das escravas nascidos
após a data de sua promulgação. Estabelecia, também, regras para a indenização do trabalho e
para o cuidado dos menores, bem como seus compromissos com relação aos senhores sob as
quais, poderiam permanecer sob os cuidados.
3
SANTOS, L. F. “Os Bastidores da Lei: estratégias escravas e o Fundo de Emancipação”. Revista de
História Universidade Federal da Bahia, v.1, 2009; p.18-39.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 77


golpe na prerrogativa senhorial. Partindo a decisão do governo imperial, a alforria
deixava de ser concessão ou dádiva senhorial. Para muitos contemporâneos corria
o risco de se ver desatados significativos laços de dependência, bases significativas
da sustentação do domínio senhorial4.
Um interessante episódio que nos ajuda a colocar esta questão histórica em
perspectiva ocorreu com os escravos das fazendas de açúcar localizadas nos
arrabaldes do então Município Neutro da Corte. Foi no ano de 1873 quando 23
escravos das propriedades dos Telles Cosme dos Reis foram classificados pela junta
classificadora da capital. Uma interferência do poder público no direito à propriedade
que representaria um baque nos negócios escravista da família. Reagindo, os
herdeiros da finada dona Maria Telles Cosme dos Reis encaminharam aos membros
da junta o seguinte requerimento:
Os herdeiros da finada D. Maria Telles Cosme dos Reis vem
com respeito devido à Junta Classificadora dos escravos do
município neutro (comunicar) que na fazenda da referida
finada foram classificados 23 escravos no ano de 1873,
tanto assim que essa fazenda que fabricava açúcar deixou
de fazê-lo por falta de pessoal, acarretando assim graves
prejuízos, e como atualmente tenha a respeitável junta de
classificar pedem a dispensa para essa fazenda pelas razões
expostas para não ficar ela de todo inutilizada.5
Os legatários da referida finada não informam o número total de africanos e/
ou crioulos escravizados em suas fazendas na freguesia rural de Jacarepaguá6. De
qualquer modo, de acordo com o exposto acima, deixar de dispor de 23 cativos
afetou a produção de açúcar, posto que, “por falta de pessoal”, acabou interrompida
a fabricação de açúcar. Temiam maiores prejuízos caso outros de seus cativos – a
despeito de suas vontades – fossem classificados pela “respeitável junta”. Em tom
de queixa requereram a dispensa da “fazenda da referida finada” do processo de
emancipação do fundo. Isto “para não ficar ela de todo inutilizada”. A iniciativa destes
proprietários sugere imprevisíveis percepções relativas ao fim da escravidão7. Mas
podemos avançar mais indo além das intenções do texto. É mesmo possível produzir
imagens desta pequena leva de libertados abandonando a propriedade dos Telles
Cosme dos Reis para, enfim, vivenciarem a experiência da liberdade, distanciando-
se do lugar onde conheceram a escravidão. O grupo de agricultores para o qual a
documentação chama a atenção representava 10% do total dos cativos qualificados
e alforriados pela Junta Classificadora dos Escravos residentes no Município Neutro
da Corte em 1876. Na ocasião, 230 membros de famílias escravas receberam suas
cartas de alforria sendo seus proprietários indenizados com o valor relativo à quota
4
CHALHOUB, S. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Cap.
4; e SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai de santo na Corte imperial. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2009; cap. 2.
5
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro - AGCRJ 6.1.40 fl. 22.
6
De acordo com o recenseamento de 1872, esta freguesia era habitada por 9.218 indivíduos, dentre
eles 2.591 escravos.
7
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista,
Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

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de 115.361$660 do Fundo de Emancipação reservada à municipalidade. Ao que
parece, os legatários da finada dona Maria Telles Cosme dos Reis não tiveram o
ofício atendido. Verificando a listagem aprovada que divulgou os efetivamente
qualificados para receber a alforria com os recursos do fundo foi possível identificar
que o número de libertos oriundos das fazendas de propriedade desses herdeiros
foi ainda maior que o classificado em 1873. Assunto a ser tratado neste texto8.
Enquanto membros das categorias priorizadas – todos os recém-libertados destes
proprietários constantes na listagem final de 1876 constituíam grupo de cônjuges com
filhos menores escravos – conformavam cinco famílias. Na ocasião, ascenderam à
categoria de libertos os seguintes indivíduos matriculados ainda como propriedades
da finada Maria Telles Cosme dos Reis: o casal Floriano e Emerenciana e seus cinco
filhos menores: Frederico, Rufina, Simplicia, Geralda e Thecla; Praxedes e sua esposa
Ignez com os filhos Sabino e Felisberto; libertados também Amaro e Mariana, pais
de Ignácia e avós de Desidério, também qualificados; e Luiz e Felizarda, juntamente
com a filha Cristina. Foram também libertos, de propriedade de Francisco Telles
Cosme dos Reis, o casal Rubens e Clara, com a filha Amélia, inválida por cegueira.
Ou seja, 21 indivíduos que efetivamente residiam nesta propriedade ingressavam
nos mundos do livres na condição de libertos.
De uma fazenda situada no Curato de Santa Cruz, de propriedade de outro
provável membro desta família, de nome José Francisco Telles, foram também
classificados o casal Bernado e Rogéria e suas progênies: Domitila, Ambrósio,
Mariana e Romana. Duas outras filhas cativas deste casal, Raimunda e Felisbina,
além do usufruto da liberdade, puderam a partir daquela data retornar a convivência
familiar. Raimunda, que consta na documentação como uma agrícola de 17 anos,
tinha como proprietário o senhor Domingos Soares de Freitas. Provavelmente,
morava na propriedade deste senhor localizada do outro lado da Baia da Guanabara,
na então capital da província do Rio de Janeiro: Niterói. Já Felisbina, outra filha
agricultora do casal, capaz de 14 anos de idade, residia próximo aos seus pais e
irmãos. De acordo com os dados registrados na listagem de classificados produzida
pela Junta Classificadora do Município Neutro da Corte, seu proprietário, o senhor
Joaquim Januário de Sá Barbosa, tinha domicílio na freguesia de Campo Grande. Ou
seja, somado todos estes casos, os prováveis legatários da finada Maria Telles Cosme
dos Reis tiveram pelo menos outros quatro escravos classificados nas pelos membros
da junta em suas atuações entre os anos de 1874 e 1876. Constava na derradeira
listagem de 1876 27 de seus ex. cativos. Deste grupo, 20 foram classificados como
agricultores, um carpinteiro, um doméstica, um pedreiro, e quatro como incapazes
e/ou menores.
O perfil deste grupo de libertados chama atenção para circunstâncias do contexto:
se por um lado a lei promulgada limitava o poder senhorial, ela potencializava alguns
dos objetivos dos escravizados. Cônscios das necessidades de ajustes na ordem
8
Os recursos foram provenientes de impostos sobre a propriedade escrava, de loterias criadas
para este fim, de multas para quem desrespeitasse a lei e de doações do orçamento público. Em
1876, foram libertados no Município Neutro da Corte 15 escravas casadas com homens livres, 17
escravos casados com mulheres livres, 11 cônjuges cativos de diferentes senhores, 38 cônjuges
cativos com filhos livres em virtude da lei e 149 cônjuges cativo com filhos escravos menores.
A segunda lista classificatória final ficaria concluída em 1880. Nesta, receberiam suas cartas de
alforrias 362 escravos. AGCRJ 6.1.39; e 6. 1. 40.

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escravocrata e, reconhecendo significativos movimentos contraculturais engendrados
cotidianamente pelos cativos que deterioravam os pilares do sistema escravista, os
legisladores do Império se utilizariam da legislação como instrumento de negociação
que permitiria dilatar o prazo para a derradeira discussão sobre o seu termo. Neste
sentido: a reunião de família dispersas, a conservação de uniões socialmente aceitas
e a prioridade dada à alforria feminina estiveram dentre os principais objetivos do
Fundo de Emancipação de Escravos. Cônjuges que fossem escravos de diferentes
senhores e seus filhos eram os primeiros dentre os com família constituída a serem
classificados. Seguidos eram pelos com filhos ingênuos ou menores de oito anos;
com filhos livres menores de vinte e um anos; com filhos escravos menores de vinte
um anos, pelas mães solteiras e, por fim, pelos indivíduos sem filhos. Medidas que
contemplavam pontuais expectativas de africanos e de crioulos escravizados e
libertos que, priorizando a alforria feminina, lutavam para trazer familiares e afetos
à liberdade9. Constituir-se em famílias mistas provavelmente era um dos problemas
da liberdade na sociedade escravista da época.
Concretizando tais aspirações, verificou-se a ocorrência de significativas taxas de
alforrias responsáveis pela existência de contingentes importantes de pretos e pardos
livres e libertos no conjunto da população brasileira. No caso do Rio de Janeiro,
segundo Robert Slenes, nada menos do que 36,1% dos escravos consignados na
matrícula de 1872-3 havia se libertado por ocasião do registro de 1886-188710.
Entretanto – como em todas as províncias do Império –, no Município Neutro poucos
foram os libertados pela ação do Fundo de Emancipação ou do Livro de Ouro. Este
último foi o instrumento libertador criado pela municipalidade. Seguramente, os
projetos dos libertados por estes instrumentos somar-se-iam aos daqueles que, por
liberalidade de seu senhor ou por ter acumulado pecúlio, negociaram outras forma
de tornar possível o usufruto de sua própria pessoa11.
Como tem sido destacado em diversos estudos, os africanos e seus descendentes
escravizados foram incansáveis na execução de seus projetos liberdade. Por exemplo,
no período de 1851 a 1888 – de acordo com a pesquisa de Luiz Carlos Soares –,
somente nos Livros de Registro do 1º e 2º Ofício 388 alforrias foram obtidas por
cativos residentes no Município Neutro. Sendo 300 delas concedida pelos senhores,
9
Importa destacar que a lei 2040, de fato, deu consistência jurídica a uma série de práticas corrente
na relação escravista. Dentre elas a possibilidade de o escravo acumular pecúlio e resgatar a sua
liberdade com o pecúlio acumulado. Regulamentava, também, os procedimentos de empréstimo
tendo em vista o resgate da alforria. Sobre algumas práticas costumeiras transformadas em direito
pela ação da lei. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
10
SLENES, Robert Wayne. The demography and economics of Brazilian slavery: 1850-1888.
Dissertation (Ph.D. in History). Stanford University. Stanford, CL, EUA, 1976, p. 495, p. 501, p.
504, p. 542.
11
De acordo com o recenseamento de 1872, a Corte possuía um total de 48.939 escravizados.
O Fundo promoveu a liberdade de 627 cativos, somadas as duas listagens aprovadas em duas
ocasiões, 1876 e 1880. Quanto ao “Livro de Ouro”, o artigo 2º da Lei n.º 2.040 prescrevia que as
subscrições, doações e legados angariados pelas províncias e pelo Município Neutro poderiam ser
aplicados localmente; com base neste, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro criou em fevereiro
de 1884, o chamado “Livro de Ouro” que foi responsável entre os anos de 1885 e 1886 pela
libertação de 691 escravos. Sobre a ação das juntas em todo o Império. DAUWE, Fabiano. A
libertação gradual e a saída viável: os múltiplos sentidos da liberdade pelo fundo de emancipação
de escravos. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2004.

80 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


49 compradas pelo próprio escravo e 39 compradas por terceiros. Para Sidney
Chalhoub na década de 1860 14.246 escravos tiveram sua liberdade registrada na
Corte, numa media de 1.300 manumissões por ano12.
Voltando ao contexto dos Telles e ao argumento que se tenta aqui construir, incluir
a mobilidade espacial entre os objetivos dos libertos ajuda a entender o quadro
traçado por aqueles herdeiros na escrita do texto enviado aos membros da junta.
Decidir-se por se afastar das áreas que por anos sofreram sujeição poderia significar
aos ex-cativos o distanciamento de marcas sociais imputadas pela experiência
do cativeiro. Além disto – considerando as dimensões da política dos libertos –,
poderia haver cálculos que ofereciam resultados melhores visando organizar vidas,
cotidiano e rede familiares. Importa destacar que a opção pelo desraizamento era
arriscada. Redundaria na necessidade de assimilação de novos códigos de conduta
e moralidade circunstâncias. Poderia ainda significar o desatar de importantes laços
familiares e afetivos. Laços atados a depender de diferentes referenciais culturais.
Parcerias construídas no interior da sociedade escravista que podiam envolver seus
pares escravos, libertos, livres pobres e outros setores sociais13.
O que aparece nas entrelinhas no requerimento de Francisco Telles Cosme dos Reis
é que os escravos da fazenda de propriedade de sua família que seriam libertados
por força da legislação desapontariam aos seus antigos senhores optando por viver
a experiência da liberdade longe da fazenda de Jacarepaguá. É possível sugerir que
para ter seu requerimento atendido pela Junta, o herdeiro da finada D. Maria Telles
Cosme dos Reis tenha construído os seus argumentos de modo a convencer ao
tenente coronel Antonio Barroso Pereira, a Manoel Paulo Vieira Pinto e a Antonio
Paula Ramos Junior, respectivamente, presidente da Câmara, administrador da
Recebedoria do Rio de Janeiro e segundo Promotor Público. Membros instaladores
da Junta do Município Neutro. Para tanto, podem ter contribuído na construção
do enredo dois importantes fatores que informavam os debates à época vigente.
Primeiro: a crença de que o particular prejuízo econômico dos senhores envolvidos
nesta produção açucareira refletia o que ocorria com outros proprietários que perdiam
paulatinamente o direito de explorar propriedades humana o que, de alguma forma,
redundaria em déficit na economia imperial. Segundo: a circunstância pública e
notória resultante dos movimentos emancipacionistas em curso nas áreas rurais da
Corte, e em outros contextos, da qual culminavam no abandono em massa pelos
cativos das áreas de produção. Situação recrudescida nos anos finais da ordem
escravocrata14. Pode-se, no mesmo cenário, visualizar estes legatários – a exemplo
12
SOARES, Luís Carlos. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de
Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ; 7 Letras, 2007, Anexo, p. 453; CHALHOUB,
Visões da liberdade, p. 199.
13
São para estas exeqüíveis possibilidades, por exemplo, que Flávio dos Santos Gomes direcionou
seu olhar quando se debruçou sobre as fontes que trazia o registro da experiência histórica dos
aquilombados nas áreas rurais da província do Rio de Janeiro no século XIX. Neste sentido,
perscruta as relações complexas que os aquilombados mantinham com o restante da sociedade
escravista, constituidoras de um campesinato negro do qual participavam escravos, quilombolas,
libertos, pequenos lavradores, taberneiros etc. GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas:
mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1995.
14
Este processo histórico foi evidenciado, por exemplo, por Walter Fraga Filho em seu estudo sobre as
trajetórias dos escravos e libertos dos engenhos do Recôncavo Baiano. Ver: FRAGA FILHO, Walter.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 81


de inúmeros outros senhores - unindo-se em defesa de seus abalados direitos de
proprietários para proteger seus arranjos familiares construídos tendo na base a
exploração da mão de obra escrava.
O mais importante é que podemos analisar a probabilidade de ex-escravos
definirem sua liberdade a partir das possibilidades abertas ao exercício da mobilidade
espacial. Ou seja, tudo parece indicar ser comum que, em posse de suas pessoas,
muitos africanos e seus descendentes rearranjavam suas vidas de maneira a se
distanciarem da experiência do cativeiro.
Recuperando o cotidiano daquelas propriedades através de indícios deste
registro documental – a lista de libertos pelo Fundo de Emancipação para o ano
de 1876 – podemos perceber que o tipo de relação “amistosa” e as concessões
que vinham sendo erigidas naquelas fazendas que resultaram na constituição de
significativos arranjos familiares entre os escravizados – que poderiam mesmo
significar possibilidades de parcerias na produção açucareira fora das circunstancias
da escravidão – longe de redundar em laços de gratidão garantidores da manutenção
das relações de dependência, produziram outros significados de liberdade.
Ou opções de novas formas de se organizar as relações de trabalho, a exemplo
da parceria ou da meia, não foram postas como possibilidades durante a experiência
do cativeiro – o que reforçaria o argumento da imprevisibilidade relativa ao fim da
escravidão no caso destes proprietários - ou para estes ex-cativos o jogo de força
encenado na vigência da escravidão era inaceitável em outras circunstâncias. Neste
sentido, com a intervenção do poder imperial, perdiam os senhores a oportunidade
de assumir a iniciativa na negociação das concessões de alforrias aos cativos, o que
talvez pudesse ser revertido na manutenção das relações de dependência e dos
favores do paternalismo nas relações sociais e de trabalho para além da escravidão.
Destarte que, as reciprocidades garantidoras do consenso nas relações de trabalho
na fazenda dos Telles Cosme dos Reis – que resultou na constituição de significativa
linhagem familiar – ao que parece, dependiam de noções que os próprios africanos
e seus descendentes tinham dos limites de sua condição social e da coação que
julgassem ser direito de seus senhores. Nesta acepção, tendo funcionado socialmente
como espaços de autonomia e liberdade, ou como pacificadores dos conflitos tanto
nas relações escravo/escravo quanto nas escravo/senhor, ou, ainda, como fatores
de distinção no interior do cativeiro, os arranjos familiares produzidos por aqueles
indivíduos – a partir da obtenção de suas cartas de alforria – seriam reelaborados
para conferir novos sentidos à liberdade15.
Numa outra leitura – operando ainda com a possibilidade de aqueles proprietários
terem manipulado os fatos para conseguirem a dispensa de suas fazendas para
a futura classificação de escravos –, seria plausível, também, sugerir que alguns
daqueles libertos por força da ação do instrumento de liberdade tenham, em verdade,
passado a celebrar com seus ex- senhores outros tipos de relação de trabalho.

Encruzilhada da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia. 1870 – 1910. Campinas:


Editora da Unicamp, 2006.
15
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; MATTOS,
Das cores do silêncio...; e SLENES, Robert Wayne. Na senzala uma flor: esperanças e recordações
na formação da família escrava, Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

82 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


Afinal, os arranjos familiares verificados nesta fazenda em Jacarepaguá denunciam
significativos níveis de negociações entre os donos dos meios de produção e os
sob seu domínio. Por exemplo, até onde a documentação permitiu constatar, não
fosse a interferência da lei, a família constituída por Amaro, 62 anos, e Mariana,
52 anos, alcançaria uma terceira geração que permaneceria unida na escravidão
na produção de açúcar em Jacarepaguá. Também, à exceção de Praxedes, que era
pedreiro, de sua esposa Ignez, que executava tarefas domésticas e do carpinteiro
Rubens, todos os demais em idade própria para o trabalho foram qualificados
como agricultores. Para além dos casais serem propriedades dos mesmos senhores,
na coluna da listagem referente à ocupação, os maiores de 60 anos são registrados
como executores de leves tarefas e as crianças menores de 10 anos não aparecem
qualificadas para o trabalho. Coerências que podiam significar certa estabilidade no
interior da escravidão. Quiçá dar continuidade a costumeiros arranjos de trabalho.
Permanecer próximos às redes de relação construídas durante o cativeiro, pode ter
sido uma opção percebida como vantajosa por alguns dos ex-cativos dos Telles
Cosme dos Reis para exercitarem sua recém-adquirida liberdade. A falta de registros
sobre os relatos de vida destes indivíduos após a obtenção de suas cartas de alforria
indetermina o sentido dado por eles ao “eixo de sociabilidade básico” tecido em suas
experiências de cativeiro, no entanto, a análise demográfica da cidade do Rio de
Janeiro indica ter sido a região o destino escolhido por muitos daqueles residentes
em áreas rurais e semirrurais16.
Seria estimulante tomar a vida de um destes personagens como fio condutor
investigação sobre as trajetórias da experiência de liberdade no Rio de Janeiro
no último quartel do século XIX. Compreender suas escolhas diante do leque de
possibilidade que poderiam orientar suas ações. Lidando com este limite, é a partir
do contexto que podemos fazer algumas suposições – rigorosamente controladas
pelas fontes e pela historiografia – sobre os seus planos e destinos; sobre algumas
das possibilidades de ocorrências naquele tempo e lugar. Reforço aqui que, tendo
em vista as mudanças nos protocolos de controle social pensado pelas elites imperial
para o além da escravidão, propomos doravante uma reflexão acerca do conflito
entre as expectativas de liberdade e a precariedade da mesma com o qual se
confrontaram permanente os africanos e crioulos que, ao ascenderem à condição
de libertos, escolhiam viver e experimentar a liberdade nas áreas centrais da cidade
do Rio de Janeiro.
Um eixo explicativo fundamental seria pensar que no Brasil do século XIX – a
despeito da não ocorrência de uma lei segregacionista – a política de controle e a
legislação elaborada para disciplinar os libertos e os “livres de cor” – adequadas a
nova ordem pública e republicana – deram sentido (negativos) aos deslocamentos
feitos por libertos e famílias negras recém emancipadas. Como resultado,
especificamente no caso do Rio de Janeiro, observou-se uma divisão espacial que
16
A qualidade de trabalhos como o de João José Reis e Gabriela dos Reis Sampaio comprovaram
a possibilidade dos relatos biográficos da vida de personagens comuns servirem de guia para se
pensar e explicar mudanças históricas. A partir da descrição de espaços social de vida individual
mostraram ser possível dar a ver as estruturas sociais mais complexas nas quais os indivíduos
estavam inseridos. REIS, João José. Domingo Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade
e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008; e SAMPAIO, Juca
Rosa...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 83


respondeu também pelas limitadas oportunidades daqueles que herdaram os efeitos
da experiência da escravidão. Como tem sido apontado em recentes estudos sobre
os significados da liberdade, através da alforria havia riscos e precariedades para
o liberto. Num duplo e distinto movimento, encontrar um lugar onde as “visões de
liberdade” de fato ganhassem sentido pode ter sido a estratégia de sobrevivência
encontrada por aqueles que abandonando grandes e pequenos planteis, escolheram
a cidade do Rio de Janeiro para organizar sua vida no pós emancipação. Por outro
lado, “desmontar cenários” e encontrar novas alternativas de levar a cabo o mesmo
objetivo, podem ser visto como atitudes daqueles que foram sugestionados a se
afastar daquele centro urbano como consequência da intensificação de políticas de
domínio e controle das autoridades imperiais e policiais que colocavam limites e
tornava frágil a liberdade possível aos africanos e à sua descendência17.
Cotidiano e Liberdade nas Últimas Décadas da Escravidão

No limite, nas últimas décadas do Oitocentos os recursos da liberdade esbarravam


no enquadramento dos egressos do cativeiro em uma nova ordem social regida
pela noção do progresso civilizado. O fim anunciado da ordem escravista impôs
aos donos do poder e do capital uma redefinição das relações sociais vigentes,
destacadamente as que se organizavam em torno do trabalho e da produção. Neste
sentido, a restrição e a vigilância dos movimentos e da conduta dos africanos e
crioulos e de sua descendência, foram percebidas como necessárias a sua condição
de cidadão. Conquanto o direito de ir e vir não constasse entre as restrições
constitucionais impostas aos libertos – de acordo com a Constituição de 1824 eram
considerados cidadão, entretanto lhes eram restritos alguns direitos civis18 –, ainda
na primeira metade do século XIX, um projeto de aditamento de postura de 11 de
setembro de 1838 trouxe em seus artigos 10º, 11º e 12º a obrigatoriedade de se
validar, mediante registro em “um livro para este fim somente destinado”, as cartas
de alforrias obtidas “quer gratuita, quer onerosa”, ou “mesmo as que para o futuro
o forem em testamento”. Nome, moradia e características físicas dos libertados
deveriam ser assentados neste livro de registros do qual se extrairiam os termos do
título de liberdade que deveria ser exibido no juízo do Distrito de morada. Sempre
que o liberto se deslocasse este título deveria ser apresentado:
Em todos os juízos de paz do Distrito para onde se mudar,
a fim de serem novamente ai revisadas as rubricas. O
transgressor será punido com prisão por 5 a 15 dias, e multa
de 10 a 30$000, e o dobro nas reincidências, fazendo-se
destas condenações as competentes declarações no termo
original, e na certidão do mesmo, que lhe servir de título
para se poder conhecer a reincidência.19
A liberdade deveria ser então vigiada. Independentemente de ter este projeto

17
CHALHOUB, Sidney. “Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista
(XIX)”. Revista Social, n. 19, Dossiê Racismo, História e Historiografia, 2010.
18
Só podiam votar nas eleições primárias, não podiam ser delegados ou subdelegados de polícia,
jurados, juiz de paz, nem eleitos deputado ou senadores.
19
AGCRJ. Códice 6. 1. 28

84 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


se concretizado na forma de postura, ele informa sobre a expectativa das classes
proprietárias em relação ao tipo de autonomia a que os libertos podiam usufruir.
Condições que, resignificadas, nas décadas finais do século XIX, seriam pensadas
em operação com a construção de uma nova ideologia do trabalho, sem, no entanto,
perder totalmente o conteúdo da ainda não velha política de controle paternalista
responsável pela formação de dependentes. Doravante as relações de dependência
dos libertos se organizariam em torno do Estado.
Alguns eixos desta engenharia política – que parece ter sido pensada ao longo
do século XIX com o sentido de controlar os “quase cidadãos” fora do contexto
da escravidão – aparecem expressos em um edital publicado no O Fluminense nas
vésperas da Abolição.
Niterói, 29 de abril
A organização do trabalho.
O parlamento brasileiro acha-se em sessões preparatórias.
Dentro em pouco, saberá o país inteiro da contextura da
lei acerca do elemento servil. Questão vencida como é esta
pela opinião nacional, atrai mais a atenção por causa do
cortejo de medidas que deve trazer, do que pelo fato em si.
D’entre as medidas complementares a mais importante é,
sem dúvida, a da obrigatoriedade do trabalho. Para nós é
o ponto capital, pois que do seu estabelecimento resultará
menor desequilíbrio na organização do serviço rural e se
garantirá melhor à ordem social.
Propositalmente tocamos no assunto – a obrigatoriedade do
trabalho, para nos manifestarmos com franqueza a respeito.
Sobre a maneira de se estabelecer essa obrigação, há duas
opiniões correntes – julgam alguns que se faz mister intuir
disposições especiais para os libertos; outros que a lei deve
ser geral, reprimindo a vadiagem de quem quer seja.
Estamos com os segundos.
Se feita a libertação, forem decretadas providências especiais
acerca dos ex-escravos, então a liberdade que se lhes deu,
não foi completa: está cercada por tais disposições.
O que se visa combater, obrigando ao trabalho a todo o
cidadão válido, é a ociosidade com todas as suas fatais
consequências, parta esta ociosidade de quem partir. Não
se pode, pois especializar castas, condições novas, nem
outras circunstâncias.
É indeclinável, no entanto, que alguma coisa de particular
se faça em relação aos novos brasileiros: a localização
nos municípios por algum tempo ainda após a libertação.
Essa exigência da lei, porém, deve entrar como clausula,
condição de liberdade, e não ser exigida após a liberdade
por um ato novo do governo.
Isso mesmo por ser de interesse dos próprios libertos, que
devem procurar localização com calma, com tempo e d’um

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 85


modo seguro.
Ao dar a liberdade o poder público, deve também
estabelecer as suas condições. Esta cumpre ser uma d’elas.
Feita a liberdade, não tem mais o direito de discriminá-las
sob a ação de leis particulares, pois todos são cidadãos.
Vamos entrar na época em que a regularização do trabalho
pela obrigatoriedade e garantia dos direitos mútuos dos que
contratam seus serviços e dos que os aceitam, se impõe.
Mais de que nunca, precisamos de um bom regulamento a
este respeito, para que tudo marche em ordem.
Em lugar de entidade que se responsabilize pelos criados,
faz mister que apareça outra – o poder público.20
O discurso produzido neste editorial ressalta a questão social a ser enfrentada
pelas classes dirigentes sediadas no Rio de Janeiro: o controle da ordem, do trabalho
e do trabalhador na pós- escravidão. E tudo dependeria do consenso em torno dos
termos da questão do “elemento servil”. Pois, não obstante fosse a propriedade
escrava uma “questão vencida”, continuaria a ser a questão do trabalho o “ponto
capital”. Neste sentido, a obrigatoriedade do trabalho se apresentava como a
solução a ser posta em operação, devendo contar com a firme ação do governo e
não deveria discriminar os libertos. Tal obrigação de trabalhar deveria ser exigida a
todos os cidadãos válidos. Num contexto de hegemonia do pensamento liberal era
a ociosidade “com todas as suas fatais consequências” que, vista como o cerne do
problema social, deveria ser combatida. De acordo com a leitura que os editores
faziam da época, era o poder público, enquanto entidade legítima, que deveria
regulamentar esta obrigatoriedade garantindo interesses mútuos na contratação de
serviços. A narrativa acima também põe em evidência que o controle da liberdade a
que tinham direito os libertos era uma importante pauta de debate: “julgam alguns
que se faz mister intuir disposições especiais para os libertos; outros que a lei deve
ser geral, reprimindo a vadiagem de quem quer seja”.
O principal argumento era o da não discriminação, pensado “no interesse dos
próprios libertos”: seria “indeclinável” impor “condição de liberdade”, ou seja,
prescrições legais. Os editores ainda fizeram menção há uma exigência que fazia
referencia a necessidade de se deter o movimento de desraizamento dos ex-cativos
conjeturado no início deste texto: a permanência do novo “cidadão” por algum tempo
na localidade onde experimentaram o cativeiro após a concessão da liberdade. Quiçá
fizessem eles referência a alguns dos projetos encaminhados ao poder público por
aqueles que – naqueles meses iniciais do ano de 1888 – não tinham mais dúvidas
sobre a necessária abolição imediata da escravidão.
Por exemplo, dias antes da publicação daquele edital, alguns fazendeiros mineiros
haviam encaminhado “ao patriótico ministério de 10 de Março” um projeto para
orientar a questão do elemento servil. Suas proposições, de acordo com os projetistas,
tinham por objetivo sensibilizar os “homens ilustrados e de coração” que compunham
o governo imperial, “1º para que os infelizes ex. escravos não fiquem sem amparo;

20
Biblioteca Nacional; PR – SPR 38(1); Periódico – 4, 257, 03,18 “A organização do trabalho” – 1888
p.1; O fluminense, n. 1545, 29 abr. 1888.

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2º para que uma grande parte da lavoura, e consequentemente o pais, não sofra
demasiadamente com esta mudança radical e necessária”. Demonstrando menos
interesse na primeira das intencionalidades o projeto, que vale a pena colocar em
relevo, datado de quatro de abril de 1888, iniciava com os seguintes artigos:
Art. 1º – Serão declarados livres da data desta lei em diante
todos os africanos entrados no Brasil depois de 1831, o que
se verificará pela matrícula;
Art. 2º – Serão considerados libertos, com condição de
prestarem serviço aos seus senhores até 31 de dezembro
de 1890, todos os demais escravos deste Império;
Art. 3º – Os libertos a que se refere o artigo 2º desta lei terão,
á título de gratificação um dia na semana que será o sábado;
Art. 4º – Não será permitido aos ditos libertos saírem do
município de sua residência antes da prestação dos serviços
a que ficam obrigados, salvo acordo com seus senhores.21
É possível aqui conectar tais debates e expectativas com as circunstâncias temidas
pelos herdeiros da finada D. Maria Telles Cosme dos Reis, que certamente não era fato
isolado naquela conjuntura. Figurava entre as preocupações das elites proprietárias
a possibilidade concreta, e concretizada em muitas das vezes, de africanos e seus
descendentes em posse de suas pessoas decidirem por seus destinos à revelia dos
interesses e planos de seus ex-senhores. Ainda que as visões e expectativas de
liberdade enquanto prerrogativa dos ex-escravos não tivessem consenso também
entre os donos do poder, eles estavam em acordo pelo menos em um quesito: o
liberto deveria ser obrigado a permanecer próximo ao local que conheceu o cativeiro.
Podemos ir mais além. Tudo parece indicar que, para os editores de O Fluminense,
com a entrada em cena do poder público, deveria ser ex-escravo submetido a uma
legislação que certamente cercearia sua autonomia em relação a decidir quando,
como e por que trabalhar.
A expectativa de que “um bom regulamento a este respeito, para que tudo marche
em ordem” constasse na esperada “lei acerca do elemento servil”, provavelmente
tinha como referência a lei 2040 que encerrou as discussões em torno da liberdade
do ventre cativo em 1871. Esta, dentre outras medidas já expostas neste trabalho,
regulamentou o contrato de trabalho dos libertos. Como argumentou Henrique
Espada Lima, foi a primeira lei que tratou diretamente da organização do trabalho
dos ex-escravos, no contexto de um projeto para sua emancipação gradual. Entre
outros dispositivos, a lei instituía a obrigatoriedade do liberto, que ficava por cinco
anos sob a inspeção do governo, estabelecer contrato de locação de serviços por
período mínimo de sete anos e, também, definia ser este obrigado a contratar
seus serviços sob pena de ser constrangido, “se vivessem vadios, a trabalhar nos
estabelecimentos públicos.” Não obstante, para Lima, “a lei de 1871 foi considerada
como a peça central de uma estratégia legal que atrelava diretamente a libertação
dos escravos à reordenação do trabalho e a transição pra um mercado de trabalho
livre”22. A lei 3270, provavelmente, pautaria as esperanças dos proprietários em
21
Publicação a pedido do Jornal do Comércio de 11 abr. 1888.
22
LIMA, Henrique Espada. “Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade
de trabalho no século XIX”. Topoi, v. 6, n. 11, jul./dez. 2005, p. 289-326.

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relação ao controle dos libertados. Dando continuidade ao projeto de regular a
extinção gradual do elemento servil essa ultima, que entrou para a história como
a Lei dos Sexagenários, também previa a permanência do liberto no município
onde fora alforriado, sob pena de ser considerado vagabundo e ser obrigado a se
empregar em trabalho público ou em colônias agrícolas.
Certamente, a lei que aboliu definitivamente a escravidão no Brasil frustrou as
expectativas daqueles editores e daquele núcleo duro classe proprietária. A lei de
1888 não concedeu o direito à indenização nem trouxe medidas complementares
que garantisse algum controle sobre a mobilidade espacial dos libertos. Não
que a decisão de abandonar os locais onde conheceram a escravidão fosse
algo líquido e certo. Conforme já comentado, dar continuidade a costumeiros
arranjos de trabalho, permanecendo próximos às redes de relação construídas
durante o cativeiro, que obviamente poderia incluir membros de família senhorial,
certamente foi o resultado de cálculos feitos por muitos daqueles que contribuíram
na construção de reconhecidas “terras de pretos”. Entretanto denunciando certo
“espírito capitalista”, muitos foram os libertos que migraram para áreas de maiores
possibilidades econômicas, ainda que não fosse o principal objetivo o acúmulo de
capital, certamente estavam determinados a mudar seu destino pessoal. Agiam para
mudar a sua história além da escravidão.
Decerto que aquelas imagens por mim produzidas quando da leitura do ofício
enviados pelos Telles Cosme dos Reis à Junta Classificadora de Escravos do
Município Neutro – de ex-cativos reunindo suas famílias e seguindo para regiões
que lhes oferecessem melhores alternativas para reorganizarem suas vidas sob a
nova condição – multiplicavam-se nas mentes dos membros das classes dirigentes.
Expectadores contemporâneos que periodicamente tomavam conhecimento de
levas de novos libertos. Em várias publicações a pedido de proprietários ansiosos
pela intervenção do governo na providência de braços estrangeiros para suprir as
demandas de suas lavouras sobressaiu a ineficiência da residência forçada para os
que recebiam suas alforrias23.
Se o primeiro movimento tendo em vista controlar o ir e vir dos libertos foi
forçá-los a permanecerem próximos às áreas produtoras onde foram alforriados24,
reforçado pela obrigação de contratarem seu serviço, tudo parece indicar que a
resistência dos africanos e seus descendentes em fazer valer suas formas de ver e
viver a vida levou à novas oscilações nas políticas de controle. Denunciando não
serem as preocupações daqueles defensores dos “interesses da província do Rio de
Janeiro” frutos de impressões particulares, o artigo 399 do código penal de 1890
tratava de uma das principais pautas daquele edital: o combate ao ócio25. Parece
23
Notícias sobre o abandono por grupos libertos das propriedades rurais podem ser verificados nos
periódicos publicados principalmente nos últimos anos da escravidão. No caso do Rio de Janeiro,
em especial o Jornal do Comércio.
24
A exigência não incidia sobre os que residiam nas capitais.
25
A repressão à vadiagem constava no Código Criminal de 1830. O art. 295 rezava o seguinte: “Não
tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta, e útil de que possa subsistir, depois de advertido
pelo Juiz de Paz, não tendo renda suficiente. Pena de prisão com trabalho por oito a vinte e quatro
dias”. Já o art. 399 do Código Penal de 1890 determinava que deviam ser punidos com prisão
de 15 dias os vadios e capoeiras que: “Deixar de exercitar profissão, oficio, ou qualquer mister em
que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a
subsistência por meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos

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ter sido esta uma das soluções encontrada pelas elites dirigentes. O artigo redefinia
o vadio e prescrevia formas de reincorporá-lo por meio do trabalho aos padrões
de comportamento social aceitável. Tudo parece indicar que, estrategicamente, a
ideologia que positivava o trabalho e incentivava a repressão à vadiagem deveria
funcionar para transformar africanos e crioulos anteriormente escravizados num
“novo tipo de trabalhador”, adequado às exigências de uma moderna ‘nova ordem
social’: a capitalista.
De acordo com Erika Bastos Arantes, era abrangente o conceito de vadiagem,
enfeixando outras várias formas de contravenções, a exemplo dos ébrios, mendigos,
desordeiros, capoeiras, jogadores e cafténs. “Esta abrangência se torna extremamente
funcional aos propósitos da polícia, já que a prisão por vadiagem poderia ser
realizada a qualquer momento, bastando a autoridade suspeitar do sujeito”26. A
julgar pelo que pôde ser interpretado como “propósito da polícia” a partir da leitura
da totalidade do texto de Arantes, a não discriminação dos libertos, sugerida por
aqueles editores do Fluminense, não era um consenso naquelas circunstâncias.
Enquanto alvos preferenciais da polícia, os ex-escravos tiveram os seus movimentos
sob a vigilância e controle das autoridades públicas. O africano Antônio Mina, por
exemplo, foi um das personagens-testemunha da ação disciplinadora da polícia
da cidade do Rio de Janeiro. Sua história serviu de guia para citada autora citada
analisar algumas das mudanças ocorridas nas relações de trabalho no setor portuário
da cidade. Também conhecido por Antônio Africano e Antônio Adici, este indivíduo
“se virava” nas ruas da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com o que se pode
reconstituir de sua trajetória, este provável trabalhador portuário “ora foi identificado
como carregador de café, ora como trabalhador da estiva ou vendedor ambulante”.
Foram também vários os endereços de moradas nas freguesias de Santa Rita e
de Santana declarados por ele quando de suas inúmeras prisões. As experiências
deste personagem denunciam as contingências da vida de um africano em centros
urbanos como o da Corte daqueles tempos, também o provável destino daqueles
que não se enquadravam nas rígidas regras em construção para um novo regime.
Caso os libertos das fazendas dos Telles Cosme dos Reis decidiram por rearranjar
suas vidas no então Município Neutro, certamente, lidaram cotidianamente com
estas circunstâncias.
A demografia do trabalho e do espaço urbano

O município do Rio de Janeiro daqueles tempos – por seu dinamismo econômico,


por seu atrativo demográfico, por ser um centro administrativo, ou por tudo isto
junto – foi área de acolhimento de muitos libertados. Foi também o cenário onde
diferentes visões particulares de mundo entraram em conflito; onde ocorreram
acirradas disputas entre díspares noções de liberdade. Era impetuosamente na
labiríntica capital do Brasil que os cidadãos eram sugestionados a contribuírem num
projeto de adaptação das forças produtivas aos padrões capitalistas e à adequação

bons costumes”.
26
ARANTES, Erika Bastos. “Negros do Porto: trabalho, cultura e repressão policial no Rio de Janeiro,
1900-1910”. In: AZEVEDO, Elciene et al (orgs.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no
Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 107-
156.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 89


e seus comportamentos ao moderno modelo de civilização27.
Ainda na segunda metade do século XIX, a cidade se encontrava densamente
habitada por diversos indivíduos intrinsecamente ligados à experiência do cativeiro.
Senhores e ex-senhores, livres pobres, libertos ou escravizados, todos, reorganizavam
suas vidas de acordo com as novas circunstâncias. Dentre elas, como destacado
na primeira parte deste trabalho, significativas taxas de alforrias. Neste sentido, os
libertos pela ação da Junta Classificadora do Município Neutro da Corte naquele
mês de outubro de 1876 contribuíram num significativo aumento no número de
indivíduos nesta condição entre os populares. Fenômeno registrado pelo menos deste
o final da década anterior. A grande ascensão se deu após 1867, com a promessa
e concessão de liberdade aos negros que lutaram na Guerra do Paraguai. Para se
ter uma ideia, em 1849 os escravos eram quase 42% da população residente na
cidade. Incluindo as paróquias rurais, havia 110.602 cativos em um número total
de 266.466 habitantes. Só nas freguesias centrais existiam oitenta mil cativos, o que
fazia do Rio a cidade com maior população escrava urbana das Américas. Havia
ainda cerca de 10.800 libertos e, somando-se a eles, entre vinte e trinta mil pardos
e pretos livres. Computando estes dados o percentual da população que atualmente
poderíamos classificar como negra naquela sociedade, em meados do Oitocentos
era em torno de 56,8%28.
O Censo de 1872 demonstrou que a população fluminense cresceu pouco em
relação ao número total apurado em 1849, subindo de 266.466 para 274.972
habitantes. Entretanto, o número de escravos diminuiu espantosamente: 48.939
escravos resultaram da contagem dos recenseadores em 1872. Representavam nesta
época apenas 17% do total dos habitantes do município29. Pretos e pardos libertos
e livres somavam 36.900 indivíduos. No total a população não branca na cidade
diminui para 31,3%. Nas duas décadas seguintes a densidade populacional deu um
salto! O Recenseamento Geral da República dos Estados Unidos do Brasil colheu
o dígito de 522.651 habitantes na capital. Como destacado por Sidney Chalhoub,
neste registro, aproximadamente 180 mil ou 34% foram identificados como negros
ou mestiços30.
De posse de suas liberdades, mas não dos necessários recursos para usufruí-la de
maneira plena, os libertos que optassem por mover-se em direção as áreas centrais
do Rio de Janeiro, somar-se-iam a esta população na disputa por moradias, postos
de trabalhos, e espaços de lazer numa cidade demograficamente saturada. Todos,
incluindo os ainda escravizados, na região central do Rio de Janeiro, confundir-se-
iam no compartilhamento de um mesmo universo cultural. Algumas desigualdades
marcariam este caldo de cultura. Conforme vemos narrando, escravizados, libertos
e livres de cor seriam alvos em potencial do “Poder Público” que, como sugerido
por aqueles editores de O Fluminense, intensificaria sua atuação como entidade
agenciadora de políticas públicas garantidora da ordem social. Políticas que caberia

27
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
28
KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
29
SOARES, O “Povo de Cam”...
30
CHALHOUB, Trabalho..., p. 43.

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principalmente às autoridades policiais, assunto que finalizara a discussão deste texto.

Quadro I – Crescimento populacional no Rio de Janeiro (1872-1890)31

CENSO CENSO CRESCIMENTO


FREGUESIAS
1872 1890 %
Centrais: Santana, Sacramento, Santa
131.102 196.075 49,56
Rita, Candelária, São José
Urbanas não Centrais: Santo Antônio,
Espírito Santo, Glória, Lagoa, Engenho
97.641 233.670 139,32
Velho, São Cristovão, Gávea, Engenho
Novo
Rurais: Campo Grande, Jacarepaguá,
Guaratiba, Inhaúma, Irajá, Santa Cruz, 46.229 92.906 100,97
Paquetá, Ilha do Governador
População total da cidade 272.372 522.451 90,24

Considerando os sentidos da distribuição e concentração demográfica na


cidade do Rio de Janeiro no ano 1872, pode-se afirmar que o destino de muitos
daqueles que escolhiam utilizar o recém adquirido recurso da liberdade e mover
ao encontro de melhores possibilidades de arranjos de vida era suas freguesias
centrais32. Experimentando dispor de suas pessoas; vivendo “sobre si” – como já o
fazia muitos dos escravizados da região –, inúmeros libertados escolheram migrar
para esse perímetro urbano onde disputariam postos de trabalho e lugares para
residir em precárias habitações populares e coletivas com os ainda cativos, e com
seus pares libertos e livres pobres naturais do município. Também com milhares de
outros migrantes e imigrantes pobres que contribuíam no adensamento destes tipos
de moradia. No entanto, ainda que o discernimento dos libertados se pautasse em
avaliações críticas a respeito dos significados de liberdade formulados na experiência
do cativeiro, volto afirmar, as noções de liberdade construídas por eles neste processo
entrariam em conflito com o modelo de liberdade pensado pelas elites dirigentes
para as classes trabalhadoras – constituída pelo conjunto destes indivíduos.
O “mercado de trabalho”. Representou este uma das arenas para qual se chamou
atenção no primeiro parágrafo deste texto. Nas últimas décadas do Oitocentos, o
regime de trabalho imposto às manufaturas, às fábricas e ao incipiente setor industrial
em áreas de produção urbanas foi percebido por muitos trabalhadores libertos e livres
– infimamente assalariados – como análogo à escravidão, decerto por não possuírem
os sentidos do que para os libertos significaria “liberdade”33. No que diz respeito ao
trabalho informal, possibilidade largamente aproveitada por trabalhadores de várias
condições sociais e de diferentes perfis étnicos, esse esbarraria em instrumentos de
controle e penalização estabelecidos nos códigos de posturas que, teoricamente,

31
Fonte: MATTOS, Marcelo Badaró; Escravizados e livres: experiências comuns na formação da
classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom texto, 2008.
32
Vide quadro I.
33
MATTOS, Escravizados e livres...

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 91


tinham por fim, último preservar a ordem e o sossego público. Eram consideradas
infrações de posturas: não ter licença para trabalhar, estacionar carroças em áreas
públicas, vender produtos fora de padrões estabelecidos etc. Só para citar alguns
exemplos de violações à ordem pública: em 1875, por vender pães sem as devidas
licenças, Bernardino José Ribeiro Dias e João Gomes Martins foram multados em
10$000. Já Sebastião José Alves, estabelecido com talho de vaca e porco à rua
de São Clemente n. 91, foi, no mesmo ano, multado por vender seus produtos em
carroça considerada velha pelas autoridades públicas. Joaquim Francisco foi multado
no ano anterior por não ter matriculada a sua carroça. Enquanto Salvador Josio
receberia multa em 13 de Janeiro de 1877, por ter estado a vender peixe pousado
em lugar público não destinado pela Ilma. Câmara Municipal34.
Fixar residência figurava num outro tipo de batalha. Como tem sido ressaltado em
algumas pesquisas histórica sobre o Rio de Janeiro urbano da segunda metade do
século XIX, o reordenamento da sociedade fluminense para uma nova era de trabalho
foi acompanhado por uma “cirurgia” que alcançou também os espaços privados.
O objetivo era tornar a cidade moderna e civilizada. Os espaços coletivos, que
favoreciam rearranjos identitários e culturais, foram os principais alvos desta política.
No âmbito do processo resumido acima, as habitações populares e coletivas foram
condenadas por serem consideradas insalubres e ameaçadoras35. Esta operação
do poder público certamente implicaria no cotidiano das classes trabalhadoras,
compelindo debutantes nos mundos dos livres a modificarem algumas noções no
significado conferido à liberdade. Neste sentido, tornar-se ia necessário dar nova
acepção à mobilidade espacial.
Havia ainda as ruas: um campo minado. As incontingências de se frequentar os
becos e vielas do Rio Antigo podem ser comprovadas nos livros de registros da Casa
de Detenção. Esta Instituição, criada por meio do Decreto n. 1774 em 02 de junho de
1856 e instalada nas dependências da Casa de Correção da Corte do Rio de Janeiro,
teve como função manter detidos aqueles que ainda não tinham sido condenados ou
que tivessem cometido pequenos delitos sem pena – detenções de curta duração –
embora também pudesse abrigar presos condenados. Em diferentes livros dedicados
aos registros de homens e mulheres de condições diversas foram documentadas
tensões diárias a que estiveram expostos os que necessitavam vivenciar as vias
públicas. A análise de seus motivos de prisões, para além de acusar o sentido do
controle do poder público no dia-a-dia das classes trabalhadoras – denunciando
serem as intervenções voltadas menos para o crime que para o controle social –,
oferece condições de se vislumbrar elementos do cotidiano e o perfil de homens e
mulheres que habitavam, trabalhavam, ou transitavam pelas ruas centrais da cidade
o Rio de Janeiro daqueles tempos.
Por exemplo, “por motivo de ordem pública” era preso em 12 de março de 1890 o
negociante Ângelo Fernandes. O fluminense tinha 45 anos e declarou morar no Beco
da Carioca, número 10. Chegou conduzido pelo carro da casa. O filho de Antonio
Fernandes e Ângela da Conceição foi registrado como moreno – ele tinha o capelo

34
AGCRJ – Infrações de Posturas - Notação – 9.2.34.
35
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemia na Corte imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996, cap. 1.

92 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


crespo, não carapinho como a maioria dos pretos e pardos dos registros36. Utilizando
ainda uma gramática da escravidão e o recurso da já comentada legislação de
combate ao ócio, que tornava legítima a detenção de “ébrios, mendigos, desordeiros,
capoeiras, jogadores e cafténs”, e outros vadios, vagabundos e turbulentos, os
agentes daquela instituição detiveram muitos. Constrangeram permanentemente os
movimentos daqueles membros das classes trabalhadores que moravam, circulavam
e trabalhavam nas regiões centrais da cidade. É o motivo da prisão de Ângelo que
o transforma em um caso peculiar. Por ser ele uma síntese. Pelo menos 59,7% dos
746 detentos registrados no mesmo livro de matrícula que o nome do “moreno”
foi assentado, poderia ter a causa de sua detenção interpretada como “motivo de
ordem pública”.

Quadro II – Detentos por naturalidade/cor - 1890

Naturalidade / Cor Acaboclados Brancos Fulas Morenos Pardos Pretos Total


Distrito Federal - 44 4 10 37 22 117
Província do RJ 1 13 4 7 25 33 83
Outras Províncias 3 40 20 44 72 50 229
De outras
1 244 2 13 13 14 287
nacionalidades
Não Identificada 1 26 - - 1 2 30
Total 6 367 30 74 148 121 746
Fonte: APERJ – Casa de Detenção - Livro de Registro de Entradas – Notação 63 – 01/03/1890-
30/04/1890.

Em meio aos casos passíveis deste tipo de interpretação, destacam-se os de


vadiagem (171) e desordem (142). Também, por turbulência (24), embriaguez
(43) e por dormir ao relento (4) muitos foram apresentado aos corredores daquela
instituição. Incluem-se ainda aqueles que foram detidos por conta da assinatura do
“termo de bem viver” (62). Este representava um compromisso do detento de “tomar
ocupação” dentro de um prazo estipulado. O indivíduo podia ser detido para a sua
assinatura ou pelo não cumprimento do acordo.
Dentre os registrados naquele livro no ano de 1890, os com ascendência africana
somavam 50%, considerando o total dos detentos (Em época que representavam
cerca de 34% do conjunto da população fluminense). Avaliando somente os
nacionais, chegamos ao percentual de 78,5% de fulas, “morenos”, pardos e
pretos. Todavia, operando esta análise numérica em função de fazê-la funcionar
estritamente com sentido de sustentar os argumentos desta análise, interessa ressaltar
que pelos menos 256 indivíduos podem ser inclusos naquelas imaginadas imagens
de deslocamentos que deram início à construção do meu argumento. Isto porque
34,3% dos detidos pelos agentes da Casa de Detenção nas ruas da cidade do Rio
de Janeiro eram migrantes não brancos de diversas partes do país (70 vindos da
vizinha província do Rio de Janeiro, e 186 de outras províncias do país). Naquele
registro, representavam 68,6% dentre os de ascendência africana residentes no
36
Arquivo Público Estadual do Rio de Janeiro – Casa de Detenção - Livro de Registro de Entradas –
Notação 63, registro número 1025.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 93


Distrito Federal. Uma considerável amostra dos que resistiram aos limites impostos
ao uso de sua mobilidade espacial e se deslocaram para onde percebiam haver mais
possibilidade de potencializar os recursos da precária liberdade usufruída pelos que
possuíam a sua herança social.
Comentários Finais

As estratégias de controle e repressão postas em práticas pelas classes proprietárias


e pelo poder público na capital, imperial e depois republicana, denunciavam a
tentativa de se combater outra característica da cidade fluminense naquele período: a
sobreposição dos espaços por diferentes grupos sociais. Retirando dos “esconderijos”
localizados em diversas áreas de habitações populares existentes na cidade aquelas
pessoas percebidas pelas elites dirigentes como viciadas e perigosas; interferindo em
suas escolhas de mobilidade, a principal intenção parece ter sido uma reorganização
dos espaços urbanos de acordo com uma redefinição do perfil social – leia-se étnico-
racial – dos que ali seria doravante permitido residir, trabalhar e transitar.
Podemos aqui é dialogar com as apreciações de Lilian Fessler Vaz, que analisou
o processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro na perspectiva de divisão/
especialização do espaço que teria resultado na organização de áreas residenciais
diferenciadas e segregadas. Abordaria que no curso de ambos os processo, as classes
trabalhadoras que residiam no perímetro urbano se deslocaram ou na direção das
áreas periféricas, ou dos subúrbios distantes ou mesmo para os morros que ganhavam
espaço como alternativas de local de moradia, sobretudo por não sofrer o mesmo tipo
de interferência que as áreas centrais. Para a referida autora, “a parte da população
dependente da centralidade manteve-se na proximidade em habitações coletivas
nos bairros antigos periféricos”37.
Tendo a cidade do Rio de Janeiro o pioneirismo sob as instituições criadas
por africanos e seus descendentes nos espaços urbanos: as “cidades negras”, e,
sobretudo, por não terem ainda as lembranças do cativeiro se transformado em
reminiscência na virada do século XIX, as intervenções feitas pelos órgãos judiciários
e policiais ao longo da segunda metade daquele século – que pautaram o processo
de urbanização descrito por Vaz, descritas sumariamente nas páginas acima - podem
ser sim interpretadas como tentativas de alterar significados políticos e culturais que
ganharam formas no período da escravidão. Desarticular a memória de lutas e das
experiências de solidariedade dos trabalhadores escravos, libertos e pobres livres,
cuja maioria era formada por pretos e pardos, parece ter estado no centro e nas
bordas dos projetos (com leituras arquiteturais) de embelezamentos e saneamento
que marcou o período e resultou na definição de “áreas nobres”. Neste movimento,
o grosso da população com passado da escravidão foi compelido a mover-se em
direção às áreas que, a partir de uma construção ideológica, eram consideradas
próprias para habitação dos “menos favorecidos”. Refluxo que combateria o sentido
do fluxo migratório de ex-escravos como aqueles dos Telles Cosme dos Reis. Explica-
se então a mudança na distribuição da população. O sentido desta fica evidente
quando se comparam a distribuição demográfica referente ao ano de 1872 com o

37
VAZ, Lilian Fessler “Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos – a modernização da
moradia no Rio de Janeiro”. Análise social, vol. XXXIX, n. 127, mar. 1994, p. 587.

94 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.


de 1890. Se o primeiro foi um ano de adensamento das áreas centrais, o segundo
foi de refluxo, destacadamente no que diz respeito à fixação das populações negras
em (des)privilegiados espaços da cidade do Rio de Janeiro. As alterações sociais
ocorreriam, no entanto, dentro dos limites da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo
naquele tecido urbano arredio e alternativo engendrado por africanos e crioulos
em décadas de luta contra a instituição da escravidão. Transformações significativas
resultantes da citada “cirurgia” feita pelas autoridades no espaço urbano. A cidade
perderia muito daqueles “negros” significados culturais.
Enfim, na memória que se construiu sobre o sentido da ocupação dos morros
carioca – relacionada ao retorno dos soldados da Guerra do Paraguai – ou dos
subúrbios do Rio de Janeiro não se destacou a história de segregação étnico-racial
que acompanhou este processo de especialização espacial aqui sugerido. No período,
os egressos da escravidão buscavam lançar mão de um dos preciosos recursos da
liberdade – o direito à mobilidade espacial. Muitos escolheram viver não apenas longe
dos locais onde tiveram a experiência de cativeiro, mas também onde pudessem
alargar as alternativas de sobrevivência. A busca por autonomia teria orientado as
escolhas destes indivíduos.
Se o tipo de liberdade visualizado pelos diversos indivíduos que compartilhavam
aquela circunstancia histórica da escravidão, a despeito de seus diferentes significados,
possuía uma estrutura ela foi permanentemente ameaçada pela interferência das
classes proprietárias e do poder público. As políticas de domínios do legislativo, do
judiciário e da polícia, que resultaram na demarcação de diferentes espaços sociais,
colocavam limites nas intenções, gestos e projetos dos libertos, em particular, e da
população negra, em geral. Um movimento que pode sim ser analisado como uma
política de segregação espacial e ocupacional. Processo que talvez justifique a vitória
do termo “carioca” sobre o “fluminense” para denominar os nascidos no município
do Rio de Janeiro no século XX. Município que paulatinamente abandonaria a
condição de “cidade negra” para ser reconhecido como “casa de branco”38.

38
O termo “Carioca” significa, em tupi, “casa de branco”.

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RESUMO ABSTRACT
Diversas arenas de conflitos foram erguidas Conflict in different societies was built on
em diferentes sociedades escravistas diante de slave emancipation processes of Africans and
processos de emancipação dos africanos e seus African descent. Slaves, former masters, and
descendentes. Os escravos, os ex senhores, e o State battled around concepts and meanings
Estado de digladiaram em torno das concepções of freedom and slavery. For the newly released
e significados de liberdade e escravidão. Para os game was in expectations and projects (individual,
recém libertados estava em jogo expectativas e collective and family) about the new legal status
projetos (individual, coletivos e familiares) quanto and maintenance of autonomy and values
à nova condição jurídica e à manutenção de incorporated in the experience of slavery, the
autonomia e valores constituídos na experiência right to reorder their lives according to their own
da escravidão: o direito de reordenar suas vidas perceptions of life, work and pay on it. The aim
de acordo com suas próprias percepções de vida, of this paper is to analyze the prospects of access
trabalho e remuneração sobre ele. O objetivo to tax freedom and mobility by the surrounding
deste artigo é analisar as perspectivas de acesso space free. Reflecting, in particular, about the risks
aos tributos da liberdade e à mobilidade espacial and expectations of the experience of freedom in
envolvente por parte dos libertos. Refletindo, rio de Janeiro. Especially – in view of the clashes
mormente, a cerca dos riscos e expectativas around the maintenance of public order - the
da experiência de liberdade no Rio de Janeiro. organization of work, citizenship and the type of
Especialmente – tendo em vista os embates em thinking by ruling elites. The specific context for
torno da manutenção da ordem pública – da which it seeks to draw attention intended as a
organização do trabalho, e do tipo de cidadania perspective based on dialogue with the logic of
pensado pelas elites dirigentes. O contexto survival of released and able to forge different
específico para o qual se busca chamar atenção meanings of the normative pattern of social
pretende servir de base na perspectiva de dialogar behavior they expected after the acquisition of
com as lógicas de sobrevivência dos libertos e as freedom. Bring up some possibilities of what
condições de forjarem significados diferenciados would be freed from the expectations regarding
do padrão normativo do comportamento social the experience of freedom and, to some extent, the
esperado para eles após a aquisição da liberdade. expectations assigned to them by the ruling elites
Trazer à tona algumas possibilidades do que are some resources used in this paper.
seriam as expectativas dos libertos em relação à Keywords: African and Creole; Slavery and
experiência de liberdade e, em alguma medida, às Freedom; Spatial Segregation.
expectativas atribuídas a eles pelas elites dirigentes
serão alguns recursos utilizados nesta reflexão.
Palavras Chave: Africanos e Crioulos; Escravidão
e Liberdade; Segregação Espacial.

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HIERARQUIAS E TERRITÓRIOS DA CULTURA
MATERIAL EM TORNO DAS SENZALAS:
PRIMEIRAS NOTAS PARA UMA ABORDAGEM
ANTROPOLÓGICA DA PLANTATION
Flávio dos Santos Gomes1
Luiz Alberto Couceiro2

Estudos sobre a escravidão no Brasil têm mobilizado numerosos pesquisadores.


Nas abordagens se destacam na última década tanto uma história atlântica como
as dimensões africanas num impacto historiográfico representado por estudos
acadêmicos produzidos por pesquisadores treinados em programas de pós-graduação
em várias partes do país. Questões importantes têm envolvido diversidade teórica
interdisciplinar; uso cada vez mais ampliado de análises quantitativas3, e proliferação
de estudos de caso de regiões específicas e sobre o cotidiano4.
Entre as várias temáticas – demografia, família, alforrias, irmandades etc. – um
importante eixo ganhou desdobramento na década de 90: a esfera da cultura política
da sociedade escravista, especialmente estudos sobre as políticas senhoriais e as
políticas dos escravos. Numa escravidão benigna e paternal na concepção de Gilberto
Freire não havia reação; enquanto na escravidão violenta da Escola Sociológica
Paulista de Florestan Fernandes e outros, só existiu “resistência” como paradigma
da crueldade do regime escravista. Com a utilização de fontes judiciárias o tema da
criminalidade ganhou destaque, passando das abordagens que insistiam na violência
senhorial para aquelas que iam além, procurando entender as expectativas dos
próprios escravos diante de “costumes”, direitos, entre aqueles inscritos ou não em
leis e assim percebidos5.
1
Pós-Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Doutor em História Social do
Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-Mail: <escravo@prolink.com.br>.
2
Pós-Doutor em Antropologia pelo Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor
em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-Mail: <luizalbertocouceiro@gmail.
com>.
3
KLEIN, Herbert S. “American Slavery in Recent Brazilian Scholarship, with Emphasis on
Quantitative Socio-Economic Studies (Review Essay)”. Slavery & Abolition, vol. 30, n. 1, 2009, p.
111-133.
4
Para panoramas historiográficos em vários contextos ver: GOMES, Flávio dos Santos. Do escravo-
coisa ao negro-massa: a escravidão nos estudos de relações raciais no Brasil. In: VILLAS-BOAS,
Glaúcia & MAIO, Marcos Chor (orgs.). Ideais de modernidade e a sociologia no Brasil: contribuição
do pensamento de L. A. Costa Pinto. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1999, p. 125-144; QUEIROZ,
Suely Robles Reis de. Rebeldia escrava e historiografia. Estudos Econômicos, vol. 17, n. especial,
1987, p. 7-35; SCHWARTZ, Stuart B. Recent trends in the study of slavery in Brazil. Luso- Brazilian
Review, vol. 25, n. 1, verão 1988, p. 1-25; SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, Roceiros e Rebeldes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001, capítulo 1.
5
Para os estudos de referência sobre a criminalidade escrava baseado em processos crimes, ver:
CASTRO, Hebe M. Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste
escravista, Brasil, Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998; CHALHOUB, Sidney. Visões
da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990; GUIMARÃES, Elione Silva. Violência entre parceiros de cativeiro: Juiz de Fora,

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 97


Entre variadas tendências, aspectos teóricos e recortes históricos e historiográficos
os estudos sobre a escravidão trilharam vários caminhos. Até os anos 60 falava-se de
uma escravidão genérica com uma sociedade homogênea entre espaços e tempos
coloniais e pós-coloniais. Ora branda, ora cruel só havia foco para senhores e o palco
privilegiado era a casa-grande e a economia agroexportadora. O tema da escravidão
genérica cedeu a vez às análises sobre o escravismo nos anos 70. O que importava
agora era entender a sociedade escravista através do seu sistema, articulado e
estrutural. Tanto na perspectiva genérica como naquela do sistema, pouco interesse
havia para a cultura material, para a agência e o cotidiano. A partir de meados dos
anos 806 e especialmente nos anos 90 há uma inflexão com abordagens centradas
na experiência dos escravos e suas dimensões africanas, crioulas, culturais, religiosas,
biográficas e também arqueológicas.
Novas questões deverão ter implicações profundas na perspectiva de abordar a
escravidão e também a pós-emancipação no Brasil. Do ponto de vista teórico, não
há dúvida de que recortes intelectuais e acadêmicos são também produtos históricos
em cenários de escolhas e de classificação de temas, assuntos e perspectivas. Neste
artigo tão somente propomos um ensaio preliminar para uma experimentação
analítica. Juntando material de pesquisas em andamento e diálogo com a bibliografia
avaliamos as noções de “honra”, “moral”, “espaços” e “vizinhança” para pensarmos
os contornos das hierarquias, das lógicas e dos indícios da cultura em variados
“territórios” na plantation através de conflitos envolvendo comunidades escravas
no sudeste a partir das narrativas (novas leituras) de processos crimes.
Honras e ofensas

No século XIX, assassinatos, agressões e tentativas de homicídio tiveram como


alvos tanto senhores, administradores e feitores, como escravos e libertos, ocorrendo
em diversas partes do sudeste escravista, especialmente em áreas cafeeiras. Observa-se
recorrente nos processos judiciais a alegação ou a surpresa de acusados e acusadores
de que algo havia sido “desrespeitado” naquilo que entendiam como “costumes” e
“regras”: quanto ao trabalho, relativo aos dias de descanso, referente à alimentação
– horários das refeições, tipos e a quantidade de alimentos servidos – e no que dizia
respeito à disciplina e aos castigos. Revelam-se mesmo “acordos”, moralidades e
arranjos sociais inscritos em práticas, gerações do cativeiro e políticas de domínio.
A abordagem aqui não estaria limitada à burocratização da legislação do Império,
como se mesma amarrasse as relações sociais estabelecidas. Pelo contrário, é possível
atravessar esta fronteira analítica, testando possibilidades de reflexão. Em qualquer
sociedade, se constituíram lógicas e versões para atitudes e condutas – reafirmadas
e redefinidas – como parte de processos da criminalização e da institucionalização
segunda metade do século XIX, São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006; LARA, Silvia Hunold.
Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico: os movimentos
sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/EDUSP, 1994; MACHADO, Maria Helena
P. T. Crime e Escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
6
Uma reflexão clássica muitas vezes omitida nas revisões historiográficas aparece em CASTRO,
Antonio Barros de. “A economia política, o capitalismo e a escravidão”. In: LAPA, José Roberto
Amaral (org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 67-107.

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de códigos, regras (judicialização) e comportamentos entendidos como “naturais” ou
ofensivos a um determinado grupo ou pessoa7. Nesta seção analisamos inicialmente
as narrativas de um conflito (envolvendo mortes) entre escravos moradores numa
mesma fazenda. Discutimos o papel das hierarquias e das percepções envolventes,
e os sentidos e os significados que os cativos conferiam às suas próprias condutas8.
Em meados dos anos 1840, Manoel Pereira de Souza Barros adquiriu sesmarias,
em Valença, província do Rio de Janeiro. Somente no início da década seguinte se
estabeleceu com família, mandando construir duas fazendas. Uma foi denominada
Campo Alegre, onde residiu e logo plantou café. A outra era chamada Chacrinha,
a qual já adquiriu com casa de morada e engenho do ex proprietário. Nesta última
a ênfase foi a produção de aguardente e gêneros como milho e palmito. Com o
esgotamento das terras do Campo Alegre para o café, optou-se pelo potencial da
fazenda Chacrinha. Visando o mais rápido escoamento para os portos na Corte,
houve o investimento na construção de uma estrada de ferro, sendo fundada,
em 1870, a Companhia Estrada de Ferro União Valenciana com uma estação
entre propriedades de Manoel Pereira de Souza Barros, que ganharia o título de
Comendador, deixando para os herdeiros: fazendas e centenas de escravos9.
Cenários montados com pés de café, roças de alimentos, estrada de ferro e
escravos africanos e crioulos. No dia 20 de março de 1870 – pleno domingo – um
dos cativos foi morto com golpes de foice, facadas e pauladas. O comendador Souza
Barros foi logo avisado. Enquanto isso, seu filho ordenou que o administrador da
fazenda e alguns escravos averiguassem em detalhe os acontecimentos. Também
foi enviada correspondência ao delegado de polícia de Valença, Joaquim José do
Amaral, exigindo sua presença na fazenda Chacrinha. Na carta, o comendador já
apresentava uma versão do crime. Seu escravo – o africano João Moange – teria
lutado num domingo, por volta das 14 horas, com escravos desconhecidos, nos limites
da fazenda. Domingos e Félix – dois outros escravos do comendador – vindo de
uma pescaria teriam encontrado João Moange10. O delegado iniciou as investigações
tomando o depoimento de Félix, que detalhou acerca do momento em que encontrou
o corpo: ouvindo gritos quando vinha pela estrada, com seus anzóis de pescar, viu
João Moange todo ensanguentado, tendo em cada uma das mãos uma foice e uma
faca. Félix teria inclusive presenciado a escapada dos supostos agressores, para o
alto de um morro: um escravo alto e magro, vestindo calça de algodão, camisa
7
Embora com conclusões distintas acerca da relação entre obrigações, regras, punições e sanções
sociais para quebras de contrato, ver as abordagens de Bohannan e Gluckman. Ver: BOHANNAN,
Paul. Justice and judgement among the Tiv. Oxford, UK: Oxford University Press, 1957; GLUCKMAN,
Max. The ideas in Barotse Jurisprudence. New Haven & London: Yale University Press, 1965.
8
Pensamos aqui nas chaves interpretativas abertas pelas seguintes leituras: ELIAS, Norbert. Os
Alemães: a luta pelo poder e a evolução da habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997 [1992]; ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders:
sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2000 [1994]; ELIAS, Norbert. “Part II: The fishermen in the Maelstrom”. In: __________.
Involvement and detachment. Oxford & New York: Basil Blackwell, 1987, p.43-118; LEACH,
Edmund. Jinghpaw kinship terminology: an experiment in ethnographic algebra. In: __________.
Rethinking anthropology. London: Athlone Press, 1961 [1945], p. 28-53.
9
Essas informações foram retiradas do Inventário das Fazendas do Vale do Paraíba, Códice AIII-F22
– Val. Disponível em: <http://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/?p=768>. Acesso em: 25
ago. 2011.
10
Arquivo Nacional, doravante AN, Corte de Apelação, processo-crime, caixa 3669, n. 6831.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 99


branca e um lenço de igual cor amarrado na cabeça; outro, também escravo, baixo
e gordo, com trajes iguais, mas com uma carapuça na cabeça. Félix asseverou que
tais escravos não “pertenceriam ao comendador”. Revelou mais: João lhe teria dito
pouco antes de falecer que havia sofrido um ataque ao defender milhos e palmitos
do seu senhor. O que isso significava? Felix esclareceria ao delegado que segundo o
costume da fazenda Chacrinha, o cativo que não trabalhasse na colheita não teria o
direito aos produtos da mesma. Como no alto do morro havia um milharal que dividia
as terras do comendador com aquelas de Manoel Antônio Esteves, Félix supunha
que os criminosos fossem cativos daquela propriedade e tivessem tentado roubar
João Moange. Surgem às primeiras linhas de investigação, levando o delegado a
indagar se havia alguma querela entre os escravos destes fazendeiros. A resposta foi
afirmativa, dizendo que “sabia, por ouvir dizer”, que uma vez João Moange, indo
às terras de Esteves colher laranja tinha sido destratado por seus escravos.
Felix reproduziu para o delegado o que já contara ao Comendador imediatamente
ao crime ocorrido. Mais depressa do que o administrador ou feitor, este deveria saber
de tudo na ocasião. A morte de um de seus cativos, ainda mais sendo o africano
mais velho na fazenda – certamente conhecedor das lógicas de funcionamento,
regras estabelecidas, desejos e vontades senhoriais – era algo grave. Dar a sua
versão e observar como ela poderia ser legitimada naquele contexto podia significar
para Felix salvar a própria pele diante de acusações e suspeitas. Tratava-se de uma
versão imediatamente repassada ao próprio senhor e não motivada por denúncias,
acusações e investigações policiais. E tudo verossímil: escravos de um fazendeiro
vizinho acusados de cometerem um crime em suas terras11. Não era intriga e nem
mero rumor, mas algo “verdadeiro”, visto haver testemunha ocular.
O delegado de Valença passou a investigação á fazenda de Manuel Antônio
Esteves. Colheu o depoimento do escravo Elizeu, que garantiu que no dia do crime
trabalhava no cafezal, juntamente com os seus parceiros, todos perto de um vale
– divisa com a fazenda do senhor Comendador Barros – tal como Félix relatou.
Segundo Elizeu o fazendeiro Esteves havia estabelecido uma espécie de “acordo”
com seus escravos: trabalharem nos domingos e tendo a segunda-feira livre. Deste
modo, estavam naquele local apenas na noite do dia seguinte ao do crime. Mas
o fazendeiro Esteves mandou alinhar os seus escravos para o reconhecimento de
possíveis assassinos: Félix acusou Elizeu, que foi imediatamente detido.
Episódio aparentemente elucidado. Porém, Felix – com 16 anos, natural do
Rio de Janeiro e trabalhador da roça – modificou a versão inicialmente dada. No
segundo depoimento alegou que no dia do crime, junto com Domingos, outro
escravo – cada um deles portando uma faca – tentavam roubar milho da fazenda,
11
Ver as implicações conceituais de: SCOTT, James. Weapons of the weak: everyday forms of peasant
resistance. New Haven: Yale University Press, 1985; Domination and the arts of resistance: Hidden
Transcripts. New Haven: Yale University Press, 1990; WICKMAM, Chris. “Gossip and resistance
among the medieval peasantry”. Past & Present, n. 160, 1998, p. 03-24. Há também as clássicas
discussões propostas em: FIRTH, Raymond. “Rumor in a primitive society”. The Journal of
Abnormal and Social Psychology, vol. 53, n. 1, jul. 1956, p. 122-132; GLUCKMAN, Max. “Gossip,
Scandal”. Current Anthropology, vol. 4, n. 3, jun. 1963, p. 307-316; PAINE, Robert. “What is
gossip about? An alternative hypothesis”. Man, new series, vol. 2, n.2, jun. 1967, p. 275-285;
GLUCKMAN, Max. “Psychological, Sociological and Anthropological Explanations of Witchcraft
and Gossip: a Clarification”. Man, New Series, vol. 3, n. 1, mar. 1968, p. 20- 34; PAINE, Robert.
“Gossip and Transaction”. Man, new series, vol. 3, n. 2, jun. 1968, p. 305-308.

100 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
tudo porque o Comendador não permitia que os escravos comercializassem produtos
das suas roças, mas somente para seu próprio consumo na Chacrinha. Com o milho
quase todo debulhado, eis que o africano João Moange os flagrou, ameaçando
denunciá-los. Mais do que isso, argumentaria tal africano que se todos os escravos
tinham esse “acordo” e o respeitavam, não via motivos para que fossem diferentes.
Ajoelhados diante do africano, Félix e Domingos teriam implorado para que nada
fosse revelado. Mas João seguiu seu rumo, sem nada prometer. Na ocasião acabaria
deixando cair sua faca no chão, sendo apanhada por Félix. Sentindo-se ameaçado,
o africano voltou para tirar satisfações, originando luta corporal. Resultado: Félix
golpeou João, na cabeça, com a foice usada para colher o milho. Ele e Domingos
viram João rolar ribanceira abaixo.
Em seu depoimento, Domingos – trabalhador de roça e nascido na província Bahia
– garantiu jamais haver agredido João. Apenas admitiu ter combinado com Félix
o roubo do milho para vender. Mas surpreendido com chegada do africano João,
procurou fugir, embrenhando-se pelos cafezais e indo para a sua “casa”. Portanto
nada sabia sobre a morte de João e quem tinha efetuado o crime. Interessante é que
o delegado de Valença no início não quis ouvir a versão de Domingos, mas somente
a de Félix e do acusado Eliseu. Com a prisão de Felix e Domingos foi necessária uma
acareação para o confronto de versões que acabaram mantidas: com Félix afirmando
que Domingos dera uma facada em João Moange e Domingos respondendo que tal
versão era “mentirosa”, pois sequer estava presente quando ocorreu o assassinato.
O juiz responsável acreditou que Domingos não participara do crime, absolvendo-o,
e Félix, acabou condenado a seis anos de prisão com trabalhos.
Não são as tensões entre africanos e crioulos ou as regras de acesso aos produtos
das roças as únicas chaves para entender este crime e as versões produzidas. Mas
sim o cumprimento ou não de “acordos” com os fazendeiros, o reconhecimento de
“direitos” e as regras de honra, ofensa e costumes que organizavam a comunidades
escravas locais. Conflitos e alianças eram permanentes, envolvendo escravos de uma
mesma fazenda, escravos de propriedades vizinhas, além de administradores, feitores
e os desejos e políticas senhoriais. Roubar em roças garantidas pelo paternalismo
senhorial só podia ser coisa de escravos da vizinhança. Constituía-se ali uma “moral”
das sociabilidades da fazenda. A regra de proibição de comercializar em mercados
locais – certamente demandas de mobilidade e autonomia das comunidades de
senzalas – tinha como contraponto a permissividade da constituição das roças, a
geração de excedentes e as trocas mercantis. Muita coisa estava em jogo na quebra
ou na manutenção de “acordos” para senhores, feitores, administradores, cativos
africanos e crioulos. João Moange, um potencial denunciante, deveria ser eliminado
da fazenda ou então cativos fujões, ladrões e contumazes recalcitrantes serem
punidos. Chama atenção nesse episódio a explícita manifestação de arrependimento
de Felix depois de instaurado o processo jurídico. Quando, após qual ato, isso ocorre?
Em qual espaço de tempo? Felix, em alguma medida, percebeu que havia quebrado
regras: colheu milho e palmito clandestinamente, matou um “parceiro”, mentiu
para o senhor e ainda envolveu escravos do fazendeiro vizinho ao acusarem-nos
de assassinos. Teve a oportunidade de desdizer tudo diante dos mais de centenas
de “camaradas” e do comendador, mas não o fez. Uma ação tão individualizada,
isolada da vontade de um grupo maior de trabalhadores, não teria sentido de ser

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 101
sustentada por eles ao ponto de arriscarem a quebra de acordos estabelecidos com o
senhor e administradores ou feitores. Tratava-se, então, de uma questão de vergonha
em relação a essas pessoas, porque Félix se viu constrangido a reconhecer – após
o primeiro depoimento e a investigação, mais precisamente quando foi chamado a
prestar novo depoimento – que seu projeto pessoal, compartilhado por Domingos,
havia fracassado12.
Félix e Domingos, talvez, ao verem que tinham atravessado uma das fronteiras
morais na fazenda, buscaram a proteção senhorial, adiantando-se a qualquer versão
da morte de João. Consistia numa gambiarra moral, remendo do que haviam
feito de forma errada e ineficiente. Em parte, o julgamento dependia do senhor,
que talvez nem levasse a questão à Justiça caso escravos do senhor vizinho não
tivessem sido envolvidos no caso. Aí não mais se trataria de uma questão interna
à fazenda Chacrinha e à administração dos escravos do comendador. Os escravos
do fazendeiro vizinho estariam mostrando que ele não tinha controle sobre suas
atitudes fundamentais em relação à propriedade do comendador, que cobraria dele
a reparação pela quebra de uma regra. Caberia ao Comendador perdoar ou não o
vizinho, avaliando o contrato que tinham entre si. Diante de nova versão, na qual Félix
admitia culpa e acusava a Domingos, assumia o limite do risco corrido, chegando ao
final a sua tentativa de restabelecer sua relação com o senhor e os demais escravos
da fazenda. Estava admitindo que cometera uma ação desvalorizada por essas
pessoas, que não teria como ser reparada segundo as regras morais estabelecidas
na Chacrinha.
A aplicação de punições a escravos, um monopólio de poder – senhorial, na
prática e na letra da lei pelos agentes do Estado Imperial – dependia da avaliação
que se fazia de cada situação. A manipulação dos códigos de castigo ou incentivos
era entendida, em diversos casos, como sendo direito costumeiro entre senhores
e escravos, com a intermediação de feitores e outros setores das comunidades de
senzalas. A conduta de uma pessoa era levada em consideração – assim como as
versões que ela fornecia sobre a mesma, bem como a avaliação do julgador – para
o arbitramento da sanção a ser aplicada, ou do perdão a ser dado; o que podia
significar a contração de uma dívida13. Nesse sentido, ao invés de terem escolhido
contrair uma dívida com um escravo africano – talvez um dos mais antigos na
fazenda Chacrinha e já conhecedor das formas do comendador conceber as ações
reprováveis ou esperadas da escravaria – os jovens crioulos Félix e Domingos, este
último proveniente da Bahia, teriam preferido tentar a sorte e contrair uma dívida
com o senhor, pessoalmente. Ao relatar o ocorrido ao comendador, Félix estava
selando o seu destino. Qualquer uma das versões apresentadas girava em torno das
inflexões dos modos de encarar o trabalho e seus rendimentos entre escravos de

12
Sobre a regulação dos critérios de bondade e perdão, ver: SIGAUD, Lygia. “Armadilhas da honra
e do perdão: usos sociais do direito na mata pernambucana”. Mana, vol. 10, n. 1, 2004, p. 131-
163. Para uma análise teórica conceitual instigante, ver: HERZFELD, Michael. Honour and Shame:
problems in the comparative analysis of moral systems. Man, New Series, vol. 15, n. 2, jun. 1980,
p. 339-351.
13
Ver: FAVRET [-Saada], Jeanne. “Relations de dépendance et manipulations de la violance em
Kabiylie”. L’Homme, vol. 8, n. 4, 1968, p.18-44; SIGAUD, Lygia. “Direitos e gestão de injustiças”.
Comunicações do PPGAS, n. 4. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social – Museu Nacional/UFRJ, s/d., p. 139-170.

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uma mesma fazenda, revelando diferentes éticas e morais em relação ao mesmo.
A tentativa de furto de milho e palmito foi um meio para explicitar o sentido das
experiências do trabalho que aqueles escravos construíram e a percepção acerca do
que entendiam como punição, perdão, honra e vergonha de seu senhor.
Perfilar escravos observando-os com vagar e paciência; constranger os culpados
a assumir uma posição clara diante de todos; coordenar as investigações sobre
um suposto crime dentro de seus domínios; esclarecer se havia o envolvimento de
escravos de fazendeiros vizinhos; procurar definir os limites dos agentes do Estado
nas averiguações em seus próprios domínios; estabelecer em que sentido o delegado
deveria agir, quais versões deveriam ser aceitas e também se alguma informação
não se encaixava ali representavam ações em torno do exercício do poder e da
regulação do que se entendia por justiça na fazenda Chacrinha14. Não queremos
com isso sugerir a existência de uma absoluta autonomia das relações estabelecidas
no universo escravista; melhor perspectiva seria destacar as diferenças entre o nível
da estruturação das leis e o das ideias acerca das condutas esperadas na esfera
judiciária e em que medida comportamentos poderiam ser classificados dentro desse
enquadramento socialmente estabelecido. Quando algo passava a ser entendido,
inclusive e por isso mesmo gerando tipos de relatos escritos e burocratizados, através
dos mecanismos propostos na esfera do Estado, nada mais significava do que uma
perspectiva de compreender situações outrora fora dessa configuração15. As relações
entre as atitudes costumeiras e o que as tornava crime dependiam da avaliação tanto
de quem possuía mais poder no grupo e como acerca dos graus de importância
da aplicação de sanções ao não cumprimento das obrigações16. O rompimento das
mesmas nos ajudaria a identificar os conflitos e as disputas inter e intracomunitárias.
Moralidades, exemplos e vizinhança

O senhor não era só aquele a quem devia ser destinado o produto do trabalho,
mas também aquele que devia prover seus escravos com alimentos, roupas e
moradias, tratá-los nas enfermidades e castigá-los quando necessário. Nas palavras
do Barão de Paty do Alferes, um poderoso fazendeiro da região de Vassouras, o
senhor deveria “ser severo, justiceiro e humano”. Nesta seção ampliamos a reflexão
sobre os significados efetivos e simbólicos, analisando mais dois episódios acontecidos
no Vale do Paraíba. O primeiro em Vassouras, em 1844, quando 58 escravos de
uma fazenda pertencente a Marcelino José de Avelar – durante o serviço no eito –
revoltaram-se em virtude de “maus-tratos”. Atacaram o feitor Bento Luiz Martins
com paus, foices e enxadas, ferindo-o gravemente também com chicotadas. Após
o atentado, fugiram para o mato, indo depois se “apadrinharem” na casa de outro
14
Ver definições de WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 11ª
reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1997 [1922], p. 170-192, acerca de autoridade
do tipo tradicional e suas formas de legitimação, levando em consideração a diversidade e o peso
de fatores racionais e afetivos no processo de relações de dominação e subordinação envolvendo
os agentes sociais estudados. O papel desempenhado pelo senhor seria um exemplo aproximado
do que Weber analisou.
15
Sobre esse tipo de atitude é paradigmático o estudo de: ARENDT, Hannah. Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1964].
16
BRONISLAW, Malinowski. Crime e costume na sociedade selvagem. São Paulo: Imprensa Oficial;
Brasília: Editora da UnB, 2003 [1926].

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 103
fazendeiro. De volta à fazenda de seu senhor, sumariamente foram castigados, tendo
sido aberto um processo crime, no qual acabaram indiciados e sentenciados: Antônio
Moçambique, com condenação à morte por enforcamento (pena transformada
em galés perpétuas) e Círio Congo, condenado a 800 açoites e ao uso de ferro ao
pescoço durante três anos.
Neste episódio são igualmente revelados códigos de condutas redefinidos
permanentemente nas comunidades de senzalas e que estariam em tradução ou
não pela legislação formal. Segundo a versão do escravo Círio:
[...] um dia em que ele junto com seus parceiros iam para
a roça o feitor bateu no seu parceiro Januário com uma
man...[ileg.] que levava na mão por ter demorado na
senzala [...] e aí estiveram todos trabalhando até chegar o
almoço em que largaram o serviço para comer, que quando
ele respondente com seus parceiros estiveram almoçando
tinham comido só três ou quatro colheres, e logo o feitor
mandou que largassem o almoço e fossem juntar milho,
que ele respondente com seus parceiros largaram o almoço,
o feitor mandou botar a comida na gamela e deu a seu
cavalo, que ele com seus parceiros foram juntar milho e que
o seu parceiro Dario foi beber água e acendeu cachimbo,
que o feitor ralhou por ele, digo, por ele saiu e disse que
havia de bater nele, que quando o mesmo Dario voltou o
feitor agarrou nele, amarrou-o no pau e surrou muito, que
depois do feitor já ter surrado muito o Dario ele respondente
com seus parceiros já estava muito surrado, e que o feitor
respondeu que ainda não bastava e que ia mandar buscar
o bacalhau para o tornar a surrar, nisto o seu parceiro
Januário disse para ele respondente a seus companheiros
que ele Januário já estava com as cadeiras machucadas com
as bordoadas que o feitor lhe havia dado, que Dario estava
apanhando surra, que isto assim não podia ser, e que ele
Januário ia pegar no feitor, que quando o feitor passou perto
de Januário, este com ele, digo este o agarrou, e logo ele
respondente com Antonio Moçambique ajudaram a agarrar
no feitor, deitaram-no ao chão, que nisto Januário puxou
pela faca para matar o feitor, que ele respondente disse a
Januário que não matasse o feitor, e Januário respondeu
‘tá bom você pede pra não matá feitor, então eu vou surrar
ele porque eu também estou descadeirado com as porradas
que ele me deu’, que nisso Januário pôs-se a tocar no feitor
com o relho dele feitor e que também Antonio Moçambique
surrou o feitor. [...]17

17
CDH, Processo crime de Ofensas Físicas, Réus: Círio, Antônio Moçambique e outros escravos
pertencentes a Marcelino José d’Avelar, Cartório do Segundo Ofício de Vassouras, ano de 1844,
caixa 482, interrogatório do escravo Círio Congo, fls. 38 e 38 v, e 43 e 43 v.

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Um extenso depoimento onde se mergulha na atmosfera de tensões e conflitos
que permeava a lavoura cafeeira em meados do século XIX, no Sudeste escravista.
O depoimento de Círio Congo parece indicar a existência de algo como uma
“economia moral”, envolvendo relações cotidianas entre escravos, senhores e
feitores18. O feitor Bento havia levado ao limite o exercício de domínio e de poder,
a despeito das regras consensuais que, por certo, regiam o trabalho e controle sobre
a vida escrava naquela propriedade. Não se tratava de castigos exagerados, mas,
sobretudo, daqueles considerados injustos. Inicialmente, o feitor tinha agredido
Januário Monjolo porque havia demorado a sair da senzala na hora da alvorada.
Depois interrompeu inesperadamente o almoço no campo, ordenando aos escravos
o retorno imediato ao trabalho. Pior que suspender o almoço á pouco iniciado, o
feitor utilizou a comida para alimentar seu cavalo. Arbitrariedades e truculências se
misturaram, então, com injustiça e perversidade. Não satisfeito, ao perceber que Dario
Cabinda tinha interrompido o trabalho para beber água e acender um cachimbo,
o feitor o amarrou num pau e lhe deu uma surra. Ao ser abordado pelos demais
escravos – que a tudo presenciaram com indignação e lhe pediram que parasse
de bater em Dario – ameaçou castigar todos e mandou “buscar o bacalhau” para
continuar a surra. Numa ação conjunta, os escravos se revoltaram contra Bento Luiz.
Agarraram-no e deram-lhe repetidas surras. No depoimento de Círio revela-se que,
por um instante, os cativos comandados por Januário pensaram em matar o feitor.
Depois da interferência do próprio Círio, resolveram “castigá-lo” da mesma forma
como este frequentemente fazia com eles, isto é, usando o relho (chicote). Mais do
que um ato de vingança, fruto de explosão de ódio diante dos desmandos deste
feitor, optaram por puni-lo com uma surra de chicote, utilizando o mesmo símbolo
de obediência e coerção a que eram submetidos19.
Embora a atitude desses escravos – ao que parece – não tivesse sido premeditada,
contudo, temendo represálias, fugiram para a floresta e logo depois procuraram
“apadrinhar-se” na casa de um fazendeiro próximo, Francisco José Teixeira Leite.
Este declarou em seu depoimento:
[...] foram a casa dele testemunha uns cinqüenta escravos
pouco mais ou menos, do capitão Marcelino José de Avelar
tomar padrinho, e perguntando ele testemunha aos ditos
escravos a razão porque tinham eles fugido da casa do seu
senhor, eles escravos lhe responderam que o feitor era
muito ruim, que por qualquer coisa açoitava a eles escravos,
e acabava de açoitar a um parceiro, o qual nesse ato foi
mostrado a ele testemunha. Que ele testemunha mandou
os ditos escravos para a casa de seu senhor conduzidos por
um moço chamado Aureliano Carlos de Carvalho, ficando
na sua Fazenda o escravo surrado por não poder seguir.20

18
MORGAN, Philip, Slave counterpoint: black culture in the eighteenth-century Chesapeake &
Lowcountry. Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 1998, p. 524-525 e 530.
19
CDH, Processo Crime de Ofensas Físicas citado. Interrogatório feito ao ferido Bento Luiz Martins,
fls. 6 a 9.
20
Ver Processo Crime de Ofensas Físicas citado. Autos de perguntas da Testemunha Francisco José
Teixeira Leite, fls. 60 a 61.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 105
Havia toda uma lógica de confrontos, negociações, ameaças e conflitos. Os
escravos, após surrarem o feitor, se esconderam nos matos próximos e depois
procuraram “padrinho” (no caso um fazendeiro local) para então retornarem à
fazenda de seu senhor. A estratégia do “apadrinhamento” podia servir também como
forma de controle e repressão. Mas retornando à fazenda, o capitão Marcelino José de
Avelar deu pouca atenção ao fato de estarem “apadrinhados” e consequentemente
protegidos de castigos, segundo rezava a tradição. Antes mesmo da instauração do
processo e a posterior condenação de dois escravos, o capitão Marcelino mandou
punir todos severamente. Em seu testemunho ponderou que "mandou castigar
os pretos, pois que queria dar exemplo a fim de que não acontecesse outro caso
semelhante. Que, com efeito, foram castigados todos os escravos”21.
O outro episódio aconteceu em Paraíba do Sul, na freguesia de Sant’Ana de
Cebolas, em 1876. Dois escravos fugidos estavam escondidos da fazenda São
Romão, propriedade do Dr. Jerônimo Macário Figueira de Melo. Foi enviado o feitor
Antônio Gonçalves para capturá-los, havendo luta e ferimentos. Mais tarde um dos
escravos faleceu, não sabendo “se das contusões recebidas ou de outro qualquer
incômodo”. Detalhe: os dois escravos fugidos pertenciam ao Tenente Guilherme
Antônio de Carvalho. Foi instaurado um processo crime contra o feitor Antônio
Gonçalves, com o julgamento só acontecendo em 1883. Revelam-se nesse processo
as redes sociais que envolviam senhores e escravos – inclusive os fugitivos – no
Vale do Paraíba Fluminense, na segunda metade do séc. XIX. Os pretos Abraão e
Damásio estavam escondidos nos “terrenos” da Fazenda São Romão. Abrão foi um
dos protagonistas das “cacetadas” deferidas pelo feitor Antônio Gonçalves e teve
melhor sorte que o preto Damásio, que acabou morrendo. Em seu depoimento,
Abraão narraria suas aventuras como fugido e as redes de vizinhanças acionadas
entre as comunidades de senzalas:
Respondeu que não se lembra quando foi, mas que já há
muitos anos ele respondente um dia sem que tivesse motivos
só com medo do feitor que então havia na fazenda, mas
não que fosse castigado nem promessa de o ser, porém é o
costume do escravo que foge quando quer, que tentado pelo
diabo fugido que seguiu para os lados do Cavarú para onde
esteve por muitas vezes no mato, roubando ora em um ora
em outro lugar até que resolveu voltar para as proximidades
da fazenda de seu senhor para ver se resolvia apadrinhar-
se para apresentar-se a seu senhor, mas em certa noite ele
respondente encontrou-se com seu parceiro Damásio que
já estava fugido há mais de doze anos e com ele se juntou
gostando de o ver muito gordo e forte, e seguiram para o
mato, onde ele estava com seu quilombo na Fazenda de
São Romão, em uma capoeira acima do cafezal, onde já
tinha um rancho, ai continuaram a habitar escondendo-se
de dia e saindo de noite, roubando mandioca e milho em
vários lugares, apanhando café para venderem, e assim
21
Ver Processo Crime de Ofensas Físicas citados. Autos de perguntas da Testemunha Capitão
Marcelino José d’Avelar, fls. 62 a 63.

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continuavam até que em certa noite andando eles em sua
digressão encontraram-se com dois escravos de Vicente
Antônio que também tinham fugido e estes se ajuntaram
com ele respondente e Damásio e todos seguiram para
o quilombo e ali continuaram a habitar e no seu firme
propósito de roubarem para comer e viver.22
O feitor Antônio Gonçalves, da fazenda de São Romão, realizou uma expedição
nos matos, prendeu escravos e acabou gerando mortes. O tempo longo de duração
desse processo tem explicação. Não necessariamente por interesse do Tenente
Guilherme Antônio de Carvalho, foi aberto um inquérito para saber de quem era a
responsabilidade da morte de Damásio. Suspeitas indicavam que sua morte nada
tivera a ver com os ferimentos causados quando da sua captura. Talvez algo tivesse
acontecido no período em que ficou preso nas mãos do dito feitor Gonçalves antes
de ser entregue a justiça. Todas as testemunhas do processo concordavam que o
preto Damásio era muito forte, alguém difícil de ser dominado, mesmo por um
grupo de pessoas. Gabriel Porcino Pereira, um liberto africano, pequeno lavrador
no lugar denominado Jatahy não fez acusações, “não sabendo ele respondente se
à morte fora motivada pelas pancadas, ou por que motivo”. Tudo que soubera foi
de “uns pretos escravos” do Tenente Carvalho “que haviam ido enterrar o cadáver
do preto Damásio”. Do feitor Gonçalves ouvira apenas notícias sobre a existência
de um quilombo naquelas paragens, sua tentativa de capturar os fugitivos e “que
lhe fora preciso dar algumas cacetadas”. Não conhecia Damásio, “embora [sabia]
que freqüentava a fazenda do mesmo tenente”, por que estava fugido há muitos
anos. Porém, “conhecia Abraão por este estava fugido há muitos meses, mas não
chegava há um ano”.
Outras informações aparecem no testemunho de Antônio dos Reis Lopes, um
português, que trabalhava como feitor da fazenda dos herdeiros do Dr. Ignácio
Álvares da Silva. Aliás, entrou na história porque tinha sido antigo feitor da fazenda
do Tenente Carvalho. Quanto à morte de Damásio, “ninguém acreditava que das
pancadas ele viesse a falecer porque os ferimentos eram insignificantes”. Da sua parte,
ele “ainda até agora não pode compreender como o dito feitor pôde conseguir a
prisão desses escravos e com especialidade de Damásio, por que este era um escravo
que apresentava ter uma força descomunal, tipo mal encarado”. Era “dotado de mau
instinto, sendo prejudicial por que era origem de fugidos de outros escravos não só
de seu amo”. Na ocasião seria realizado exame de corpo de delito – por solicitação
do Tenente Carvalho – apenas para evitar responsabilidades futuras, mas “não se
manifestou de forma alguma contra o dito feitor por que conheceu o perigo que o
mesmo correu para efetuar essa prisão”. De fato, o Tenente Carvalho não fez apelação
no processo contra o feitor Gonçalves. Ao contrário disto ficou agradecido, pois:
[...] ele respondente ficou surpreendido por que tendo
Damásio fugido há mais de doze anos e quase que não
lhe prestado serviços desde que era seu escravo jamais
contava ele, e Abraão que há onze meses mais ou menos
havia também fugido e supondo que houvesse procurado
22
Museu da Justiça, Comarca de Paraíba do Sul, Caixa 446, processo-crime, 1876.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 107
Damásio e com ele se ajuntado o supunha também
perdido.23
Fugitivos e escravos da mesma fazenda, com caminhos diferentes, acabaram
se unindo. Damásio tinha um invejável currículo de fuga. Falava-se em “mais de
doze anos”. Interessante: continuava escondido na região onde morava seu senhor.
Sendo “forte” e bastante esperto, talvez fosse um ídolo dos escravos locais. Tanto
tempo fugido, tanto sucesso em não ser capturado certamente funcionava como
estímulo para os projetos de escapadas de outros escravos. O sucesso da fuga se
entende aí, como a capacidade de Damásio em conseguir proteção. Isso não só
dos matos. Roubando, permutando produtos e prestando pequenos serviços para
taberneiros e lavradores já fazia parte da paisagem local. A estratégia de fuga de
Abraão também ajuda a entender a trajetória de Damásio. Num primeiro momento
o fugitivo ia para bem longe – podia ser mesmo a Corte – ou então permanecia
escondido nas proximidades. Estratégias e direções tomadas iam depender das redes
de solidariedade e proteção que pudesse acionar. Abraão contou que inicialmente
fugiu para longe: vivia no mato roubando aqui ou acolá. A vida nas matas era
dura e certamente por isso resolveu voltar para as proximidades da fazenda de seu
senhor. Encontrou-se com o “gordo e forte” Damásio. Mais que isto, articulou-se
com as redes socioeconômicas que Damásio e outros fugidos já tinham. Roubavam
milho, mandioca e café, comerciando-os nas vendas locais. Para isso montavam e
desmontavam “ranchos” naqueles matos. Fazendeiros e autoridades não viam os
fugitivos, mas encontravam os rastros de suas atividades: roubos.
Estas narrativas sugerem pensar como tentavam reinventar suas vidas. Na
condição de fugidos ou acoitadores deles. Reuniam – também com conflitos –
várias comunidades escravas em torno das vizinhanças e redes de proteção com
conexões de experiências e reconfigurações de identidades. Aquelas de crioulos,
de africanos, de libertos, de roceiros, de taberneiros etc. Não só isso, os fugitivos
do Vale Paraíba não procuravam necessariamente rumar para a cidade ou seguir
para os quilombos; nem tão pouco se isolavam. Ocupavam outros “territórios” – de
fronteiras econômicas, culturais, simbólicas e sociais – na plantation. Assim não eram
“marginais” das comunidades de senzalas e nem dos complexos universos do mundo
da escravidão24. Além disso, não era incomum fugitivos – de diferentes fazendeiros
– se encontrarem nos matos. Podiam trocar experiências e expectativas. Muitas
dessas viagens-fugas seriam interrompidas por capturas, condenações e mortes. As
notícias sobre roubos praticados por pequenos grupos de fugitivos podiam ter vários
significados. De um lado, podiam ser verdadeiras as informações desses roubos e
furtos, porém, tentava-se acabar com as possíveis redes de comércio clandestino
que unia fugitivos, escravos assenzalados e outros personagens.

23
Museu da Justiça, Comarca de Paraíba do Sul, Caixa 446, processo-crime, 1876.
24
Reflexões clássicas sobre a dimensões da autonomia escrava aparecem em: MACHADO,
Maria Helena P. T. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social
da escravidão”. Revista Brasileira de História, vol. 8, n. 16, mar./ago. 1988, p. 143-160. Mais
recentemente uma proposta de debate historiográfico surgiu em: FARIA, Sheila Castro. “Identidade
e comunidade escrava: um ensaio”. Tempo - Revista do Departamento de História da UFF, vol. 11,
2007, p. 133-157.

108 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Espaços, camadas e territórios da cultura material

No Brasil, mais recentemente a arqueologia tem se debruçado sobre a cultura


material da escravidão africana atlântica. Várias pesquisas têm apontado para a
reconstrução da cultura material dos africanos na diáspora a partir da arqueologia
histórica.25 Entre uma idéia de diáspora – que às vezes recupera uma suposta
homogeneidade – e a crioulização – ênfase demasiada na diferença e na mudança – é
possível investigar significados e signos das identidades26 e articular experiências dos
africanos supostamente fragmentadas ou rompidas27. A partir das conexões e suportes
da arqueologia histórica, considerando os conceitos de diáspora, crioulização e
25
Ver: AGOSTINI, Camilla. “Resistência cultural e reconstrução de identidades: um olhar sobre a
cultura material de escravos do século XIX”. Revista de História Regional, vol. 3, n. 2, 1998, p.
115-137; ALLEN, Scott J. “A cultural mosaic at Palmares? Grappling with historical archaeology
of a Seventeenth-Century brazilian quilombo”. In: FUNARI, Pedro Paulo (org.). Cultura material
e Arqueologia Histórica. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, p. 141-178; __________.
“Identidades em Jogo: negros, índios e a arqueologia da Serra da Barriga”. In: ALMEIDA, L. de;
GALINDO, M. & ELIAS, J. (orgs.). Índios do Nordeste: temas e problemas 2, Maceió: EDUFAL,
2000, p. 245-275; FUNARI, Pedro. “Etnicidad, identidad y cultura material: un estudio del cimarrón
Palmares, Brasil, siglo XVII”. In: ZARANKIN, A. e ACUTO, F. (eds.). Sed non Satiata - Teoria Social
en la Arqueologia Latinoamericana Contemporánea, Buenos Aires: Ediciones del Tridente, 1999,
p. 77-96; __________. “Desaparecimento e emergência dos grupos subordinados na Arqueologia
brasileira”. Horizontes Antropológicos, ano 8, n. 18, 2002, p. 131-153; HAUSER, M. & DeCORSE,
C. “Low-fired earthenwares in the African Diaspora: problems and prospects”. International Journal
of Historical Archaeology, vol. 7, n. 1, 2003, p. 67-99; ORSER Jr, Charles. “Beneath the material
surface of things: commodities, artifacts, and slave plantations”. Historical Archaeology, vol. 26,
n. 3, 1992, p. 95-104; __________. “The Archaeological Analysis of Plantation Society: Replacing
Status and Caste with Economics and Power”. American Antiquity, vol. 53, n. 4, 1998, p. 735-
751; __________. “The Archaeology of African Diaspora”. Annual Review of Anthropology, vol.
27, 1998, p. 63-82; e __________. “The Challenge of Race to American Historical Archaeology”.
American Anthropologist, vol. 100, n. 3, 1999, p. 661-668; SOUZA, Marcos A. T. & SYMANSKI,Luís
C. P. “Potery variability and slave communities in Western Brazil”. International Journal of Historical
Archaeology, 2010; SOUZA, Marcos A. T. “Uma outra escravidão: a paisagem social do Engenho
de São Joaquim, Goiás”. Vestígios: Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, vol. 1, n.
1, 2007, p. 57-88; __________. “Esencializando las Cerámicas: Culturas Nacionales y Prácticas
Arqueológicas en América”. IIn: ACUTO, Félix & ZARANKIN, Andrés (eds.). Sed nos Satiata II:
acercamientos sociales en la arqueologia latinoamericana. Buenos Aires: Encuentro Grupo Editor,
2008, 141-155; e SYMANSKI, Luis C. P. & SOUZA, Marcos A. T. “O registro arqueológico dos
grupos escravos: questões de visibilidade e preservação”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n. 33, 2007, p. 215-244.
26
Ver o debate internacional entre outros em: MANN, Kristin. “Shifting paradigms in the Study of the
African Diaspora and od Atlantic History and Culture”. Slavery & Abolition, volume 22, número
1, 2001, p. 3-21 e MILLER, Joseph C. “Retention, Reinvention, and Remembering Identities
through Enslavement in África and under Slavery in Brazil”. In: CURTO, José C.; LOVEJOY, Paul
E. Enslaving Connections. Changing Cultures of Africa and Brazil during the Era of Slavery. Nova
Iorque, Humanity Books, 2004, p. 81-124. Para o Brasil as principais e mais recentes perspectivas
a respeito aparecem em: PARÉS, Luis Nicolau. “O processo de crioulização no Recôncavo baiano
(1750-1800)”. Afro-Asia, CEAO, UFBA, Salvador, v. 33, 2005, p. 70-101; e SLENES, Robert W.
“'Malungu, Ngoma vem!': África coberta e descoberta no Brasil”. Revista USP, n. 12, dez./jan./fev.,
1991-1992; e __________. “As provações de um Abrão africano: a nascente nação brasileira na
viagem alegórica de Johann Moritz Rugendas”. Revista de História da Arte e Arqueologia, n. 2,
IFCH/UNICAMP, 1995-96, p. 271-536.
27
Ver o debate em: PRICE, Richard. “The Miracle of Creolization: A Retrospective”. New West Indian
Guide, volume 75, 2000, p. 35-64 e SCOTT, David. “That Event, This Memory: Notes on the
Antropology of African Diasporas in he New World”. Diaspora, vol. 1, n. 3, 1991, p. 261-284.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 109
mesmo paisagens podemos entender como africanos e crioulos imprimiriam diversos
significados de “adaptação” e “criação” nas sociedades escravistas, mesmo levando
em conta diferentes inserções de identidades e comunidades geracionais28. Isso
envolveria investigações a respeito do agenciamento de “territórios” de mobilidade,
autonomia e reprodução da cultura material nas vivências e nos mundos do
trabalho29.
Nos últimos 20 anos a arqueologia brasileira tem oferecido importantes
contribuições para pensar a sociedade e o cotidiano, inclusive sobre a escravidão,
como bem destacou recentemente Symanski30. Com base no registro arqueológico,
para além das memórias, cronistas, inventários, registros paroquiais, precisamos
perscrutar a vida escrava para alcançar os significados – não exclusivamente
senhoriais – que os próprios africanos e crioulos atribuíam às suas vivências e a
cultura material constituída. Investigações mais recentes envolvendo pesquisadores
de várias áreas e projetos institucionais poderão ampliar as possibilidades de reflexões
em torno do passado da escravidão através da arqueologia31. No Brasil – para além
das novas pesquisas de Symanski, Souza, Agostini e outros – os arqueólogos que
se interessaram pela escravidão focaram mais os quilombos, destacadamente os
estudos clássicos de Guimarães, Funari, Orser Jr. e Allen32.
Mas podemos “invadir” plantations, casas-grandes, casebres, senzalas, etc.
28
Ver as perspectivas de: DECORSE, Christopher. “Oceans Apart: Africanist Perspectives on Diaspora
Archaeology”. In: SINGLETON, Thereza (Eds.) I, too, Am America: Archaeological Studies of
African-American Life, Charlottesville: University Press of Virginia, 1999, p. 132-158.
29
SYMANSKI, Luís C. P. “O Domínio da Tática: práticas religiosas de origem africana nos engenhos
de Chapada dos Guimarães (MT)”. Vestígios - Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica,
v.1 (2), 2007, p. 7-36; __________. “Alocronismo y Cultura Material: Discursos de Dominación
y la Utilización de los Bienes Materiales En la Sociedad Brasilera del Siglo XIX”. In: ACUTO, &
ZARANKIN, Sed nos ..., p. 255-275
30
SYMASNKI, Luís Cláudio Pereira. “Arqueologia Histórica no Brasil: uma revisão dos últimos vinte
anos”. In: MORALES, Walter Fagundes & MOI, Flavia Prado (org.). Cenários regionais de uma
Arqueologia plural. São Paulo: Annablume, 2009.
31
Ver: BARRETO, Cristiana. “A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da
arqueologia do Brasil”. Revista da USP, Dossiê “Antes de Cabral: Arqueologia Brasileira”. São
Paulo, n. 44, 2000, p. 32-51; __________. “Arqueologia Brasileira: uma perspectiva histórica e
comparada”. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. In: Anais da I Reunião Internacional
de Teoria Arqueológica na América do Sul. São Paulo, suplemento 3, 2000, p. 201-212; GASPAR,
M.D. “A história da construção arqueologia histórica brasileira”. Anais do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, vol. 13, 2003, p. 269-301; e PROUS, Andrés. Arqueologia Brasileira. Brasília:
Editora da UnB, 1991.
32
Ver: GUIMARÃES, Carlos Magno. “Mineração colonial e arqueologia: pontecialidades”. Revista de
Arqueologia, Rio de Janeiro/Soc.Arq.Brasil., v. 9, p. 55-64, 1996; __________. “Esclavitud, Rebeldia
y Arte”. Arte Rupestre Colonial y Republicano de Bolivia y Paises Vecinos, La Paz, v. 1, 1992, p.
212-219; e GUIMARÃES, Carlos Magno & LANNA, Ana L. D. “Arqueologia de Quilombos em
Minas Gerais”. Revista de Antropologia, v. 31, p. 23-28, 1980; FUNARI, Pedro Paulo A. & ORSER
JÚNIOR, Charles E. “Pesquisa arqueológica inicial em Palmares”. Estudos Ibero-Americanos, Porto
Alegre, vol. 18, n. 2, 1994, p. 53-69; FUNARI, Pedro Paulo A. “A Arqueologia de Palmares - sua
contribuição para o conhecimento da história da cultura afro-americana”. In: REIS, João José
& GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 26-51; __________. “A ‘República de Palmares’e
a Arqueologia da Serra da Barriga”. Revista USP, n. 28, 1995-6, p. 6-13; _________. “Novas
perspectivas abertas pela Arqueologia na Serra da Barriga”. In: SCHWARRCZ, Lília Moritz & REIS,
Letícia Vidor de Sousa (orgs.). Negras imagens: escravidão e cultura no Brasil. São Paulo: EDUSP,
1996, p. 139-151.

110 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
investigando a constituição de “territórios” como um movimento analítico para
localizar e entender os registros – históricos, antropológicos e arqueológicos – da
cultura material produzida na escravidão e pelos escravos. Estudos pioneiros sobre
paisagens, arquitetura e símbolos da vida material senhorial e escrava 33 podem
se juntar as pesquisas sobre a cultura escrava, nas análises arqueológicas e na
documentação arquivística34. Quais “territórios” – para além das paisagens de poder
e controle senhorial – foram constituídos pelas comunidades de senzalas em torno das
plantation? Seriam caminhos possíveis para encontramos indícios da cultura material
e imaterial da escravidão e seu legado. Num projeto de pesquisa em andamento (com
apoio do CNPq e da FAPERJ) pensamos em – no cruzamento da pesquisa empírica
e nas dimensões comparativas proporcionadas pela bibliografia especializada que
trata da temática para o Caribe e EUA – identificar “territórios” empíricos (na chave
da arqueologia histórica) e analíticos de espaços da cultura material da escravidão em
torno das senzalas, roças, áreas de caçadas, áreas de “encontros”, jongos, tabernas,
pesca etc. Significariam “territórios” de circulação cultural – permeados também de
conflitos e confrontos – entre senzalas, casas-grandes, casebres e a vida camponesa

em várias áreas de plantation35.


33
Ver: LIMA, Tania A., M. C. Bruno & FONSECA, M. P. “Sintomas do modo de vida burguês no Vale
do Paraíba, século XIX: a Fazenda São Fernando, Vassouras, RJ”. Anais do Museu Paulista, História
e Cultura Material, Nova série, n. 1, 1993, p.170-206; SANTOS, Ana Lúcia Vieira. “Habitação
Escrava nas Propriedades Rurais do Rio de Janeiro”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. 12, 2003, p. 95-101; FARIA, Sheila de Castro. “Fontes Textuais
e Vida Material: Observações sobre as Casas de Moradia nos Campos dos Goitacases, Séculos XVIII
e XIX”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, vol. 1, 1993, p. 107-129; MARQUESE, Rafael de Bivar.
“O Vale do Paraíba cafeeiro e o regime visual da segunda escravidão: o caso da fazenda Resgate”.
Anais do Museu Paulista, vol. 18, 2010, p. 83-128; __________. “Diáspora africana, escravidão e
a paisagem da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba oitocentista”. Almanack Braziliense, São
Paulo, vol. 7, 2008, p. 138-152; __________. “Revisitando casas-grandes e senzalas: a arquitetura
das plantations escravistas americanas no século XIX”. Anais do Museu Paulista. São Paulo, vol. 14,
2006, p. 11-57; __________. “Moradia escrava na era do tráfico ilegal: senzalas rurais no Brasil e
em Cuba, c. 1830-1860”. Anais do Museu Paulista, São Paulo, vol. 13, n. 2, 2005, p. 165-188.
34
Ver: AGOSTINI, Camilla. “Resistência cultural e reconstrução de identidades: um olhar sobre a
cultura material de escravos do século XIX”. Revista de História Regional, vol. 3, n. 2, 1998, p. 115-
137; SOUZA, & SYMANSKI,“Potery variability...”; SOUZA, Marcos A. T. “Uma outra escravidão:
a paisagem social do Engenho de São Joaquim, Goiás”. Vestígios: Revista Latino-Americana de
Arqueologia Histórica, vol. 1, n. 1, 2007, p. 57-88; __________. “Esencializando las Cerámicas:
Culturas Nacionales y Prácticas Arqueológicas en América”. In: ACUTO & ZARANKIN, Sed nos...,
p. 141-155; e SYMANSKI, Luis C. P.; SOUZA, Marcos A. T. “O registro arqueológico dos grupos
escravos: questões de visibilidade e preservação”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n. 33, 2007, p. 215-244; SLENES, “As provações...”, p. 271-536; SLENES, Robert W.
Lares negros, olhares brancos: histórias da família escrava no século XIX. Revista Brasileira de
História, São Paulo, vol. 8, n. 16, 1988, p. 189-203; _________. “Eu venho de muito longe, eu vem
cavando: jongueiros cumba na senzala centro-africana”. In: LARA, Sílvia Hunold & PACHECO,
Gustavo (orgs.). Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949.
Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas: CECULT, 2007, p. 109-156; PAIVA, Eduardo França.
Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
35
Podemos acompanhar as reflexões de WILKIE, Laurie A. Creating Freedom Material Culture and
African American Identity at Oakley Plantation, Louisiana, 1840-1950. Baton Rouge: Louisiana
State University Press, 2000, p. 209 e segs.; DEETZ, James. Flowerdew Hundred: The Archaelogy
of a Virginia Plantation, 1616-1864. Charlottesville and London: University of Virginia Press,

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 111
Partindo da metáfora da pesquisa arqueológica poderíamos pensar estes
“territórios” como camadas de espaços constituídos pelos escravos – com dinâmicas
próprias e de conteúdos culturais profundos – no interior da plantation, em zonas de
fronteira entre poder, hierarquias, alianças, confrontos e barganhas. Significariam
espaços de silêncios da narrativa histórica formal mas que inscreveriam visões
de mundo adaptadas dos africanos e crioulos, daquilo que viam, enxergavam e
produziam em torno de práticas sociais e vida material36. O cruzamento de análises de
material diverso, conexões interdisciplinares e releitura da documentação manuscrita
podem ser caminhos, entre outros37.
Os episódios de Valença, Vassouras e Paraíba do Sul já fornecem algumas
aproximações inicias entre territórios e gestação de espaços de produção de cultura
material de escravos. De início podemos pensar as fronteiras da plantation e sua
circunvizinhança38. Entre espaços em torno de fazendas limítrofes – especialmente
roças de milho e palmito de um lado e cafezais do outro – havia políticas senhoriais
e escravas com dinâmicas próprias. Mas há menção – ao longo das narrativas
sobre o conflito – de outros espaços como o rio que pescavam e suas moradas que
pareciam individuais, percursos e rotas de fugitivos, vendas de produtos roubados,
sugerindo “territórios” de mobilidade e rearranjos socioeconômicos em torno da
plantation-casa-grande-senzala-terreiro. As indicações de conflitos envolvendo
gerações de africanos e de crioulos, alguns com origens de outras regiões via tráfico
interprovincial pode ser articular com a possibilidade de construções e disputas por
estes “territórios”. Significariam camadas de sociabilidades e de comunidades no
Sudeste cafeeiro, especialmente um espaço da cultura escrava e faces material e
imaterial com arranjos de moradia, parentesco, hierarquias ocupacionais, etc.39.
Seriam comunidades escravas com regras próprias de sociabilidades ajustadas por
demandas culturais, políticas senhoriais e contraponto locais, incluindo os aspectos
dialógicos de escravos e comunidades de senzalas de fazendas vizinhas, sem falar
de roceiros livres e donos de vendas que comercializavam miudezas com estas
escravarias.

1995, p. 72 e segs. BERLIN, Ira. Many Thousands Gone. The first two centuries of slavery in
North America. Cambridge, Harvad University Press, 1998, p. 162-163; MORGAN, Philip. Slave
Counterpoint: Black Culture in the Eighteenth-Century Chesapeake & Lowcountry. Chapel Hill
& London: University of North Carolina Press, 1998, p. 113 e segs.; e SINGLETON, Theresa A.
“Slavery and Spatial Dialetcs on Cuban Cofeee Plantations”. World Archaeology, vol. 33, n. 1,
2001, p. 98-114.
36
ZAECK, Natalie. “Voices and silences: the problem of slave testimony in the English West Indian
Law Court”. Slavery & Abolition, vol. 24, n. 3, dez. 2003, p. 24-39.
37
Continuam inspiradoras as reflexões pioneiras de SLENES, Na senzala...
38
Ver as abordagens de KAYE, Anthony. Joining Places: Slave Neighborhoods in the Old South,
Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 2008, especialmente capítulos 1 e 2.
39 P
ensamos no texto imperdível de MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “A cultura material no estudo
das sociedades antigas”. Revista de História, São Paulo, n. 115, 1985, p. 103-117.

112 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
As leis são balizadoras de condutas, The laws are graded behaviors,
dos julgamentos sobre as mesmas e judgments about the same institutional
de formas institucionais de observá- forms and to observe them. Have no
las. Não têm valor em si mesmas, value in themselves, and the reports
e os relatos produzidos sob suas produced under their protocol guidelines
diretrizes protocolares fornecem pistas provide clues and evidence of conflicts
e evidências de conflitos acerca de over issues that put people and groups
questões que colocaram em tensão in tension at times turning everyday
pessoas e grupos em momentos de negotiations. In slave societies was not
inflexão nas negociações cotidianas. Nas different. Analyze sources produced by
sociedades escravistas não era diferente. the judiciary in the nineteenth century,
Analisaremos fontes produzidas pelo claiming the murders, attempted murders
judiciário, no século XIX, que versam and assaults that targeted both masters,
sobre assassinatos, agressões e tentativas managers and foremen, as slaves and
de homicídio que tiveram como alvo freedmen. They occurred in various parts
tanto senhores, administradores e of Southeast slavery, especially in coffee
feitores, como escravos e libertos. areas. Collecting material for ongoing
Eles ocorreram em diversas partes do research and dialogue with the literature
sudeste escravista, especialmente em and current consecrated at the national
áreas cafeeiras. Juntando material de and international, we evaluate the
pesquisas em andamento e diálogo concepts of “honor”, “moral”, “space”
com a bibliografia consagrada e atual, and “neighborhood” to think the outlines
nos âmbitos nacional e internacional, of the hierarchy, the logical and evidence
avaliamos as noções de “honra”, of culture in different “territories” through
“moral”, “espaços” e “vizinhança” para the plantation slaves of conflicts involving
pensarmos os contornos das hierarquias, communities in the southeast from
das lógicas e dos indícios da cultura the narratives (new interpretations) of
em variados “territórios” na plantation criminal cases. In this paper, we propose
através de conflitos envolvendo only as a preliminary test for analytical
comunidades escravas no sudeste a testing.
partir das narrativas (novas leituras) Keywords: Anthropology and History of
de processos crimes. Neste artigo, tão Slavery; Material Culture; Hierarchies in
somente propomos um ensaio preliminar the Slave Quarters.
para uma experimentação analítica.
Palavras Chave: Antropologia e
História da Escravidão; Cultura Material;
Hierarquias na Senzala.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 113
ESCRAVOS E MORADORES NA TRANSIÇÃO PARA
O TRABALHO ASSALARIADO EM FERROVIAS EM
PERNAMBUCO

Josemir Camilo de Melo1

O presente ensaio é uma retomada de parte da tese de doutorado em História pela


UFPE2, cuja pretensão, aqui, é mostrar a participação da Inglaterra (Bill Abeerden)
no processo não só de abolição do tráfico, mas também de sua influência na
modernização de leis para implementar empresas usando mão-de-obra assalariada.
Sobretudo, na lei ferroviária de 1852 e na da criação dos Engenhos Centrais (c.1878),
o que também ajudou a minar a escravidão. O estudo se valeu de fontes e edições
originais inglesas, bem como outras produzidas por brazilianists. Trata-se, na verdade,
de uma leitura à luz de O Capital, principalmente no que diz respeito à acumulação
primitiva e a trabalho e capital.
Com a modernização do país para ingressar no concerto das nações capitalistas
(abolição do tráfico humano, a lei de terras e que se estende também à implantação
do Sistema Métrico Decimal, culminando com a Lei Áurea etc.) o Estado Imperial
comandou diversas mudanças estruturais, entre elas lançou a lei ferroviária de 1852.
Em sua 9ª cláusula, proibia as companhias de empregar escravos na construção,
operação e manutenção da linha. Só seriam admitidos brasileiros livres, que seriam
isentos do recrutamento do Exército, bem como estrangeiros, que deveriam ser
beneficiados com todas as franquias dadas para colonos (imigrantes) produtivos. O
Estado evitava sobrecarregar mais ainda a oligarquia dos latifundiários canavieiros,
além do golpe no tráfico africano. Praticava-se, assim, uma espécie de divisão
social do trabalho, ao manter o escravo na agricultura, permitindo só ao homem
livre o trabalho nas obras e operação das ferrovias. No entanto, parece ter havido
subterfúgios para driblar a lei, pois o Diário de Pernambuco de 6 de julho de1857
anunciava: “A pessoa que tiver escravos e quizer alugar para trabalhar na estrada de
ferro, pagando (um) mil rs por dia, ou mesmo gente forra, que se queira a sujeitar,
dirija-se a rua Estreita do Rosário, nº 25”3.
A Inglaterra buscava acabar com o suprimento açucareiro mais barato do Brasil em
relação às plantações de suas Índias Ocidentais, além de criar mercados consumidores
dos seus bens industrializados. Tinha se dado conta de como seria muito ruim para
seu açúcar colonial a manutenção da escravidão no Brasil, já que a terra era 90%
mais barata que nas Índias Ocidentais. Assim, para manter seu monopólio, teria que
desembolsar mais que um e meio milhão de libras, por volta de 1844. O comércio

1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente aposentado do Departamento
de História da Universidade Federal de Campina Grande. Professor Visitante da Universidade Estadual
da Paraíba. E-Mail: <jcdemelo@uol.com.br>.
2
Uma versão deste artigo foi apresentada como comunicação no 4º Encontro Cultura e Memória:
História e Trabalho, UFPE, 2009; trata-se de um fragmento de nossa tese: MELO, Josemir Camilo
de. Modernização e Mudanças: um trem inglês nos canaviais do Nordeste (1852-1902). Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2000.
3
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. São Paulo: José Olympio, 1948, p.105.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 115
britânico de escravos, no século XVIII, tinha ampliado seu tráfego de navios em
880%. Mesmo assim, a concorrência com luso-brasileiros no tráfico e no valor da
terra levava a Inglaterra a ficar em desvantagem, iniciando por isso, a batalha contra
o tráfego escravo para o Brasil, no período 1810-1845/504.
Trabalho forçado sob escravização

Com a implantação da plantation, dentro do tripé sesmarias/monocultura


canavieira/escravização de africanos, adotada para a colônia, o mercantilismo
português reforçou o monopólio, naquilo que ficou conhecido como "fator Wakefield",
como denominava Marx em A Moderna Teoria da Colonização. Wakefield tinha se
dado conta que:
Onde a terra é muito barata e todos homens são livres,
onde cada um pode obter à vontade um pedaço de terra,
não somente o trabalho é muito caro, relativamente à
participação do trabalhador no produto, mas a dificuldade é
conseguir trabalho combinado a qualquer preço.5
Neste contexto, não só Portugal teria uma população rarefeita para tal
empreendimento, como, sob a égide do mercantilismo, o Império português articulou
sua invasão às terras africanas com o sequestro de sua população ativa para criar
um mercado de mão-de-obra forçada para trabalhar as terras invadidas no Brasil.
Hoje, acredita-se numa cifra em torno de 4 milhões de africanos sequestrados pelo
esquema mercantilismo/ escravismo/ sesmarialismo.
Sob a intervenção da Inglaterra, o tráfico de africanos foi barrado, em 1845.
Ainda assim, os latifundiários brasileiros manobraram o esquema durante cinco anos,
quando se tentou incrementar o tráfico. Para estes últimos cinco anos, Leopoldo
Bulhões dá um total de 260.000 escravos chegados ao Brasil. Já o viajante inglês
Burton apresenta 174.159 escravos entrados no Brasil entre 1847 e 1853. O tráfico
de trabalhadores africanos, barrado em 1845, cresceu em 100% até a lei Eusébio de
Queiroz. Entre 1840 e 1844, o tráfico teve uma média de 21.284 por ano e, devido
ao desespero dos traficantes negreiros, face à nova lei, o hediondo comércio elevou-
se ao dobro no quinquênio seguinte, alcançando 47.990. Até mesmo depois da lei,
chegou–se a transportar 3.287 africanos (em 1851), com desembarque ilegal, em
Pernambuco. Godinho, que confirma este último número, aponta para 1840-1850 a

4
MARX, Karl. Capital: a critique of Political Economy. Vol. 1. Londres: Lawrence & Wishart, 1983,
p. 878; MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias inglesas e mobilidade social no Nordeste (1850-1900).
Campina Grande: EDUFCG, 2008, passim; MANCHESTER, Alan K. British Preeminence in Brazil.
New York: Octagon Books, 1964, p. 166; WILLIAMS, Eric. Capitalism and Slavery. 5. ed. Londres:
s.r., 1981, p. 138. Sobre a escravatura interna na África e o papel dos africanos no tráfico, ver também:
BOKOLO, Elikia M’. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das
Áfricas, 2009. FOREIGN Office, Public Record Office (London). British Parliamentary Paper (BPP)
1826-1827. Convention Between His Majesty and the Emperor of Brazil, for the Abolition of the African
Slave Trade: Signed at Rio de Janeiro, November 23d, 1826.
5
MARX, O Capital, Livro 1, vol. 2, cap. XXV, p. 883-894. Wakefield, com seu livro Letters from Sydney,
de 1829, teve seguidores no Brasil, os conservadores Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário
de Miranda Ribeiro; DEAN, Warren. “Latifundia and Land Policy in Nineteenth-Century Brasil”. The
Hispanic American Historical Review, 1972, vol. LII, n. 4, p. 613.

116 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
presença de 33.500 africanos entrados, nessa situação, no Brasil6.
Com a proibição do tráfico, os donos de terra, conforme já vinham fazendo em
pequena escala, arrendavam seus escravos urbanos, nos momentos de recessão da
produção açucareira, como viram viajantes estrangeiros nas primeiras décadas do
século XIX. Os negros-de-aluguel foram bastante utilizados em serviços urbanos e
domésticos, devido à elasticidade da plantation açucareira, uma vez que o açúcar
tinha de operar dentro da recessão econômica, durante a escravidão. O engenheiro
francês e também senhor de engenho Henri-August Milet (aportuguesado por ele
mesmo Henrique Augusto Milet), na década de 1870, notara esta capacidade.
Infelizmente, dados sobre a população escrava no Brasil para o período anterior a
1872 é pura estimativa. Em Pernambuco, a população escravizada correspondia a
23% do total da população geral, nos anos 1840, e 21% nos anos 1850, declinando,
então, para 12%, em 1872. Esta população teria decrescido ou foi mal contabilizada,
ente 1823 e 1840 (de 150 mil para 146 mil), pois em 1850 se apontava para 154 mil.
Estranhamente, para 1867, temos uma cifra de 250 mil, quando para 1872, aparece
o número de 89 mil, chegando a 41 mil em 18877.
TABELA 01
POPULAÇÃO ESCRAVA /NORDESTE AÇUCAREIRO (milhares)8
PROVÍNCIAS 1823 1840 1850 1867 1872 1880 1887
237 - - 280 168 165 129
Bahia
35% - - 19% 12% - -
40 - - 50 36 27 15
Alagoas
31% - - 17% 10% - -
150 146 154 250 89 92 41
Pernambuco
31% 23% 21% 25% 10% - -
20 - 29 40 22 26 20
Paraíba
16% - 16% 13% 6% 7% 4%
14 18 - 5 13 - -
R.G.do Norte
20% - - 2% 6% - -
20 - - 30 32 - -
Ceará
10%- - 5% 4% - -

6
BULHÕES, L. de. Meio circulante e Abolição dos escravos, 1883. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,
1883, p. 29; BURTON, Richard. Explorations of the Highlands of the Brazil. 2 Vols. Londres: s.r., 1869,
p. 5; EISENBERG, Peter L. “Abolishing Slavery: the process on Pernambuco’s sugar plantations”.
The Hispanic American Historical Review, 1972, vol. LII, n. 4, p. 580-597; GODINHO, Vitorino
Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, p. 36.
7
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961; MILET,
Henrique Augusto. A lavoura da cana de açúcar. 2. Ed. Recife: Massangana; FUNDAJ, 1989, p. 32.
8
Fontes: MARCÍLIO, Maria Luíza. “Évolution historique de la population brésilienne jusqu’en
1872”. In __________. La Population du Brésil. Paris. CICRED, 1975, p. 07-25; CONRAD. Robert.
The destruction of Brazilian Slavery: 1850-1888. Berkeley; Los Angeles: University of California
Press, 1972, p. 284 e 292; GALLIZA. Diana. O declínio da escravidão na Paraíba. João Pessoa:
UFPB, 1979; LEFF. Nathaniel H. & KLEIN. H.S. “O crescimento da população não-européia antes
do início do desenvolvimento: o Brasil no Século XIX”. Anais de História. Ano VI, 1974, p. 69;
MELLO, Jeronymo Martiniano Figueira de. Ensaio sobre a estatística civil e política da Província
de Pernambuco. Recife: s.r., 1852; EISENBERG, Peter. Modernização sem mudanças: a indústria
açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 170; GALLOWAY,
J. H. “The Last Years of Slavery on the Sugar Plantations of Northeastern Brazil”. The Hispanic
American Historical Review, vol. 51, n.4, 1971, p. 588.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 117
Pernambuco teria diminuído sua população escrava em 41%, mesmo antes de o
tráfico ter sido proibido. Trata-se, aqui, de uma grosseira estimativa, ou o nível de vida
útil do escravo era muito baixo. Em 1850, eles constituíam a população de 154.000,
o que representava somente 21% da população livre. Nestes dados devem ser
considerados os “emancipados” (escravos entrados no Brasil a partir da lei de 1831,
que deveriam ser livres), embora fossem poucos. Segundo a lei, o Governo Provincial
podia empregar tal força de trabalho, mas como a lei não se completou, eles não
foram libertados. Nem escravos, nem livres, tal era o status dos emancipados, um tipo
de trabalhador do Estado não assalariado. Em 1839, proibiu-se, em Pernambuco, o
emprego de trabalho escravizado em obras públicas. Só homens livres, assalariados
(“jornaleiros”) eram admitidos. Além destes, começara a surgir a prática a partir da
lei de 20de outubro de 1823, de os escravos pagarem certa quantia por semana
para trabalharem por sua conta. Talvez configurem estes os “fabris”, pois tinham que
entregar devida quantia ao seu senhor.
A despeito dos escravos entrados na região depois de 1850, muitos foram
vendidos para o Sul, devido tanto à baixa produtividade açucareira, como à
concorrência de Cuba e à lucratividade da plantation cafeeira. De 1840 a 1874,
o Rio de Janeiro comprou cerca de 77.000 escravos, e na década de 1850,
aproximadamente de 3.100 por ano. Pernambuco exportou 4.123 para o sul entre
1855-65. A população escrava, em Pernambuco, em 1874, era apenas de 12,4%
da população livre, enquanto que, em Alagoas, chegava a 10,3%, caindo, na
Paraíba, para 7,0% e, mais ainda, no Rio Grande do Norte, para 5,5%9.
Donos de terra passaram a substituir, parcialmente, a força de trabalho escrava
por moradores e diaristas assalariados nas safras, porque manter um grande número
de escravos se tornava muito caro. Engenhos e propriedades reduziram sua mão-
de-obra escravizada em cerca de 40 homens, sendo 30 para trabalho no campo e
10 para serviços domésticos e técnicos também, supomos. Alguns plantadores, na
década de 1840, ousaram manter um exército de 150 escravos, em Pernambuco.
O viajante inglês MacGregor estimou haver 6 escravos por engenho em Alagoas,
mas, provavelmente, a referência seria de homens trabalhando na parte industrial
dos engenhos e não nas tarefas agrícolas. Em Pernambuco, por exemplo, a atividade
açucareira dependeu da força trabalho escrava até poucos anos antes de 1850, como
relatou o Presidente da Província. Por volta de 1854, ele acrescentava que se estava
produzindo muito mais com a força de trabalho livre, apesar de haver 10.471 escravos
e somente 3.037 trabalhadores livres nas 532 propriedades e engenhos. Enquanto
que apontava uma média de 19 escravos por engenho, enquanto os trabalhadores
livres, em geral, eram aqueles que trabalhavam no setor industrial10.
Os escravos também foram colocados no mercado de trabalho livre urbano. Em
1856, a população de Recife era de 10.382 escravizados e de 44.371 pessoas livres,
(destas, cerca de 25.000 era do sexo masculino)11. O Presidente de Pernambuco
9
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
MEC, 1975, p.78 e 350.
10
MacGREGOR, John. Commercial statistics. Vol. IV. Londres: Whitaker and Co., 1848, p. 180;
RELATÓRIO do Presidente da Província, apud DIÉGUES JR., Manoel. O Escravo no Tempo de
Joaquim Nabuco. Revista do Arquivo Público, Recife, anos V e VI, n. VII/ VIII, 1950/ 1951), p. 49 e
nota 9.
11
MELO, Ferrovias inglesas..., p. 64.

118 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
relatava que, em 1852, seria necessário lançar uma taxa sobre escravos que
trabalhavam como artesãos e técnicos (“mecânicos”) para que eles não competissem
com homens livres e retornassem para as atividades da agricultura. As capitais das
províncias viraram cidades negras12. Provavelmente, os salários pagos anteriormente
aos trabalhadores da Companhia de operários alemães teriam influenciado nestas
perspectivas, que seriam duplicadas com a construção e operação da primeira ferrovia
inglesa no Nordeste.
No entanto, surtos de febre amarela e cólera na década de 1850 e começo da de
1860 diminuíram a população escravizada, causando aumento do seu valor. O que,
de fato, aconteceu é que esta população, em Pernambuco, decresceu de estimados
145.000 (1855) para 88.560 (1872), uma média de 3.323 escravos por ano. Acredita-
se, também, que 37.408 escravos deixaram o Nordeste entre 1850 e 1863, cerca de
2.877 por ano. Pernambuco tinha vendido 4.123 no período 1855/ 64, chegando ao
pico em 1861/ 64, numa média de 1.025 escravos. O Rio importou cerca de 30.407
escravos do Norte e apenas 3.303 do Sul, na década de 1852-186113.
Pernambuco representava somente 11% de todos os escravos vendidos para
a plantation cafeeira, o que significava que a agroindústria açucareira podia reter
a grande parte de sua força de trabalho. De acordo com Eisenberg, o comércio
interprovincial de escravo teria sido responsável por 3.900 escravos vendidos entre
1852/3 e 1864/5. Os preços, em média, caíram nos anos 1860 para £890, quando
tinham alcançado £1,410 no fim dos anos 1850; na década de 1870, baixaram para
£790 e, provavelmente, decresceram em mais £ 40. Isto evidencia o decréscimo
apontado por Eisenberg, de que em 1872 de que os trabalhadores livres eram em
maior número que os escravos, numa proporção de quatro livres para um escravizaso14.
Toplin diz que, por volta de 1875/1880, cerca de 2/3 da força de trabalho na
agroindústria açucareira eram de escravos. Ainda de acordo com o censo de 1872, em
Pernambuco, 57% da população escravizada trabalhava na agricultura; dos restantes
43%, 18,5% estavam empregados em serviços domésticos, 4,5% como artesãos e
19% “sem profissão”. Não obstante, tais números, por exemplo, em Pernambuco,
podem representar a baixa distribuição de escravos por engenho. Eisenberg calcula
1.446 engenhos para a década de 1870, enquanto o número de escravos na
agricultura era de 52.634, o que significa 33 por unidade produtiva15.

12
RAILWAY Times. Londres, 18 out. 1856, p.1232-1233; Arquivo Público Jordão Emerenciano (APEJE).
Relatório que à Assembléia Legislativa Provincial de Pernambuco apresentou (...) o Exmo. Sr. e
Conselheiro Dr. José Bento da Cunha Figueiredo, Presidente da Província. Recife, 1856; MacGREGOR,
Commercial statistics..., p. 192-193.
13
CONRAD, Os últimos anos..., p. 350.
14
APEJE. Mesa do Consulado de Pernambuco, 2 abr. 1855; Tesouraria da Província, 58, 1860. Nota dos
Escravos Exportados (...) Seccão da Contadoria Provincial de Pernambuco, 28 fev. 1866; EISENBERG,
Modernização..., p. 170-178 e 201; EISENBERG, Abolishing Slavery..., p. 594-595; GALLOWAY, The
Last Years..., p. 590. Carvalho vê este crescimento mesmo nos anos 1840, e dá como exemplo um
latifundiário que tinha 200 famílias em suas terras. CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e
rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002, p. 144.
15
BPP 1875 LXXV. Report by Consul Lennon-Hunt on the Trade and Commerce of Rio de Janeiro for
the year 1873, p. 303-321; TOPLIN, Robert Brent. The Abolition of Slavery in Brazil. New York:
Atheneum, 1972, p. 708; EISENBERG, Modernização…, p. 260-265; MELO, Ferrovias inglesas..., p.
52.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 119
Moradores de ‘condição’: um exército rural de reserva

Gradualmente, na área açucareira, após a proibição do tráfico de africanos, os


latifundiários foram substituindo a força de trabalho escravo por força de trabalho
não assalariada, os chamados moradores, homens brancos e pobres, bem como
negros livres. Os donos de terra permitiam a moradia de trabalhadores rurais em
suas propriedades, para mantê-los disponíveis para futuras safras e mesmo para o
trabalho, em geral, em vez de trabalho escravo. No Congresso Agrícola de 1878,
no Recife, os agricultores já acenavam com a atração desta mão de obra, o que
correspondia a 1/3 da população do sertão e do litoral, e que também era vista
como eleitores, como pregava o latifundiário conservador Coelho Rodrigues:
Haveis de dar-lhes casa e sítio para morarem quase sempre
de graça, terras para cultivarem, de quando em quando
algumas festas [...] E se o senhorio desgosta-o, o visinho
está sempre prompto a acolhel-o de braços abertos, não
tanto para aumentar o numero de suas cifras, quanto por
acinte ao outro visinho.16
Deviam trabalhar para o proprietário das terras em troca do direito de plantar em
pedaços de terra próximos à sua cabana e participavam da colheita de safras, embora
muitos assumissem função de guarda costas, feitores ou capangas. Formavam, assim,
uma força de trabalho livre não assalariada, empregada pelo patrão por três ou
quatro dias e trabalhando para si, no resto da semana. O acordo assemelhava-se ao
contrato medieval de trabalho, como o viajante MacGregor notou: “(ele) é um tipo de
rendeiro à disposição, ele também não paga renda, mas constrói sua própria cabana
ou rancho [...] que parece ser governado por um sistema feudal”17.
No entanto, a partir de 1878, a própria indústria açucareira passou por uma
fase de mecanização moderna com a instalação de engenhos centrais, em que a
agricultura seria destinada aos tradicionais engenhos, na condição de fornecedores do
insumo, enquanto o seguimento industrial ficaria sob comando de ingleses, no início,
e teria mão-de-obra livre e assalariada. O governo imperial reproduziu o espírito da
lei ferroviária, proibindo trabalhadores escravizados na parte industrial do engenho
central18. Índios aldeados e a população de brancos pobres formavam o exército rural
de reserva de trabalho, um tipo de lumpen-proletariado, vivendo dos socorros do
Governo e utilizados pelo Estado para subvencionar obras em terras de particulares,
nas secas, ou cedendo esta gente para as obras ferroviárias ou estradas vicinais. Este
exército providenciou uma força de trabalho mais barata, e era, ao mesmo tempo,
uma ameaça para a elite local, ou no seu imaginário, como na Praieira (1848), e
para o mercado de trabalho assalariado. Governo e proprietários de terra estavam
preocupados com a organização do mercado de trabalho, devido à falta de regras
16
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. (edição fac-similar) Recife: Fundação
Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco/ CEPA-PE, 1978, p. 91.
17
MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1, Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975, p. 266-267; MacGREGOR, Commercial statistics..., p. 179.
18
MELO, Josemir Camilo de. A lavoura canavieira em Pernambuco e a expansão do capitalismo
britânico (1870-1890). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco.
Recife, 1978.

120 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
para o trabalho rural que pudessem parar o que eles denominavam de vadiagem.
Pediam por direitos e deveres não somente para colonos, mas para proprietários,
e até mesmo para a manutenção da ordem, como dizia o juiz Joaquim Nunes da
Cunha Machado:
Com respeito à locação de contrato de serviços, arranjos
de emprego não têm sido como deveriam, constantemente
sendo desfeito, (o contrato) que deverá obrigar vagabundos
para trabalhar e punir enganadores que andam pelo país,
mas estão faltando para a agricultura19.
Percebe-se, pois, como os discursos econômicos e jurídicos se associavam para o
controle da força de trabalho e da manutenção da escravização. De fato, em termos
de força de trabalho, os proprietários de terra desejavam um suprimento fixo de força
de braços para as safras, como os moradores. Por outro lado, os trabalhadores não
estavam acostumados às regras do incipiente mercado de trabalho livre, pelo fato
de que era mais fácil conseguir alimentos pescando e caçando, bem como colhendo
frutos nas matas e outros produtos naturais. O Ministro da Agricultura relatara que
“[...] a força de trabalho livre não estava acostumada a trabalhar constantemente: eles
satisfaziam a sua imediata necessidade com o produto de um ou dois dias de salários
e gastavam a maior parte de seu tempo caçando e pescando”20. Milet criticava o
discurso dos latifundiários no Congresso Agrícola no tocante a obrigar o povo livre a
trabalhar, mas lamentava o fim da lei do recrutamento militar, com o qual se corrigiam
os “vadios”.
A força de trabalho livre21 disponível, em Pernambuco, era estimada em 10.000
homens na colheita de 1856. É também importante verificar os 9.000 homens que
a Província enviara para a Guerra contra o Paraguai. Na Paraíba, Galloway estimou
que havia mais homens livres nos campos e engenhos do que escravos, numa média
de 13 moradores para cada 10 escravos, em 37 propriedades e engenhos. A mão de
obra livre e ou alforriada podia viver da pesca também na Paraíba onde, em 1854,
existiam mais de 80 embarcações, envolvendo diretamente cerca de 200 pessoas22.
Se tomarmos a história de um trabalhador negro, livre, como modelo de análise
desta transição poderíamos ver como o capitalismo estava minando o mercado
escravo. É o que se constata a partit da leitura de Cem anos de suor e sangue (1971),
a vida do maquinista afrodescendente Manoel do Ó23.

19
APEJE. Relatórios de Juiz de Direito (JD) 22. Ofício do Juiz Joaquim Nunes da Cunha Machado ao
Presidente de Pernambuco, 10 de agosto de 1858.
20
INFORMAÇÕES sobre o Estado da Lavoura. Rio de Janeiro, 1874, p. XVII.
21
Sobre o pensamento de Milet, ver: PERRUCI, Gadiel. “O Canto de Cisne dos Barões do Açúcar.
(Introdução)”. In: Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. Edição fac-similar.
Recife: Fundação Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco/ CEPA-PE, 1978, p. XXXII.
22
EISENBERG, Abolishing Slavery..., p. 549; GALLOWAY, The Last Years..., p. 9; ROCHA, Solange
Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São
Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 102.
23
DO Ó, Manoel. Cem anos de suor e sangue: homens e jornadas da luta operária do Nordeste.
Petrópolis: Vozes, 1971.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 121
Trabalho livre e assalariado
A situação verificada em Pernambuco antes da instalação da ferrovia Recife-São
Francisco apresentava flagrantes contradições com respeito à unicidade da manutenção
do trabalho escravizado. Ainda fazia eco na capital a falência da Companhia de
Operários, contratada na Alemanha, para obras urbanas, na década de 1830, já que,
pela lei de 1831, o Estado proibia o trabalho dos 'emancipados'. Obedecendo a Lei
de 1837, que estabelecia padrão para contratar trabalhador estrangeiro, a Presidência
de Pernambuco mandou buscar, na Europa, 200 alemães para as Obras Públicas.
As reformas urbanas levadas a efeito pelo Presidente de Pernambuco, Francisco do
Rego Barros (depois Barão da Boa Vista) (c.1840), com uma equipe de engenheiros
franceses, também usou mão-de-obra livre. Os ''operários' (há que se discutir o
impacto deste termo – discurso – frente ao universo do trabalho escravo e da mão-
de-obra livre flutuante) recusaram a remuneração proposta, abandonaram o contrato
e 45% se empregaram em Recife. Este foi um dos primeiros conflitos por salário
dentro da economia escrava. As profissões ainda eram artesanais: pedreiro, cavador,
carpinteiro, marceneiro e ferreiro. Além disto, há que se contar com mão-de-obra
livre advinda da extinta Colônia Santa Amélia, criada em 1829, inutilmente, para
acabar com os quilombos do Catucá. Dissolvida, por volta de 1835, a companhia
deixou reflexo na melhoria da mão de obra, como se revela na construção da casa de
detenção, entre 1850 e 1855, que usou cerca de 100 operários24.
A ferrovia Recife-São Francisco e o assalariamento do trabalho
A implantação de uma ferrovia em pleno canavial (e cidade do Recife) escravista
é consequência da expansão de bens de capitais da Inglaterra, associada a uma crise
ou depressão ferroviária, sendo representadas ambas as partes pela presença de uma
família de engenheiros ingleses no Brasil. Os De Mornay trabalharam nos estudos da
primeira ferrovia planejada para São Paulo (o pai, Aristides F. Mornay) e os filhos se
radicaram entre Recife e Maceió (e Penedo), inicialmente atuando em Obras Públicas e
projetando máquinas para a agricultura canavieira e, só posteriormente, se dedicaram
ao projeto de uma ferrovia (1852/54), cujo capital foi levantado em Londres. As obras
começaram em 1854 e o primeiro trecho até a vila do Cabo foi aberto em 1858. De
pronto, precisava-se de mão-de-obra qualificada e de trabalhadores braçais.
Na demanda por trabalhadores livres para a ferrovia, Freyre relata que o
engenheiro John Bayliss oferecia 10 contos a quem lhe fornecesse 2.000 operários;
sendo 200 mecânicos (entre 2 mil réis e 4 mil réis por dia) e trabalhadores braçais (a
1.260 réis por dia). O Recife vivia contradições flagrantes no uso da mão de obra,
mesmo antes da ferrovia. As duas fundições, a de Bowman e a de Starr, empregavam
trabalhadores livres e escravizados, além de terem vários técnicos e operários
contratados na Inglaterra por 3 anos como ferreiros. Star tinha, em 1848, 28 escravos
na fundição. De uma delas, afirma Freyre, fugira para a Paraíba um operário Thomas
Spink, que trabalhava na Starr, por volta de 1830. Estas fundições, assim como a
fábrica têxtil de Gervásio Pires, fechada em 1826, admitiam tanto trabalhadores livres
como escravizados25.
24
GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Brasiliense, 1986,
p. 77 a 83; MELO, Ferrovias Inglesas..., passim.
25
FREYRE, Ingleses no Brasil, p. 104 e 102; CARVALHO, Liberdade..., p. 60.

122 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
No intuito de providenciar força livre de trabalho para as ferrovias, o Estado, com a
lei ferroviária de 1852, teve de fazer arranjos jurídicos, para, ao mesmo tempo, manter
a tradicional relação de produção escravista, no âmbito da agricultura. Isto nos levou
a refutar algumas teses que apontam a lei de 1871, a Rio Branco, ou o Contrato de
Trabalho de 1879, como pontos de partida para o mercado livre de trabalho. Esta
instância, antes de 1852, conformava-se de profissões artesanais e manufatureiras
exercidas pelos escravos e negros de ganho, destacando-se a profissão de “mecânico”.
Num levantamento que realizamos a partir de Freyre26, enfocando 203 trabalhadores
escravizados que tentaram a liberdade (e que Freyre, como sujeito discursivo, assume
o termo ‘fujão’, enunciado constante do Diário de Pernambuco e dos proprietários),
verificamos que suas profissões eram artesanais, ou quando muito, propiciavam
aquilo que Marx chamaria de work (trabalho social não produtivo): alfaiate, areeiro,
barbeiro, canoeiro, carregador, carreiro, cozinheiro, doméstica (45 dentre eles/as)
trabalhador de engenho (11 dentre eles/as), trabalhador em estaleiro, lavrador,
músico, padeiro, pedreiro, pescador, sapateiro, serrador e vendedor. Esta seria a
realidade que a companhia inglesa The Recife-São Francisco Railway encontrou
quando, atraída pelos 7% de juros pelo risco de capital, se instalou em Pernambuco:
uma sociedade escravista, mas com grande número de homens livres, mão-de-obra não
especializada para o trabalho industrial ou para atividades similares como construção,
operação e manutenção de uma ferrovia. O que a RSF estava impedida de fazer é o
que fizera a St. John D’El Rey Mining Company na primeira metade do século XIX,
embora contrariando decisões abolicionistas inglesas. A empresa chegava a publicar em
jornais anúncios dos tipos de escravos de 1ª ou de 2ª classe, e isto por volta de 185827.
A importância da cláusula 9ª também pode ser observada no exército de cerca
2.000 trabalhadores não especializados (aproximadamente 0,5% da população livre
provincial) e 200 especializados britânicos, no início das obras da RSF, em 1854. Surtos
de febre amarela e cólera, naquela década, vitimaram os trabalhadores estrangeiros
especializados e parte da força de trabalho local.
Para se ter uma ideia desta mão-de-obra livre de moradores rurais ou urbanos, de
então, cartografamos certo contingente na RSF, no trecho do município de Escada.
Entre os 187 trabalhadores locais em 1863, estavam assim distribuídos: quanto à
etnia, havia 146 mestiços (78%), 26 brancos (14%), 15 negros (8%). Quanto à idade
95 deles estavam entre 15/25 anos (50%), 60 (32%) entre 26/35 anos, e acima de 36
anos 32 (18%). Referente à profissão, sob a rubrica genérica de trabalhadores, havia
150 homens, o que representava 80,2%; trabalhadores mestres (sic!) 21 (11,3%),
carpinteiros, 4 (2,1%), oleiros, 4 (2,1%) , funcionários, 8 (4,3%)28.
Concomitante à abertura da ferrovia, em 1858, a Presidência de Pernambuco
contratou, na Bélgica, 53 trabalhadores para a repartição de Obras Públicas, enquanto
26
FREYRE, Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, apud MELO,
Josemir Camilo de. “Trabalhadores negros urbanos escravizados em busca da liberdade: de “fujões”
a guerrilheiros”. Cadernos Nordeste em Debate, DHG/UFPB, Campina Grande, 1996, p. 23-36.
27
MELO, Ferrovias inglesas…, passim; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho escravo e capital estrangeiro no
Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 96- 97.
28
APEJE. Coleção Estradas de Ferrro (EF) 5, Mappa dos Trabalhadores da Linha Férrea de Cinco Pontas-
Escada; EF 6, Mappa dos Trabalhadores de Escada a Una, March 28, 1863; EF 8, Lista Supplementar
Demonstrativa dos Salários, Jornais e mais despesas mensais relativos ao serviço de tração do mês de
julho, 1864.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 123
a Recife-São Francisco contratou alemães, holandeses e italianos. Por sua vez, a Bahia-
São Francisco Railway (BSF) admitiu 1.000 operários na Europa e, até 1859, só 500
haviam chegado. As fontes são contraditórias, pois Benévolo mostra outra cifra, para
aquele mesmo ano, de 1886 ‘obreiros’. Ao todo, então, havia, lá, 446 italianos e 107
ingleses. Já a RSF se utilizou de alemães e belgas. Já em 1864, Pernambuco planejou
introduzir cerca de 2.700 trabalhadores estrangeiros, através de uma companhia
organizada por um conde polonês. Esta companhia não atraiu mais que 3% do
planejado29.
As ferrovias, com este exército de homens qualificados, os emigrantes, criaram uma
situação trabalhista vexatória para o Estado imperial, pois o que fazer com tal massa
de trabalhadores assalariados quando a ferrovia estivesse implantada e funcionando,
para se precisaria de apenas 10% daquela mão de obra? Tanto assim que o diretor da
BSF solicitava garantias ao Presidente da Bahia para garantir trabalho aos cerca de
3000 trabalhadores que seriam despejados, ao final da construção30.
Para se vislumbrar o impacto que as ferrovias tiveram dentro de uma sociedade
e mercado escravagistas, entre 1850 e o fim da escravidão, basta lembrar que foram
implantadas em Pernambuco 5 ferrovias (as particulares e inglesas RSF, GWBR, e a
particular local, EF Ribeirão-Bonito; as estatais EF Sul de Pernambuco e EF Caruaru).
Além disto, registre-se que houve 3 linhas de bondes: a inglesa The Brazilian Street
Company, a Trilhos Urbanos Olinda-Recife, a linha de bondes sobre trilhos puxados
a cavalo, e a Ferro-Carril de Pernambuco. Pode-se, até, admitir neste cenário a
Empresa Locomotora, de carroças para transporte de gêneros. A RSF, como amostra
deste impacto, em 1856, empregava 1.886 homens e, um ano depois, apenas 500.
Para onde teria ido esta massa de mais de 1.300 trabalhadores livres? A própria
The Great Western, por volta de 1880, usou 1.300 trabalhadores. A Ferro-Carril de
Pernambuco, uma empresa de bondes em trilhos puxados por animal, empregava 72
estrangeiros dos seus 176 homens, em 1873. É possível que, aproximadamente, 2.000
trabalhadores livres tivessem sido empregados nas linhas de trilhos, alternadamente,
ao longo de 1870 e 1880, no que diz respeito a Pernambuco. Este tipo de relação
de produção se expandiu para outras províncias. Uma ferrovia um tanto deslocada
de um mercado então dinâmico, como o de Recife, a inglesa Natal-Nova Cruz tinha,
em 1880, cerca de 1.000 trabalhadores em obras. Foi o processo de construção e
operação ferroviárias que iniciou, de fato, o mercado de trabalho livre e assalariado31.
Trabalho, protestos e greves numa sociedade escravista

Junto com o impacto econômico que as ferrovias causaram, há que se notar o efeito
político e o social, pois surgiram protestos e greves por salários em plena vigência das
relações escravistas. Isto fica claro desde as duas primeiras greves “ferroviárias” que
ocorreram no Brasil, na Recife-São Francisco, conduzidas por trabalhadores belgas e
29
MELO, Ferrovias inglesas..., passim; BENÉVOLO, Ademar. Introdução à história ferroviária do Brasil.
Recife: Edições Folha da Manhã, 1953, p. 310-311; Segundo Richard Burton a BSF, entre 1858 e
1866, teria empregado de 3.000 a 4.000 trabalhadores. BURTON, Explorations of the Highlands..., p.
360, nota 10.
30
BENÉVOLO, Introdução..., p. 310-311.
31
A moeda inglesa até 1971era dividida em libra (pound - £), shillings – sh, e penny (plural: pence)
representado em português pela letra d (denarius) para pence. CUNHA GALVÃO, 1969, p. 219-220,
apud MELO, Ferrovias inglesas..., p. 219-220.

124 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
ingleses. A primeira greve ocorreu em 1858, quando os belgas reclamaram que seus
salários estavam sendo menos do que o acertado. Tidos como bons trabalhadores,
na Europa, Thomas Brassey os empregava por causa de sua frugalidade e dedicação,
mas principalmente, devido à sua força de trabalho que era muito barata. Em 1854,
Brassey pagava seus homens a 7 shillings, 6d (pence) (3$420 rs) ao dia, enquanto
pagava 6 shillings e 5d (2$926 rs), por dia a belgas não especializados. A força de
trabalho brasileira não especializada, na RSF, custaria cerca 1 shilling e 3 pence
(0$570 rs) por dia32.
Os belgas foram contratados, num grupo de 238 europeus, em 1858, para
substituir os trabalhadores britânicos vítimas da cólera. Eram tidos na Inglaterra como
"trabalhadores modelos". Marx, pelo contrário, os via como conservadores nas lutas
sindicais, já que não tinham tomado parte na luta do movimento pelas 10 horas de
trabalho. No entanto, mesmo para Marx, tal ponto de vista foi dissipado pela greve
dos mineiros belgas em 1868 33.
Os belgas recusaram a diária entre 1$280 rs e 1$500 rs, 30% menos que os salários
da força de trabalho especializada, por 6 dias na semana, cerca de 10 horas por dia,
mesmo sob chuvas. Não aceitavam qualquer diária abaixo de 2$000 rs. A RSF ofereceu
8 shillings e 1 penny (3$686 rs) a mais por quinzena, o que significava mais 16,5%,
embora mantivesse o salário abaixo de 54 pence (2$052 rs). O câmbio estava a 27
pence por 1$000 rs. A Companhia rejeitou a petição deles por um aumento entre
54 pence (2$052 rs) e 81 pence (3$078 rs), porque, dizia a RSF, isto era exigência
de trabalhadores especializados. Um comitê de 30 homens foi ao Consul belga,
um brasileiro que era acionista da RSF, solicitando sua intervenção com respeito à
detenção dos seis líderes e requerendo revisão sobre o contrato de trabalho. O Cônsul
se posicionou a favor da Companhia, não concordando com as reivindicações, e
chamou a polícia para mandá-los de volta para o trabalho, escrevendo ao contratador
da RSF para liberar os presos. O contratador afirmava que: "era mais fácil eles irem
para a prisão do que trabalhar por menos que 2 shillings 7 pence (1$178 rs) ao dia".
Fugiram 14 deles; uns se tornaram bêbados e pedintes, enquanto outros obtinham
empregos a 81 pence (3$078 rs) ao dia, em engenhos nas províncias vizinhas34. Estes
trabalhadores não especializados foram substituídos por mão-de-obra local.
A segunda greve (‘strike’) ocorreu na linha da RSF, em 1862, quando um maquinista
matou uma mulher nos trilhos e foi imediatamente preso. Seis maquinistas ingleses
e oito foguistas (sendo sete brasileiros) se recusaram a dirigir os trens a menos que o
companheiro fosse solto. Além disto, 17 outros trabalhadores especializados britânicos
pediram o direito de serem ouvidos por uma corte britânica. O impasse resultou numa
semana de negociações. Juntaram ao protesto reclamações contra baixos salários
e péssimas condições de trabalho. A RSF os ameaçou com prisão e demissão, mas
todos os trabalhadores da linha desafiaram a companhia, com a ameaça de fechar o
32
COLEMAN, Terry. The Railway Navvies. Londres: Penguin, 1968, p.205, 212 e 214.
33
MARX, O Capital, Livro 1, Vol. 2, p. 697, p. 779-780; p. 341, nota 190.
34
MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Trabalhadores Belgas em Pernambuco (1859/1863)”.
Boletim do Instituto Joaquim de Pesquisas Sociais, Recife, n. 8, 1959, p. 14, 15 e 16,17-18; EF
3. Dispatch by the Belgian Consul to Mr. Bayliss, January 25, 1859; Dispatch by R. Saunders to Mr.
Bayliss, February ll, 1859; APJE. EF 2. Dispatch by R. Saunders to Mr. Bayliss, January 25, 1859; EF 3.
Dispatch by Mr. Bayliss to President of Pernambuco, January 28, 1859; Dispatch by Mr. Bayliss to the
Belgian Consul, Luis A. Sequeira (sem data).

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 125
serviço. Além do mais, a companhia não poderia demitir todos os maquinistas, já que
não haveria outros para substituição. O maquinista foi libertado e os trens voltaram
a correr. O Ministro de Agricultura se referiu a ela como: "Este affair, que não era o
primeiro a acontecer em nossas ferrovias, merece sérias considerações" 35. De fato, dois
meses mais tarde, o Governo lançou um decreto estabelecendo prisão e multa que
variavam entre 15 dias a dois anos. Além do mais, a Companhia inglesa reconheceu
aquele movimento como uma greve, “a strike”36.
Outro conflito entre capital e salário ocorreu no trecho da EF Prolongamento
(da RSF) estrada construída pelo Estado e que passou a ser oficialmente EF Sul de
Pernambuco, que ia de Palmares a Garanhuns. Por volta de 1879, os trabalhadores
braçais reclamaram sobre erros nos seus salários, e interromperam a construção
ferroviária. Este empreendimento estatal usava também como mão-de-obra o povo
‘flagelado’ pela seca, empregando-o para abrir a linha e rodagens vicinais. O protesto
foi rechaçado pela polícia, que feriu vários trabalhadores, prendendo quatro deles. Um
deles foi levado à força para a cidade, debaixo de pancadarias, tanto que o engenheiro
relatou para as autoridades que aquele homem nunca se reabilitaria para o trabalho,
além do que teve sua cabana incendiada. De fato, os trabalhadores estavam certos e
o contratador os reembolsou, mas os demitiu em seguida37.
Considerações Finais

Usar o trabalho dos moradores parecia ser um caminho econômico para os donos
de terra, a fim de compensar a desvalorização do açúcar no mercado internacional.
Nenhum capital era aplicado em tal força de trabalho, nem havia direito à terra,
embora fosse permitido dispor de roçados, uma vez que eles transformavam áreas
incultas, como florestas ou capoeiras, em terras aráveis. O que significava que
eles acrescentavam valor à terra incrementando a fertilidade, sem qualquer novo
adiantamento em instrumentos de trabalho: “[...] uma imediata fonte de maior
acumulação, sem a intervenção de qualquer novo capital”38.
Embora seja uma forma pré-capitalista de produção, onde a geração de trabalho
excedente não tem limites, tal força de trabalho quando aplicada à produção açucareira

35
EF 5. Ofício do engenheiro fiscal, Manoel Buarque de Macedo ao Presidente de Pernambuco, Fevereiro
de 1862; Dispatch by the RSF Engineer Mr. Withfield to the Fiscal-Engineer, Fevereiro 2 1862; Ofício do
engenheiro fiscal a Mr, Bramah, the RSF Superintendent, 4 de fevereiro de 1862; Ofício do engenheiro
fiscal ao Presidente de Pernambuco, 6 de setembro, 1862; Reply by Mr. Bramah to the Fiscal-Engineer,
Fevereiro 6, 1862; Relatórios do Ministério da Agricultura, RMA 1862, p.39; EF 6. Dispatch by R.
Austin, for the RSF Superintendent, to President of Pernambuco, September 5, 1862.
36
EF 5. Ofício do engenheiro fiscal, Manoel Buarque de Macedo ao Presidente de Pernambuco, Fevereiro
de 1862; Dispatch by the RSF Engineer Mr. Withfield to the Fiscal-Engineer, Fevereiro 2 1862; ofício do
engenheiro fiscal a Mr, Bramah, the RSF Superintendent, 4 de fevereiro de 1862; ofício do engenheiro
fiscal ao Presidente de Pernambuco, 6 de setembro, 1862; Reply by Mr. Bramah to the Fiscal-Engineer,
Fevereiro 6, 1862; Relatórios do Ministério da Agricultura, RMA 1862, p.39; EF 6. Dispatch by R.
Austin, for the RSF Superintendent, to President of Pernambuco, September 5, 1862. The Railway
Times, April 19, 1862, p. 538 a 540.
37
EF 18. Ofício de H.E. Weaver, Chefe da Segunda Secção da EF Sul de Pernambuco (então chamada
EF Prolongamento da RSF), ao engenheiro Adriano Eugênio da Cunha e Mello, 23 de janeiro de 1879;
Idem, Ofício de H.E. Weaver ao engenheiro residente, 4 de janeiro de 1879; Ofício do engenheiro
residente a H.E. Weaver, 5 de janeiro de 1879.
38
MARX, O Capital, p. 701.

126 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
gerava mais-valia relativa, pois o fazer açúcar era uma função social, diferente das
atividades rurais onde havia somente trabalho excedente. Como produtores de
mercadorias, isto é, adicionando valor ao produto, sejam trabalhadores assalariados
ou escravos, estavam participando do modo capitalista de produção, já que o açúcar
envolvia todas as atividades e combinava todas as relações dentro da sociedade
escravocrata, no Nordeste. De acordo com Marx, não interessa se o trabalho produtivo
seja feito em uma antiga padaria ou em modernas fábricas de algodão. Neste caso, os
escravos que trabalhavam na agroindústria açucareira produziam mais-valia e, neste
caso, absoluta39.
Na produção açucareira, então, moradores geravam apenas trabalho excedente,
enquanto o trabalho escravizado aplicado em tarefas industriais no engenho produzia
mais-valia, tomando-se seus preços como fator distintivo entre ambas as categorias.
O capitalista industrial aplicava capital para renovar sua maquinaria, enquanto donos
de terra compravam escravos. Os limites do mercado de suprimento de trabalho
levavam a força de trabalho escrava a produzir mais-valia. Comparada com a força
de trabalho dos moradores, onde nenhum capital fora necessitado anteriormente, a
não ser o acesso à terra, a mão-de-obra escrava se tornou mais cara, especialmente
depois de 1850. Vendendo escravos para o sul e os substituindo por moradores,
os latifundiários fizeram uma grande economia. Devido à força de trabalho livre de
moradores, os escravos se tornaram mais caros para os produtores, considerando
a diária em cerca de 27d (pence) pouco mais de 1$000 rs, (a 26 pence ao par),
em 1870, segundo Milet, ou 18$240 rs por mês (equivalente a 40 shillings e 5 (d)
pence). Sobre preços do trabalho escravizado, os Relatórios dos Cônsules ingleses são
bastante esclarecedores, quando mostram a tendência pelos já nascidos no Brasil, os
crioulos. Em Pernambuco, por volta de 1860, o trabalhador africano escravizado valia
1:718 (um conto, setecentos e dezoito mil réis) enquanto um 'crioulo' valia 1:872 (um
conto, oitocentos e setenta e dois mil réis) 40.
Ao se comparar o valor da força de trabalho escravo por 8 anos de vida econômica,
ela deveria custar cerca de £ 23 (cerca de 215$000 rs, a 26p) por ano ao proprietário
do escravo. É possível que depois do fim do comércio transatlântico de escravos, sua
taxa de vida útil tenha se prolongado para economizar força de trabalho. A esta soma
devemos adicionar a manutenção, e qualquer que seja o custo de vida, a força de
trabalho escravo será mais cara do que a assalariada, principalmente se os donos de
terra usavam pagá-la com produtos ou permitindo o uso da terra pelos moradores.
Além do mais, o preço do trabalho escravo cresceu cerca de 145% entre 1840 e 1860,
(a média de 1840, estimada por MacGregor foi de £ 65 por escravo), enquanto o
salário nominal fora reduzido de 1.200 réis em média. No começo dos anos 1860,
em Pernambuco a mão-de-obra escravizada custavam mais (£ 172, ou cerca de
1:651$000 réis, a 25p) que no Rio de Janeiro, onde podia ser comprada por £ 156
(algo em torno de 1:498$000 réis). Dez anos antes, os preços tinham sido muito mais
baixos e alguns escravos tinham sido vendidos por somente £ 132 (1:109$000 rs, a
28p) no Rio de Janeiro. Taxas em cerca de 3% ad valorem levaram Pernambuco a
baixar seus preços para £ 102 (980$000 rs) em meados de 186041.
39
MARX, O Capital, Vol. 2, p.354.
40
MARX, O Capital, Parte Quinta; MILET, A lavoura da cana…, p. 36; MELO, ferrovias inglesas..., p. 57.
41
MARX, O Capital, p. 300-302; MacGREGOR, Commercial statistics..., p. 182; SOARES, Sebastião
Ferreira. Histórico da Companhia Industrial da Estrada de Mangaratiba e analyse crítica e econômica

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 127
A força de trabalho livre era a mais barata para a plantation açucareira, já que ela
era empregada somente por seis meses de safra e, no caso de moradores, estes eram
capazes de providenciar seu próprio suprimento de alimento. Investir em escravos
significava imobilizar grande soma de dinheiro e assegurar a sua manutenção em
termos de alimento e roupa. Gomes Percheiro estimava a manutenção de um escravo
em cerca de £ 435 pelos 20 anos de vida econômica ativa, enquanto o trabalho livre
custaria cerca de £ 1.500 pelo mesmo período. Tentava mostrar o ponto de vista
conservador de alguns donos de terra, mas sua cotação parece estar errada, porque
não leva em conta o trabalho sazonal, a circulação da mão-de-obra e a própria queda
do salário real. Alternativamente, o autor deve estar se referindo à produção de café
no sul42.
Já Reis estimava a manutenção de um escravo em aproximadamente 55 mil-
réis (£ 6) por ano, enquanto um trabalhador assalariado custaria 144 mil réis por
safra. O autor, porém, não inclui o investimento original no custo de escravo e sua
manutenção, enquanto Gomes Percheiro atribui 192 mil-réis (£ 22). De fato, se o
trabalhador escravizado tinha sido comprado por £ 115 para trabalhar no campo, seria
mais barato ensinar-lhe tarefas industriais do engenho para substituir o trabalhador
assalariado, uma vez que o último custaria aproximadamente £ 1.620 por 20 anos.
Mesmo incluindo a manutenção, o escravo empregado em tarefas industriais custaria
somente um terço do valor do trabalhador assalariado. Reis assegura, deste modo,
que a força de trabalho livre era mais lucrativa para o senhor de engenho, quando os
salários eram menos que 800 réis (cerca 22d) diários. Além deste limite, o trabalho
escravo era mais lucrativo43.
Neste caso, o trabalho excedente extraído dos escravos em atividade industrial,
como produzir açúcar para o mercado internacional, se tornava mais-valia, já que
o produto era mercadoria. Marx faz distinção entre trabalho que produz valor de
uso (“work” - trabalho), para auto consumo, por exemplo, e aquele que adiciona
valor para mercadorias (“labour”). Portanto, o trabalho escravo quando aplicado
para produzir valor de uso e para o imediato consumo local, obedece ao antigo e
patriarcal modo de produção - trabalho escravo não produtivo. Esta não é a situação
da plantation canavieira nordestina, em que o trabalho escravo foi mudado para
trabalho produtivo, originando a mais-valia:
[...] quando povos cuja produção ainda se encontra nos
estágios inferiores da escravidão, da corvéia etc., são atirados
no redemoinho de um mercado internacional de trabalho
dominado pelo modo de produção capitalista, tornando-
se a venda de seus produtos para exportação seu principal
dos negócios desta companhia. Rio de Janeiro: s.r., 1861, p. 69; BPP 1862 LXX. Report by Consul
Cowper on the Trade and Commerce of Pernambuco, for the year 1861, p. 57/8; BPP 1862 LXX.
Report by Consul Westwood to Lord J. Russel. Rio de Janeiro, 2 jan. 1861, p. 63; Livro de Compra e
Venda de Escravos, 1864. Revista do Arquivo Público, Recife, ano II, n. III, 1947, p. 158-171.
42
PERCHEIRO, D. A. Gomes. Portugal e Brasil, emigração e colonização. Lisboa: s.r., 1878, p. 50.
43
REIS, James. From Bangüê to Usina: social aspects of growth and modernization in the Sugar
Industry of Pernambuco, Brasil, 1850-1920. In: DUNCAN, Kenneth et allii, Land and labour in
Latin. America. Cambridge : Cambridge University Press, 1977, p. 386-387; REIS apud COSTA,
Emília Viotti da. Da senzala a colônia. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1982, p. XLVIII, nota
12; PERCHEIRO Portugal e Brasil..., p. 50.

128 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
interesse [...] 44.
Marx adota, como paradigma, o trabalho escravo (‘the negro labour’) nas
plantations algodoeiras nos Estados Unidos. Assim, no trabalho escravo, no particular
caso da indústria açucareira no Nordeste, produzia-se mais-valia e não meramente
trabalho excedente. Se o Estado não tivesse proibido o uso de escravos em obras
ferroviárias, poderia ter provocado uma evasão desta força de trabalho dos engenhos
para as companhias ferroviárias, prejudicando enormemente os latifundiários. Além
disto, outra forma de manter o poder econômico dos latifundiários era manter o povo
livre fora da propriedade da terra. Em outros termos, significava ter disponível a mais
barata força de trabalho para o pique da colheita, sem precisar adquirir mais trabalho
escravo, consequentemente mais caro. Um pequeno número de proprietários mantinha
toda a terra, como já denunciava Antônio Pedro Figueiredo, em O Progresso, em
1846, e se recusava vender ou arrendar qualquer parte dela para a população branca
e pobre: “[...] a expropriação da massa da população do solo forma a base do modo
de produção capitalista”45.
Com a abolição do sistema de trabalho forçado em 1888 para a adequação do
mercado de mão-de-obra assalariada e com os projetos de ‘reforma agrária’ de
Rebouças e outros, engavetados, pelo menos 45.000 ex-escravos em Pernambuco
entraram no mercado de trabalho assalariado, baixando, naturalmente, os preços da
força rpodutiva46. É sintomático como o número de greves aumentou nas primeiras
décadas da era republicana, principalmente em Pernambuco.

44
MARX, O Capital, p. 226.
45
MARX, O Capital, p. 883; MELO, Ferrovias inglesas..., p. 54-55.
46
AC. Parecer da Associação Comercial Beneficente de Pernambuco ao Governador do Estado, 2 de
maio de 1894; EF 30. Ofício do Superintendente da EF Sul de Pernambuco ao Governador do Estado,
19 de setembro de 1891.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 129
RESUMO ABSTRACT
Pretende-se verificar a transição da mão-de-obra This article aims to verify the transition from the
escrava para o trabalho assalariado no nordeste slavery labour force to the free and waged labour
açucareiro, tendo como baliza a proibição do force in the sugar cane region in the Northeastern
tráfico africano bem como a implementação da Brazil, based on the prohibition of the Atlantic
lei que proibia escravos na construção e operação slave traffic and law issued by the Brazilian
das ferrovias, face à larga disponibilidade de Government prohibiting the use of slave force
trabalhadores livres sob a forma de moradores on the construction and operation of railways
de condição. Coube ao Estado e ao capitalismo due to the widespread free labour force under
incipiente manter as três formas de mão-de- the ancient social condition of ‘moradores’. The
obra convivendo aparentemente sem conflito. Brazilian State as well the capitalism system
Estudos mostram que a escravidão mantida na tried to manage in order to maintain these three
agricultura como a mão-de-obra dos moradores forms of labour force in a acting apparently
terminou por retardar a formação de um without conflicts, but the surviving slavery in
mercado de mão-de-obra assalariada, mas the agriculture as well as the ‘moradores’ brake
diante da possibilidade que a ferrovia abriu the organization of a free waged labour market,
para esse mercado, revelou-se a inconsequente which reveal, on the other hand, the impossibility
manutenção da mão-de-obra escravizada por of maintenance of the slave force due to its high
seu encarecimento. costs.
Palavras Chave: Escravidão; Moradores; Keywords: Slavery; ‘Moradores’; Waged Work.
Trabalhador Assalariado.

130 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
REFLEXÕES SOBRE RETRATOS
DE MANUEL QUERINO1

Sabrina Gledhill2

Na década de 1970, o historiador e educador norte-americano E. Bradford


Burns publicou um ensaio bibliográfico intitulado “Manuel Querino’s Intepretation
of the African Contribution to Brazil” (1974). Pela primeira vez numa publicação de
língua inglesa, Burns traça a trajetória de Manuel Raimundo Querino (1851-1923)
e destaca seu pioneirismo em reconhecer a contribuição do africano à civilização
brasileira, sendo o primeiro negro a fornecer sua perspectiva sobre a História do
Brasil: “Apresentou suas conclusões num clima de opinião que era, na melhor das
hipóteses, indiferente, e na pior, preconceituoso e até hostil”3.
A História – representada por sua musa, Clio – deve muito a Querino, segundo
Burns: “Ele preservou uma quantidade considerável de dados sobre a arte, os artistas
e os artesãos da Bahia. Ninguém pode pesquisar qualquer um desses assuntos sem
consultar os seus trabalhos” (p. 83). O enfoque desse ensaio é o trabalho de Querino
intitulado O colono preto como fator da civilização brasileira, um trecho do qual Burns
traduz no final de seu artigo. Segundo Burns, “Uma das maiores contribuições de
Querino à historiografia nacional foi sua insistência que a História do Brasil levasse
em consideração suas raízes africanas e a presença e influência do negro”4.
Burns afirma que, na época em que o historiador norte-americano escrevia o seu
ensaio, Querino e seu trabalho eram pouco conhecidos no Brasil. “De vez em quando,
um pesquisador ou outro, como Artur Ramos, lhe presta homenagens. Mesmo assim,
é quase desconhecido fora de sua terra natal, a Bahia, e completamente desconhecido
fora do Brasil, apesar de suas contribuições consideráveis à historiografia brasileira
e afro-americana (definida aqui no seu sentido hemisférico)”5.
Para ilustrar que Querino não foi sempre um ilustre desconhecido, Burns observa
que, mesmo que tenha falecido “na mesma pobreza em que nasceu” em 1923, a
Bahia lamentou a morte do pesquisador e militante e que, em 1928, seu retrato
passou a integrar a galeria de baianos ilustres do Instituto Geográfico e Histórico
da Bahia (IGHB).
Naquele ano, no dia 13 de maio, a Casa da Bahia realizou uma sessão magna,
quando “foi colocada na galeria de honra o retrato do reputado rebuscador de
tradições”, ato acompanhado por palavras proferidas pelo Consócio Antonio Viana,

1
Gostaria de agradecer as valiosas contribuições de Cláudio Pereira, Flávio Gomes, Jaime
Nascimento, Jeferson Bacelar e Luiz Freire.
2
Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade da Califórnia de Los Angeles – UCLA.
Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade
Federal da Bahia – CEAO/UFBA. E-Mail: <sabrina.gledhill@gmail.com>.
3
BURNS, E. Bradford. “Manuel Querino’s Interpretation of the African Contribution to Brazil”. The
Journal of Negro History, vol. LIX, n. 1, jan. 1974, p. 82.
4
BURNS, “Manuel Querino’s …”, p. 83.
5
BURNS, “Manuel Querino’s …”, p. 84.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 131
no lugar do “probo escritor e jornalista José Teixeira Barros”6. Nas palavras do
consócio, Manuel Raimundo Querino “Há de permanecer admirado na memória dos
pósteros, íntegro pela honestidade com que soube investigar, exemplar na exatidão
do dever, inexcedível na modéstia, que mais relevo deu ao seu valor, de que esta
homenagem, de agora, é sereno julgamento”7.
Segundo o secretário perpétuo do IGHB, Bernardino de Souza, num ofício
reproduzido na biografia de Querino da autoria de Gonçalo de Athayde Pereira,
seu retrato foi “inaugurado juntamente com o do sábio brasileiro Nina Rodrigues,
na Galeria dos nossos homens ilustres”8. Para deixar clara a estima em que Querino
era mantida por seus contemporâneos e colegas, Bernardino observa: “Bem sabe
que foram eles, até agora na Bahia, os dois maiores estudiosos da raça africana.
Recebo constantemente do Rio, de S. Paulo e de outros Estados do Brasil, pedidos
de informação a respeito dos seus trabalhos”9. Entretanto, de acordo com Pedro
Calmon, houve uma diferença significativa entre os dois estudiosos:
Curioso é notar que, sendo africanista, [Nina Rodrigues]
não foi africanófilo. Ao contrário, polvilhou de pessimismo,
marginou de comentários sóbrios, os seus ensaios, não
querendo perpetrar a política de lisonjear o elemento
étnico que estudava, nem ter a originalidade de o sobrepor
às outras influências sociais. Caberia a Manuel Querino
insistir, não só na defesa, porém na reivindicação espiritual
do negro, como fator de progresso; ele próprio, um desses
esplendidos artistas pretos que dissipam, com o seu caso
pessoal, os preconceitos correntes sobre a inferioridade da
raça.10
Em seu prefácio à coletânea de obras de Querino intitulada Costumes africanos
no Brasil, Artur Ramos opina que, “inaugurando o seu retrato juntamente com o
do grande mestre Nina Rodrigues, a Casa da Bahia prestou-lhe uma homenagem à
altura dos seus méritos” e cita as palavras de Bernardino de Souza, transcritas acima11.
Jorge Calmon, num ensaio publicado pela primeira vez em 1980, intitulado
“Manuel Querino, O Jornalista e o Político”12 e relançado no livreto O Vereador
Manuel Querino em 1995, utiliza esse mesmo retrato para dar ao leitor uma noção
do caráter do retratado:
6
VIANNA, Antônio. “Manoel Querino”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n.
54, 1928, p. 305-316. Segundo Bernardino de Souza: “Na solenidade em que inauguramos o
seu retrato, falou o confrade Antonio Viana, por ter se escusado irremovívelmente nosso grande
Teixeira de Barros, verdadeiro abencerragem solitário, que não sabe quanto o venero e estimo pelo
seu muito valor”. PEREIRA, Gonçalo de Athayde. Prof. Manuel Querino, sua vida e suas obras.
Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1932, p. 34.
7
VIANNA, “Manoel Querino”, p. 316.
8
PEREIRA, Prof. Manuel Querino..., p. 34.
9
PEREIRA, Prof. Manuel Querino..., p. 34.
10
CALMON, Pedro. História da literatura bahiana. 2. ed. São Paulo: Livraria José Olympio Editora,
1949, p. 154.
11
QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Prefácio e notas de Artur Ramos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1938, p. 12.
12
CALMON, Jorge. “Manuel Querino, o jornalista e o político”. Ensaios/ Pesquisas, Salvador, UFBA/
CEAO, n. 3, mai. 1980.

132 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Agora, vejamos, também rapidamente, que homem era ele,
sua aparência, sua maneira de ser.
Seu retrato conserva-se no Instituto Histórico da Bahia. Foi,
aliás, colocado ali, na galeria de honra, cinco anos depois
da morte, em reconhecimento do que ele tinha feito pela
cultura e pela instituição. Esse retrato nos mostra um homem
de fisionomia serena e afirmativa, o rosto descarnado e
bem composto, no olhar firme e reflexivo transparecendo
a inteligência e a permanente curiosidade.
A impressão que nos dá o retrato confere com o depoimento
dos que conhecem Manuel Querino mais de perto.13
O retrato de Querino que ilustra essa edição triplamente comemorativa14 conforma
perfeitamente com a caracterização acima – “fisionomia serena e afirmativa”, “rosto
descarnado e bem composto” e “olhar firme e reflexivo” – levando o observador à
conclusão que se trata da imagem em questão (ver Fig. 1).

Fig. 1 – Manuel Raymundo Querino.


Fonte: Calmon, 1995.

Segundo Trachtenberg, desde os primórdios da fotografia, nos tempos dos


daguerreótipos:
O olhar era primordial, e o que fazer com os olhos, o
problema principal. [...] Os retratados eram encorajados e
persuadidos a usar sua força de vontade para conseguir a
13
CALMON, Jorge. O vereador Manuel Querino. Salvador: Câmara Municipal de Salvador, 1995, p.
20.
14
Do 446º aniversário da fundação de Salvador, do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares e
dos 60 anos de jornalismo de Jorge Calmon. CALMON, O vereador Manuel…, colofão.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 133
expressão desejada – enfim, um papel e uma máscara que
estivesse de acordo com sua auto-imagem.[...] O termo
“expressão” começou a representar o objetivo principal do
retrato – um olhar animado, inteligente, refletindo o caráter
interior. A verdadeira arte do retrato resumia-se em capturar
uma essência interna, uma “expressão” de “caráter”.15
Os profissionais do ramo argumentavam que fixar a imagem do sujeito num retrato
seria o equivalente de fixar o caráter do retratado. Os fotógrafos adotaram o conceito
que a aparência externa indivíduo era um reflexo de seu caráter e estabeleceram
um “repertório de poses expressivas”16. Por exemplo, deveria ter uma determinada
pose para advogados e outras para religiosos e oradores. Os poetas deveriam estar
sentados numa mesa. “Na verdade, as poses convencionais abordavam categorias
mais sociais do que morais, identificando o caráter [do retratado] com o seu papel”17.
Num ensaio sobre as fotografias de escravos brasileiros tiradas no século XIX
por Christiano Jr., Manuela Carneiro da Cunha faz a seguinte observação:
Num retrato, pode-se ser visto e pode-se dar a ver,
alternativas que estão francamente ligadas à relação
do retratado com o retratante. Quem encomenda uma
fotografia mostra-se, dá-se a conhecer, esparrama-se pelo
papel, a si e a seus atributos e propriedades, como gostaria
de ser visto, como se vê a si mesmo no espelho. É o sujeito
do retrato. [...] o escravo é visto, não se dá a ver. É visto
sob formas que o despersonalizam de duas maneiras,
mostrando-o seja como um tipo, seja como uma função.18
As poucas fotografias que temos de Manuel Querino (sabemos de apenas três)
sempre mostram-no com uma expressão grave e uma pose séria ou até altiva (ver
Figs. 2 e 3). Diferente de Machado de Assis, por exemplo, Querino nada fez para
“branquear” sua imagem. Pelo contrário, fez questão de mostrar que ele e muitos
ilustres brasileiros eram “homens de cor preta”. Por exemplo, as pranchas que
ilustram a primeira edição de Artistas Bahianos contem vários retratos de artistas
brancos, negros e pardos19. A segunda edição de contem apenas dois, ambos de
homens negros – uma gravura do autor (Fig. 3) e um desenho retratando o poeta,
historiador e militar Ladislau da Silva Titára (1801-1861), autor da letra do Hino
2 de Julho quando alferes do Corpo de Estado-Maior do Exército e veterano da
Independência. Titára aparece fardado, ostentando quatro medalhas no peito,
encimando a medalhão da Ordem da Rosa20.
15
TRACHTENBERG, Alan. Reading american photographs: images as History – Mathew Brady to
Walker Evans. New York: Hill and Wang, 1989, p. 26-27.
16
TRACHTENBERG, Reading American…, p. 28.
17
TRACHTENBERG, Reading American…, p. 28.
18
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Olhar Escravo, Ser Olhado”, In: AZEVEDO, Paulo Cesar de, e
LISSOVSKY, Mauricio (orgs.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São
Paulo: Ex Libris, 1988, p. xxiii.
19
QUERINO, Manuel. Artistas Bahianos (indicações biographicas). Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1909.
20
QUERINO, Manuel. Artistas Bahianos (indicações biographicas). 2. ed. melhorada e cuidadosamente
revista. Salvador: Officinas da Empreza “A BAHIA”, 1911.

134 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Fig. 2 – Manuel R. Querino.
Fonte: Querino, 1911.

Fig. 3 – Prof. Manoel Raymundo Querino.


Fonte: Renascença, 1923.

Outro afrobrasileiro que utilizava essa tática foi Francisco Dias Coelho, o “coronel
negro de Chapada Diamantina”. Segundo Moiseis de Oliveira Sampaio:
Nas fotografias, as imagens apresentadas eram diferenciadas
a depender da camada social à qual eram dirigidas. Para
os mais pobres, eram distribuídas fotografias envergando
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 135
a farda da Guarda Nacional, assentado na cadeira que
se assemelhava a um trono, com o semblante tranqüilo
e imponente.[...] Para a elite, a fotografia era outra. Ele
aparece com um terno, aparentemente bem ajustado
com uma gravata alinhada, também demonstrando
tranqüilidade com um semblante mais grave e solene,
mas, em nada lembra a fotografia da farda, exceto o
personagem fotografado. Para o destinatário desta foto,
a imagem transmitia que o personagem retratado era um
dos seus, também culto e rico, embora a fotografia não
negasse a sua cor.21
Nisto, o Coronel Dias Coelho pode também ser comparado com Booker T.
Washington, que sempre dirigia as incontáveis imagens de sua pessoa (retratos de
ateliê, imagens foto-jornalísticas, gravuras etc.) para o consumo de dois públicos –
os brancos e os negros. Segundo Bieze, Washington conhecia muito bem o gosto
vitoriano dos filantropos brancos com os quais lidava e, para eles, procurava projetar
uma imagem de um intelectual de sensibilidade e bom gosto; para o público negro,
projetava um ar de poder e autoridade22.
Querino utilizou imagens de negros para ilustrar seus trabalhos, com o intuito
de mostrar uma imagem positiva do africano e seus descendentes e fazer frente
a imagens negativas produzidas por Lindemann, Christiano Júnior e outros e
mostrar a contribuição do “colono preto” com a cultura baiana23. De certo modo,
imagens de Querino também foram usadas e adotadas por dois públicos – os
intelectuais branco/mestiços de um lado e os negros e operários de outro. Em
1923, a Renascença – Revista Ilustrada publicou a fotografia em Figura 3 (uma
foto idêntica pode ser vista até hoje no salão nobre da Sociedade Protetora dos
Desvalidos) com a seguinte nota:
PROF. MANOEL RAYMUNDO QUERINO – Pela passagem
do 30o dia do falecimento deste distinto artista, que tanto
soube honrar a sua classe, os seus bons amigos realizaram
uma homenagem póstuma no “Centro Operário”, havendo
vários oradores e grande assistência. Por essa ocasião
foi inaugurado, em um dos daqueles salões o retrato do
homenageado em rica moldura, e distribuída elegante
polyanthéa com o busto do ilustre morto.
O prof. Manoel Raymundo Querino, além de ser um
sincero caráter era um homem de valor nas letras baianas
21
SAMPAIO, Moiseis de Oliveira. O coronel negro: coronelismo e poder no norte da Chapada
Diamantina. Dissertação (Mestrado em História Regional e Local). Universidade do Estado da
Bahia. Salvador, 2009, p. 78.
22
BIEZE, Michael. Booker T. Washington and the Art of Self-Representation. Nova York: Peter Lang,
2008.
23
GLEDHILL, Sabrina. “Representações e Respostas: Táticas no Combate ao Imaginário Racialista
no Brasil e nos Estados Unidos na Virada do Século XIX.” Sankofa - Revista de História da África e
de Estudos da Diáspora Africana, vol. IV, n. 7, jul. 2011, p. 44-72; VASCONCELLOS, Christianne
Silva. “O Uso de Fotografias de Africanos no Estudo Etnográfico de Manuel Quirino”. Sankofa
-Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, n. 4, dez. 2009, p. 88-111.

136 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
e por isto ocupava na sociedade lugar de apreço. A classe
operária, que sempre foi parte integrante do progresso
mundial, tem na memória do falecido um escudo de
quanto merecem na organização da sociedade.
“Renascença” despetala no túmulo do saudoso conterrâneo
mãos cheias de flores.24

Fica evidente, através de uma análise deste retrato e daquele que foi
incluso na galeria do IGHB, que as imagens foram tiradas na mesma época
– parcialmente calvo, com cabelos e bigode brancos e sobrancelhas ainda
escuras – provavelmente no ateliê que pertencera a Lindemann, na época
dirigido por um fotógrafo mulato, Diomedes Gramacho.25 Mesmo assim,
cada uma tem um aspecto ligeiramente diferente. O retrato do IGHB (Fig. 1)
mostra apenas o busto, enquanto a imagem publicada na revista Renascença
(Fig. 3) retrata Querino com os braços cruzados e a cabeça levemente
inclinada, numa pose que reflete poder e autoridade. Em nada lembra a
caracterização do pesquisador, líder operário e jornalista militante como um
“humilde professor negro” por Artur Ramos e Pinto de Aguiar26. Também
foi publicado no jornal A Tarde para ilustrar uma nota sobre o centenário
de Querino em 21 de junho de 1951. Não é a toa que foi justamente essa
imagem que foi escolhida para ilustrar a capa do livro Manuel Querino, Seus
Artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, organizado
por Jaime Nascimento e Hugo Gama27.
O retrato de Querino da autoria de Catarina Argolo (Fig. 4), encomendada
em 2000 pelo Liceu de Artes e Ofícios, do qual foi aluno fundador e professor,
e recebeu medalhas de bronze, prata e ouro28, inspirou-se na imagem do
IGHB (Fig. 1), mas a cor do retratado é ligeiramente escurecida, seu cabelo
mais grisalho e sua expressão, mais altiva. Outro retrato, da autoria de Graça
Ramos (Fig. 5), produzida em 2005, é claramente inspirada na imagem que
ilustra Artistas Bahianos (Fig. 2) e o sujeito tem um aspecto humilde, quase
triste. Este quadro encontra-se no acervo da Escola de Belas Artes, onde

24
Segundo Bacelar, citando o Diário da Bahia, Querino recebeu “flores naturais” do Movimento
Negro em 1933, quando foram colocadas no seu túmulo na Igreja de N.S. do Rosário dos Homens
Pretos de Salvador nas comemorações do 13 de maio numa “verdadeira romaria aos túmulos
dos profs. Maxwel Porphirio, Ascendino dos Anjos e Manuel Querino”. BACELAR, Jeferson. A
hierarquia das raças. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p. 148.
25
Por essa informação, agradeço a Prof. Dr. Cláudio Luiz Pereira e Prof. Jaime Nascimento.
26
Respectivamente, em QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Prefácio e notas de Artur
Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 12; e QUERINO, Manuel. A raça africana e
os seus costumes. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955, p. 11. De fato, o prefácio de Pinto de
Aguiar na edição de 1955 representa uma síntese do texto de Artur Ramos publicado na edição de
1938.
27
NASCIMENTO, Jaime & GAMA, Hugo (orgs.). Manuel Querino, seus artigos na Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, 2009.
28
QUERINO, Manuel. Elementos de desenho geométrico. Primeira parte. Bahia: Papelaria e
Typographia Baptista Costa, 1911.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 137
Querino também foi aluno fundador, diplomou-se como artista e professor
de desenho geométrico, recebeu duas medalhas de prata e quase se formou
em arquitetura29.

Fig. 4 – Retrato de Manuel Raimundo Querino. Catarina Argolo, 2000.


Ilustração do painel exposto na Biblioteca Manuel Querino, do IPAC,
no Centro Histórico de Salvador. em 2009.
Foto: Sabrina Gledhill.

Fig. 5 – Retrato de Manuel Raimundo Querino.


Graça Ramos, 2005; acrílica sobre tela; 90 cm x 71 cm. 2005.
Acervo da Escola de Belas Artes-UFBA. Foto: Luiz Alberto Ribeiro Freire.

A imagem escolhida para a capa do livro Manuel Querino Entre Letras


e Lutas, de Maria das Graças Andrade Leal, é a mesma que ilustrou o livro
29
Segundo o verbete autobiográfico em Artistas Bahianos, Querino “...não prestou exame do 3o ano
por falta de quem lecionasse a cadeira de resistência dos materiais e estabilidade das construções.
Devido a essa circunstância não recebeu o diploma de arquiteto. Freqüentou ainda as aulas de
anatomia das formas do corpo humano, estética e história das artes, cópia de gesso e pintura a
óleo”. QUERINO, Manuel. Artistas Bahianos. 2. ed. melhorada e cuidadosamente revista. Salvador:
Officinas da Empreza “A BAHIA”, 1911, p. 147.

138 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
póstumo de Querino, A arte culinária na Bahia. Nesse retrato e aquele usado para
ilustrar Artistas Bahianos, a pose e o olhar do retratado são bem diferentes dos
retratos do IGHB e do Centro Operário e Sociedade Protetora dos Desvalidos.
Tirada quase 10 anos antes, a fotografia usada para criar a gravura encontrada
numa prancha de Artistas Bahianos (Fig. 2) mostra um Querino grisalho, já com
uma calvície aguda, olhando para sua esquerda, trajando um terno risco de giz. O
retrato utilizado por Leal e os editores de A arte culinária é claramente inspirado
nessa foto.
Segundo Trachtenberg, na época do daguerreótipo, os fotógrafos eram
aconselhados a fazer com que seus sujeitos olhassem “vagamente” para um objeto
distante para evitar um olhar vazio ou uma expressão carrancuda30. Pode ser que
essa estética ainda predominava quando a primeira foto de Querino foi produzida.
Possivelmente seja devido ao estado ainda primitivo da arte da fotografia na primeira
década do século XX na Bahia. De qualquer forma, em vez de encarar o espectador,
como faz nas fotografias mais recentes, Querino fixa um objeto distante – talvez um
horizonte a ser ampliado – despojando sua expressão da altivez e autoridade de um
olhar direto. Sua expressão é mais de um sonhador do que de um líder e militante
(no caso do retrato do Centro Operário/SPD – Fig. 3) ou intelectual (no caso do
retrato do IGHB – Fig 1).
As múltiplas imagens de negros escravos ou libertos, exercendo profissões
humildes, produzidas no século XIX por fotógrafos como Lindemann e Christano
Júnior ajudaram a criar a imagem do negro da época como miserável e marginalizado.
As expressões dos sujeitos são vagas ou sofridas. Vestem roupas simples ou em estilo
africano. Para os brancos, essa imagem da Bahia era vista como uma afronta porque,
segundo o autor anônimo da nota intitulada “Propaganda Indigna”, publicada na
Bahia Ilustrada em 1921, vinha de “invejosos da grandeza da Bahia que, procurando
amesquinhá-la, a pintam com as cores mais negras, à vista de quem verdadeiramente
a não conhece”. O autor conclui que as imagens de negros e caboclos produzidas
pela Casa Lindemann “pretendem mostrar um profundo retrocesso para a Bahia,
quando a verdade é que esse glorioso Estado é hoje um dos mais belos e populosos de
todo o país” – com “typos fortes, morenos, belos ou brancos ou mesmo trigueiros”31.
De outro lado, os próprios negros que conseguiram profissões intelectuais e
científicas – e não eram poucos, como o próprio Querino mostra em “Os homens de
cor preta na História”32 – procuravam os ateliês dos fotógrafos para produzir imagens
que refletiam sua “condição de pessoa”33. O uso de cartes-de-visite, seguidos por
cartes-cabinet, no século XIX popularizou o costume de encomendar retratos de
indivíduos e famílias, inclusive para marcar ritos de passagem como nascimentos,
formaturas e enterros. Estas imagens foram produzidas aos milhões em estúdios
fotográficos no mundo inteiro.
No meio dos Candomblés – e Manuel Querino não só pesquisou a religião mas

30
TRACHTENBERG, Reading American Photographs, p. 26.
31
“Propaganda Indigna”. Bahia Ilustrada, ano V, n. 39, jun. 1921.
32
QUERINO, Manuel. “Os homens de côr preta na Historia”. Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, Salvador, n. 48, 1923, p. 353-363.
33
WALLIS, Brian. “Black Bodies, White Science: Louis Agassiz’s Slave Daguerreotypes”. American
Art, vol. 9, n. 2, summer 1995, p. 39-61, p. 55.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 139
foi ogã do terreiro do Gantois34 – como Lisa Earl Castillo observa, retratos são
utilizados como lembranças dos ancestrais, que representam uma parte importante
da sua cosmologia. “A forte valorização de retratos antigos em Candomblé pode
ser entendida como resultante do elo físico com a presença material do falecido”35.
Através dessas imagens, podemos olhar nos olhos daqueles que viveram outros
tempos. O próprio Querino incluiu retratos de duas ialorixás do Gantois nas pranchas
que ilustram A raça africana36.
Por todos esses motivos – o número escasso de fotografias de Manuel Querino, a
minoria esmagadora de imagens de intelectuais negros do início do século XX, e o
valor desses retratos como “ícones de memória” dos ancestrais – é triste e lamentável
verificar que, no inventário do acervo do IGHB realizado na década de 7037, o
famoso retrato acompanhado pela palestra de Viana e citado por Burns e Calmon
já não consta mais. Foi removido da galeria de honra e seu destino é ignorado.
Hoje, dependemos de reproduções em livros para ver com nossos próprios olhos
como era Querino e como foi homenageado por seus confrades e companheiros.

RESUMO ABSTRACT
Em 13 de maio de 1928, o Instituto Geográfico On May 13, 1928, the Geographic and Historic
e Histórico da Bahia prestou uma homenagem Institute of Bahia paid tribute to a founding
ao sócio fundador Manuel Querino cinco meses member, Manuel Querino, five months after
após sua morte – colocou seu retrato na Galeria his death – placing his portrait in its Gallery of
de Ilustres da Casa da Bahia. Este artigo analisa as Illustrious Members. This paper analyzes the
imagens produzidas de Manuel Querino em vida e images produced of Manuel Querino in life and
depois da morte, e identifica duas vertentes no seu after death, and identifies two ways of using them
uso para reforçar visões diferentes do intelectual to reinforce different views of the Afro-Bahian
afro-baiano – como militante altivo e “humilde intellectual – as a proud activist and a “lowly
professor negro”. black teacher”.
Palavras Chave: Manuel Querino; Retrato; Keywords: Manuel Querino; Portrait; Imagery.
Iconografia.

34
LIMA, Vivaldo da Costa. “Sobre Manuel Querino”. In: __________. A anatomia do acarajé e outros
escritos. Salvador: Corrupio, 2010, p. 94.
35
EARL CASTILLO, Lisa. “Icons of Memory: Photography and its Uses in Bahian Candomblé”.
Stockholm Review of Latin American Studies, n. 4, mar. 2009, p. 18.
36
QUERINO, Manuel. A raça africana e os seus costumes: memória apresentada ao 5º Congresso de
Geographia. Bahia: Imprensa Official do Estado. 1917.
37
INVENTÁRIO. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador, vol. 85, 1972-1975,
p. 183-283.
140 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
NOSSAS PERSISTÊNCIAS HISTÓRICAS:
CAMINHOS DAS PEDAGOGIAS
DO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL1
Ivan Costa Lima2
Introdução

A África e a cultura africana funcionam como ponto de


partida, como eixo norteador de uma identidade cultural
e política. Identidade em que seres comuns seguem
reivindicando o direito de ser comuns, criando quilombos,
associações, irmandades, terreiros e movimentos negros.
Intelectuais de todos os matizes e de todas as artes, da
engenharia à filosofia. Observo-os como arte de mim
mesmo e recolho do real as experiências. Reflito sobre elas
e as estampo em metáfora da narrativa de um contador de
casos, de histórias, de fatos, do fazer lembrar como traço
da nossa existência e faz nossas persistências.3
Este artigo, parte integrante da tese de doutorado, para mim se caracteriza, em
parte, como aquilo que Cunha Júnior escreve acima, uma narrativa da persistência,
da história de luta social do Movimento Negro nacional contemporâneo; e da reação
por meio de proposições a um padrão cultural ainda persistente no estado brasileiro.
Como alguém já escreveu o presente em curso, devedor de um passado tantas vezes
estigmatizado, precisa ser historiado, caso os intelectuais críticos pretendam revelar
as disjunções raciais permanentes na sociedade brasileira, mas, sobretudo, o sentido
dado aos trajetos em que se produziram pedagogias de reflexão de base racial.
Considero que o processo cuidadosamente cerzido por esta pesquisa pode
devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental,
mediante suas próprias palavras, gestos, escritos, imagens, mediados por uma
maneira minha de refletir sobre este turbilhão dos ativistas do Movimento Negro
no Brasil, como bem observa Pereira:
Não há, porém, mais educativo que o engajamento político.
O ter que fazer para haver. Assumir o peso esmagador da
“história nas próprias mãos”. Um longo aprendizado, um
turbilhão, um processo avassalador, conquistas (os erros
e desacertos são apenas lições!) íntimas e coletivas... Mas
veio voltando à inquietação, a insatisfação. Questionar os
1
Financiamento: CNPq; ANPED/SECAD-MEC; Ação Educativa; Fundação Ford.
2
Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Professor Adjunto da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário de Marabá. Membro do
Núcleo de Africanidades Cearenses (NACE/UFC) e do Núcleo Brasileiro Latino Americano e
Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais (N’BLAC – UFC/Cariri).
Fundador e membro do Núcleo de Estudos Negros (NEN), organização do Movimento Negro de
Florianópolis/SC. E-Mail: <dofonosc@gmail.com>.
3
CUNHA JÚNIOR, Henrique. “Africanidade, afrodescendência e educação”. Educação em Debate,
Fortaleza, ano 23, v. 2, n. 42, 2001, p. 7.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 141
êxitos, o que (e o como) foi construído, para poder enxergar
adiante. Emergir é preciso.4
Fazer emergir, eis o significado do que procurei discutir, ao trazer para a História
da Educação as proposições pedagógicas pensadas e exercitadas em seus tempos e
lugares, que, no entanto, apesar da distância se entrecruzam e se interpenetram como
uma tentativa do Movimento Negro conceber uma resposta ao sistema educacional,
e acima de tudo a sociedade brasileira quando o tema é a população negra.
Desta forma essas investigações trazem à tona as trajetórias históricas das
pedagogias desenvolvidas por diferentes pessoas e organizações negras no Brasil,
que vai do final da década de 70, do século XX, ao início do XXI. Primeiramente, o
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB) e a Pedagogia Interétnica (PI), em Salvador
(BA), apresentada como dissertação de mestrado, no Programa de Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2004. A segunda, a Pedagogia
Multirracial desenvolvida por Maria José Lopes da Silva e um grupo de educadoras
no Rio de Janeiro, na década de 80. Em seguida, o desdobramento e novas
abordagens desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Negros (NEN) de Florianópolis,
com a Pedagogia Multirracial e Popular, no início de 2000, tese defendida em 2009.
O texto estrutura-se na reconstituição das diferentes trajetórias do MN baiano,
carioca e catarinense, e como esta mobilização produz diferentes interseções,
na educação e sociedade brasileira. Para isso tem-se como base entrevistas
semiestruturadas junto aos integrantes do MN, e da análise dos documentos
produzidos sobre os temas abordados. A pesquisa teve como referencial teórico-
metodológico uma perspectiva sócio histórica5, considerando os sujeitos, suas origens
e as relações sociais, que se estabeleceram em cada uma de suas trajetórias. Esta
visão histórica foi combinada, com o uso da História Oral temática (MEIHY, 2002)6,
como possibilidade de aprofundar os significados do universo cultural e político dos
integrantes deste movimento e seus reflexos nas políticas educacionais no Brasil.
É preciso pensar, ainda, que as lembranças são fragmentos. À medida que ocorrem
na vida das pessoas os fatos são desconexos e sem sentido. Quando elas dedicam-
se aos “trabalhos da memória”, lembram, reelaboram e dão um sentido aos fatos.
A construção de uma narrativa é histórica e culturalmente constituída. Exige uma
lógica, um sentido e, consequentemente, leva o depoente a pensar, reelaborar e
reorganizar sua fala, e ao mesmo tempo seus sentimentos, buscando dar a isso um
sentido no presente. Sobre estas observações Couto escreve:
São elaborações da memória tratando do passado no
presente, sem deixar de lado elementos de projeções e
expectativas do futuro no presente. Quando um sujeito
recorda fatos de seu passado e interpreta-os no presente,
essa interpretação não diz respeito somente ao que
aconteceu, mas também à maneira como ele gostaria que
4
PEREIRA, Amauri Mendes. Cultura de consciência negra: pensando a construção da identidade
nacional da democracia no Brasil. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000, p. 3.
5
FENELON, Dea. “Pesquisa em História: perspectivas e abordagens”. In: FAZENDA, Ivani (org.).
Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2000.
6
MEIHY, José C. Sebe Bom. Manual de história oral. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

142 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
tivesse sido, e isso tem um significado profundo em sua vida
e em sua percepção das possibilidades existentes no futuro. 7
Nessa perspectiva busco saber que conhecimentos, informações e dados,
acumulados por militantes negros e negras, durante sua trajetória de vida poderiam
contribuir para a reconstrução do patrimônio cultural negro brasileiro. A partir dessa
questão surgirão outras que irão aparecendo no decorrer do desenvolvimento da
pesquisa.
Tem-se que no Brasil, a memória não é valorizada como um modo significativo
de se formar referência que orientem escolhas coletivas. A sociedade capitalista
destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa8.
Pensar a questão da memória é pensar as pessoas, suas lutas, militâncias, resistências,
manifestações culturais, mas vivemos em uma sociedade histórica que não sabe
reconhecer e julgar a sua experiência coletiva.
Trabalhar a memória de militantes negros e negras significa desvendar caminhos,
trajetos e potencialidades de uma parcela influente na história e cultura do país,
é contribuir para outra interpretação do que seja a cultura de matriz africana. A
memória é vida, é força, é conhecimento armazenado na lembrança, que ao emergir
para fora, desvela histórias desconhecidas, no entanto, riquíssimas para se entender
a própria vida e o contexto histórico cultural em que se está inserido. Nesse sentido
o objetivo da memória é fazer emergir sentidos de vida que não foram registrados
e também dizer aquilo que está silenciado. Nessa perspectiva, busco desvelar a
memória através de relatos orais de militantes negros e negras, partindo da ideia de
que parte da trajetória de vida desses, contribui para a recuperação de sua história
individual como também a recuperação da história coletiva do seu grupo racial.
Significa ainda que, para além da questão da lembrança como uma atitude
individual, outro aspecto muito significativo da reflexão sobre memória para que
Couto9 chama a atenção é a sua dimensão social. Os sujeitos, ao recordarem,
lembram individualmente, mas suas lembranças estão carregadas de experiências
sociais compartilhadas por outros sujeitos, uma vez que a vivencia, ainda que
individual é, sobretudo, uma experiência social.
O universo de pesquisa procurou evidenciar no campo cultural, religioso, social
e político, a ação do Movimento Negro, e especialmente os que formularam e
desenvolveram as propostas pedagógicas na tentativa de apreender os diversos
olhares imbricados na construção de um discurso e de uma prática pedagógica
antirracista. Assim como, atentar para o contexto social e político que vai do
surgimento destes grupos, os processos de intervenção de suas propostas no espaço
escolar, levando em consideração suas possíveis imbricações no âmbito de outros
territórios dentro de cada cidade, com isso localizar os momentos mais significativos
na trajetória de elaboração e implementação destas pedagogias formuladas em
tempos e espaços específicos.
7
COUTO, Ana M. Silva. “Memória e consciência: narrativas individuais e experiências sociais
(trabalhadores urbanos – costumes, práticas e valores)”. Cadernos do CEOM, Chapecó, Argos, n.
17, 2003, p. 418.
8
FRENTRESS, James; WICKHAM, Chis. Memória social: novas perspectivas sobre o passado.
Tradução de Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1992.
9
COUTO, “Memória e consciência...”, p. 418.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 143
A Pedagogia Interétnica (PI), uma ação de combate ao racismo
Para alcançar os objetivos traçados no mestrado realizei entrevistas na cidade de
Salvador, em janeiro e setembro de 2003, tendo como interlocutores: Manoel de
Almeida Cruz, Geruza Bispo dos Santos, Lino Almeida, Ana Célia da Silva, Jônatas
da Silva e Raimunda Rodrigues.
Dentre esses, cabe destacar Manoel de Almeida Cruz, um dos fundadores do
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB), e principal divulgador da PI, falecido em
junho de 2004. Conforme seu depoimento, o intelectual Manoel de Almeida nasceu
em 2 de abril de 1950, em um bairro proletário de Salvador, Liberdade, filho de
um operário da construção civil e de uma empregada doméstica. Sua trajetória
no ensino formal foi irregular, levando-o a partir dos 14 anos de idade a tornar-se
autodidata. Em seguida, interessa-se pela sociologia, entrando em contato com
Guerreiro Ramos, proeminente sociólogo do ISEB (Instituto Sociológico de Estudos
Brasileiros), esse encontro, segundo seu depoimento “despertou do ponto de vista
intelectual a minha consciência negra no Brasil, aliado também a minha vivência de
negro baiano, o negro tem uma presença marcante e significativa [na Bahia], contudo
é um dos estados mais racistas da União”10. O reconhecido enquanto sociólogo se dá
a partir de 1985, com a regulamentação da profissão no Brasil, Manoel credencia-se
a obter esse título levando-se em consideração inúmeros artigos escritos sobre o tema
das relações raciais. Ao mesmo tempo, submete-se e é aprovado no mestrado em
sociologia na UFBA. Em sua trajetória de ativista vai esta a frente de diferentes ações
procurando investigar e agir no debate das relações raciais, chegando à constituição
de uma organização, o Núcleo Cultural Afrobrasileiro (NCAB).
O NCAB surgiu em 1º de agosto de 1974, segundo seus fundadores foi à
primeira organização do Movimento Negro na Bahia, numa perspectiva de ação
política, no questionamento da situação dos negros em Salvador, tendo em vista os
vários espaços de mobilização de seus vários membros. O espaço que propiciava
o desenvolvimento do debate de outra forma de ação política, num momento de
repressão, foi encontrado junto ao Centro Cultural Brasil – Alemanha, com apoio
na figura de seu diretor Roland Schaffner:
Em agosto de 1974, nós procuramos nesta época, era época
da ditadura, e o único espaço aberto aqui na Bahia que
nós tínhamos era justamente o Instituto Goethe, também
conhecido como Instituto Cultural Brasil-Alemanha.
Intelectuais progressistas afluíam para este ponto, e de
repente surgiu esta ideia de se criar uma instituição mútua
cultural para refletir sobre a cultura negra, o negro na
sociedade brasileira... Então me associei a Roberto Santos,
Manoelito dos Anjos, Atolenildo Ferreira de Santana, Jorge
Milton Conceição, e procuramos o diretor do Instituto
Cultural Brasil-Alemanha e ele cedeu provisoriamente
às instalações para que nós nos reuníssemos e aí a gente
começou a fazer uma série de reuniões e formalizamos

10
Entrevista concedida em setembro de 2003.

144 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
legalmente o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro.11
A perspectiva do NCAB, como organização de tipo novo, era uma releitura da
herança africana, diferenciando-se do que os setores hegemônicos da sociedade
baiana e da academia entendiam sobre a cultura afro-brasileira. Foi desta forma
que a imprensa local noticiou o seu surgimento:
Com o objetivo de estudar, pesquisar e difundir a cultura
afro-brasileira, de maneira menos acadêmica e sem vínculos
religiosos, um grupo de onze jovens acaba de criar o
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, com sede provisória no
Instituto Cultural Brasil-Alemanha. A curto prazo, pretende
a entidade implantar um curso de Yorubá – língua ainda
falada em alguns Terreiros de Candomblé da cidade. A
longo prazo, estudos do processo de integração do negro
na sociedade brasileira.12
Seus membros tinham grande preocupação em tematizar às relações raciais, a
partir da crítica da “democracia racial” e da naturalização do lugar do negro na
sociedade brasileira. Esta crítica era alicerçada não apenas pela luta cultural, mas pela
via do conhecimento científico e da trajetória de vida cada um dos seus membros,
como também “[...] em face de uma necessidade que nós tínhamos de formularmos
uma teoria que desse resposta a esse processo de alienação e de exclusão que o
negro vivenciava na estrutura educacional brasileira”13.
A construção da Pedagogia Interétnica se deu a partir dos acúmulos das ações
promovidas pelo NCAB, que nominava sua teoria como educação interétnica. A
mudança para pedagogia ocorreu pela percepção dos integrantes do NCAB, de que
falar em educação seria muito abrangente. Pedagogia significaria a possibilidade
de melhor sistematizar a proposta, a partir de métodos e técnicas como diferente
resposta da história e cultura dos afro-brasileiros para os sistemas de ensino. Destaca-
se uma pesquisa sobre o preconceito racial contra o negro desenvolvida na cidade de
Salvador, no ano de 1975, como base para a formulação de um sistema de educação
interétnica. Neste sentido, estes argumentos colocaram o debate educacional não
só como causa, mas, também, como resposta ao desafio do combate ao racismo:
[...] surgiu à ideia de uma intervenção no processo
educacional, a partir de nossos estudos e pesquisas
nós detectamos que o preconceito racial e o racismo
eram transmitidos pelo processo educacional, e só uma
intervenção sistemática poderia dar uma resposta mais
científica e positiva com relação a este fenômeno [...] veja
bem, a escola é um dos fatores, há a família, a própria
comunidade, os meios de comunicação social que integram
todo este complexo que formam fatores transmissores de
preconceito racial e estereótipos.14
11
Manoel de Almeida, entrevista concedida.
12
Diário de Notícias, 1º ago. 1974
13
Lino Almeida, entrevista concedida.
14
Manoel de Almeida, entrevista concedida.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 145
Em 1985, realizou-se o I Seminário de Pedagogia Interétnica, cujo programa
trouxe os objetivos da então chamada PI, que aglutinava a pesquisa do etnocentrismo
e a transmissão destes valores pelo processo educacional. A novidade era a
elaboração de maneira sucinta, da estrutura básica dos cincos pilares da PI, de
métodos recomendados de combate ao racismo, procedimentos metodológicos e
a concepção da necessidade de construção de um currículo baseado nos valores e
na cultura dos grupos étnicos dominados, assentado na questão da educação do
negro e na questão da educação do índio.
A partir destes processos de atuação do NCAB tem-se o lançamento do livro:
Alternativas para combater o racismo: um estudo sobre o preconceito racial e o
racismo, uma proposta de intervenção científica para eliminá-los, em 1989, escrito
e editado por Manoel de Almeida Cruz.
Esta obra sistematizou os referenciais teóricos da PI, e aglutinou o que já havia
sido desenvolvido nos seminários anteriores e na divulgação da proposta pedagógica
em vários encontros15 pelo Brasil. Aqui a PI amplia e desenvolve considerações tanto
sobre o negro quanto o índio, e apresenta como um de seus objetivos:
A pedagogia interétnica tem como objetivo fundamental o
estudo e a pesquisa do etnocentrismo, do preconceito racial
e do racismo transmitidos pelo processo de socialização ou
educacional (família, comunicação, escola, sociedade global
e meios de comunicação social), além de indicar medidas
educativas para combater os referidos fenômenos.16
Além disto, esta pedagogia propõe o uso de outras linguagens para discutir o
significado da discriminação racial,
[...] recomenda uma linguagem total (escola, teatro,
imprensa, rádio, história em quadrinhos, pôster, cine, TV,
vídeo, palestras) como um meio de mudança de atitudes
preconceituosas e discriminações raciais, propondo ainda
uma intervenção sistemática na área da educação formal,
a partir da elaboração de um currículo escolar baseado nos
valores dos grupos étnicos subalternos.17
15
Temos registrado, na década de 1980, as seguintes participações onde foi divulgada a PI: VI
Simpósio de Estudos e Pesquisa em Educação: UFBA/FACED: 18 a 22 de outubro de 1982; Encontro
Nacional Afro-Brasileiro, realizado pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 1982, e publicado no
Caderno de Estudos Afro-Asiáticos 8-9, 1983, Conjunto Cândido Mendes/RJ; II Encontro Nacional
sobre a Realidade do Negro na Educação, promovido pela Sociedade Recreativa Cultural Floresta
Aurora, Porto Alegre, 1985; Seminário “O Negro e a Educação”, promovido pelo Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, organizado pela
Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 1986. Resultou na publicação “Raça Negra e Educação”,
Cadernos de Pesquisa, n. 69, novembro de 1987; Seminário “Educação e Discriminação dos
Negros”, promovido pela Fundação de Assistência do Estudante e o Instituto de Recursos Humanos
João Pinheiro, 1987. A publicação foi organizada por Regina Lúcia Couto de Melo e Rita de Cássia
Freitas Coelho. Belo Horizonte, Instituto de Recursos Humanos João Pinheiro, 1988.
16
Cf. CRUZ, Manoel de Almeida. Alternativas para combater o racismo: um estudo sobre o preconceito
racial e o racismo - Uma proposta de intervenção científica para eliminá-los. Salvador: Edição do
Autor, 1989, p. 51.
17
CRUZ, Manoel de Almeida. idem, 1989, p. 51.

146 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
A estratégia apresentada, de disseminação da PI estava estruturada em dois
blocos: o primeiro busca conceituar os usos, os sentidos e os estudos realizados
até este período sobre as ideias de raça, preconceito, discriminação, etnia e cultura
– aqui a ideia é atualizar o debate destas categorias à luz das Ciências Sociais,
principalmente a Sociologia e a Antropologia; o segundo bloco busca apresentar,
sistematicamente, como se estrutura a PI, a partir da utilização de procedimentos e
métodos que assim se apresentam:
- Psicológico – estuda os complexos de inferioridade da pessoa negra, o
de superioridade da pessoa branca e o processo de auto rejeição do negro,
além de indicar medidas teóricas e práticas de caráter psicoterapêutico,
visando à mudança de atitudes preconceituosas contra o negro em nossa
sociedade.
- Histórico – investiga as raízes históricas do preconceito racial e os fatores
que levaram este ou aquele grupo étnico a se desenvolver mais do que
outro, além de propor uma revisão crítica da historiografia do negro
brasileiro.
- Sociológico – estuda a situação socioeconômica do negro em nossa
sociedade, investigando as causas histórico-sociológicas que determinaram
a sua marginalização na estrutura social estabelecida.
- Axiológico – discute a dominação a partir da imposição de valores
estéticos, filosóficos e religiosos de um povo sobre outro e, assim, fornece
subsídios para corrigir essas distorções provocadas pela dominação dos
valores ocidentais sobre os demais grupos étnicos do País e no Mundo.
- Antropobiológico – analisa as “teorias” pseudocientíficas da superioridade
racial, desmistificando-as de acordo com as pesquisas da Antropologia
atual.
No decorrer desta apresentação Cruz traz considerações acerca de cada um destes
métodos e procedimentos, situando o leitor nas concepções e nos debates que devem
ser travados para a consecução desta proposta pedagógica18. Até este momento, a
PI apresentada constrói seu arcabouço conceitual baseado em apropriação do que
as Ciências Sociais vêm produzindo. É a partir da apresentação da questão do índio
e do negro que a proposta situa a luta dos movimentos sociais, de leis e propostas
para a construção de um currículo interétnico.
Para dar conta destes conhecimentos vai propor como didática interétnica uma
postura de natureza crítica e emancipatória, tendo como metodologia o ensino/
pesquisa, de caráter participativo tendo como foco a transformação social. É
interessante observar que os conteúdos apontados são reivindicações há muito
tempo protagonizadas pelo movimento negro no Brasil, que notadamente apenas
no século XXI transformam-se em políticas públicas para os sistemas de ensino.
Por fim, posso caracterizar a PI como uma construção eminentemente sociológica,
que contribuiu na crítica da construção de raça como fator biológico. Ao se apropriar
do conceito de etnia, enfatiza-se seu uso por outros povos em conflitos étnicos,
conforme afirmava Manoel:
Primeiro, que a gente viu o seguinte, somos negros, somos
18
Devido ao limite deste artigo, ver este debate em: CRUZ, Alternativas..., p. 51-101.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 147
discriminados, mas ao lado do negro tem outros grupos
étnicos que também são discriminados, por exemplo, o
índio, o próprio cigano, então a nossa pedagogia não ficou
centrada somente na raça negra, não é uma pedagogia, como
prega Maulana Karenga lá nos Estados Unidos, afrocentrada
ou afrocentrista, a nossa pedagogia é interétnica, pode ser
aplicada em qualquer parte do mundo onde haja conflitos
entre etnias, quando digo etnias, envolve raça e cultura.19
Em meus estudos noto como maior preocupação o caráter de intervenção no
processo educativo, já que a PI se apresentou como resposta científica no combate
ao racismo dentro desses espaços, com isso pretendia-se intervir em todas as esferas
do processo educativo, do currículo até a formação de professor/a.
Foi esse caráter de intervenção, que levou a PI a buscar outros espaços educativos20
a fim de afirmar as suas bases teórico-metodológicas, numa conjuntura em que a
legislação educacional foi abrindo brechas para a cultura afro-brasileira21.
Pedagogia Multirracial se apresenta à Cidade Maravilhosa
Com a finalidade de melhor conhecer o campo de pesquisa realizei entrevistas
exploratórias na cidade do Rio de Janeiro, em julho de 2005, como tarefa inicial
para a primeira qualificação no doutorado.
Estive com pessoas ligadas a constituição do movimento negro carioca, como
também contei com o depoimento da principal responsável pela elaboração da
Pedagogia Multirracial. Entre os que estavam listados por ocasião da orientação,
obtive nesta primeira incursão depoimentos com Ivanir dos Santos, Amauri Mendes
Pereira e Maria José Lopes da Silva. Além das várias informações fornecidas, cada
um dos colaboradores/as contribuiu em indicar outras pessoas relevantes para a
compreensão do universo de atuação do MN no Rio de Janeiro, na década de 70
em diante.
No ressurgimento do MN no Rio de Janeiro, na referida década, percebemos que
as lutas contra a discriminação racial são permeadas pela vigilância dos aparelhos
repressivos. Com isso, a questão cultural será muitas vezes enfatizada mais do que
diretamente a questão racial, como estratégia para driblar a ditadura existente. Nesse
quadro, o que caracteriza o movimento neste período é a promoção da autoestima,
a partir de elementos estéticos e culturais.
Nos anos seguintes, houve a necessidade de uma maior politização das atividades,
das ideias de participação política dentro dos canais tradicionais contra o regime
militar, como os partidos políticos (Ivanir dos Santos, entrevista concedida).
Maria José está na confluência destes eventos, que buscava afirmar o movimento
negro como força social, desembocando na década seguinte na proposição da
Pedagogia Multirracial, por diferentes processos. Para este artigo, destacamos o
primeiro processo, ligado a sua prática profissional, o que a leva a perceber no
19
Manoel de Almeida, entrevista concedida.
20
Aqui se refere ao processo de implementação da PI na Escola Criativa Olodum, ligada ao Bloco
Cultural Olodum, em 1993, e na Escola Municipal Alexandrina dos Santos Pita, em 1994.
21
Aqui se refere aos Parâmetros Curriculares Nacionais que entre outros temas transversais propôs a
discussão da diversidade.

148 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
espaço da escola uma trajetória de exclusão e elevada reprovação de alunos negros,
e em consequência a falta de discussão sobre estas questões e as relações raciais.
O processo primeiro foi a minha prática educacional, eu
era professora do estado e do município e lidava com
comunidade popular o tempo todo. E me vi diante de alunos
negros que eram reprovados como moscas, absolutamente
reprovados, não tinham menor sucesso, a gente reprovava
assim com tranquilidade [...] era um negócio, era uma
fábrica, como até hoje de exclusão, e com uma falta de
sensibilidade do professorado muito grande, o professorado
ele reprovava e não parava para pensar porque ele tava
reprovando, ele não para pra perceber que na verdade
não é o aluno que está reprovando, e ele que está se auto
reprovando [...] o professor não tem esta sensibilidade, não
tem esta percepção.22
Para ela, uma das dificuldades mais sérias reside sobre a realidade educacional
brasileira, a ausência de subsídios para desencadear tal discussão entre os professores.
Procura chamar a atenção para que valores culturais demarcam este sistema, tendo
em vista que “a cultura assim reproduzida é a cultura dos grupos privilegiados, branca
e eurocêntrica, o êxito escolar será função do capital humano adquirido por meio
de uma pedagogia implícita”. Portanto, na elaboração da Pedagogia Multirracial vai
chamar a atenção para a necessidade de evidenciar o pertencimento racial como
dado fundamental na análise do debate sobre o fracasso escolar.
Para este artigo interessa o depoimento com Maria José Lopes, linguista,
educadora das redes municipal e estadual de ensino, militante do MN, atualmente
aposentada. A sua narrativa indica que as experiências familiares, educacional e
os vínculos institucionais, são elementos que vão conformar o quadro que levam
a elaboração da Pedagogia Multirracial. Para ela, o processo primeiro está ligado à
prática profissional, como professora municipal e estadual, o que a leva a perceber no
espaço da escola uma trajetória de exclusão e elevada reprovação de alunos negros,
e em consequência a falta de discussão sobre estas questões e as relações raciais.
O segundo elemento foi a partir da experiência pessoal, enquanto aluna negra
no ensino particular, lugar de pouquíssimo ou nenhuma presença negra naquele
momento no Rio de Janeiro. Esta vivência de ser “rigorosamente vista, observada,
eu não era acalentada, eu não era acarinhada, eu nunca tomei um carinho de uma
professora”23 contribui para pensar em mudanças no currículo e na escola em
relação aos negros.
Uma foi a minha própria vivência como aluna dentro de
sala de aula, que foi muito dura minha trajetória, foi muito
dura, até porque minha família, imaginado me dar o melhor,
apesar do que falei antes, que fui de uma geração que a
escola pública era considerada melhor, mas a minha família
sempre querendo me dar o melhor, do melhor, me colocou
22
Cf. entrevista.
23
cf. entrevista concedida.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 149
na escola particular, desde o primário, eu nunca estudei em
escola pública, eu fui ingressar numa instituição publica só
na universidade. E porque, porque a instituição pública era
a melhor, então eu fui pra federal, mas ate então só estudei
nas melhores escolas particulares, estudava nas escolas de
brancos [...] as professoras tratam as crianças na escola
pública como filhos, acaricia e botam no colo e dão beijinho,
eu, por exemplo, nunca, tive essa experiência e foi assim
pelo antigo ginasial.24
O terceiro elemento que completa esse processo de elaboração, é a politização
a partir da participação partidária de esquerda e na militância negra:
[...] e aí entra o Movimento Negro como um momento de
politização na minha vida... de perceber o seguinte porque
a esquerda, a esquerda convencional, nos discutíamos
muito educação, sobre a ótica da esquerda eu discuti muitos
autores, quer dizer, eu recebi essa informação também.
Mas acontece que com um viés do Movimento Negro,
um outro tipo também de crítica perpassou também esse
discurso de esquerda que eu tinha de educação, que era
o discurso progressista, etc e tal. Eu fui percebendo que o
discurso de esquerda clássica, as classes populares, elas não
tem cor, não elas não tem cor, então a questão do racismo,
ela não se colocou de maneira clara, contundente e já no
discurso do MN, quando o MN formula as suas diagnoses
sobre a situação do aluno negro na sala de aula, era um
viés totalmente novo, há um viés totalmente outro, eu me
aproprio deste aparato...25
Assim como e a experiência educacional nos países em processo de descolonização
da África, como Angola e Moçambique. Processo que alimenta a discussão, no dizer
de Fanon26, sobre o estatuto colonial, e sua consequência no projeto de libertação.
A minha passagem pela sala de aula na África porque eu
fui trabalhadora de educação em países africanos de língua
portuguesa e durante os anos de reconstrução da África e
aquele tipo de sala de aula me ajudou muito [...] Eu estava
trabalhando basicamente com alunos negros recém-saídos
de um processo colonial.27
Assim argumenta que o compromisso com as classes trabalhadoras, de onde
vem a maioria dos alunos da escola pública, obriga a explicitar os mecanismos de
que se valem os donos do poder para mascarar a discriminação racial, quando
pretendem vincular emprego e escola de modo imediato. Não há como analisar
24
cf. entrevista concedida.
25
Maria José, entrevista concedida.
26
FANON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
27
Maria José, entrevista concedida.

150 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
o sistema educacional brasileiro sem desmistificar o modelo econômico altamente
concentrador e excludente vigora em países periféricos como o Brasil.
A depoente ressalta ainda que a experiência de dirigir um projeto28 na rede
municipal do Rio de Janeiro, em 1982 foi outra influencia determinante para o seu
trabalho. A Pedagogia Multirracial em seu desenvolvimento vai indicar a necessidade
de se trabalhar na construção da identidade do brasileiro, com especial atenção ao
patrimônio cultural e histórico alicerçados em padrões civilizatórios africanos.
É de fundamental discutir que os valores africanos de
cultura estão presentes tanto na religião, quanto nas artes,
na organização social, na historia e na visão de mundo
dos brasileiros. As culturas negras estão profundamente
internalizadas no “inconsciente coletivo” do homem
brasileiro, independente de raça, cor, ou classe social. A
maneira de ser, de pensar e agir do brasileiro reproduz, em
muitos aspectos, o modelo cultural e comportamental dos
africanos. A própria língua que falamos é um português
africanizado e/ou um aportuguesamento das línguas e
falares africanos.29
Este aspecto civilizatório é bastante ressaltado nos documentos da Pedagogia
Multirracial, tendo em vista que os debates em torno da “cultura nacional” têm-se
caracterizado pelo recalcamento do processo civilizatório levado a cabo no continente
africano.
O início da elaboração da Pedagogia Multirracial é marcada por debate onde as
referências iniciais giravam em torno do multiculturalismo, teoria com mais evidência
naquele momento. De suas diferentes vertentes, Maria José se alinha aquela cuja
doutrina se centrada no respeito à diferença como a mola mestre no combate as
desigualdades raciais, o multiculturalismo crítico30. Do ponto de vista da educação
popular como um elemento importante na estrutura da Pedagogia Multirracial, terá
como aporte o trabalho de Paulo Freire, em conjunto com o processo de educadora
em África, Maria José nos conta:
O Paulo Freire também foi importantíssimo nessa
formulação. A minha passagem pela sala de aula na África
porque eu fui trabalhadora de educação em países africanos
de língua portuguesa e durante os anos de reconstrução
da África e aquele tipo de sala de aula me ajudou muito[..]
Então, veja bem, eu trouxe o Paulo Freire, pois o Paulo
28
Projeto Zumbi dos Palmares, conforme se lê em Ferreira (1987, p. 72): “O projeto tem como
objetivo: deflagrar um processo de reconhecimento da cultura afro-brasileira como parte integrante
da política cultural da Secretaria de Educação, de modo a promover a incorporação do saber
emanado desta cultura no currículo escolar.” Neste mesmo documento temos a informação de que
o projeto atingiu, até 1986, 100 escolas e 42 CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública).
FERREIRA, Vanda de Souza. “Projeto Zumbi dos Palmares”. Raça Negra e Educação – Cadernos
de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n. 63, nov. 1987, p. 72-73.
29
SILVA, Maria José Lopes da. “Pedagogia multirracial”. NEN: As idéias racistas, os negros e a
educação. Florianópolis/NEN, n. 1, 1997, p. 30.
30
MCLAREN, P. Multiculturalismo crítico. Tradução de Bebel Orofino. São Paulo: Cortez, 1997.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 151
Freire nesta época tava andando na África também, ele tava
na Guiné Bissau, e a gente tinha notícias dele trabalho na
Guiné Bissau, e eu me lembro que o trabalho dele na sua
experiência na Guiné Bissau, esse trabalho veio parar nas
minhas mãos [...] a sala de aula dele que não era muito
diferente da que eu tinha em Moçambique, mas como ele
tava lidando31 lá com aquela realidade, como nos estávamos
lidando aqui, então tudo isso somou, entendeu. 31
No Brasil, diferentes frentes e estudiosos do MN contribuem para este referencial.
Reconhecer tais autores como importantes no processo de elaboração da pedagogia
multirracial, possibilita entender a escola como um campo de batalhas políticas. No
entanto, Maria José vai chamar à atenção que estes estudos não são suficientes,
para moldar as bases da pedagogia pretendida, em função dos seus limites como
respostas às demandas colocadas pelo movimento negro naquele momento. Para
tanto, vai buscar o referencial de África como elemento dinamizador da pedagogia.
Com isso, vai indicar como estruturante para a pedagogia multirracial um autor
que considera de fundamental importância no coroamento que buscava situar sua
proposta pedagógica, a figura de Molefi Asante32. Seu debate crítico gira na discussão
do afrocentrismo, cujo foco é “corrigir o sentido de lugar da pessoa negra e de outro
tecemos a crítica do processo e extensão do deslocamento criado pela dominação
cultural, econômica, e política pela Europa”.
Para Maria José interessa como acúmulo fundamental para a pedagogia multirracial
pensar este deslocamento, defendido por Asante, como não excludente. Ela vai
defender “uma filosofia orientadora do trabalho pedagógico a ser desenvolvido: a
construção de uma visão não-etnocentrada do conhecimento”33. Para ela centrar no
universo africano não significa substituição, como procura explicitar na sua fala sobre
a influência desta teoria para os propósitos da proposta pedagógica em formatação.
Pode-se dizer que este é um processo, mesmo sem está explicitado, que nos remete
a uma dialética cuja centralidade encontra-se em diferentes formas do processo
civilizatório africano. Pode-se ver sobre isto em Cunha Júnior34, ao introduzir o itan35
sobre a narrativa do orixá Exú, como um preâmbulo a dialética africana. Parece-
me evidente um esforço em colocar outros conceitos e conteúdos para a ideia de
elaboração e transmissão da cultura de maioria africana.
Alicerçada por todas estas referências a Pedagogia Multirracial aponta como
pontos fundamentais para seu desenvolvimento, o combate à democracia racial,
ter a escola como um espaço de superação das desigualdades raciais, seja do ponto
de vista de seus conteúdos, das metodologias educacionais até aos processos de
31
Maria José, entrevista concedida.
32
Molefi Kete Asante é americano, doutor em Comunicação pela Universidade da Califórnia,
fundador da teoria afrocentrista
33
SILVA, Maria José Lopes da. Pedagogia multirracial. NEN: As idéias racistas, os negros e a educação.
Florianópolis/NEN, nº 1, 1997, p. 32. (Série Pensamento Negro em Educação).
34
CUNHA JR., Henrique. “Conceitos e conteúdos nas culturas africanas e afrodescendentes”. In:
COSTA, Sylvio G. &PEREIRA, Sonia (orgs.). Movimentos Sociais, educação popular e escola: a
favor da diversidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006, p. 75.
35
Itans são narrativas orais elaboradas em diferentes regiões do continente africano, onde se
transmitem elementos históricos, culturais e sociais de determinado povo.

152 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
avaliação. A Pedagogia Multirracial implica, portanto:
1) Trabalhar o patrimônio cultural e histórico dos grupos
étnicos excluídos numa perspectiva transdiciplinar, ou seja,
em cada um dos componentes curriculares, pois é através do
universo simbólico que a escola mantém os valores racistas
da sociedade abrangente;
2) Incluir nos currículos do pré-escolar ao segundo grau,
nos currículos dos cursos de formação de professores (antigo
Normal), nos currículos do ensino de jovens e adultos
(suplência), nos currículos das faculdades de educação e
demais licenciaturas, o saber fundamentado nos referenciais
do povo brasileiro, sem excluir nenhuma contribuição.36
Para a Pedagogia Multirracial, é de fundamental discutir a dimensão que o
continente africano marca com seus diferentes valores a nação brasileira;
Os valores africanos de cultura estão presentes tanto na
religião, quanto nas artes, na organização social, na história
e na visão de mundo dos brasileiros. As culturas negras
estão profundamente internalizadas no “inconsciente
coletivo” do homem brasileiro, independente de raça, cor,
ou classe social. A maneira de ser, de pensar e agir do
brasileiro reproduz, em muitos aspectos, o modelo cultural e
comportamental dos africanos. A própria língua que falamos
é um português africanizado e/ou um aportuguesamento
das línguas e falares africanos.37
Em 1989, os fundamentos desta proposta são publicizados, onde o documento
da Pedagogia Multirracial apresenta-se em dois grandes tópicos. No primeiro trata
dos Fundamentos Teóricos da Pedagogia Multirracial, onde se subdivide em: redação
de objetivos e perspectivas, redação dos fundamentos filosóficos e metodológicos,
revisão e organização. O segundo tópico destina-se à chamada parte específica.
Nesta parte equipes de educadores e educadoras organizam propostas de reflexão
e intervenção por áreas específicas, a saber: alfabetização, curso de Formação de
professores, ensino Supletivo, História e Integração social. Ainda há mais duas equipes
neste tópico responsáveis pela revisão e organização das referências bibliográficas.
A colaboradora vai situar que a Pedagogia Multirracial é uma proposta datada,
já que não foi incorporada por inteiro nos processos escolares no Rio, tornando-
se uma referencia teórica para outros lugares, muito especialmente na cidade de
Florianópolis/SC.
O NEN e a Pedagogia Multirracial e Popular ao sul do país
Para contextualizar o surgimento da pedagogia e multirracial e popular, em
Santa Catarina, selecionei documentos escritos existentes no Núcleo de Estudos
Negros (NEN), localizando informações do contexto da luta antirracista no estado.
36
SILVA, M. J. Lopes da. Pedagogia multirracial. In: NEN. As ideias racistas, os negros e a educação.
Florianópolis/NEN, nº 1, p. 28, 1997. (Série Pensamento Negro em Educação).
37
SILVA, M. J. L. idem, 1997, p. 30.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 153
Posteriormente, colhemos depoimentos dos militantes38 do MN em Florianópolis, e
dos integrantes do NEN39, mais diretamente da educação.
De maneira geral, no estado existem praticamente em todos os municípios
catarinenses, entidades, grupos, associações e clubes, que despontaram com maior
visibilidade a partir dos anos 80, do século XX, contribuindo para a luta antirracista,
e que ainda necessitam de novas e aprofundadas pesquisas.
A Pedagogia Multirracial e popular surge como iniciativa do Núcleo de Estudos
Negros (NEN), entidade que emerge na cena pública catarinense, na capital
Florianópolis no ano de 1986. É fruto de uma série de discussões iniciadas por
debates informais entre ativistas sem vínculos organizativos e de antigos membros
de outros grupos organizados.
Os debates eram animados pela crítica ao papel do Estado, como partícipe
na perpetuação das desigualdades sociais e a necessidade de políticas públicas
à população negra. Em vista o quadro diferenciado de formações, os integrantes
do NEN optaram por se organizar em comissões de trabalho, que abrigassem
as diferentes atuações. Esta fase inicial, que vai de 1986 a 1994, o NEN atuou
fortemente em estruturar suas ações no estado de Santa Catarina, a partir de um
trabalho militante e voluntário de seus membros.
De 1994 a 2000, marca a fase de consolidação do NEN, tanto pela ação política,
quanto pelo financiamento da Fundação Ford a este trabalho em Santa Catarina.
Momento onde surgem os programas: Justiça e Desigualdades Raciais, cujo objetivo
é atender as vítimas de violência racial e da capacitação de lideranças comunitárias
em direitos humanos e cidadania e operadores jurídicos na busca de instrumentos
legais sobre o direito. Mulheres, logo depois, em promover políticas públicas na
perspectiva de gênero e raça, e ações no campo da saúde reprodutiva e sexualidade,
mercado de trabalho e violência doméstica; e o Programa de Educação, que objetiva
capacitar educadores na compreensão das relações raciais na sociedade e nos
sistemas de ensino.
Este momento marca o processo que tornou o NEN uma referência. Por um
lado, nos debates públicos sobre justiça e desigualdades raciais. E por outro lado, ao
consolidar nos sistemas de ensino, uma estratégia diferenciada sobre o tema negro
e educação. Avalio que tenha sido pelo acerto em função do foco definido pelo
programa, que aliava experiências até então acumuladas por seus membros, com
um olhar para o espaço da escola. Ou seja, definimos o educador como o centro de
nossa intervenção, na preparação de material didático-pedagógico e na discussão do
currículo como arena de luta sobre a história e a cultura do negro no Brasil. Nesse
processo, é importante ressaltar, que estamos na vigência do mandato do vereador
Márcio de Souza, na Câmara Municipal. Tendo como assessoria uma integrante do
NEN, Jeruse Romão, é aprovada a lei que institui a inclusão do conteúdo história

38
Foram entrevistados do movimento negro: Jeruse Romão, Centro de Referência de material
Didático Afro-brasileiro, fundadora e ex-integrante do NEN; Valmir Ari Brito, do grupo de capoeira
Ajagunã de Palmares; Vanda Pinedo, do Movimento Negro Unificado; Marcio de Souza, vereador
e ativista negro, fundador do NEN; Márcia Pereira, microempresária, ex-integrante do Grupo de
União e Consciência Negra; e do movimento de mulheres negras Arilda Cerqueira e Vera Fermiano.
39
Do programa de educação: Joana dos Passos, José Nilton, Adilton de Paula, e o ex-coordenador
geral João Carlos Nogueira.

154 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
afro-brasileira nos currículos das escolas municipais de Florianópolis, em 199440.
Leis de igual teor serão acatadas por cidades como Itajaí, em 1993 e Criciúma, em
1999, com uma intervenção decisiva do programa de educação na interlocução
junto a estas casas legislativas a fim de viabilizar suas respectivas aprovações.
Tendo o respaldo da lei, o programa de educação vai atuar fortemente no processo
de implantação e de formação dos educadores sobre o tema. Para tanto, desafiados
pelos educadores quanto à ausência de subsídios para este trabalho, desenvolveram-
se suportes. Portanto, neste período dei consequência à uma série de publicações
entre eles do Jornal Educa-Ação Afro41. Inicialmente, este material se dirigia à rede
municipal de Florianópolis, que atravessa um processo de reorientação curricular.
Posteriormente, o jornal se reestrutura e vai ter circulação nacional, com sistema de
assinatura para apoio à sua continuidade. Nesta mesma linha tem-se a produção de
bonecos, fantoches e jogos com enfoque na história e cultura negra. Estas iniciativas,
juntamente com a constituição de uma biblioteca temática, contribuem em estruturar
dentro do NEN um acervo, que vai ser paulatinamente aberto ao público interessado.
Do mesmo modo aparece a série de cadernos Pensamento Negro em Educação42,
como afirmação da existência de uma reflexão já aprofundada sobre o tema negro
e educação no Brasil. Além disso, tenho várias participações e organizações de
seminários, debates, oficinas de formação, com especial atenção a intervenção
junto à secretaria de educação em Florianópolis no processo de redefinição de um
novo currículo para o município. Assim como, a ampliação deste debate para o sul
do Brasil ao propor uma rede de educadores da região, na temática sobre o negro
e educação, que posteriormente desemboca na produção de pesquisa sobre esta
temática na região. Foram momentos intensos, de pensar, discutir, planejar executar e
divulgar conjuntamente, com poucos integrantes e ainda assim com poucos recursos,
a luta de combate ao racismo no sul do país.
Na educação, a partir de 2000, houve na trajetória de construção da pedagogia
dois movimentos que impulsionaram o NEN: primeiro uma exigência interna em
sistematizar a sua significativa experiência educativa numa proposição; segundo uma
exigência externa pelo reconhecimento do NEN como a organização do MN com
capacidade técnica e política a ser consolidado numa proposição. Para Joana Passos
Então a gente também se coloca para o debate, eu acho que
mais que uma demanda, é uma exigência que nos tínhamos,
que a entidade tinha com ela mesma, como uma obrigação,
ah, ta na hora da gente dizer o que a gente quer de fato
com educação. E pensando pra além da escolarização, que
onde eu acho que a gente consegue avançar, porque pensar
pra além da escolarização e agregando a questão de raça,
classe e gênero. Que pra mim são os pilares pra pensar a

40
NEN. Multiculturalismo e a pedagogia multirracial e popular. Florianópolis/NEN, n. 8, 2002.
41
O jornal é editado a partir de 1995, com uma periodicidade trimestral, pelo Programa de Educação
do NEN, e continua a circular até o presente momento.
42
Cadernos de textos produzidos a partir de 1997, pelo Programa de Educação do NEN, a fim de
subsidiar os educadores sobre o tema das relações raciais, cultura e história da população negra.
Inicialmente com uma periodicidade semestral, que vai do número 1 ao 8. Hoje continua a ser
publicado de forma não contínua.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 155
PM e P hoje, além de pensar todo o contexto da educação
popular e os princípios teórico-metodológicos e trazer pra
dentro a questão racial.43
O NEN com diferentes trajetórias dos membros que compunha o programa de
educação buscou traçar os encaminhamentos que consideravam indispensáveis a
formulação da pedagogia: a retomada da argumentação teórica produzida por Maria
José Lopes; debates internos a fim de equalizar diferentes concepções; e estratégias de
socialização dos acúmulos estabelecidos no processo de formação interna para este
exercício de concepção de uma proposta pedagógica. Esta percepção de retomada
dos alicerces da pedagogia a partir do que fora traçado no Rio de Janeiro é indicado
na fala de Adilton de Paula:
Precisamos deixar nítido que o NEN não é o formulador
da Pedagogia Multirracial. Pedagogia Multirracial surge
centralmente com a Maria José, a partir dali, dos estudos
também que ela já vinha dialogando com a pedagogia
interétnica, do Manuel e com outras figuras. Então a
grande contribuição, inclusive, que se resgatou no Colóquio
Pensamento Negro em Educação 2006, foi a de Maria
José como uma das grandes formuladoras da Pedagogia
Multirracial, e inclusive, com disposição dela de fazer uma
revisão e um diálogo com a questão popular.44
No campo educativo afirma sua relação com os sistemas de ensino, tomando-os
como tema de estudo, reflexão e intervenção, que inicialmente aconteciam atendendo
as demandas isoladas de professores, estudantes ou escolas públicas, em momentos
específicos, a exemplo das datas comemorativas, o que restringia a atuação apenas
aos momentos em que se estava presente na escola. Disso decorre a necessidade
de um redirecionamento do NEN para a formação dos professores. Com isso, a
Pedagogia Multirracial e Popular (PM e P), se fundamenta internamente, a partir
dos projetos sistemáticos desenvolvidos nas redes municipais de educação, onde se
problematiza as relações sociais e raciais existentes na escola e aponta possibilidades
para o tratamento pedagógico destas, na perspectiva da população negra. Com
tal dimensão, o NEN compreende a pedagogia em tela articulada com a educação
popular, cuja dimensão nasce nas lutas dos negros no Brasil. Assim,
Quando o Núcleo de Estudos Negros/NEN insere a
denominação Pedagogia Multirracial o termo “Popular”,
compromete-se com a construção de uma escola pública
que privilegia a história e as culturas das populações que
constituem a sociedade brasileira, seus valores, formas
de agir e sentir onde a vida cotidiana dos grupos étnicos,
raciais e culturais seja à base do conhecimento curricular.
Significa também, o firme compromisso com um projeto
de profundas transformações sociais, na luta contra toda
forma de injustiça, de opressão e de exploração econômica,
43
Cf. entrevista concedida.
44
Entrevista concedida.

156 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
humana e social. Implica, sobretudo, na reapropriação dos
saberes, do pensar e do fazer pedagógico das culturas e
histórias dos grupos oprimidos.45
Diante deste conjunto de processos políticos, culturais e sociais a Pedagogia
Multirracial e Popular elabora como seus princípios político-pedagógicos:46
1. Tem a luta contra o racismo como um princípio político
pedagógico;
2. É uma pedagogia em construção coletiva;
3. Concebe que a realidade social brasileira é multirracial;
4. Declara e denuncia a existência da raça do racismo como
construção político-social;
5. As pessoas são o centro da relação pedagógica;
6. A vida cotidiana dos grupos étnicos, raciais e culturais é
a base dos saberes curriculares e das relações pedagógicas,
valorizando a visão de mundo das várias matrizes culturais
da história do negro, desde a África até os dias atuais;
7. Explicita as contradições sociais, as relações raciais e as
desigualdades na sociedade brasileira;
8. Está centrada na pesquisa e na autoformação de
educandos e educadores;
9. Entrelaça distintos campos das ciências humanas como
antropologia, sociologia, psicologia, política, etc.;
10. Faz uma leitura crítica e contextualizada do mundo, de
nossa realidade e da Educação no Brasil e no mundo;
11. Atravessa e problematiza outras formas de intolerância,
discriminações e preconceitos como que afetam as relações
de gênero, e a livre orientação sexual, a xenofobia e o
sexismo;
12. Educação como um projeto político de transformação
das injustas estruturas sociais e como projeto pleno de
libertação humana, contra toas as formas de opressão e
exploração.
Considero que o NEN, organização negra catarinense, vislumbrou na proposta
pedagógica carioca elementos, que conduzisse sua prática educativa, alicerçada por
um desejo desde seu nascimento de transformação social. Como pude demonstrar
sua trajetória histórica é alimentada por um processo eminentemente coletivo, sem
deixar de considerar diferentes formulações que circulam o tecido social. Porém,
é evidente que para chegar a formulação de sua proposta pedagógica orientou-se
pelos seus próprios processos de intervenções políticas, sociais e educacionais, como
uma organização do Movimento Negro ao sul do país.
45
PASSOS, Joana Célia dos. Discutindo as relações raciais na estrutura escolar e construindo uma
pedagogia multirracial e popular. In: NEN. Multiculturalismo e a pedagogia multirracial e popular.
Florianópolis/NEN, nº 8, 2002, p. 30 (Série Pensamento Negro em Educação).
46
Em 2002, no citado caderno da série Pensamento Negro em Educação, número 8, se sistematiza os
princípios iniciais da pedagogia, constituindo-se de 13 pontos, que se diferenciam um pouco desta
formulação divulgada no Encontro Nacional Negros e Educação.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 157
Desta forma, evidenciei inúmeros elementos de formação, formulação, concepção
e construção que leva esta organização a adjetivar seu projeto político educacional
como Pedagogia Multirracial e Popular, buscando ir além daqueles elementos
advindos da pedagogia Multirracial carioca. Em Florianópolis, tal pedagogia também
é circunstanciada pelo combate ao racismo, entendido como elemento dinâmico
da dimensão social, prática que perpassa pelas estruturas individuais, grupos e
categorias nos mais diversos espaços.
Nesta análise pude compreender que a Pedagogia Multirracial e Popular se
estrutura como um projeto político de sociedade, tendo como base o associativismo
e o espírito comunitário construído no processo histórico da população negra.
Desta forma, em suas elaborações pedagógicas o popular toma esta dimensão de
construção dos primeiros processos engendrados pelas experiências vividas desta
população.
Considerações Finais

Cada uma das proposições analisadas vai enfrentar, em seu tempo e espaço
diferenciados, singulares desafios. Como proposições de uma pedagogia do
Movimento Negro, elas vão servir para de um lado exigir um trabalho de refinamento
e ampliação de cada um de seus significados, por outro como instrumento teórico-
metodológico apresentado aos sistemas de ensino no diálogo e no desenvolvimento
de ações voltadas, por exemplo, para a implementação da lei 10639, em vários
municípios no estado e do país.
Pude no decorrer destes trajetos históricos analisar que, estes diferentes processos,
ajudam em discutir os limites do próprio sistema educacional, pois ele por sua
dinâmica própria tem dificuldades em absorver outras proposições, que não aquelas
hegemônicas, e advindas do movimento social como um todo. Por diferentes
caminhos, diferentes referenciais teóricos, políticos e sociais, o papel de cada
pedagogia têm sido problematizar os sistemas, quando discute raça, gênero e demais
processos identitários e culturais provocados pela sociedade civil. Neste sentido, tais
pedagogias se comprometem com a reconstituição das diferentes identidades como
um projeto político alternativo ao caráter excludente destes sistemas.

158 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
O presente trabalho é um aprofundamento, The present work is a deeper approaching, started
iniciado no mestrado em Educação, sobre o in our Education MsC thesis, about thinking and
pensar e fazer pedagógico de entidades do doing educational entities of the Black Movement
Movimento Negro (MN) no Brasil, que nomearam (BM) in Brazil, which appointed as teaching
como pedagogia os modelos que norteiam seus models that guide its educational projects for
projetos de educação para o Brasil. Este tema Brazil. This theme shows up in that relevant
mostra-se relevante na medida em que almejo crave overcome the knowledge society and
superar o desconhecimento na sociedade e na the history of education educational proposals
história da Educação de propostas pedagógicas developed by the Black Movement. Investigates
desenvolvidas pelo Movimento Negro. Investiga- the Interethnic Education in Salvador, the Multi-
se a Pedagogia Interétnica, em Salvador, a Ethnic Education, developed in Rio de Janeiro,
Pedagogia Multirracial, desenvolvida no Rio de by José Maria Lopes da Silva and a group of
Janeiro, por Maria José Lopes da Silva e um grupo educators, in the 80s of the twentieth century. As
de educadores, na década de 80, do século XX. well as its deployment in the XXI century, in the
Como também seu desdobramento, no século preparation of Pedagogy and Multiracial People
XXI, na elaboração da Pedagogia Multirracial in the state of Santa Catarina, the Center for
e Popular, no estado de Santa Catarina, pelo Black Studies, the entity’s BM headquarters. The
Núcleo de Estudos Negros (NEN), entidade do research has a social and historical theoretical-
MN da capital. A pesquisa tem como referencial methodological perspective, considering the
teórico-metodológico uma perspectiva sócio subject, its origins and social relationships,
histórica, considerando os sujeitos, suas origens they settled in their life trajectories activist and
e as relações sociais, que se estabeleceram em intellectual. This historical overview will be
suas trajetórias de vida militante e intelectual. combined with the use of oral history theme,
Esta visão histórica será combinada com o uso as the possibility of deepening the meanings
da História Oral temática, como possibilidade de of the cultural and political members of this
aprofundar os significados do universo cultural e movement and its impact on educational policies
político dos integrantes deste movimento e seus in Brazil. Through this proposed systematization
reflexos nas políticas educacionais no Brasil. of pedagogies developed by MN, seek help in
Mediante a esta proposta de sistematização das advancing the debate on race relations, culture
pedagogias desenvolvidas pelo MN, procuro and history of the black population, which occur
contribuir no avanço do debate sobre as relações within the contemporary Brazilian Education and
raciais, a cultura e história da população negra, continue to produce more of the exclusion and
que se verificam no âmbito da Educação brasileira inequalities varied forms.
contemporânea e que continuam a produzir Keywords: Black Movement; Negro and
exclusão e desigualdades das mais variadas Education; Interethnic Pedagogy; Multiracial
formas. Pedagogy; Race Relations.
Palavras Chave: Movimento Negro; Negro e
Educação; Pedagogia Interétnica; Pedagogia
Multirracial; Relações Raciais.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 159
A CATEDRAL DE SÃO SALVADOR DE ANGOLA:
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE UM LUGAR MÍTICO
Patrício Batsîkama1
Álvaro Campelo2

Introdução

Em maio de 1992, o Papa João Paulo II percorreu Angola. E fez questão de


visitar a antiga cidade cristã do reino do Kôngo, dando particular destaque às ruínas
da antiga catedral de São Salvador3. A “Tradição Oral” que diz que estas ruínas da
catedral se tratam de uma “obra de Deus”, ficou confirmada perante a comunidade
e reforçou-se com essa visita! Entretanto, a memória deste lugar, construída na
tradição histórica e renovada a partir deste acontecimento, expandiu-se aos países
vizinhos, Congo Brazaville e Congo Kinshasa. Ao abordarmos, neste trabalho,
um “lugar” como o das ruínas da catedral de São Salvador de Angola, que está
relacionado na sua origem ao antigo reino do Kôngo, entramos num campo de
análise no qual teremos em conta vários conceitos e várias abordagens científicas.
Cruzando a investigação histórica (em cujos documentos disponíveis nos situam
na memória escrita) com a investigação antropológica (material bibliográfico) que
versou a cultura das populações que aqui viveram e vivem, e da própria tradição
oral dessas populações, tentaremos uma aproximação aos sentidos e vivências deste
lugar. Por sua vez, os conceitos de “lugar”, “espaço”, “memória” e “identidade”
possibilitam uma compreensão para analisarmos os processos de apropriação e de
negociação dessas populações com as ruínas da catedral de São Salvador de Angola.
A concepção antropológica do espaço pode ajudar-nos a compreender os processos
de apropriação das comunidades de determinados lugares, bem como da forma
como neles constroem sentidos, reconhecem memórias coletivas (e individuais), ou
seja, como eles, lugares, integram a sua identidade cultural. Michel de Certeau, ao
dizer que “o espaço é um lugar praticado”4, transporta-nos para as vivências do lugar,
sendo que sem a prática do lugar não existe espaço. Antes de ser um lugar identitário,
relacional e histórico, é a sua condição de “lugar praticado” que faz do espaço
um assunto antropológico. Enquanto lugar praticado, as ruínas de São Salvador
de Angola constituem-se como espaço de memória. Ao serem apropriadas pelas
populações, e tendo em conta os sentidos que as informam (sagrados, mágicos), as
1
Bacharel em História e Ciências Sociais pela Universidade Pedagógica Nacional, Kinsâsa, República
Democrática do Congo. Licenciado em História e Filosofia da Arte pela The University of Plymouth,
EUA. Doutorando em Antropologia pela Universidade Fernando Pessoa, Porto, Portugal. E-Mail:
<batsikama@yahoo.com>.
2
Professor Associado da Universidade Fernando Pessoa e Diretor do Centro de Estudos de
Antropologia Aplicada da mesma instituição. E-mail: <campelo@ufp.pt>.
3
A cidade de M’banza-Kongo tem merecido grande interesse nos últimos tempos por parte das
autoridades Angolanas e da UNESCO. Estão em curso pesquisas arqueológicas neste lugar,
apoiadas pela UNESCO, as quais integram o projecto “M’banza-Kongo – Cidade a desenterrar para
preservar”, coordenado por Sónia da Silva António, com o objetivo de entregar uma candidatura
à UNESCO.
4
CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien. Arts de faire I. Paris: Gallimard, 1985, p. 173:
“L’espace est un lieu pratiqué”.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 161
práticas sociais que lhe estão associadas, bem como as narrativas que as interpretam,
configuram um mundo simbólico, no qual os atores sociais investem cognitivamente,
conformando as experiências e as emoções que delas decorrem5.
Assim, a memória deste lugar vive-se da crença e do desejo, fazendo com que
o grupo social se aproprie do lugar, inserindo-o na sua própria história coletiva
(mítica e real). É desta forma que a memória do lugar confere segurança ao grupo6.
Se durante muito tempo a questão da memória coletiva, levantada por Maurice
Halbwachs (1990) e da sua relação com a história foi depreciada, o mesmo não
acontece atualmente7.
Como perguntas de partida temos: qual será a origem da catedral de São Salvador,
e por que é que a memória local a associa a uma proveniência divina? Para a primeira
questão teremos de pesquisar o que nos dizem os documentos históricos; já para
a segunda, a tradição local deverá informar-nos sobre esta percepção das ruínas.
Há, de fato, uma história sobre estas ruínas e este lugar. E é essa história que se
conjuga com os outros sentidos comunicados, pois, tratando-se de ruínas de uma
catedral/ igreja/ templo, onde se invoca o divino, não é estranho que esse divino, o
maravilhoso e todos os mistérios que lhes possam estar associados, façam parte da
tradição local. A primeira aproximação que fizemos partiu do conhecimento dos
sentidos misteriosos dados pelas comunidades a este lugar. Só depois a pesquisa
histórica procurou contextualizá-los. Confrontou-se, assim, a “tradição oral”
(recolhida por Patrício Batsîkama, um dos autores desse artigo) com os “documentos
escritos”, esperando esclarecer as questões levantadas. Para isso, propuseram-se os
seguintes objetivos: (1) buscar a história da evangelização da antiga capital do reino
do Kôngo e as memórias dessa experiência; (2) compreender o comportamento
coletivo das populações na apropriação desse “lugar”, não só em relação às ruínas
da catedral, mas e, sobretudo, à integração e operacionalidade delas no restante
espaço envolvente, seja ao nível das narrativas do extraordinário, seja nas vivências
do quotidiano; (3) saber por que, nos conflitos armados de 1961, quando a União
das Populações da Angola (adiante UPA) vandalizou várias aldeias nos arredores,
a catedral e as pessoas que nela se refugiaram foram salvas. E se os “rebeldes da
UPA” são responsabilizados de profanar o lugar, então porque o seu líder, Holden
Roberto – que terá autorizado a profanação –, é enterrado justamente ao lado de
Kûlumbîmbi?8
Tradição Oral: Descrição e Tipificação
Vamo-nos basear em três tradições orais (representativas) que explicam a origem
das ruínas de São Salvador, em Mbânza Kôngo. Importa salientar que essas recolhas
foram feitas em língua local – kikôngo – mas contentaremos em expor apenas da
versão portuguesa. Apresentamos, em seguida, as versões existentes:
5
CAMPELO, Álvaro. “Espaço, construção do mundo e suas representações”. In: BETTENCOURT,
A. & ALVES, L. (eds.). Dos montes, das pedras e das águas: formas de interacção com o espaço
natural da pré-história à actualidade. Braga: Universidade do Minho, 2010, p. 193 e p. 204.
6
Cf. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990 [1950].
7
Cf. BURKE, Peter. “História como memória social”. In: __________. Variedades da História
Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 67-89; LE GOFF, Jacques. “Memória”. In:
__________. História e Memória. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994, p. 423-483.
8
Kûlumbîmbi quer dizer o que restou dos ancestrais. Trata-se das ruínas de uma igreja do século XVI
em Mbânz’a Kôngo.

162 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
a) Versão 1
Os Nsaku reclamavam a terra vermelha que pertencia
aos Ñzînga. Ambos grupos eram ‘povos irmãos’, mas a
divergência criou inimizade e afastamento [sentimental]
entre eles. Dessa sua fragilidade, surgem os povos Yaka que,
por falta de água, acabaram por ter abrigo dos Nsaku…
Da colusão [dos Nsaku e Yaka], os Nzînga serão vencidos,
maltratados e reduzidos à escravatura… Surgiram epidemias
e inúmeras dificuldades. Os três grupos celebraram na
noite de nsona de mbângala9 a sua união inquebrável.
Ao amanhecer no dia seguinte, kulumbîmbi apareceu… e
simbolizava os mpûngi za bakulu.10
b) Versão 2
Antigamente existia uma floresta chamada nkûmb’a
Wungûdi. Viviam nkuyu e ntêbo. Os padres que vieram
explorar foram interditados pelas populações locais.
Insistiram, e começaram por desflorestar a zona. Todos
eles morreram, e tornaram-se ntêbo. Para vingarem-se,
amaldiçoaram as populações locais com diversas doenças
sem cura [doença de Deus]… daí que todas as populações
reuniram-se e decidiram queimar a floresta e seus espíritos.
Depois das chamas [que duraram todo dia] a terra mudou
para cor avermelhada e estava erguido Kulumbîmbi,
símbolo da união.11
c) Versão 3
Na floresta de Nkûmbimbi wa Ngûndu que ocupava todo
planalto que é hoje Mbanza Kôngo, existia um sítio específico
onde se celebravam cultos dos ancestrais: Nsânda. Ao lado,
nas noites, o fogo aceso que se chamava kisîku kya balûndu
afugentava as populações. Dois grupos de Mankunku ma
Kôngo e Mayaka ma Kôngo montaram seu exército e
marcharam toda noite. A luta durou até amanhecer [no dia
dos ancestrais], de modo que todos eles queimados no fogo
tornaram-se pedras onde apenas podiam entrar as famílias
do grupo Mazînga ma Kôngo.12
Vamos estabelecer um quadro de comparação das três versões:

9
Nsona é nome de dia na cosmogonia kôngo e equivale ao Domingo (Dia do Senhor). Os grupos
em questão são hoje simbolizados pelas três grandes pedras, colocadas ao lado da catedral. Nkuyi
e ntebo são espíritos malvados, ao contrário de ñkîsi e ñsîmbi, que são benfeitores.
10
Simão Lufyâwulwîsu, abril 2011.
11
Soba Katendi, abril 2011.
12
Armando Voza, abril, 2011.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 163
Versão 1: Versão 2: Soba Versão 3: Armando
Lufyawulwisu Katêndi Voza
Antagonismo entre Nsaku Nkûmb’a Wungudi era Nkumbimbi wa Ngûndu:
A
e Ñzînga floresta lugar de culto
Intervenção dos Yaka/ Padres desflorestam e Kisîku kya balûndu
B
Guerreiros morrem afugentam o povo
População local contra
Colusão: Yaka e Nsaku Mankûnnku e Mayaka:
os padres católicos/ C
contra Ñzînga Exército
portugueses
Calamidades: doenças de
Calamidades: epidemias Destruição pós-guerra D
Deus

Depois do entendimento
Das chamas, surgem as
(união): surge Chamas na floresta:
ruínas: lar dos Mazînga E
Kulumbîmbi/ Mpûngi za aparição de Kûlumbîmbi
ma Kôngo
Kôngo

No início, há uma floresta chamada Nkûmb’a Wungûdi (versão 2) ou ainda


Nkûmbîmbi wa Ngûndu (versão 3). O primeiro termo significa “Nó materno onde
todos Kôngo têm sua família”, isto é a Capital; e o segundo seria, de fato, Ñkûmb’a
Mbîmbi wa Ngûndu que – além de significar a mesma coisa que o precedente –
quer dizer “Nó materno/ Capital onde permanece a nossa Origem”. Esse segundo
termo implica um cemitério dos ancestrais (Ngûndu: Mãe Ancestral), local de culto.
Nessa primeira linha A, pode-se compreender que, antes da população ter contato
com as ruínas, a memória retém duas imagens: (i) Capital, (ii) lugar de Culto. Convém
esclarecer aqui que “lugar (ou sítio) de culto” não teria – inicialmente – nada a ver
com a catedral.
A linha B explica três intervenções: (i) os Yaka aqui identificados como guerreiros,
de acordo com um texto de 1591, vieram do Sul13 para invadir o reino do Kôngo14;
(ii) os Padres: várias vezes, os católicos intervieram em Mbânza Kôngo, primeiro para
impor Dom Afonso I Mvêmb’a Ñzînga como rei (em 1506), logo depois da morte
do seu pai, e sucessivamente na construção de igrejas e escolas, e nas competições
dos candidatos ao trono; (iii) o que significaria kisîku kya Balûndu afugentador do
povo? Traduzindo o termo, diremos que se trata de leis dos Portugueses, antes de
serem considerados invasores, isto é, antes de 149015. Como se pode notar, trata-se
de uma época cristã no Kôngo, mas antes de Afonso I ser coroado com o apoio dos
portugueses16. Nesse sentido, as leis dos “Homens com pele semelhante aos albinos”
e, sendo albino assimilado a “espíritos de deus” – sîmbi, espírito das águas – kisîku
kya Balûndu, significariam “leis cristãs”, como aliás, ainda é para os retóricos em
13
BATSÎKAMA, Patrício. O reino do Kôngo e a sua origem meridional, Luanda: Universidade Editora,
2011, p. 87.
14
LOPEZ & PIGAFETTA. A Relação do Reino do Congo e das terras circunvizinhas. Lisboa: s.r., 1883
[1591], p.165-174; BAL. Description du Royaume de Congo et des Contrées Environnantes par
Filippo Pigafetta et Duarte Lopes. Paris/Louvain: Ed. Nauwelaerts, 1963[1591], p. 106-108.
15
BONTINCK, F., “Les Panzelung, Ancêtres des Solongo”, Anales Aequatoria, n. 1, 1980, p. 59.
16
BATSÎKAMA, Patrício. As origens do reino do Kôngo, Luanda: Mayamba, 2010, p.122-125.

164 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
kikôngo.
A linha C estrutura a colusão entre Yaka e Nsaku contra Ñzînga (versão 1), ou a
constituição do Exército pelos Kôngo da linhagem Mankûnku e Mayaka ma Kôngo
(versão 3). Pode-se considerar aqui três aspectos: (i) Yaka, de que se fala aqui, seriam
os Jagas que destruiram o reino do Kôngo, no final do século XVI; (ii) a primeira
versão junta Yaka e os Nsaku contra os Ñzînga. Das nossas leituras, notamos uma
aproximação da Tradição Oral aos documentos escritos: o monarca kôngo Ñzîng’a
Mpûdi (Dom Bernardo I), que reinou entre 1561-1567, era da linhagem Mazînga
ma Kôngo, e a tradição confunde os dois outros reis que sucederam a este: Mpûd’a
Ñzînga Dom Henrique (1567-1568) e Mpûdi’a Ñzînga Dom Álvaro I (1568-1578).
São da mesma linhagem: Mazînga ma Kôngo; (iii) Dom Álvaro I Mpùdi’a Ñzînga,
que expulsou os Yaka/ Jaga com ajuda do capitão Francisco de Gouveia. Pode-se
compreender internamente com as expressões Mankûnku e Mayaka. Mankûnku
é lembrado pela Tradição Oral como um instrumento jurídico da colusão com
os portugueses na época. Além de ser uma linhagem variante de Nsaku, parece
personificar Francisco Gouveia.
A linha D identifica as calamidades como: (i) doenças de Deus. Entre os Kôngo –
Kimpianga Mahaniah consagrou um estudo sobre isso17 –, quando a doença não é
identificada, alega-se que é “doença de Deus”18. A seu turno, os padres irão atribuir
as calamidades no reino do Kôngo como causa do desrespeito a Deus. Daí nasce o
paralelismo entre a ideologia kôngo, na compreensão das “doenças de Deus”, com
a ideologia católica, que atribui o desastre à causa divina; (ii) as raras populações
que ainda ficaram nas periferias da capital, por falta de acesso à água, à comida e à
segurança, enfrentarão enormes problemas, entre eles, as epidemias. Curiosamente,
Ngûndu pode significar a “cova da Mãe ancestral” como também a “vala comum
onde se enterra cadáveres”. O topônimo “Ngûndu” designa, também, uma “terra
que não pode ser habitada”, “cemitério” e, por analogia, “floresta/ fonte dos seres
sobrenaturais”. A versão 3 menciona uma destruição pós-guerra, o que, se por
um lado, parece retratar os Jagas e outros, por outro pode ser considerada como
memória dessa época19.
A linha E, finalmente, apresenta-nos alguns aspectos: (i) Kulumbîmbi é tido
como “Mpûngi za Bakulu” ou “Instrumentos da Paz dos Ancestrais”. O que, de fato,
significaria isto? A informante Ernestine Bumputu advoga que “Mpûngi za Bakûlu”
seria a mesma coisa que “Mpângu za Bakulu”. Essa opinião é semanticamente
falsa, pois a primeira quer dizer “Tranquilidade dos Ancestrais” e a segunda seria
“Constituições que deixaram os Ancestrais”. Talvez a autora nos queira dizer que
ambos os termos (com significações discrepantes) designam a mesma coisa, ou
tenham um denominador comum (ancestrais). Religiosamente (política e religião
estando concomitantes), o cumprimento dos “Mpângu za Bakûlu” implica a
17
MAHANIAH, Kimpianga. La maladie et la guérrison en milieu kôngo: essai sur Kimfumu, Kinganga,
Kingunza et Kitobe. Kinshasa: Saint Paul, 1982.
18
Na tradição antropológica temos o exemplo dos Azande, estudados por Evans-Pritchard, que não
tendo explicação para a doença, invocavam como causa a bruxaria. Cf EVANS-PRITCHARD,
Edward Evan. Witchcraft, oracles and magic among the Azande. Oxford: Oxford University Press,
1976 [1937].
19
KABWITA, Kabolo Iko. Le royaume kongo et la mission catholique, 1750-1838: du déclin à
l’extinction. Paris: Karthala, 2004, p. 40-53.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 165
Tranquilidade, mas não dos Ancestrais. Parece que Mpûngi za Bakulu que designa
especificamente “cova dos ancestrais” passa para um outro nível de interpretação,
que vai do sentido literal, para o metafórico/ simbólico, onde “repousam em paz,
os reis antigos que tombaram na busca da Paz no reino do Kôngo”, tal como se
verifica no terreno em Mbânza Kôngo; (ii) Kûlumbîmbi surge depois das chamas na
floresta. Essa memória parece antiga e recente, simultaneamente, por causa de: (a)
floresta Nkûmb’a Wûngûdi precedeu a chegada dos europeus em Mbânza Kôngo, e
aqui Ngûndu seria o “conjunto dos reis da linhagem Mazînga ma Kôngo”20; (b) “as
chamas na floresta” parece recente, podendo ser traduzida por destruição, que já
adiantamos atrás (o que é confirmada pelas fontes escritas), como também, pode
ser a mistura entre “chamas” dos séculos XVI, XVII e XVIII em Mbânza Kôngo e
a “floresta que germinou depois do século XVIII, no local onde estão as ruínas da
antiga catedral de São Salvador”21; (iii) “depois das chamas, surgem as ruínas: lar dos
Mazînga ma Kôngo”. Ultrapassada a questão de identificação dessas “chamas…”,
o que significaria “lar dos Mazînga”? No local, a expressão é sinônimo de Ngûndu,
que já abordamos anteriormente. Jean Cuvelier registou, em 1934, um texto ligado
à linhagem “Ñkânga’ Mvêmba”, que se diz Mazînga também. Nesse texto, as ruínas
pós-guerra são tidas como “lar dos Mazînga”. Se nos permitir cruzar fontes escritas e
orais, veremos que pode se tratar de um episódio do filho de Afonso I, chamado Dom
Pedro I Ñkâng’a Mvêmba, que sucedeu seu pai, em 1542. Depois de ser derrotado
– ou seja “depois das chamas…” – refugiou-se na igreja, a mesma que será feita
Catedral de São Salvador (como veremos a seguir). Posto na igreja, Dom Pedro I
Ñkâng’a Mvêmba terá salvado a sua vida em 1543, somente porque nessa época
as populações consideravam o local como “Ngûndu”, a ‘cova dos reis ancestrais’
onde os restos mortais do seu avô Ñzîng’a Nkuwu (primeiro rei cristão) repousavam,
e ‘Igreja como local santo’, para esse povo evangelizado (ou sob evangelização).
Algumas questões encontram possibilidades da resposta: (a) sacralidade do lugar/
Kûlumbîmbi –parte das razões político-religiosas, quer dos Kôngo pagãos, quer dos
Kôngo evangelizados, justificaria as “tradições orais” a respeito dessas ruínas; (b)
“lugar dos Mazînga ma Kôngo” confunde-se com a sepultura de “Ñzîng’a Nkuwu” que
terá sido enterrado no ‘Ngûndu’ (floresta que alberga as ruínas) e com o refúgio do
seu neto, Ñkâng’a Mvêmba (que era também da linhagem Ñzînga), na mesma igreja.
Os hagiônimos que identificam a Catedral de São Salvador, nomeadamente
“Mpûngi za Bakulu”, “Ngûndu” e “Kûlumbîmbi”, correlacionam-se semanticamente
– pela memória que trazem do passado – para considerar sagradas essas ruínas até
nossos dias. A seguir, iremos consultar algumas escritas da época para construirmos
uma ideia geral sobre o ensino na catedral de São Salvador.
Catedral de São Salvador: Escritas e Iconografias
Testemunhos Escritos
No dia 19 de Dezembro de 1490, três navios – sob comando
de Gonçalves de Sousa – embarcavam missionários (padres
seculares, franciscanos e dominicanos), soldados aguerridos,
pedreiros e carpinteiros… a caminho ao reino do Kôngo.
20
CUVELIER, Jean. Nkutama mvila za makânda mu nsi’a kôngo. Matadi: Tumba, 1934, p. 39.
21
KABWITA, Le royaume kongo..., foto #18.

166 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Com a evangelização que começa no Soyo em Abril de
1491… inicia-se a edificação da igreja de Mbânza Kôngo
que acaba em Julho de 1491.22
Sabe-se, a partir da mesma fonte, que “Dom Afonso Mvêmb’a Ñzînga fez
construir os locais onde se instalou a Escola para quatrocentos estudantes”23. Mais
tarde, o monarca kôngo “ordenou construir um muro alto, armado de picos, para
evitar qualquer invasão”24.
Kôngo dya Ngûnga (país de sinos) foi o nome que Mbânza Kôngo recebeu por
causa das igrejas construídas entre 1491 e 152625. Vamos parafrasear:
A primeira edificada sob ordem de João I, parece ter
conhecido o mesmo destino que a primeira tentativa de
evangelização: caiu tão cedo em ruínas. Uma outra – talvez
aquele da Santa Cruz – foi construída antes de 1517, data
em que Dom Afonso Iº a menciona. A igreja principal, São
Salvador, que deu seu nome à Mbânza Kôngo no fim do
século XVI terá sido erigida entre 1517 e 152626. Enfim, em
1526, o rei ordenou a construção de Nossa-Senhora-das-
Vitórias, conhecida pelo povo sob título de Ambila, ‘aquela
das fosses’27, porque encontrava-se situada na vizinhança
da floresta sagrada onde repousam os reis desaparecidos…
Um documento de 1595 deixa entender que existiam a esta
data seis igrejas para aproximadamente dez mil lares.28

Igrejas e a Catedral de San Salvador


Percebeu-se que, a uma dada época, com a chegada dos portugueses ao reino do
Kôngo, em 1491, a evangelização introduziu outro tipo de urbanismo na cidade real:
(i) construção das igrejas; (ii) construção das escolas; (iii) construção de dormitórios
dos padres (encarregados do ensino).

22
BALANDIER, Georges. La vie quotidienne au royaume de Kongo. Paris: Hachettes, 2009 [1965],
p. 35.
23
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 44.
24
CUVELIER, Jean. L’ancien royaume de Congo. Bruxelles: Desclée, 1946, p. 124.
25
AMARAL, I, “Mbanza Kongo, cidade do Congo, ou São Salvador: Contribuições para o
conhecimento geográfico de uma aglomeração urbana africana ao sul do Equador, nos séculos XVI
e XVII”. In: ORTA, Garcia de (org.). Série de Geografia, 12, Lisboa, p. 02-40, 1996, p. 32.
26
CUVELIER, L’ancien royaume..., nota 57, r. 326.
27
Trata-se aqui de ‘Ngûndu’ (Fonte materna) ou de “Mpûngi za Bakulu’ (Repouso dos ancestrais, que
é matriarcal) que reza a Tradição oral.
28
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 50.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 167
Fig. 1 – Ruínas da Catedral de São Salvador, Mbânza Kôngo, Província angolana do Zaire, Angola.
Foto: Patrício Batsîkama, s.d.

Para a localização geográfica antiga, Georges Balandier escreve:


Duas cidades coexistem em Mbânza Kôngo: uma concebida
e construída para durar, o que resulta das iniciativas
estrangeiras. É domínio dos Europeus, do comércio, da
religião importada, com as suas seis ou sete igrejas e a
sua sede episcopal no fim do século XVI… A outra cidade
mantém as estruturas da cidade-aldeia. Ela permanece frágil
e as suas ruínas, salvas as sepulturas dos reis defuntos, são
totalmente levadas pelas guerras e o tempo.29
Essa admoestação parece interessante para compreender duas questões
fundamentais: (i) separação de vários ngûndu em relação ao Ngûndu, que se
encontrava na cidade europeizada; (ii) discrepância urbanística numa mesma
cidade. Isto se traduz pela confusão das “duas cidades” ocupadas, por um lado, pela
autoridade religiosa Nsaku Ne Vunda (Madîmba) que permaneceu cidade-aldeia;
e, por outro, pelo Ñtôtil’a
Kôngo (Mbâzi’a Kôngo), onde se encontrava o trono. Localmente, alguns relatos
confundem as duas cidades e seus ngûndu.
Ao que parece: (i) Ngûndu que se confunde com catedral significa de fato as
ruínas de Kûlumbîmbi (cidade europeia), mas a memória coletiva regista-o ao mesmo
tempo como a Madîmba (cidade-aldeia). Trata-se aqui de duas cidades antelusitanas
principais na capital do Kôngo que, depois da evangelização, resultarão nos conflitos
das civilizações (europeia e kôngo). Madîmba será retomada por Mbâzi’a Kôngo,
logo, kûlumbîmbi passará a ser as ruínas da catedral, ainda que inicialmente seja o
29
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 47.

168 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
contrário; (ii) o fato que os Mayâka ma Kôngo invadiu a Mbâzi’a Kôngo e destruir
também a Madîmba. A versão 3 sintetiza-o, dizendo que “kisiku kya balûndu”
afugentavam as populações. Ora, serão os Nsaku a derrotar os Mayaka e, mais
tarde, a se juntarem a eles, para restabelecer a tranquilidade no país. De acordo
com a cosmogonia kôngo, Mbâzi’a Kôngo pertencia aos Mazînga, razão pela qual
Mankunku (Nsaku) e Mayaka serão vinculados contra os Mazînga. Isto significa que
as obras dos padres, os seus “kisiku kya balûndu”, foram vencidas e destruídas,
entre as quais as antigas igrejas, e principalmente a catedral de São Salvador. Ora,
as ruínas de Kûlumbîmbi – que, na verdade, são as da catedral – passam a ser “obra
de Deus”, ngûndu.
Parece, aqui, estarmos a assistir a uma descolonização da memória local. A
obra dos padres é queimada, as populações confrontaram-se mortalmente… até
surgir essa “obra de Deus” que, desta vez, transmite uma mensagem: união! A
véspera da consciencialização das populações kôngo com Aleixo, Nicolau e Álvaro
Mbuta30, coincide – como veremos a seguir – com a desflorestação31 do local onde
se encontram as ruínas de Kûlumbîmbi. Curiosamente, foram encontradas três
pedras da mítica união dos Kôngo. Talvez seja por isso que os Kôngo interpretam
sua unidade como forma de resistir à colonização portuguesa no reino do Kôngo.
Pois, não poderia ser a cidade europeia porque só a cidade-aldeia descolonizadora
se pronuncia sobre isso: ngûndu-madîmba.
Resumo da História das Igrejas de Mbânza Kôngo: 1491-1885
Em 1506, morreu o primeiro rei cristão João I, Ñzîng’a Nkûwu, sendo sucedido
por seu filho, Dom Afonso, Mvêmb’a Ñzînga, cuja sucessão foi reprovada pelos
constitucionalistas kôngo mas, graças à força aliada dos portugueses, ele alcançou o
trono. É na sua época que a Igreja será instalada na sua capital, doravante dividida
em duas cidades: (i) cidade-aldeia, com os tradicionalistas em Madîmba; (ii) cidade
europeizada, com os modernistas em Mbâzi’a Kôngo. Dom Afonso morre em 1542.
Nkâng’a Mvêmba, Dom Pedro I – tido como filho de Afonso I – irá sucedê-lo em
1543, mas também será contestado, como tinha sido o pai. Vencido pelos seus
rivais, em 1545, ele irá se refugiar na igreja São Salvador, escapando da morte32.

30
WHEELER, Douglas & PELISSIER, René. História de Angola. Lisboa: Tinta-da-China, 2010, p.
138-142.
31
Na interiorização das populações locais, a “desflorestação” pode significar: (a) profanação ao
domínio de Deus (ngûndu); (b) instauração de nova ordem: conflitos entre o natural/Deus, e o
artificial/ Homem; (c) institucionalização da amizade: malûmbu (entre os vivos e os mortos).
32
CUVELIER, Jean & JADIN, Louis. L’ancien Congo d’après les arcchives romaines (1518-1540).
Bruxelles: IRCB, 1953, p. 19.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 169
Fig. 2 – Portugueses fazendo reverência ao rei do Congo.
Gravura de Johan e Theodore de Bry, ilustração do livro Índias Orientais, de 1597.
National Maritime Museum, Greenwich, UK.

Em 1545-1547, reina uma guerra civil que assola a capital e Dom Diogo I (o novo
rei) estabelece um tempo de tranquilidade, que irá durar até 1561. Na verdade, era
um “tradicionalista” que, por razões políticas e econômicas, aceitava cinicamente
o cristianismo. Ele personalizava a ambiguidade entre os “tradicionalistas”, que
nessa época serão tidos como os verdadeiros cidadãos, e os “modernistas”, que
eram assimilados aos “amigos dos estrangeiros”. Ambicionava uma diplomacia
direta com o Vaticano, sem ter Portugal como intermediário, no que não teve êxito
e, descontente com isto, expulsa todos os europeus, salvo alguns padres (no final
de 1555 e início de 1556). Em novembro de 1561, Dom Diogo I morre de forma
trágica, e subirá ao trono Afonso II, um modernista que será mais tarde morto pela
insurreição dos tradicionalistas contra os “estrangeiros” e aliados Kôngo.
A necessidade do consenso levou Bernardo I Ñzîng’a Mvêmba ao trono, que
morre em 1567. Seu sucessor, Henrique I, reinará alguns meses apenas, morrendo
em 1568. Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba, que lhe sucede, reinará durante quase
vinte anos, dispondo de uma diplomacia forte como plataforma de estabilidade. É
durante o seu tempo que os guerreiros Yaka, os famosos Jagas, irão invadir Mbânza
Kôngo33. Nesse período da invasão jaga, várias igrejas foram arruinadas, tal como
se pode ler em Pigafetta. A de São Salvador será reconstruída e elevada ao estatuto
de catedral, em 1596, e vários padres forão enviados para essa cidade. O rei Álvaro
I enviará Dom Antonio Manuel (Nsaku Ne Vunda), como seu embaixador junto do
Papa, que depois da sua captura pelos piratas portugueses e espanhóis – chegará
doente a Roma, morrendo no dia seguinte.
Da morte de Álvaro I, sucedeu Álvaro II, mas, entre 1613 e 1641, os monarcas
kôngo são “fabricados” pelos modernistas ou tradicionalistas: uns são demasiado
jovens (Dom Garcia I, 1624-1626) para a situação do reino; outros são de fato
crianças (Dom Álvaro IV, 1631-1636). Nessa época, há presença de holandeses,
33
VANSINA, Jan. “More on the Invasions of Kongo and Angola by the Jaga and the Lunda”. The
Journal of African History, vol. 7, n. 3, 1966, p.421-429.

170 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
franceses e outros europeus, que se interessam pelo comércio com Kôngo. Os
holandeses chegaram a guerrear com os portugueses, na tentativa de expulsá-los
do Kôngo (e Angola), logo no fim desse período.
Dom António I, Vit’a Nkânga, será coroado rei em 1661, depois de muitos
monarcas assassinados. Por sinal, ele é um tradicionalista, cuja candidatura os
padres europeus não aconselhavam, chegando alguns a orquestrar contra a mesma.
Tudo isso porque ele intencionava expulsar do seu reino todos os europeus, tal
como o fez Dom Diogo I, conforme mencionado anteriormente. Dom Antonio I
convocou todos Kôngo do país a lutar contra a opressão portuguesa. Todo Kôngo
foi sensibilizado porque pensava assim terminar com a colonização portuguesa. A
luta entre os modernistas e os tradicionalistas, favorece vitoriosamente os primeiros,
na grande batalha de Ambwîla. Mas são as consequências que nos interessam: (i) os
tradicionalistas, que saem da sua “cidade-aldeia”, irão pilhar a “cidade europeizada”,
destruindo igrejas. Umas desapareceram, sobrevivendo a Catedral de São Salvador,
que tinha os “seus murros ainda de pé”34; (ii) a cidade europeizada “transformou-
se numa floresta… não habitada… e abandonada aos animais selvagens”35. Nem
tradicionalistas nem modernistas pretendiam lá viver jamais; (iii) o país contará,
doravante, com três capitais: (a) de Mbânza Kôngo, que ainda permanecia no
imaginário de todos; (b) abriu-se uma capital, Kibângu; (c) uma terceira capital
estava instalada em Kôngo dya Lêmba. O Papa chegou a reconhecer a capital de
Kôngo dya Lêmba. Com as duas outras capitais, Mbânza-Kôngo ficou sem povoação.
O “corpo religioso” e “corpo diplomático” saíram, então, de São Salvador, para a
capital reconhecida por bula papal.
No princípio do século XVIII, surge um movimento “antonista” liderado por
Chimpa Vita (1700-1702). Dos seus objetivos, conseguimos sintetizar os seguintes:
(i) criar plataforma de negociação entre os tradicionalistas e os modernistas; (ii)
mobilizar as populações a reconhecer Mbânza Kôngo como capital e destituir os dois
reis; (iii) preparar novas eleições. Infelizmente, em 1706, a líder deste movimento foi
capturada pelos padres e queimada viva36. Os poucos habitantes que já ocupavam
Mbânza Kôngo fugiram e se distanciar da “cidade europeizada”.
A sua repovoação foi entre 1842-1884, e depois da Conferência de Berlim
(1885). Nessa altura, Mbânza-Kôngo era uma parte de Angola, colônia portuguesa,
e sua povoação obedeceu a uma política colonial portuguesa de povoar as cidades.
Primeiro, porque lá se encontravam algumas infraestruturas a serem aproveitadas
e, segundo, porque se construíam outras novas.
Durante essa época, as velhas cidades perdidas foram descobertas, inclusive
os muros chamados Kulumbîmbi. A sua descoberta criou: (i) felicidade, porque
existia apenas na oralidade com hesitações de localização, de modo a convergir as
versões existentes; (ii) lembrança da união entre as populações, o que incentivou a
povoação das próprias populações; (iii) responsabilidade acrescida da administração
colonial em conservar a memória local. Mas tudo indica que a memória coletiva
34
CUVELIER, Jean. Relations sur le Congo de Père Laurent de Lucques (1700 -1717). Bruxelles:
Institut Royal du Congo Belge, 1953, p. 57-62
35
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 67.
36
BATSÎKAMA, Raphaël. Voici les Jagas ou l’Histoire d’un peuple parricide bien malgré lui, Office
National des Recherches et du Développement, Kinshasa. Kinshasa: Office National de Recherches
e Devellopement, 1999 [1971], p. 30-31.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 171
tem dificuldades em separar as duas cidades, porque ambas cidades pré-existem
no comportamento psicossocial como “um todo”, assim como, quando os Kôngo
evocam sua origem comum (Kôngo dya Ntôtila ou Kôngo dya Ngûnga ou ainda
Ñkûmb’a Wungûdi…), reconhecem a pluralidade como base da sua união. Esta é
atribuída a uma Mãe ancestral, Ngûndu ou Mazînga.
O Nacionalismo Kôngo e a Catedral de São Salvador
O príncipe kôngo Dom Aleixo recebeu educação portuguesa e, em 1841, orientou
o chefe Dembo (chefe Nambwa Ngôngo, na atual província do Bengo) a se revoltar
contra a imposição portuguesa, porque só podia obedecer às ordens oriundas de
São Salvador. Ele foi preso, em 1842, e libertado em 1856. Mas em 1845, o viajante
alemão Georg Tams, que o visitou, informa-nos que Aleixo ter-lhe-á dito que “as
autoridades portuguesas não tinham o direito de o manter prisioneiro” porque ele
“identificava-se com o Reino do Congo, e não com a Angola portuguesa”37. A ideia
nacionalista kôngo aqui é simples: o reino do Kôngo é um reino amigo de Portugal
e não uma colônia como o foi Angola.
Dom Nicolau, filho do rei Henriques II, do reino do Kôngo, foi educado em Lisboa
e em Luanda, e recorreu às técnicas ocidentais para manifestar o seu nacionalismo
kôngo. Ele solicitava a independência do seu reino numa carta publicada no Jornal
do Comércio, no dia 1º de dezembro de 1859, e chamava à união do seu povo:
makukwa matatu malâmb’e Kôngo. Ele ganhara uma grande notoriedade, de
maneira que o Brasil já lhe disponibilizava suporte diplomático: exílio político. Mas,
A história de Nicolau terminou de um modo trágico, pois,
ao tentar embarcar num navio britânico em Quisembo, a
norte de Ambriz, foi morto por um ajuntamento de africanos
que o consideravam um farsante pró-europeu, um traidor
ocidentalizado à independência tradicional dos africanos a
norte de Luanda.38
Consequência: entre 1860-1870, a colonização portuguesa enfraqueceu no
espaço angolano que pertencia ao antigo reino do Kôngo39.
Ora, é justamente nesse período que Kulumbîmbi reaparece, desconhecida de
duas gerações, na execução de plano urbanístico agregado ao relançamento da
colonização portuguesa na região. Apenas a memória coletiva mencionava a catedral,
mas – como já vimos – com uma larga deformação informativa. Será por isso que
nas versões citadas, kûlumbîmbi aparece como símbolo da união. Essa ideia da
união é a compilação da velha tradição oral sobre (i) Nkûmb’a Wungûdi, (ii) Kôngo
dya Ñtôtila e (iii) Kôngo dya Ngûnga. Com o neo-nacionalismo kôngo nos finais
do século XIX, é compreensível que a velha tradição oral se tornasse como ícone
da união. Os fatos históricos aumentavam a credibilidade: (i) foram encontradas
três pedras da união kôngo, makukwa matatu…; (ii) foram encontradas tumbas

37
WHEELER & PELISSIER, História de Angola, p. 139.
38
WHEELER & PELISSIER, História de Angola, p. 140.
39
“A última guarnição portuguesa foi retirada da capital do Congo em 1870 e, só depois de 1884.
Os portugueses voltaram a ter algum controlo efetivo sobre a região”. WHEELER & PELISSIER,
História de Angola, p. 141.

172 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
dos antigos reis, cuja interpretação local agregava a ideia da união; (iii) o Ngûndu,
que é local da Mãe ancestral, invocava a “união nacional”. Mais tarde, em 1885, a
administração colonial afirma-se de novo.
Entre 1913-1914, o católico Álvaro Mbûta lidera a insurreição que irá envolver
muita gente e muitos territórios, pretendendo alcançar dois objetivos: (i) destituir Dom
Manuel Kiditu do trono Kôngo, que mantinha graças ao auxílio dos portugueses, ou
exonerar os técnicos administrativos portugueses na coroa kôngo, a fim de substituí-
los pelos Kôngo; (ii) responsabilizar o entronado quanto à defesa dos trabalhadores
kôngo que foram entregues aos trabalhos forçados com pouco rendimento.
A época que se seguiu foi a da concorrência das tendências políticas kôngo que
divergiam às associações políticas NGWIZAKO, NTO-BAKO e UPNA. A primeira
defendia a monarquia; a segunda sustentava uma independência exclusivista dos
territórios kôngo de Angola e não Angola na íntegra; e a última, que defendia ideias
republicanas, converteu-se em UPA. Nos três partidos políticos, o lugar da catedral
de São Salvador, vulgo Kûlumbîmbi, foi utilizado inicialmente como ferramenta
unificadora das populações. E, como já tentamos ver anteriormente, foi um penhor
potente na mobilização do povo durante a execução das ideias independentistas.
Depois do declínio do Kôngo até 1885
Em 1665, depois da derrota do Vit’a Ñkânga (Dom Antonio I), Mbânza Kôngo
foi desocupada, tal como relatado anteriormente. Vamos lembrar alguns aspectos
que achamos importantes para compreensão da perda das influências políticas/
religiosas na região e o novo rosto que a cidade irá ter: (i) a transferência da cidade
episcopal de São Salvador para Luanda favoreceu alguma da caducidade para a
primeira, o que permite a sua ascensão à sacralidade da catedral de São Salvador/
ngûndu (passível de mistificação dentro dos valores culturais locais); a segunda
cidade, emergindo, exerce, comparativamente a Mbânza Kôngo, uma força de
influências para que a primeira desapareça, quer em termos de referência religiosa
na região, quer como uma potência econômica e política; (ii) desde então, Mbânza
Kôngo passava a significar a derrota. Isto é, a origem de todos os Kôngo (Mbânza
Kôngo), que outrora era o sustento da união das populações, ilustrava doravante
uma “conquista” (colônia). Mais tarde, a derrota de São Salvador pelos Mayaka,
que se traduz pela vitória dos tradicionalistas sobre os modernistas, confundir-se-á
com o sentido de “São Salvador como colônia portuguesa”. E Ngûndu, que passava
a significar o vitorioso, traduziu-se por Kûlumbîmbi; eis a razão pela qual as ruínas
são obras dos ancestrais Kôngo ou, sobretudo, obra de Nzâmbi (nome que se atribui
ao Deus católico).
No século XVIII, existe um grande silêncio sobre essa catedral de São Salvador.
Podemos buscar três motivos: (i) o reino do Kôngo está dividido, e todos têm
horrores da capital, quer por causa dos sangrentos Jagas, quer por causa de vários
assassinatos dos monarcas kôngo: “Nsi yifwîdi” (país morreu), cantará o povo; (ii)
o reconhecimento papal de mais uma capital criou a ansiedade de viver numa
outra capital e causará o despovoamento de Mbânza Kôngo, do que os padres
reclamavam constantemente; (iii) a derrota do movimento antonista de Chimpa Vita
se traduz pela derrota de povoar mais uma vez a cidade-capital do Kôngo. Isso tudo
fez com que o século XIX seja, logo no início, um período de esforços – por parte

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 173
dos portugueses – na redefinição das políticas coloniais: colonização demográfica40.
Simultaneamente, nascia o nacionalismo kôngo.
Com a colonização de Angola – oficialmente desde 1885 – desenha-se outro
mapa da sociedade kôngo: (i) Mbânza Kôngo fica na colônia portuguesa; (ii) uma
parte que reclama ser fundadora desse Mbânza Kôngo vive no Congo belga e outra
na colônia francesa. Os movimentos sincretistas kimbanguismo e mpadismo, que
irão suceder, criaram – já no início do século XX – outro axi mundi (centro) além
de Mbânza Kôngo. É nessa época que se começa uma profanação passiva das
ruínas Kûlumbîmbi sem haver força institucional ou costumeira para impedir. Um
dos testemunhos pode ser as primeiras fotografias das ruínas, que indicavam um
Kûlumbîmbi muito alargado, ruínas da igreja, outros recintos arruinados. Ora, hoje
em dia, sobram apenas alguns muros da igreja. Ainda assim, há uma versão, segundo
a qual, os “terroristas” da UPA terão saqueado (incendiado) as ruínas, em 196141.

Fig. 3 – Escritos de Simão Toko.


Foto: Patrício Batsîkama, s.d.

UPA e Kûlumbîmbi: 15 de Março 1961 até hoje


Depois de Holden Roberto (1923-2007) – um dirigente da UPA – União das
Populações de Angola –, falecer, como obrigam os costumes, foi enterrado na
sua ‘terra natal’, Mbânza Kôngo. Mas o que é mais significativo é o de pretender
ser enterrado no cemitério dos antigos ‘reis do Kôngo’. Resultado: as instituições
conservadoras da Tradição Oral negaram a pretensão. Mas, em consenso, foi
enterrado ao lado do ‘cemitério dos reis do Kôngo’. O que terá originado isso?
Vamos partir de duas versões:
I) Primeiro, Holden Roberto não poderia ser enterrado ao lado dos reis porque

40
BENDER, Gerald J. Angola sob o domínio português: mito e realidade. Luanda: Nzila, 2008, p.
369-374; WHEELER & PELISSIER, História de Angola, p. 139-142.
41
MATEUS, Álvaro & MATEUS, Dalila. Angola 1961. Lisboa: Texto Editores, 2011, p. 117-153.
Verificamos junto dos arquivos da PIDE os ficheiros ligados a essa questão e notamos que, fala-se
de um vandalismo total.

174 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
ele não era da linhagem dos reis.42 Esta justificação é, em parte, verdadeira:
apenas os Ñzînga poderiam reinar. No entanto, alguns reis ali enterrados não
eram da linhagem de Ñzînga, mas de outras (incluída a de Holden Roberto).
II) Segundo, pela dimensão histórica angolana, Holden Roberto é um gigante.
Mas, localmente, as instituições costumeiras responsabilizam a UPA pela
vandalização de Kûlumbîmbi. Quase todas nossas fontes (ligadas às instituições)
expressam “nostalgia” das “tropas da UPA” que expulsaram o colono. E a religião
católica? Aliás, os Tokoistas, foram, no período de 1962-1964, interditados a
aderir à UPA, no quinto preceito. O próprio Holden Roberto terá dito: “o meu
partido assemelha-se à igreja Toko. Entra aquele que quizera (sic)”.43
A igreja católica, outrora assimilada à colonização portuguesa e cuja catedral
já era ícone, parece aqui significar duas coisas, se partimos da “reação tokoista”:
(i) cristianismo; (ii) pátria. Não se esquecerá que a efectivação da revolta de 15 de
Março de 1965 tinha, na sua maioria, militantes tokoistas. Ora, para o tokoismo, a
UPA era contra o cristianismo e inimiga da pátria.
Em 15 de Março de 1961, os comandos da UPA massacraram várias famílias
portuguesas, Umbûndu, e mesmo os Kôngo que não aderiram à causa. Assim
começou a “luta armada pela Libertação Nacional de Angola”. Kûlumbîmbi não foi
poupado, ainda que estivesse em ruínas, de acordo com alguns depoimentos. Há
depoimentos também que advogam o contrário: todos aqueles que se refugiaram
na igreja salvaram suas vidas, porque não foram [não podiam ser] atacados.
O quase silêncio dos acontecimentos é de cunho político. Os arquivos da
Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) sobre a UPA, a este respeito,
contêm informações gerais, e quase silenciosas. Contudo, nessas versões, há várias
incorreções que nos vão permitir compreender o que terá acontecido: (i) os “rebeldes
da UPA” obedecem, antes da operação, aos rituais atribuídos ao tokoismo. Ainda
que haja a probabilidade de que os rituais pertençam à liturgia tokoista, curioso
é que não são “chefes espirituais tokoistas” que operam nesse campo. Quer dizer,
pode haver uma imitação (e, por sinal, muito mal feita) dos rituais tokoistas para
fins políticos. Os resultados que, num primeiro instante, levaram Holden Roberto,
em Nova Iorque, a negar a autoria das atrocidades, não poderiam agradar a
Simão Toko (tão popular na época). Resultado: os cartões de membro proibiam
os Tokoistas a aderir à UPA; (ii) as zonas de onde são oriundos os “rebeldes da
UPA” são mapeadas como de influência tokoista. A PIDE, tendo consciência dessa
realidade, trabalha com a Defesa Nacional portuguesa, a fim de prever as eventuais
atrocidades. Resultado: estabelece o mapa onde há concentrações tokoistas. Mas
um fator que não é considerado são as incompatibilidades: o tokoismo deparar-se-á
com o protestantismo batista e o catolicismo romano na zona do norte. No mapa de
ataque que publica Álvaro e Dalila Mateus44, notamos o seguinte: na província do
42
O avô materno de Holden Roberto (oriundo de São Tomé) foi comprado por um conselheiro junto
da corte real kôngo. Depois da morte do conselheiro, o avô de Holden Roberto foi chamado a
ocupar as funções do defunto. Daí, associou-se sempre a ascendência de Holden Roberto à realeza
kôngo.
43
Citado por Matumona, Vice-presidente da ALLIAZO/PDA, publicado no Courier d’Afrique, n. 24,
3 mar. 1965. Consultamos a tradução nos arquivos da PIDE. “… quizera” é no original.
44
MATEUS & MATEUS, Angola 1961, p. 122.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 175
Zaire, apenas uma zona poderia ser tokoista e, na província de Uíge, todas zonas
são tokoistas, mas aderem à ALLIAZO/PD, que é uma organização quase adversária
da UPA. Nessas condições, os “rebeldes da UPA” só poderiam ter influências muito
limitadas em relação ao tokoismo; (iii) etc.
É verdade que os “rebeldes da UPA” são angolanos, vivendo nas regiões
fortemente influenciadas pelo tokoismo. A sua operação de 15 de março de 1965
terá facilitado o vandalismo das ruínas de uma ou de outra forma: nem todos eram
de origem populacional (étnica) Kôngo, ou daquela região da antiga catedral de
São Salvador, para respeitar a memória de Kûlumbîmbi. Ainda que assim não fosse,
depois dos terrores nessa zona, Kûlumbîmbi já não era o mesmo. Consultamos três
fotografias do informante Myêzi Álvaro: (i) a primeira é uma cópia de 29 de Setembro
de 1938, que lhe foi oferecido como prêmio de escolaridade por um missionário
batista. A catedral está dentro de uma pseudofloresta; (ii) a segunda é cópia de um
jornal “Kôngo dieto” e data de 1960 (não figura o mês), onde as ruínas ainda têm
as estruturas de outros compartimentos anexos à estrutura da Igreja; (iii) a última,
sem data alguma, apresenta a catedral, tal como se apresenta hoje.
Importa salientar que Myêzi Álvaro fazia parte do NTO-BAKO e seu primo era
conselheiro do NGWIZAKO, o que talvez poderá esclarecer a sua versão sobre a UPA
que, na verdade, não é singular. Há, provavelmente, aqui a ambivalência política
da UPA com NTO-BAKO e NGWIZAKO… e procriará (de certa forma) a versão de
Myêzi Álvaro, natural de Mbânza Kôngo.
Uma última versão, que reza que as partes da estrutura do edifício de Kûlumbîmbi
fotografadas no fim do século XIX, que já não figuram nas imagens atuais, foram
suprimidas pelo governo (“Luyâlu”), quando se fez vedação para proteger as ruínas.
Duas perguntas: (i) Luyâlu é tradução de autoridades governamentais: será governo
provincial ou governo central, ou ainda o governo colonial, a que se refere aqui?;
(ii) a vedação? Será para proteger as ruínas da constante profanação ou eventual
vandalismo? Ainda que o governo provincial cumpra com as orientações do governo
central, não encontramos placas que classificam as ruínas como património nacional
(ainda que assim sejam). Uns pensam que seria uma iniciativa do governo local que,
para proteger as ruínas, que já significavam quase nada para as novas gerações,
preferiu vedar e colocar polícia a vigiar sobre Kûlumbîmbi. Outros partilham outra
opinião, segundo a qual, a administração colonial classificou as ruínas, depois
da sua “descoberta”, nos finais do século XIX, de maneira que as orientações
definidas naquela altura só começaram a ser executadas recentemente, em 2007,
na Mesa Redonda Internacional sobre Desenterrar Mbânza Kôngo. Foi uma medida
inteligente porque, até nos nossos dias, ainda se acredita que o fato de uma pessoa
possuir um bocado das pedras dessas ruínas no seu próprio domicílio, expulsaria os
espíritos maus. Muita gente vem das repúblicas vizinhas, como peregrinos (para os
religiosos e políticos), em busca de bênção. Ora, se tal “crença” existe há mais de
um século, é provável que se justifique, ao longo deste período, algum “vandalismo
passivo/inconsciente”, como uma das inúmeras causas que terá contribuído para
o desaparecimento de outros compartimentos da antiga catedral de São Salvador.
Essa última versão indica as possibilidades das ruínas serem vandalizadas
consciente ou inconscientemente (ou ainda passivamente) pelas novas gerações
que – se afastando das instituições costumeiras e da memória coletiva – são passíveis

176 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
de profaná-las. Só que o “mito” sobre Kûlumbîmbi ainda vigora nas repúblicas
fronteiriças setentrionais (Congo Brazaville e Congo Kinshasa) e influencia de
maneira incalculável as realidades sociais destas comunidades. Neste sentido, isto
pode diminuir a ideia segundo a qual tão-somente a UPA seria responsável pelo
vandalismo. Também se insere aqui a ideia de que há um vandalismo inconsciente
– mesmo para as populações locais, como autoras – em buscar pedrinhas da antiga
catedral como proteção contra os espíritos maus. Finalmente, será impróprio apontar
o tokoismo como principal impulsionador desta prática. O que parece se desenhar
aqui é: o vandalismo ativo e inativo de Kûlumbîmbi pode ser sustentado pela
memória coletiva que se tem sobre as ruínas. Para evitar a sua total desaparição –
enquanto não existir um projeto da restauração, talvez – o “luyalu” (provavelmente
o governo local) tomará medidas para vigiar dia e noite as ruínas.
Como Se Criou a “Tradição Oral” Sobre Kulumbîmbi

Para formular a nossa hipótese, partiremos de três pressupostos:


1) Tendo em conta que, no passado, “Ngûndu” (‘cova dos ancestrais’ ou ‘sepultura
da Mãe ancestral’), local de reverência e de cultos e que passou a ser – durante
a evangelização – abrigo das igrejas, em Mbânza Kôngo, e principalmente a
catedral de São Salvador (onde se localizava), o que fomentou a ideia do ‘lugar
sagrado’ dos ancestrais em convergência com o ‘lugar de casas de Deus/igrejas’;
2) Na ocupação recente de Mbânza Kôngo, essas ruínas eram desconhecidas,
mas, depois de desflorestar (‘urbanizar’) à sua volta, foram localizadas. A ideia
da floresta que, localmente, está ligada à do panteão – mundo dos espíritos –
será associada ao mistério sobre ‘como surgiram’, ‘quem construiu’ e ‘em que
ano’ as ruínas começaram a existir;
3) Partindo da visita do Papa Paulo II, em 1992, as duas primeiras considerações
ganharam outra dimensão: o Papa é considerado como o representante de
Deus na terra, e, no cristianismo, peculiar kôngo, isso é interpretado de forma
relativamente exagerada: supõe-se que o Papa tenha, realmente, frequências
com a divina existência (espíritos e Deus)… Assim, podemos avançar a hipótese
segundo a qual, depois da visita papal às ruínas de Kûlumbîmbi e tendo em
conta as pompas dessa visita (depois de ser recebido pelo presidente angolano,
José Eduardo dos Santos), da curiosidade provocada pelos mitos, em contraste
com o realismo racional contemporâneo, compõe-se a versão segundo a qual
“Deus terá realmente criado essas ruínas”, que prevalece como explicação
exaustiva das populações.
A nossa pergunta inicial, podemos considerar a nossa hipótese a partir dos
hagiotopônimos atribuídos à cidade de Mbânza Kôngo – composta de Madîmba e de
Mbâzi’a Kôngo/ São Salvador – que são portadores de duas fases da transformação
da memória: (i) amnésia coletiva sobre a catedral de São Salvador; (ii) redimensão
memorial através de suportes sincréticos (kôngo/ português, cristão/ fetichista).
Na primeira fase, o despovoamento da cidade europeizada de Mbânza Kôngo,
que se chamava Mbâzi’a Kôngo, parece criar um marasmo, numa primeira instância.
No entanto, este marasmo é composto das antecedências: (i) dos temíveis Jagas,

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 177
que invadiram e incendiaram a capital do reino do Kôngo; (ii) das resistências dos
monarcas kôngo, principalmente o Dom António, Vit’a Ñkânga; (iii) da forma que
foi queimada a profetisa Chima Vita. Essas histórias resumem-se em Kûlumbîmbi,
o que restou dos ancestrais.
Na segunda fase, a ideia da Igreja Santa Maria, que será mais tarde feita São
Salvador, elevada a catedral, no fim do século XVI, ainda é lembrada pelo poder
econômico e político que, normalmente, se associa ao tráfico negreiro. Curiosamente,
onde está erigida essa magna igreja elevada a catedral era um local de cultos aos
ancestrais, para os Kôngo, antes da instalação portuguesa. Isto é, a igreja (nzo’a
wukîsi) se confunde com ngûndu, cemitério da Mãe ancestral. Serão os príncipes
kôngo – com nacionalismo kôngo – que, no final do século XIX, darão início a isso.
Essas duas fases levaram as populações locais a considerar as ruínas da catedral
de São Salvador como uma obra divina. A explicação parece simples: os Kôngo
católicos/ protestantes (letrados ou não) consideram essas ruínas como misteriosas
por estarem no cemitério pagão, anticristão. Esse aspecto permite desconfiar de
que se trataria da antiga catedral de São Salvador. Curiosamente, o termo nzo’a
wukisi, que serviu para designar – pela primeira vez – essa mesma igreja, tem hoje
um sentido pejorativo: casa dos feitiços. Desta feita, é descartada para a memória
local a possibilidade de as ruínas serem a antiga igreja católica. Daí, Ngûndu, que
é – também – designativo do local, prevalece. Ora, ngûndu constitui o mito pagão
da origem do mundo. A memória coletiva será então balizada: Kûlumbîmbi terá
uma origem divina porque ninguém o construiu.
Considerações Finais

Na atual capital da província do Zaire, em Angola, encontramos as ruínas de uma


antiga igreja católica romana que, em 1492, chamava-se Igreja de Santa Maria, e,
mais tarde, em 1591, de São Salvador, após ser reerguida. Com os despovoamentos
repetitivos – consequência das lutas entre os portugueses e as famílias aristocratas
ou monarcas kôngo, e ainda com o processo da proclamação da independência de
Angola – perduraram as sequelas. Um lugar que se apropria, se perde e, novamente,
se ressignifica, espelhando, de alguma forma a história desses lugares45.
A memória coletiva local desconhece essa igreja. No local, a memória salienta
o culto dos ancestrais (Ngûndu), que lembrava a origem de todos os Kôngo. E, em
relação às ruínas, a tradição oral é unânime: “Deus que criou”. Na impossibilidade
de interpretar essa frase em analogia com “igreja” ou “templo de culto de Deus”,
tentamos aqui reconstruir os parâmetros da memória coletiva local e buscar
nos arquivos antigos – felizmente publicados em livros nos dias de hoje – para
compreender a construção dessa memória.

45
Cf. MANGA-AKOA, François. L’Afrique. Histoire d’une longue errance? Paris: Les Éditions
L’Harmattan. 2007.

178 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
Na cidade de Mbânza Kôngo atual, localizada na In the city of actual Mbânza Kôngo, Angolan
província angolana do Zaire, encontramos algumas Province of Zaire, we find some ruins locally
ruínas localmente chamadas “Kulumbimbi” (quer called “Kûlumbîmbi” (“what remains from the
dizer, “o que restou dos ancestrais”). Essas ruínas Ancestors”). These ruins structure the local
constituem, por um lado, a memória local: “Deus memory: “God created them”, People saying. In
que criou essas ruínas”, dizem as populações. the other hand, there are historical documents
Por outro, há documentos históricos que fazem mentioning it, thereof, as Cathedral since sixteenth
menção dessa catedral desde século XVI, embora century. Pictures from nineteenth century show
as imagens (gravuras) irão surgir no século XIX. the ruins. We are interesting in reconstructing the
Interessa-nos reconstruir os limites da memória parameters of memory and of historiography, as
e da historiografia dessas ruínas e compreender well, of these ruins and find out the dynamics of
o processo formador/ transformador dos fatos them in actuality. Kôngo nationalism born on
em memória, na atualidade. O nacionalismo some local dominated by a memory stereotyped
kongo que nasce num espaço dominado por by some Rhizomatic Angolanity of UPA, which
essa memória estereotipou uma angolanidade prevails until today in the political organization of
rizomática da UPA que prevalece ainda hoje FNLA. This Angolanity defends the local identities
na organização política denominada FNLA. É in national identity (Angolan). And, although
uma angolanidade que defende as identidades some positions are exclusivists/ authenticists, its
locais como modeladoras da identidade nacional fundamental intention consists in integrating the
(angolana). E, ainda que algumas posturas Global with some peculiar identity. This article
seja exclusivistas/ autenticistas, a sua intenção seeks to localize the origin of this process.
fundamental é integrar na globalidade com algum Keywords: Rhizomatic Angolanity; Mbânza-
peculiaridade identitária. Este artigo procurar Kôngo; Memory.
situar a origem disso tudo.
Palavras Chave: Angolanidade Rizomática;
Mbânza-Kôngo; Memória.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 179
REFLEXÕES SOBRE UM PROJETO DE PESQUISA EM
HISTÓRIA COMPARADA:
HAGIOGRAFIA, SOCIEDADE E PODER NA
PENÍNSULA IBÉRICA MEDIEVAL1
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva2
Leila Rodrigues da Silva3

Desde fins de 2008 coordenamos o projeto coletivo de pesquisa intitulado


Hagiografia, sociedade e poder: um estudo comparado da produção visigótica e
castelhana medieval, envolvendo alunos de graduação, pós-graduação e egressos.
Esta investigação foi proposta visando à articulação de dois projetos de pesquisa
coletiva já em curso, a saber, O processo de organização eclesiástica e a normalização
da sociedade nos reinos suevo e visigodo: perspectivas analítica e comparativa e
Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade.
Ao desenvolvermos este projeto, temos como principais metas: o aprofundamento
do estudo das hagiografias medievais ibéricas em perspectiva comparada, em
harmonia com a área de concentração do Programa de Pós-graduação em História
Comparada – PPGHC, em que atuamos; a consolidação do Programa de Estudos
Medievais da UFRJ como um núcleo de estudos sobre a hagiografia, a normatização
da sociedade e as relações de poder na Idade Média, e a formação de novos
pesquisadores, em nível de graduação e pós-graduação.
O fenômeno da santidade no período medieval possui várias facetas, tal como
observa Sofia B. Gajano4. Desta forma, pode ser abordado não somente como um
fenômeno religioso, mas também social, institucional, econômico, político, etc. Além
disso, a crença em homens e mulheres considerados santos manifestou-se de diversas
formas no medievo, em particular nas diferentes expressões artísticas e na literatura.
Dentre as muitas possibilidades de abordagem da santidade, o objeto de estudo
deste trabalho são os chamados textos hagiográficos5, ou seja, aqueles escritos que
apresentam aspectos da trajetória das pessoas consideradas dignas de veneração.
O culto aos santos iniciou-se ainda na Igreja antiga, porém, foi na Idade Média,
com a expansão do cristianismo, que se difundiram. Vinculado ao crescimento
da veneração aos santos, as hagiografias multiplicaram-se. O principal objetivo
destas obras era a publicização dos feitos de determinados santos, por meio da
difusão de uma memória sobre eles, estimulando o seu culto em articulação com o
1
Financiamento da pesquisa: FAPERJ, CNPq e UFRJ.
2
Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do Instituto de
História da mesma IES. Pesquisadora do CNPq. E-Mail: <andreiafrazao@terra.com.br>.
3
Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do Instituto de
História da mesma IES. E-Mail: <leila.rlk@terra.com.br>.
4
Cf. GAJANO, S. B. “Santidade”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coords.).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2002. 2v. V. 2, p. 449-463.
5
Dentre os textos de natureza hagiográfica, podemos destacar os Martirológios, os Legendários, as
Revelações; Atas, Vidas, Calendários, Tratados de Milagres, Processos de Canonização, Relatos de
Trasladação e Elevações. Cf. LINAGE CONDE, A. “La tipología de las fuentes de la Edad Media
Media Occidental”. Medievalismo, Madrid, v. 7, n. 7, 1997, p. 265-290.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 183
fortalecimento institucional de monastérios e bispados que os tinham como patronos.
As hagiografias medievais não exibem unidade quanto à forma, organização
ou processo de composição. Alguns textos possuem caráter institucional, como as
bulas e os processos de canonização, ou particulares, como sermões, cartas, etc.
Nos primeiros séculos da Idade Média, o latim, a língua dos cultos e da Igreja, foi
utilizado para a redação dessas obras. A partir do fim do século XII, as hagiografias
começaram também a ser traduzidas ou escritas nas línguas vernáculas, passando
a alcançar um público mais amplo.
Estes textos foram elaborados majoritariamente por eclesiásticos, tanto clérigos
como religiosos, atores sociais comprometidos com a instituição eclesiástica e
inseridos em redes de poder. Logo, a produção dos referidos materiais não busca
somente estimular a veneração aos considerados santos, mas também expressar
traços textuais e culturais característicos dos momentos de sua produção e evidenciar
facetas das relações de poder das sociedades em que se inserem. Desta forma, ainda
que tratem do mesmo santo, tais obras apresentam diferenças quanto à forma e ao
conteúdo.
No estudo das hagiografias, portanto, há que considerar que estes escritos
interagem com um conjunto diverso de elementos, tais como as tradições que lhe
são anteriores; os padrões de comportamento que os eclesiásticos desejavam impor
ao conjunto de fiéis; os interesses diversos, as crenças e os valores dos grupos que
os patrocinaram e/ ou produziram; o grau de saber e as escolhas dos redatores; o
público que se desejava atingir; as motivações para a sua redação, as relações de
poder instituídas no momento de redação, etc. Por outro lado, estamos cientes que
tais textos foram difundidos em constante diálogo com a sua recepção, ganhando
novos sentidos ao serem transmitidos. Desta forma, nossa análise recusa a idéia de
que os textos são reflexos diretos da organização social e procura atentar para os
múltiplos elementos que lhes constituem e dão sentido.
Nesta pesquisa, dedicamo-nos ao estudo comparativo, sincrônico e diacrônico,
de quatro textos hagiográficos produzidos na Península Ibérica, em períodos e
conjunturas distintas do medievo, a saber, no reino visigodo e no reino de Castela:
Vita Sancti Fructuosi, Vita Sancti Aemiliani, Vita Dominici Siliensis e a Vida de San
Millán de la Cogolla.
A Vita Sancti Fructuosi (VSF) foi escrita em fins do século VII, por autor anônimo.
Dividida em vinte capítulos, a obra centra-se na figura de Frutuoso, em especial,
no seu empenho em desenvolver a atividade monástica, por meio da fundação de
cenóbios. Frutuoso viveu entre os anos de 610 e 665, tendo sido consagrado bispo
de Dume e, pouco depois, de Braga, em 6566.
A VSF distingue-se por um estilo simples e quase sempre direto, ou seja, o
hagiógrafo faz um relato narrativo, sem a utilização de muitos recursos retóricos.
A existência e a análise de textos contemporâneos – como a Regula monachorum,
escrita pelo próprio Frutuoso –, que atestam detalhes da sua vida, permitem-nos
identificar na VSF lacunas e imprecisões, mas favorece, também, a certeza de que
a obra mantém referências cuja historicidade não deve ser negada. A versão que

6
DÍAZ Y DÍAZ, M. C. “Notas para una cronologia de Frutuoso de Braga”. Bracara Augusta, Braga,
v. 21, 1968, p. 222.

184 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
utilizamos na presente pesquisa foi produzida pelo reconhecido filólogo, especialista
em estudo de textos clássicos e medievais, Diaz y Diaz, e publicada em 1974.
Vários manuscritos da VSF foram preservados, sendo o mais antigo o “T”,
concluído em 902 e identificado, como a maioria deles, com a compilação
hagiográfica realizada, no século VII, por Valério de Bierzo. Entre os séculos X-XIII,
foram produzidos pelo menos mais sete cópias, dentre as quais a “E” e a “e”, que
foram produzidas no mosteiro de San Millán de la Cogolla7.
A Vita Sancti Aemiliani (VSA) foi escrita em torno de 640, por Bráulio, bispo de
Saragoça. Dividida em trinta e duas partes - um prefácio e trinta e um capítulos -, a
obra circulou durante a Idade Média acompanhada de uma carta do autor dirigida
a seu irmão, Frominiano, a pedido de quem produzira o escrito a ser lido durante
a missa. O texto descreve a trajetória de Emiliano, homem santo, que teria vivido
entre os anos de 473 e 574.
Bráulio, que viveu entre 590 e 651, foi identificado em sua época, entre outras
razões, por sua erudição e dedicação à instituição eclesiástica. Tais aspectos norteiam
a redação da VSA, assim como o conjunto da sua obra8. Utilizando-se de vários
recursos literários, Bráulio produz um relato que poderíamos caracterizar como
dividido em dois blocos. No primeiro deles, constituído pela carta de apresentação e
pelo prefácio, o autor adota uma linguagem rebuscada. Tal característica, entretanto,
não se mantém por todo o escrito. Atento ao contexto à sua volta, indica uma de
suas preocupações quanto à divulgação do material: “Por tanto, dicté, como pude, y
escribí en lenguaje sencillo y claro, como conviene a tales asuntos” (VSA, prólogo).
Desse modo, estabelece seu compromisso com uma linguagem mais simples e
clara que marcará o segundo bloco, constituído em sua maior parte pela exposição
dos milagres de Emiliano. Utilizamos, no projeto ora comentado, a edição latina
preparada por Vázquez de Praga, de 1943,9 e a espanhola de Toribio Minguella,
de 197610.
Esta obra foi preservada em nove manuscritos produzidos entre os séculos X
e XIII: “A”; “B”; “C”; “E”; “F”; “H”; “P”, e “L”11. O primeiro deles, o “A”, procede
originariamente do mosteiro de San Millán e remonta ao século X, enquanto que o
segundo apenas teria sido produzido no século XII12.
A Vita Dominici Siliensis (VDci) teve a sua redação iniciada no século XI por um
monge do mosteiro de Silos13, identificado pelos pesquisadores como Grimaldo,
religioso de origem franca que teria chegado à comunidade silense devido à influência
7
ANÔNIMO. La vida de San Fructuoso de Braga. Traducción y edición crítica de Manuel Díaz y
Díaz. Braga: s.r., 1974, p. 32-63.
8
Dentre as obras atribuídas a Bráulio e preservadas, além da VSA, destacam-se um conjunto de
trinta e duas cartas e um documento conhecido como “Praenotatio”, espécie de catálogo dos textos
de Isidoro de Sevilha. LYNCH, C. H.; GALINDO, P. San Braulio obispo de Zaragoza (631 - 651):
su vida y sus obras. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1950, p. 231-254.
9
BRAULIONIS, Sancti Caesaraugustani episcopi. Vita S. Emiliani. Edição crítica de Luis Vazquez de
Parga. Madrid: Instituto Jeronimo Zurita, 1943.
10
BRAULIO DE ZARAGOZA. “Vida y milagros de San Millán”. Traducción por Toribio Minguella.
In: B. OLARTE, Juan (org.). San Millán de la Cogolla. Madrid: Librería Editorial Augustinus, 1976,
p.11-40.
11
BRAULIONIS, Vita S. Emiliani, p. XX.
12
LYNCH & GALINDO, San Braulio…, p. 259-264.
13
Nesta primeira etapa de redação foram compostos o livro I e o II até o capítulo 39.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 185
de Cluny no monacato beneditino na Península Ibérica. Durante o século XII, esta
obra foi alvo de ampliações de pelo menos dois autores anônimos14. Como destaca
Válcarcel, este núcleo original “tendía a recoger, a medida que el tiempo y la tradición
avanzaban, toda la creación literária em latín que el monastério iba produciendo
sobre el santo”15.
Esta vita apresenta Domingo, que viveu entre 1000 e 1073 e se destacou pelo
trabalho de reforma material e espiritual desenvolvido na comunidade de Silos
na época em que ali foi abade. Este texto foi escrito em latim e, na versão atual,
encontra-se dividido em três livros: no primeiro narra episódios referentes à trajetória
do santo, aos milagres que teria realizado em vida, à sua morte, sepultamento e
elevação ao altar da igreja abacial. No segundo e no terceiro, os hagiógrafos se
dedicaram somente aos milagres atribuídos ao Santo após a sua morte.
Sabemos que o núcleo inicial da VDci foi redigido a pedido do abade Fortunio,
que substituiu Domingo à frente da comunidade de Silos, como parte das iniciativas
voltadas ao reconhecimento da santidade do antigo abade, transformado em patrono
da comunidade justamente naquele período. O texto foi escrito em prosa e visava
como público alvo, sobretudo, aos próprios monges da comunidade silense. Ele
foi transmitido por dois manuscritos medievais: o “S”, Códice n. 12 da Biblioteca
de Silos, provavelmente de início do século XIV, e o “R”, n. 5 da Real Academia
Española, datado do século XV. A versão que utilizamos neste projeto é a edição
crítica e bilíngue (latim/ espanhol) preparada por Vitalino Valcárcel e publicada em
198216.
A Vida de San Millán de la Cogolla (VSM), tal como a VSA, já apresentada,
dedica-se a narrar a trajetória de São Emiliano. Foi redigida pelo clérigo secular
Gonzalo de Berceo, por volta de 1230. Esta obra foi composta em castelhano, em
estrofes de quatro versos alexandrinos e a partir de fontes escritas, certamente a
pedido da comunidade monástica de San Millán de la Cogolla, um dos maiores
e mais ricos mosteiros ibéricos medievais, mediante pagamento. Além da Vita de
Bráulio de Zaragoza, principal fonte das estrofes 1 a 361, foram utilizadas, dentre
outras, o Privilegio de Fernán Gonzalez, os Annales Compostelani, o Cronicon de
Cardeña, o Cronicon de Burgos, as crônicas Silense e Najerense, a Translatio Sancti
Emiliani, o Cantar de Roncesvales, a Crónica de Alfonso III e o Liber Miracolum
Sancti Emilianae.
O poema divide-se em três livros. O primeiro apresenta a biografia do santo. O
segundo, os feitos milagrosos realizados em vida e sua gloriosa morte. O terceiro,
os milagres pós-morte, dentre os quais se destaca o que teria ocorrido no século
X, quando, junto a Santiago, lutara ao lado dos reis cristãos contra os mouros na
batalha de Simancas. Neste texto, Emiliano é considerado patrono de Castela e
fundador do mosteiro de San Millán de la Cogolla. Esta obra foi transmitida por
cópias do século XVIII: “O”, que contém as estrofes 1 a 205 e pertence ao acervo
da Biblioteca Nacional de Madrid, “M”, com as estrofes 206 a 489, e acha-se no

14
Quando foram acrescentados capítulos ao livro II e foi escrito o III.
15
VALCARCEL, Vitalino. La Vita Dominici Siliensis de Grimaldo. Estudio, Edición Crítica y
Traducción. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1982, p. 54.
16
VALCARCEL, La Vita Dominici...

186 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Arquivo dos Beneditinos de Valladolid17; “I”, que está no Mosteiro de Santo Domingo
de Silos; “L”, do Arquivo de Valladolid. Utilizamos em nossa análise a edição crítica
deste poema elaborada por Brian Dutton18.
Em sintonia com as atuais tendências historiográficas internacionais, este
projeto vincula-se ao interesse acadêmico pelos estudos hagiográficos que pode ser
constatado pela quantidade de trabalhos que são produzidos e publicados sobre a
questão a cada ano, como os periódicos especializados, como a Analecta Bollandiana,
Hagiologia e Hagiographica; a edição crítica de fontes; a organização de associações
científicas, com sede em diversos países e que reúnem pesquisadores de todo o
mundo, como a Arbeitskreis für Hagiographiesche Fragan, a Associazione Italiana
per lo Estudio della Santitá, dei Culti e dell' Agiografia, o Hagiologia: Atelier Belge
d’Etudes sur la Santeté e a Hagiography Society; a manutenção, por universidades
e centros de pesquisa de diferentes países que mantém homepages sobre o tema19,
bem como de listas de discussão acadêmica20; a organização de congressos que
reúnem especialistas para apresentar e discutir suas conclusões de pesquisa a partir
da investigação de documentos hagiográficos, como o que foi realizado em Lyon,
França, em outubro de 2010, sobre o tema Normes et hagiographie au Moyen Âge.
Apesar dos avanços no campo dos estudos sobre a hagiografia, ainda há muitas
temáticas e questões a explorar, principalmente no que se refere aos textos produzidos
na Península Ibérica. São ainda poucos os trabalhos que se dedicam a estudar,
na perspectiva histórica comparada, sobretudo diacrônica, as obras hagiográficas
produzidas naquela região. Considerando a ausência de materiais que, de forma
sistemática, analisem e comparem a produção hagiográfica no âmbito da Península
Ibérica, buscamos uma abordagem voltada aos elementos textuais, às proposições
comprometidas com a indicação de padrões de conduta e às relações de poder de
naturezas variadas21, evidenciadas na escrita hagiográfica produzida, primeiramente,
no reino visigodo e, posteriormente, no reino de Castela.
No desenvolvimento deste projeto, dialogamos com a historiografia já produzida
sobre hagiografia medieval22, em especial a ibérica, buscando problematizar as
abordagens tradicionais e construir novas perspectivas de análise. Objetivamos, ao
estudar cada hagiografia selecionada em particular, identificar e analisar os seus
elementos textuais. No segundo momento, à luz do contexto de produção de cada
obra, buscamos verificar aspectos concernentes à indicação de normas de conduta
para clérigos, religiosos e laicos e às relações de poder eventualmente expressas em
tais obras.
No tocante à comparação, destacamos duas etapas. Na primeira confrontamos as

17
“O” e “M” que, de fato, são partes do mesmo texto copiado por Diego Mecalaeta.
18
GONZALO DE BERCEO. Obras completas. 2. ed. Estudo e edição crítica por Brian Dutton.
Londres: Tamesis Books, 1984. v. 1: La vida de San Millán de la Cogolla.
19
Consultar, por exemplo: <http://www.doaks.org/research/byzantine/projects/hagiography_
database/>; <http://www.unioviedo.es/CEHC/>; e <http://www.the-orb.net/encyclop/religion/
hagiography/hagindex.html>.
20
Como, por exemplo, a lista <medieval-religion@mailbase.ac.uk> e a brasileira <santidade-
poder@yahoogrupos.com.br>.
21
Tais como as relações de poder derivadas do gênero, do status religioso, da hierarquia eclesiástica,
do exercício do poder monárquico, etc.
22
Como algumas das obras citadas neste artigo.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 187
hagiografias do mesmo período e, depois, as visigóticas face às castelhanas, a fim de
identificar e analisar aspectos textuais que evidenciam permanências e rupturas na
escrita hagiográfica. Também identificamos e analisamos elementos de confluência
e de divergência concernentes à imposição de comportamentos modelares para
clérigos, religiosos e laicos e às relações de poder relacionadas às suas produções.
Para realizarmos esta comparação, seguimos a proposta do historiador Jürgen
Kocka, presente no artigo Comparison and beyond23. De acordo com o autor,
“comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos
sistematicamente a respeito de suas singularidades e diferenças de modo a se alcançar
determinados objetivos intelectuais”24. Esta definição coaduna-se perfeitamente
com os propósitos do projeto, visto que elege os fenômenos históricos como
objetos a serem comparados, diferentemente da História Comparada Clássica, que
só vislumbra a possibilidade de comparação entre sociedades contemporâneas e
vizinhas.
A comparação de fenômenos, e não de sociedades, permite diminuir a escala
de observação e analisar aspectos particulares. Tais objetivos podem ser alcançados
justamente devido aos propósitos heurísticos, descritivos, analíticos e paradigmáticos.
Heurísticos, porque “permite identificar questões e problemas que se poderiam de
outro modo perder, negligenciar ou apenas não inventariar”25. Descritivos, pois “a
comparação histórica ajuda a esclarecer os perfis de casos singulares”26. Analítico,
porque “pode exercer o papel de um experimento indireto, facilitando o testar
hipóteses”, já que propicia o levantamento de questões e hipóteses sobre a relação
entre os fenômenos27. Paradigmático, pois, ao contrapormos hagiografias visigóticas
e castelhanas, é possível verificar o distanciamento entre elas28. Ou seja, a partir da
comparação identificamos e analisamos aspectos que, possivelmente, não ficariam
evidenciados em uma análise isolada destes textos.
Desta forma, pautados na abordagem comparativa de Kocka e dialogando com
a literatura comparada29, realizamos um trabalho de comparação das hagiografias,
identificando, como já destacado, diferenças formais em sua organização textual
e referências que apontam para a elaboração de normas para toda a sociedade,
bem como que se relacionam às relações de poder instituídas em cada contexto de
produção. Vale sublinhar, mais uma vez, que se trata de um exercício de comparação
que combina a análise sincrônica e a diacrônica. Ou seja, não visamos somente
contrapor as hagiografias selecionadas ao seu contexto imediato de produção, mas
também discutir que traços textuais, padrões de conduta e relações de poder que
particularizam as hagiografias produzidas no reino visigodo e em Castela.
Foi esta preocupação com a sincronia e a diacronia que nos fez selecionar as
hagiografias já apresentadas. A escolha das hagiografias visigóticas, a VSA e a VSF,
decorre do fato de terem sido produzidas em ambientes eclesiásticos distintos. Ainda
23
Transcrevemos aqui a tradução do texto de Kocka realizada por Maria Elisa da Cunha Bustamante.
24
KOCKA, Jürgen. “Comparison and beyond”. History and Theory, Middletown, n. 42, 2003, p. 39.
25
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 40.
26
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 40.
27
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 40.
28
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 41.
29
Sobre as novas perspectivas de literatura comparada ver: CIORANESCU, Alexandre. Principios de
Literatura Comparada. Santa Cruz de Tenerife: Idea, 2006.

188 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
que o autor da VSF não seja conhecido, esta obra foi escrita em um espaço monástico.
Já a VSA, trata de um eremita que foi ordenado sacerdote e foi redigida por um bispo.
Ou seja, mais vinculada ao universo clerical. A opção pela VDS justifica-se pelo fato
de apresentar um santo contemporâneo e, portanto, sem qualquer vinculação com
o passado visigótico, visto que seu autor foi o primeiro a construir uma memória
sobre santo Domingo30. A eleição da VSM justifica-se na medida em que retoma um
personagem já consagrado como santo há séculos, Emiliano. Assim, em uma análise
qualitativa, contamos com uma espécie de variável de controle31. Ou seja, o fato
de um mesmo santo ter sido tratado por hagiografias de épocas distintas favorece a
avaliação das transformações formais e de conteúdo pelas quais os textos passaram.
Das hagiografias visigóticas às castelhanas, elementos foram introduzidos, alterados,
suprimidos, mais ou menos valorizados; ou seja, o recurso adotado certamente nos
proporciona melhores condições de análise. A seguir, apresentamos algumas das
nossas principais conclusões de pesquisa32.
Aqui não é demais lembrar que a conjuntura na qual a VSF e a VSA foram escritas
demandava das autoridades clericais atenção à cristianização. A conversão dos
monarcas visigodos em fins do século anterior fornecera à Igreja local instrumentos
materiais para a expansão da fé, mas muito havia ainda que ser feito. Nesse contexto
pós-conversão, as autoridades religiosas locais buscaram ampliar o raio de atuação
e penetração do cristianismo junto aos habitantes do reino, concomitantemente ao
reforço da instituição eclesiástica, com amplo investimento na realização de concílios,
qualificação dos quadros internos, reforço da disciplina, uniformização da liturgia,
fortalecimento da atividade monástica, entre outras atividades.
Frutuoso, o santo hagiografado pelo autor anônimo da VSF, nasceu na região do
Bierzo, em torno de 610, e sua família integrava a nobreza. Sua formação intelectual,
atestada especialmente pelas referências em seus escritos33 ao texto bíblico, às obras
de Cassiano e de Jerônimo, entre outros autores, é compatível com a que se atribui
de um modo geral aos integrantes do episcopado hispânico.
Além da interação com os aspectos que caracterizaram a conjuntura após a
30
Segundo Borbolla, há uma notícia, encontrada por Úria Maqua, sobre uma possível vida de Santo
Domingo redigida em prosa por um monge de Ripoll, Armengol Rogerio, que teria passado uma
temporada em Silos. Esta obra seria anterior a VDci. Esta é a única referência a esta possível
hagiografia. Cf. GARCÍA DE LA BORBOLLA, A. “Santo Domingo de Silos, el santo de la frontera.
La imagen de la santidad a partir de las fuentes hagiográficas castellano-leonesas del siglo XIII”.
Anuario de Estudios Medievales, Madrid, v. 31, n. 1, 2001, p. 128, nota 5.
31
A variável de controle é aquela que, como o nome indica, é controlada pelo pesquisador. Este
elemento permite observar, através da comparação, como se dá a passagem de um fenômeno a
outro. Em nosso caso, a variável de controle reside no fato de que duas das obras em análise tratam
do mesmo santo. Este aspecto serve de controle ou parâmetro para avaliar o grau de transformação
formal e de conteúdo entre as hagiografias visigóticas e castelhanas.
32
Vale destacar que parte das conclusões aqui apresentadas já foram alvo de trabalhos apresentados
em eventos acadêmicos e/ ou publicados em forma de artigos, capítulos de livros ou textos
completos em anais. As referências completas de tais textos podem ser encontradas em nossos CV
Lattes.
33
Frutuoso escreveu dois textos para a comunidade monástica: Regula Monachorum e Regula
Communis. FRUTUOSO. “Regula Monachorum”. “Regula Communis”. In: REGLAS Monasticas
de España Visigoda. Los tres libros de las “Sententias”. Edición de Julio Campos y Ismael Roca.
Madrid: BAC, 1971, p.137-162; FRUTUOSO. “Regula Communis”. In: REGLAS Monasticas..., p.
172-208.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 189
conversão, a trajetória de Frutuoso também esteve marcada pela instabilidade política
resultante de conflitos entre as facções dirigentes do reino. Considerando que membros
do seu grupo nobiliárquico foram vítimas dos confiscos de propriedades realizados
pelo monarca Chindasvinto (642-653), sua elevação ao episcopado bracarense,
no X Concílio de Toledo (656)34, pode ter resultado de ações implementadas por
Recesvinto (653-672). Este rei, visando ampliar as suas bases de poder, buscou
compensar segmentos da nobreza prejudicados durante o governo do seu pai35. É
possível, pois, que a indicação de Frutuoso ao bispado fizesse parte dos acordos
realizados entre monarquia e segmentos da nobreza, que Recesvinto tentava atrair
como aliados36.
O percurso de Frutuoso compreendeu a participação em concílios, a liderança
de um movimento político que buscava reivindicar junto a Recesvinto a devolução
de propriedades confiscadas37 e uma ativa correspondência com outros bispos38.
Apesar da sua atuação em frentes diferenciadas, as atividades que desenvolveu
relacionadas à fundação de mosteiros e à organização da vida monástica foram,
sem dúvida, as que garantiram sua fama na posteridade39.
Dos vinte capítulos que compõem a VSF, apenas sete (5; 9-13, e 17) não se
dedicam explicitamente a demonstrar a atividade monástica de Frutuoso, em especial
a sua capacidade de fundar mosteiros nas mais inacessíveis regiões. A maior parte
dos milagres presentes na obra realiza-se, inclusive, para garantir que a sua vocação
de organizador da vida monástica seja preservada (VSF 3; 7; 13, e 14). Devemos
lembrar, no entanto, que o hagiógrafo não deixou de salientar sua simpatia pelo
eremitismo. O santo é associado explicitamente à vida solitária em, pelo menos,
três situações ao longo do texto (VSF 4; 8-9). De qualquer modo, tal simpatia não
o torna refratário às orientações da hierarquia eclesiástica, já que, como sabemos,
tornou-se bispo.
Os milagres presentes na VSF, assim como suas virtudes, identificam Frutuoso
como um mediador entre os homens e a divindade, como é próprio dos santos, mas
reservam-lhe lugar destacado no que diz respeito à atividade monástica. Em um
contexto de expansão do cristianismo e de fortalecimento da igreja local, o hagiógrafo
valorizou a trajetória frutuosiana pela disposição em multiplicar os cenóbios existentes
na região e por representar um modelo a ser seguido pelos monges: “(...) com seu
exemplo (...) iluminou a Hispânia inteira e por meio das congregações de monges nas
34
CONCILIOS Visigóticos e Hispano-Romanos. Edición de Jose Vives. Madrid: CSIC. Instituto
Enrique Florez, 1963, p. 308-324.
35
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989, p. 166-169.
36
Outro indício de que a conjuntura de instabilidade política de algum modo interferiu no percurso
de Frutuoso diz respeito ao grande influxo de monges às casas monásticas organizadas na Galiza,
sob sua orientação. Muitos buscaram nos mosteiros proteção, ou seja, segurança diante das
dificuldades políticas e econômicas. Segundo a Vita Fructuosi, alguns duques do exército teriam,
inclusive, solicitando ao rei que atuasse no sentido de evitar que tantos jovens ingressassem nos
mosteiros. ANÔNIMO La vida de San Fructuoso de Braga… op. cit., p. 105-107.
37
LÓPEZ QUIROGA, Jorge. Actividad Monástica y acción política en Fructuoso de Braga. Hispania
Sacra, Madrid, n.109, p. 7-22, 2002, p. 18.
38
BRAULIO. Epistolario. Introducción, edición crítica y traducción Luis Riesco Terrero. Sevilla:
Catolica Española, 1975, p. 163-183.
39
Compludo foi a primeira das casas monásticas fundadas por Frutuoso. A esta se seguiu
aproximadamente uma dúzia. Cf. FLÓREZ MANJARIN, Francisco. Compludo: primer monasterio
de San Fructuoso. Bracara Augusta, Braga, v.22, fasc. 52-54, p. 03-10, 1968, p. 3.

190 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
diversas regiões alimentou grupos de perfeitos discípulos à imagem e à semelhança
de seu puro coração (...)” (VSF, capítulo 16).
Bráulio, autor da VSA, era integrante da aristocracia assentada no norte do
reino visigodo. Suas origens sociais lhe garantiram formação escolar dentro dos
padrões clássicos, acessível, no período, apenas à elite. Ao se dedicar a destacar os
feitos de Emiliano, buscava, primeiramente, atender o pleito de seu irmão, o abade
Frominiano, com o qual compartilhava as motivações para a redação de um texto
hagiográfico. O escritor, portanto, colocou sua erudição a serviço de um projeto
com o qual estivera particularmente envolvido, pois o local onde Emiliano havia
vivido estava compreendido na área de influência política e religiosa da família de
Bráulio. A promoção do seu culto potencialmente garantiria a canalização das muitas
vantagens que daí pudessem decorrer.
Além dos interesses associados à sua família, também se sobressai como motivação
para redação de sua obra a preocupação com o fortalecimento da igreja visigoda,
ao qual se vinculava a ampliação e manutenção dos fiéis, ou seja, a expansão do
cristianismo, tal qual o hagiógrafo de Frutuoso. Emiliano era, provavelmente, uma
figura popular na região, mas que vivera a maior parte da sua vida como eremita,
à margem da instituição eclesiástica. Ainda que não hostilizasse as autoridades
religiosas, buscou viver fora da hierarquia clerical enquanto pode, ou seja, até,
após nomeação do bispo local, ocupar por curto período cargo eclesiástico. Assim,
a divulgação da imagem de um homem santo popular, cujas ações e modo de
vida estivessem em harmonia com as diretrizes da igreja visigoda poderia não só
estimular os cristãos a viverem em retidão, como, certamente, contribuiria àquele
fortalecimento.
Ainda acerca do objetivo da obra, Bráulio anuncia, no prólogo, uma das funções
da narrativa hagiográfica: a apresentação de um modelo de comportamento a ser
seguido ou um modo de vida a servir como estímulo à prática da fé cristã: “(...)
referem-se aqui alguns feitos que todos devemos imitar (...)”40.
Dos trinta e dois capítulos da obra, dez dedicam-se a considerações gerais sobre
a vida de Emiliano (VSA, Prólogo; 1-6; 20; 22 e 27), nos quais se destacam o perfil
eremítico do santo, a obediência à autoridade episcopal e sua experiência cenobítica.
Vinte e dois estão voltados à descrição de seus milagres, incluindo os realizados após
sua morte (VSA, 7-19; 21-22; 24-26 e 30-31). Verifica-se, pois, a preocupação de
Bráulio não apenas em fornecer, como assinalado anteriormente, referências para a
conduta dos cristãos, mas, em consonância com tal intuito, propagar a imagem de
um santo pródigo em milagres, que, embora propenso ao auto-isolamento, atuava
segundo as orientações da instituição eclesiástica.
A VSA, produzida para ser lida na missa do santo, dirigia-se a religiosos e laicos.
Acreditamos, pois, que o texto cumpria com suas funções ao sublinhar a importância
da hierarquia e da disciplina para os primeiros; ao fornecer provas, por meio da
descrição dos muitos milagres, da verdadeira fé aos segundos, e ao garantir a todos
um modelo de comportamento em consonância com os valores cristãos.
Gonzalo de Berceo, que se dedicou a escrever uma nova vida sobre Emiliano,
diferentemente de Bráulio, não era membro da elite sacerdotal ou da aristocracia.
40
VSA, Prólogo.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 191
Compunha o clero paroquial do povoado de Berceo, uma localidade sem grande
importância econômica, religiosa ou política, que fora recentemente incorporada
definitivamente ao reino de Castela. Provavelmente obteve sua formação intelectual
em uma escola urbana, talvez na recém-organizada Universidade de Palência, mas
isto não significa que era membro de uma família nobre ou rica. Neste período de
reorganização da disciplina eclesiástica sob a direção de Roma, os clérigos foram
estimulados a estudar, inclusive com a concessão de bolsas de estudos, para se
prepararem para a cura animarum.
A versão berceana da vida de Emiliano foi composta em um momento em que
a cristianização da península já fora consolidada há séculos e outros problemas se
colocavam para a Igreja romana e local: o perigo da heresia, o crescimento da piedade
leiga, a intervenção dos leigos nas questões eclesiásticas, a presença muçulmana
no sul da Hispânica, etc. Diferentemente da de Bráulio, a narrativa berceana sobre
Emiliano não tinha como alvos a cristianização do seu público, o prestígio de sua
família ou o fortalecimento da Igreja, mas foi norteada pelo objetivo de apresentar
um eclesiástico exemplar, cujo comportamento seguia as normativas do Concílio
Lateranense IV. Esta assembleia, que reuniu representantes de toda a cristandade
romana em 1215, sob a direção do papa Inocêncio III, visava, dentre outros objetivos,
normatizar o comportamento dos clérigos e religiosos.
Como Gonzalo de Berceo também possuía laços estreitos com a comunidade
monástica emilianense, pois ali fora educado e era pároco de um povoado próximo
a tal cenóbio, sua motivação imediata ao redigir a VSM pode ter sido fazer frente à
crise que assolava a comunidade no período. Neste momento foram constantes os
litígios da abadia contra os episcopados calagurritano e burgalês pela jurisdição sobre
templos e terras. Com os novos ideais de vida apostólica e a inserção dos mendicantes
na região, as doações ao emilianense decresceram. Com a expansão das escolas
urbanas, episcopais ou Estudos Gerais, o mosteiro perdeu sua hegemonia como
centro intelectual. Com a consolidação das peregrinações a Santiago de Compostela,
a despeito de abrigar o túmulo do patrono de Castela, Emiliano, o cenóbio já não
atraía o mesmo número de peregrinos. Com a urbanização da região em ritmo
crescente, expansão do comércio e manufatura, a comunidade foi paulatinamente
substituída no papel de organizador da produção. Os próprios vassalos se negavam
a pagar os tributos devidos.
Esta crise repercutiu no seio da comunidade, levando a um distanciamento
entre o abade e os monges e a dissensões entre os membros do grupo41. Assim,
era importante motivar os religiosos, reavivando a memória sobre o santo patrono,
apresentando-o como um cristão ideal e com traços de cavaleiro42. Também se fazia
urgente atrair peregrinos e ofertas e relembrar aos vassalos de suas obrigações com
o mosteiro. Estes dados podem explicar as opções formais do autor, que produziu
um texto em versos ritmados e em castelhano, que, certamente, objetivava alcançar
um público heterogêneo.
41
GARCÍA TURZA, Javier. San Millán de la Cogolla en los umbrales de la crisis: 1200-1300. In:
GIL-DÍEZ USANDIZAGA Ignacio (Coord.). Los monasterios de San Millán de la Cogolla. Jornadas
de arte y patrimonio regional, 6, San Millán de la Cogolla, 6, 7 e 8 de novembro de 1998. Actas...
Logroño: Instituto de Estudios Riojanos - Gobierno de La Rioja, 2000. p. 27-46, p. 31.
42
Um milagre introduzido na VSM é o da aparição milagrosa de Emiliano, ao lado de Tiago, na
batalha de Simancas.

192 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
A VDci, como já assinalado, foi constituída em etapas, entre o fim do século XI
até fim do XII, acompanhando o desenvolvimento da memória de santo Domingo,
relacionada a um cenóbio que pouco a pouco se configurava como um dos mais
ricos da região de Burgos. O então Mosteiro de São Sebastião de Silos, segundo
a tradição, foi fundado por Recaredo, por volta de 593. Contudo, os primeiros
documentos preservados vinculados a este cenóbio datam do século X. Apesar de
atestarem algumas poucas doações, tais documentos indicam que há um intervalo
de quase 100 anos, entre 979 e 1067, sem novos ingressos. Eles só são retomados
nos últimos anos do abaciado de Domingo, quando se iniciou a expansão do
patrimônio da abadia43.
As ofertas foram incrementadas, sobretudo, sob o governo do sucessor de
Domingo, Fortunio44. Assim, é possível relacionar a redação VDci às estratégias
levadas a cabo por Fortunio para ampliar e consolidar o papel da abadia de Silos
frente aos leigos e aos eclesiásticos castelhanos. Neste sentido, em 1076 realizou
a trasladação dos restos mortais de Domingo para a igreja do mosteiro, com a
participação do bispo de Burgos, Jimeno, e, em 1088, a igreja abacial foi consagrada
ao santo, com a presença do arcebispo de Toledo, Bernardo; o legado papal Ricardo;
os bispos de Burgos e de Roda, dentre outros45.
A redação da VDci também pode estar relacionada à conquista castelhana de
La Rioja, ocorrida em 107646. Como sublinha Embid-Wamba, “hace muy difícil
no relacionar esta canonización castellana de Domingo de Silos con la campaña
propagandística que necessariamente había de hacer contrapeso al predicamento
que en el Alto Ebro gozaba la figura de San Millán”47.
Como anteriormente indicado, Millán, ou Emiliano, já tinha um culto consolidado
na região desde o século VII, quando Bráulio escreveu sua Vita. Ele era patrono do
mais importante cenóbio riojano, o já citado San Millán de La Cogolla. Domingo,
antes de ser abade de Silos, fora prior do mosteiro emilianense. Assim, não é de
se estranhar que a VDci articule a trajetória de santidade do abade ao do eremita.
Assim, no livro I, 4, 50, lemos: “el bienaventurado Domingo entrando en el santo
monasterio de San Millán, imitó a este com uma total entrega espiritual y corporal,
lo que llegó a alcanzar, según testifican hoy hechos maravillosos y bien conocidos,
mediante fuerte y admirable constancia”.
Se, porém, aceitarmos a hipótese de Díaz e Díaz, de que as estreitas relações de
irmandade entre os dois mosteiros se iniciaram no século XI48, é possível afirmar
que a VDci não tenha sido produzida para ser um contraponto à memória do santo
visigodo. Ao contrário: o objetivo da VDci seria, por meio da associação entre
43
PÉREZ-EMBID WAMBA, Javier. Hagiología y sociedad en la España Medieval: Castilla y León
(Siglos XI-XIII). Huelva: Universidad de Huelva, 2002, p. 81.
44
WILLIAMS, John. Meyer Schapiro in Silos: Pursuing an Iconography of Style. The Art Bulletin,
Nova Yorque, v. 85, n. 3, pp. 442-468, 2003, p. 454.
45
GARCÍA DE LA BORBOLLA, Ângeles. Santo Domingo de Silos en el siglo XIII: un santo, una
abadia y un rey. Studia Silensia, n. 25, p. 449-464, 2003, p. 449.
46
Esta conquista não foi definitiva, já que La Rioja ficou submetida, de 1109 a 1135, a Aragão,
novamente a Castela de 1135 a 1162, a Navarra de 1162 a 1176 e, definitivamente a Castela, após
1176.
47
PÉREZ-EMBID WAMBA, op. cit., p. 88.
48
DÍAZ Y DÍAZ, M. C. Libros y librerías en La Rioja altomedieval. 2 ed. Logroño: Instituto de Estudios
Riojanos, 1991, 266.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 193
Domingo e Emiliano, fortalecer a comunidade silense, ainda em consolidação como
grande centro religioso e econômico.
Finalizando, sublinhamos que desde a ampliação da noção de fonte histórica
propagada pela Escola dos Annales, os textos hagiográficos têm sido empregados
para o estudo de diferentes objetos, que vão muito além dos aspectos religioso e
teológico. Assim, por meio da análise de tais materiais, é possível discutir, como
realizamos com o desenvolvimento da pesquisa aqui apresentada, diversos aspectos
das relações de poder na Igreja, tais como: o uso político da memória dos santos;
os conflitos de interesses no seio das lideranças eclesiásticas; a difusão de modelos
de comportamento por meio, por exemplo, do controle e fixação, por escrito, da
fama de homens considerados excepcionais e da propagação de normativas sociais.

RESUMO ABSTRACT
Desde fins de 2008 coordenamos o projeto Since 2008 we coordinate a collective project
coletivo intitulado Hagiografia, sociedade e poder: named Hagiography, society and power: a
um estudo comparado da produção visigótica e comparative study of the visigothic and medieval
castelhana medieval. Esta investigação foi proposta castilian production. This was proposed by
visando à articulação de duas pesquisas coletivas an articulation of two researches in progress,
em curso, intituladas O processo de organização titled The process of church organization and
eclesiástica e a normalização da sociedade nos the standardization of society in the Sueve and
reinos suevo e visigodo: perspectivas analítica Visigothic Kingdoms: analytical and comparative
e comparativa e Hagiografia e História: um perspectives and Hagiography and History: a
estudo comparativo da santidade. No presente comparative study of holiness. In this paper we
texto, apresentamos as linhas gerais do trabalho present a resume of this research, which has as
desenvolvido, que tem como principais objetivos main goals the deepen in the study of medieval
o aprofundamento do estudo das hagiografias hagiography in a comparison perspective and the
medievais ibéricas em perspectiva comparada e a consolidation of the Medieval Studies Program of
consolidação do Programa de Estudos Medievais UFRJ as a center of the study of hagiography, of
da UFRJ como um núcleo voltado para os estudos the standardization of society, and of the power
sobre a hagiografia, a normatização da sociedade relations in the Middle Ages, as for the training of
e as relações de poder na Idade Média, e para a new researchers.
formação de novos pesquisadores. Keywords: Comparative History; Middle Ages;
Palavras Chave: História Comparada; Idade Hagiography.
Média; Hagiografia.

194 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
O TRIUNFO DA QUARESMA:
PRÁTICAS ROMANIZADORAS NA FREGUESIA DE
NOSSA SENHORA D’AJUDA
Magno Francisco de Jesus Santos1

Introdução

Um morador inquieto se preparava para o ato solene. No ocaso ele realizava


suas primeiras orações antes do jantar, cercado por familiares. Rezava-se pela mesa
farta. Rezava-se pela família. Clamava-se e dedicava a ceia às Dores da Virgem.
Antônio Conde Dias aparentava estar ansioso para o momento que iria testemunhar.
Na hora da Ave-Maria o sino da matriz dobrava chamando os devotos para o ato
solene. Ouvia-se o estrondo doloroso do bronze e os murmúrios das mulheres
descalças pelas ruas. O patriarca convocava seus familiares para o cortejo e seguia
para o templo sagrado.
Pelas ruas nada de alegria. A população de Itaporanga d’Ajuda, cidade cravada
às margens do Rio Vaza-barris, parecia entender o significado daquele momento. Nas
janelas dos casarões podiam ser vistos jarros de flores, imagens sacras, quadros com
cenas da Via Sacra e velas. Eram os Passos da procissão que iria percorrer as ruas.
Na Praça da Matriz, a imponente igreja encontrava-se de portas abertas, repleta de
devotos venerando as sagradas imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora
da Soledade. Dos povoados e das cidades vizinhas chegavam os romeiros, alguns
vestindo mortalhas e outros com velas nas mãos. Cercado pela família, Antônio
Conde Dias observava os atos de fé e percebia a interação dos devotos com os santos.
O grande sino da Matriz dobrava pela segunda vez. Já eram seis e meia da noite.
Mais devotos adentravam no templo, beijavam os pés do Senhor dos Passos e se
curvavam passando o manto da Mãe das Dores sobre o rosto sofrido. Faltava pouco
para a procissão, momento solene que se inclinava mais “para o ato de externar a
fé do que pelo entendimento da doutrina católica”2. Era o vigor da tradição de uma
cidade católica no período quaresmal.
O personagem descrito acima, Antônio Conde Dias, não era um mero devoto
em meio à procissão que estava prestes a sair. Ele era membro da elite da cidade de
Itaporanga d’Ajuda. Mais do que isso. Também era representante da intelectualidade
católica de Sergipe, pois o mesmo possuía uma coluna no mais importante impresso
católico de Sergipe, A Cruzada, jornal que veiculou notícias da Igreja no estado
entre 1918 e 19693. Uma temática que permeou parte significativa dos seus artigos

1
Mestre em Educação, especialista em Ciências da Religião e graduado em História pela
Universidade Federal de Sergipe. Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense
sob a orientação da Profa Dra. Martha Abreu. Professor da Faculdade José Augusto Vieira e das
redes municipais de ensino de Laranjeiras e Itaporanga d’Ajuda, Sergipe. Email: <magnohistoria@
gmail.com>.
2
FLEXOR, Maria Helena Occhi. “Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto”. In: II Congresso
Internacional Barroco. Porto: Universidade do Porto, 2001, p. 521-534.
3
SALES, Tatiana Silva. As falanges da boa imprensa: o jornal ‘A Cruzada’ em Sergipe, 1918 a 1969.
Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2006.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 195
foi o das procissões quaresmeiras. Ao que indica, o intelectual itaporanguense era
um aficionado pelos cortejos solenes da Paixão de Cristo e, principalmente, pelas
tradições do povo católico sergipano.
Os registros desse intelectual propiciam a abertura de uma fissura sobre o passado
da religiosidade de Sergipe. Suas anotações cuidadosas e detalhadas permitem ao
pesquisador problematizar os aspectos concernentes às celebrações católicas nos
primeiros decênios do século XX em uma cidade de pequeno porte e sem grande
projeção no cenário religioso do estado. Itaporanga d’Ajuda não possuía grandes
romarias ou festividades que atraíssem muitos devotos de outros municípios, mas,
mesmo assim, se tornou foco dos registros do cronista.
Todavia, era uma cidade que aparentava seguir os pressupostos determinados
pela Diocese de Aracaju, com a regulamentação das expressões de religiosidade,
especialmente as festas. Nesse sentido, uma simples procissão paroquial assumia
uma proporção de destaque, se tornava alvo de registro que reforçava os elementos
de piedade cristã e, principalmente, as normativas devocionais que estavam sendo
impregnadas entre os populares, pois “o povo é frequentemente o objeto da reforma”4.
Nesse artigo o foco central é a procissão do encontro na cidade de Itaporanga
d’Ajuda. Trata-se da tentativa de compreender a relação entre tradição e modernidade
expressa na estética barroca na religiosidade católica. Os discursos constituídos sobre
a solenidade explicitam as duas perspectivas, aparentemente dicotômicas, mas que
no alvorecer do século XX eram apresentadas como elementos distintivos do bom
cristão. Nesse sentido, o bispado sergipano se preocupava em exercer um maior
controle sobre as práticas de religiosidade que se destacavam em Sergipe. As romarias
e as procissões de cunho penitencial foram alvo especial de atenção, pois eram os
eventos católicos nos quais as práticas do catolicismo popular se apresentavam
com maior vigor, quase sempre marcadas pelas demonstrações públicas de piedade
e de sofrimento. Por esse motivo, tais solenidades se tornaram alvo das ações
romanizadoras da Diocese de Aracaju. Em Itaporanga, o olhar perscrutador do clero
buscava evidenciar o desaparecimento das velhas práticas de desobriga, que foram
tão comuns até o início do século XX em procissões e santas missões.
A pesquisa foi desenvolvida a partir da análise dos textos concernentes à temática,
com enfoque para as notícias divulgadas na imprensa sergipana entre 1890 e 1950.
Além disso, a pesquisa teve como fulcro documental os registros de memorialistas da
cidade, como Gilberto Amado5 e Antônio Conde Dias. No caso dos estudos sobre
festas e religiosidades, a configuração de espacialidades com enfoque para as redes
de sociabilidades se tornam imprescindíveis, pois se torna uma forma de propiciar
o entendimento da pluralidade de cosmovisões e das tessituras que engendram o
contexto social.
No caso de Itaporanga d’Ajuda, pode-se perceber que a procissão do encontro
4
HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do popular”. In: SOVIK, Liv (org.). Da diáspora:
identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003, p. 248.
5
Gilberto de Lima Azevedo Souza ferreira Amado de Faria foi um político, ensaísta, memorialista e
diplomata sergipano. Nasceu na cidade Estância no dia 7 de maio de 1887. Era o mais velho entre
os 14 filhos que o casal Melchisedech e Ana Amado tiveram. Ainda nos seus primeiros anos foi
morar em Itaporanga, onde realizou seus estudos primários. Também estudou farmácia na Bahia e
diplomou-se em Direito pela Faculdade de Recife. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e
faleceu no Rio de Janeiro no dia 27 de agosto de 1969.

196 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
se tornou alvo das atenções eclesiásticas na redefinição das práticas sócio-religiosas.
Nesse sentido, elementos aparentemente irrelevantes nos discursos sobre a referida
procissão se tornam imprescindíveis no entendimento da dimensão do processo
ultramontano na Diocese de Sergipe, pois revela nuances de um catolicismo
combatente das práticas tidas como pagãs e da astúcia de constituir uma religiosidade
sob os moldes europeus.
Na Trilha dos Pecadores: As Santas Missões Capuchinhas

Itaporanga. Último decênio dos oitocentos. Em plena Guerra de Canudos os


capuchinhos resolveram passar pela vila cravada às margens do rio Vaza-barris. A
fama dos frades chamados de barbudinhos era aterrorizadora e despertou o pânico
na localidade. No imaginário social, as terras de Nossa Senhora d’Ajuda seriam
purificadas de todo o pecado. Tudo isso foi registrado no livro de memórias de
Gilberto Amado, que construiu uma narrativa sobre a estadia dos frades na vila.
A descrição do romancista é um importante testemunho das práticas civilizadoras
dos frades capuchinhos, assim como, também pode ser vista como uma fresta do
cotidiano da região. Assim, seguindo a perspectiva defendida por Stuart Hall devemos
entender que a transformação é chave de um longo processo de moralização
das classes trabalhadoras, pois a cultura popular passa a ser vista como ameaça,
desmoralização a ser crivada, civilizada. É evidente que a narrativa do autor não
pode ser tomada como registro fiel do passado, mas sim como uma representação
tecida no intuito de fortalecer suas memórias sobre a infância vivida na vila de
Itaporanga e de criar um enredo para seu texto. Todavia, o texto literário também
pode ser consultado como testemunho histórico, pois reflete os valores e as ideias de
seu tempo. Mesmo quando se trata de um texto ficcional, o historiador deve perceber
que se trata de uma ficção gestada em determinado contexto social. Além disso, os
escritores buscam em sua conjuntura elementos do cotidiano visando criar um efeito
de realidade. No caso de Gilberto Amado esses efeitos são mais evidentes, tendo em
vista que seu texto tem a pretensão de possuir um caráter memorialista. Por conta
disso, a narrativa é maculada pela presença de antigos moradores de Itaporanga,
por atores comuns que perambulavam pelas ruas cotidianamente.
O escritor estanciano tentou descrever detalhadamente as ações dos capuchinhos
e o medo que pairou sobre a localidade com a notícia da chegada dos mesmos.
Todavia, a narrativa também revela nuanças do cotidiano da localidade,
principalmente no que concerne aos “desvios” sociais da época. Os pecadores se
tornaram foco da atenção do romancista na tentativa de evidenciar as representações
dos frades menores. Ao falar sobre a redenção e piedade nos tempos de Santa Missão,
o intelectual apresentou o contraponto com os pecados dos populares no momento
anterior a chegada dos frades. Observe a assertiva a respeito da expectativa dos
moradores diante da possibilidade de receberem os missionários:
Foi durante a guerra de Canudos, no intervalo entre a
primeira e a segunda expedição. O período era de seca. Já
tinha havido uma pregação em Itabaiana. A fama chegou
até Itaporanga. Iniciaram-se logo os preparativos. O telheiro
do mercado, que já havia sido alongado e cobria todo o alto

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 197
da praça, não bastava. Armaram-se latadas nos dois lados.
Carradas de madeira, de caibros e de estacas chegavam
dos engenhos. De cumeeiras de casas velhas abandonadas
arrancaram-se ripas ainda prestadias. Carapinas e
marceneiros deram do seu novo serviço. Organizaram-se
turmas. Todos queriam trabalhar.6
Como é possível perceber, a vila metamorfoseou-se. Ruas e praças eram
ornamentadas para receber os frades capuchinhos e a multidão de romeiros que
costumeiramente os acompanhavam. O espaço urbano foi redefinido para adequar-
se as novas sociabilidades que estavam prestes a ocorrer. O que era profano deveria
se tornar diferente, pois a localidade viveria dias de penitência, de piedade e de
sofrimento. Para ver-se livre dos pecados, homens se organizaram na armação de
palanques, cobrindo a praça, criando um espaço onde deveria ocorrer a remissão
dos pecados. Essas ornamentações das praças em que se localizavam as igrejas
visitadas pelos frades eram comuns na época. Para Pecorari, “a participação do povo
era devera maciça (...). muitos vinham de fora e até de longe, improvisavam abrigos
ou ‘latadas’ para passar a noite e assim não perder um dia sequer”7.
Um ponto importante a ser observado é o fato de a Santa Missão ter ocorrido
em momento oportuno: período de guerra. Em pleno fim de século, marcado pelas
incertezas da vida, os capuchinhos pregavam sobre o inferno e as ações do demônio.
A guerra que grassava vidas não era um mal distante. A historiografia sobre Canudos
é unânime em revelar o elevado contingente de sergipanos que migraram para a
comunidade fundada por Conselheiro.8 Familiares ouviam boatos sobre a guerra e
certamente não era difícil de associar os dramas de seus parentes a um látego divino
pelas ações do demônio. Os homens se matavam no sertão, enquanto os seguidores
de Cristo rezavam pelas almas de todos.
Castigo, desgraça e salvação foram ideias difundidas pelos capuchinhos. Os
pecados da humanidade eram apresentados ao público como os causadores das
dores que martirizavam a todos. Em 1891, ano da passagem dos missionários pelo
vale do Vaza-barris, ainda tinha outro atrativo para a retórica dos castigos celestes
dos frades menores: a grande seca. Não foi o acaso que fez com que Gilberto Amado
iniciasse sua assertiva sobre a Santa Missão rememorando da Guerra de Canudos
e da seca. Dois males que assolavam os sergipanos e que se tornaram alvo das
prédicas dos frades.
Nas palavras dos pregadores, tais males se proliferaram pela terra como sinal do
desgosto divino em relação aos pecados da humanidade. A fama da crueldade dos
sermões e do rigor na punição dos pecadores já tinha se proliferado por Sergipe.
6
AMADO, Gilberto. História da minha infância. Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira; Ed. UFS, 1999,
p. 147.
7
PECORARI, Francesco. “As missões populares dos capuchinhos nos sertões baianos nos fins do
século XIX”. Cadernos UFS História, São Cristóvão, vol. 4, n. 5, 2003, p. 57
8
SILVA, Alberto Garcia da. “Médicos Militares Sergipanos em Canudos”. Revista do IHGSE,
Aracaju, n. 38, 2009, p. 191-202; SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Filigranas da Memória:
História e Memória das comemorações dos centenários de Canudos (1993-1997). Tese (Doutorado
em História), Universidade de Brasília. Brasília, 2006; SILVA, José Calasans Brandão da. Antônio
Conselheiro em Sergipe e os sergipanos em Canudos. Monografia (Graduação em História).
Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 1993.

198 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Todos conheciam a descrições do inferno que os capuchinhos pintavam no púlpito.
Eram essas conversas que amedrontavam os moradores das localidades a serem
visitadas. Assim, ocorria o processo de “desmoralização dos pobres e de reeducação
dos pobres”, pois “o povo é freqüentemente objeto de reforma”9.
Em Itaporanga não foi diferente. Com os primeiros boatos da chegada dos
capuchinhos os moradores vistos como “desviantes” se preocupavam, andavam
com cautela. Os excluídos da história e da sociedade católica local eram vistos com
desconfiança e ignorados por seus conterrâneos. Isso ocorreu principalmente com
prostitutas, homossexuais e ateus. Todos eles estariam na mira da Santa Missão e dos
escândalos que os frades menores poderiam fazer usando-os como bodes expiatórios
das mazelas sociais. Segundo Amado, o cotidiano da vila foi completamente alterado:
A cidade foi tomada de misticismo. Já antes da chegada dos
frades as mulheres e as moças começaram a pôr xale preto
na cabeça. Flor e fita não botavam mais no cabelo. Às duas
feiras que precederam a Santa Missão, as mulheres-damas
já não vieram. Embalde procurei-as com os olhos, como
sempre fazia disfarçadamente quando elas passavam em fila
com as esteiras debaixo do braço, charuto na boca, cravos
bocaris nos penteados.10
Seguir os caminhos do Cristo incumbia ir além das tradicionais práticas católicas.
Os capuchinhos disseminavam o terror pelo interior sergipano. Propagavam o
inferno que estaria solto no mundo. Apontavam nas comunidades os agentes
de satã. A chegada dos religiosos em uma localidade significava o fim das ações
pecaminosas, ou pelo menos uma pausa. Foi o caso descrito pelo memorialista. Na
ótica do escritor estanciano, a alegria cedia espaço para o universo circunspecto. Até
mesmos as vestimentas foram ressignificadas, tornando-se mais sóbrias e cordatas.
As campestres flores dos cabelos cederam lugar aos escuros e comportados xales.
As prostitutas desapareceram e foram substituídas por mulheres que rezavam por
clemência divina.
É interessante perceber a estratégia que o autor utilizou para se referi às prostitutas
da época. O mesmo recorreu ao jargão popular da região para caracterizar tais
mulheres, dizendo que as mesmas transportavam esteiras embaixo do braço. Ainda
hoje em localidades do interior sergipano essa é uma expressão usual do linguajar
popular para se referi a mulheres que possuem vida sexualmente promíscua. Seriam
as “putas de esteiras”, que transportariam embaixo do braço as esteiras para a
realização de atividades amorosas. Isso evidencia um aspecto relevante da obra de
Gilberto Amado, que é o diálogo entre a erudição e o popular.
É evidente que essa característica não foi exclusiva do autor, pois desde a Semana
de Arte Moderna de 1922 os escritores recorrentemente se utilizavam do popular.
Assim, nesse modelo de escrita, o narrador, que aqui se conjuga ao autor, busca no
relato uma reconstituição de um fato passado que lhe queima na memória e que
solicita uma relembrança que é também reelaboração de uma vivência. Tratava-se

9
HALL, “ Notas sobre...”, p. 248.
10
AMADO, História de minha infância, p. 147.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 199
de “uma literatura que exprimisse a sociedade”11.
A sociedade que Gilberto Amado expressa um momento importante da
religiosidade católica de Sergipe. No período entre o final do século XIX e descerrar
do século XX a Igreja Católica em Sergipe passava por um processo de renovação,
com a romanização dos rituais e práticas devocionais. A presença dos missionários
capuchinhos nas cidades, vilas e povoados do interior sergipano não era fruto do
acaso, mas uma ação pensada que visava utilizar a experiência de frades menores
italianos na renovação da religiosidade local. Assim, desde meados dos oitocentos
“a Igreja Católica, aqui representada pela Ordem Capuchinha além de realizar a
sua função espiritual também auxiliava o Estado na manutenção da ordem e na
construção da nação”12.
A presença dos capuchinhos na vila de Itaporanga é reveladora. Ao enviar os
missionários, a Arquidiocese da Bahia indica que as expressões de religiosidades da
população local não estavam de acordo com os preceitos cristãos, ou pelo menos,
deveriam ser observados pelo olhar atento dos frades menores. Nesse sentido, a
escrita de Amado nos brinda com o desfile de personagens reais, de moradores
anônimos da vila que dificilmente seriam reconhecidos se não fossem os registros
do memorialista.
Esses personagens, usados para caracterizar o popular, as crendices e as
superstições da localidade em que passou a maior parte de sua infância expressam
aspectos que extrapolam o exótico e os artifícios da linguagem literária. As mudanças
bruscas de comportamento são sinais do controle exercido pela Igreja e do prestígio
da mesma na sociedade sergipana de fim de século. Além disso, essas mudanças
de comportamento são indícios do processo de reconstrução das cosmovisões, da
ineficácia do clero em exercer a vigilância permanente sobre os fieis. Se no tempo
sagrado era preciso mudar o comportamento radicalmente, era porque no tempo
cotidiano a conduta da população não era condizente com a proposta clerical. Nesse
caso, a necessidade de reforma das camadas populares era reforçada pelo alto clero,
pois a Arquidiocese da Bahia passou a ser veemente na vigilância da religiosidade
popular dos sergipanos. Para os populares sergipanos, cabia encontrar as estratégias
de resistir, de persuadir os capuchinhos, evidenciando o duplo movimento de conter
e resistir.
Desse modo, Gilberto Amado proporcionou um desfile dos personagens anônimos
da História nas páginas em que narra a Santa Missão. Na tentativa de cunhar sua
obra com aspecto de veracidade, o autor buscou rechear suas memórias pessoais
com ações e dizeres dos populares que viveram em Itaporanga nos idos dos
oitocentos. Amado também demonstra que sua assertiva evidencia a confluência
de memórias, a simbiose do que viveu com o que ouviu dizer, ou seja, o encontro
de memórias pessoais com os registros coletivos. O livro não remete apenas àquilo
que foi testemunhado pelo memorialista, como evidencia a assertiva seguinte:
Ouvi dizerem que Maria Jeroma, de todas (mulheres-
dama) a mais impressionante, pelo ar desafrontado e pela
11
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 125.
12
CUNHA, Tatiane Oliveira da. “‘Bom cristão, bom cidadão’: contribuição capuchinha no processo
civilizatório em Sergipe (1840-1889)”. Cadernos UFS História, São Cristóvão, vol. 1, n. 11, 2010,
p. 127-145.

200 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
pintura da cara, ganhara o sertão. Zé Bolachinha deixou
de beber. Elias já não apregoava na venda suas briagueses.
Cazuza de Lino, o mentiroso da vila, andava dizendo que
não mentia mais, comprara um terço com bentinhos que
mostrava de porta em porta. Pombinho remexendo-se, com
a voz de mulher, parava junto as donas de casa e dizia,
benzendo-se: “Agora é tempo da gente se arrepender, meu
Deus!” Mariana não mais esperava os homens à porta da
malhada.13
Na assertiva de Amado o medo pairou sobre a vila ribeirinha. Os anônimos
alteraram seu cotidiano diante da possibilidade de receber os missionários
capuchinhos. Os moradores apontados como pecadores buscavam apresentar-se de
forma diferente, evidenciando o arrependimento e busca pela salvação. Foi nesse
contexto que os objetos de salvação se tornaram alvo dos moradores e dinamizou
o comércio local. Ao que tudo indica nos últimos anos do século XIX, a localidade
se transformou em ponto de convergência de romeiros e de penitentes em busca
da clemência divina. Os frades romanizadores atraíam devotos que geralmente
não eram assistidos pelo clero. Em Itaporanga, a população que vivia distante, nos
limites da Freguesia Nossa Senhora d’Ajuda deslocou-se para assistir às celebrações.
Na ótica do memorialista, a vila havia se transformado, pois “eu via pela primeira
vez em Itaporanga famílias inteiras de engenho. A nossa casa encheu-se. Meu pai
preparou acomodações em outras para receber hóspedes. Foram armadas redes nos
corredores, as camas não davam”.
É notório na historiografia sergipana as dificuldades que o clero oitocentista tinha
para atender a sociedade de suas respectivas paróquias14. Muitas vezes passavam
quase um ano sem que a população das localidades mais distantes presenciasse
a celebração da Eucaristia. Por conta dessa situação de precariedade, momentos
como os das Santas Missões eram propícios para o deslocamento dos fieis. Não só
isso. Era ocasião também que instigava o imaginário barroco da população rural
sergipana que executava as práticas penitenciais. Seguindo passos firmes pelas
estradas de piçarras os penitentes cantavam sobre os pecados e o tempo sagrado
“Pecador, agora é tempo de pesar e de temor: Serve a Deus, despreza o mundo, já
não sejas pecador! Neste tempo sacrossanto o pecado faz horror: Contemplando
a cruz de Cristo, já não sejas pecador!”. O convite para abandonar as coisas do
mundo e buscar o perdão divino não era apenas uma estratégia retórica dos
benditos populares. Como já foi visto os moradores da vila de Itaporanga tentaram
encarnar o ideal de penitência. Abandonava-se o que era compreendido como
pecado. Mortificava-se o corpo. Saudavam-se as dores. Da parte alta da vila descia
a multidão carregando pedras na cabeça, penitenciando e cantando: “Piedade,
Senhor, Tende peiedade, É de nóis, pecadô... [sic]”15.
Cenas que eram comuns no período da Semana Santa se proliferavam pelas
ruas da vila. Cruzes, pedras nas cabeças, penitentes ajoelhados e silêncio faziam
parte dos enredos das presenças dos missionários capuchinhos. O memorialista
13
AMADO, História da minha infância, p. 147-148.
14
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial I (1820-1840). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
15
AMADO, História da minha infância, p. 148.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 201
não chegou a mencionar a participação da Irmandade Nossa Senhora d’Ajuda nas
ações da Santa Missão, evidenciando que os atores penitentes eram os segmentos
populares dos arredores da vila. A referida irmandade16, “em que estavam os homens
brancos e pardos de ambos os sexos onde se escolherão os de mais posses”17, ou
seja, era composta pela elite açucareira do Vaza-barris e provavelmente deve ter
agido apenas nas questões de logística para abrigar os missionários e nas reformas
da Igreja Matriz e do seu adro.
Um ponto relevante a ser observado é concernente às práticas romanizadoras dos
frades capuchinhos em Itaporanga. Pelo que foi exposto na descrição de Gilberto
Amado, fica evidente que os frades tentavam combater os “males” que afastavam os
fieis dos caminhos da Igreja. O caminho da conversão proposto pelos missionários
era a penitência. Eles estimulavam os romeiros a realizarem práticas de sacrifícios
para purgar os pecados cometidos. Muitas dessas práticas carregavam um aspecto
místico, de forte apelo popular e visibilidade semelhante à estética barroca. Nas
prédicas dos capuchinhos não havia espaço para a devoção cordata, mas sim para
dramaticidade e exposição pública. O autoflagelo seria uma forma que os fieis
deveriam usar para evitar o látego divino. Em Itaporanga,
Velhos, moços, ricos, pobres, todos carregavam pedras.
Eu e outros meninos menores também pusemos pedras
na cabeça. Os carolas, as beatas, exageravam. Jejuns
rigorosíssimos. Crises nervosas. Maria Saturnina virou a
boca, apareceu de beiço torcido. Era uma moça possuída do
Capeta, dava ataques como ninguém. Berrava, sacudia-se
toda e ficava depois estatelada horas e horas. Os ateus da
vila, Tomasinho e Manuelzinho da esquina, não caçoavam
mais de religião. Não encontravam, aliás, quem os quisesse
ouvir; eram olhados com medo, fugiam deles. Uma comissão
foi visitar Tomasinho e exortá-lo a se confessar. Falava-se
baixo, num burburinho, num zunzum. Nas calçadas, não
estralavam os tamancos como dantes. Tudo se abafou.18
Um mundo sufocado pela presença dos frades alemães. Moda e festas
praticamente despareceram nos dias de Santa Missão. A alegria cedia lugar a
penitencia e resignação. Nascia a festa da fé. Outro ponto a ser observado é que
no imaginário popular a chegada dos missionários representava a instauração do
tempo sacro. A mortificação do corpo é um dos sinais dessa crença. “Tal como o
espaço, o Tempo também não é para o homem religioso, nem homogêneo, nem
contínuo”19. Na cosmovisão desses moradores de Sergipe do final dos oitocentos, o
tempo sagrado significava a abertura das portas do além. As celebrações de
16
GOMES, Sérgio. O Preço da Fé: análise do termo de compromisso da Irmandade Nossa Senhora
d’Ajuda (agosto de 1840). Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe.
São Cristóvão, 2006.
17
Arquivo Público do Estado de Sergipe. Termo de Compromisso da Irmandade Nossa Senhora
d’Ajuda. Acervo Particular de Epifânio Dória. Pac. 29, doc. 03, 1840.
18
AMADO, História da minha infância, p. 148.
19
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
p. 64.

202 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
penitência propiciavam a libertação de suas almas, mas também abria espaço para
as tentações, para a ação do mal, inclusive do demônio. Não é coincidência que foi
relatado a desfiguração de uma jovem possuída pelo capeta. Assim como a Semana
Santa, o tempo sacrossanto de Santas Missões era tempo de lutar contra as ações
dos agentes do inferno.
Para evitar as tentações do demônio, a população procurou realizar ações que
contribuíssem com os missionários. Um exemplo disso foi Aleixo que era:
Preto fofo e inchado, carregador de lenha, que tinha os pés
em bola e andava como um elefante, não tinha amásia com
quem casar, e nem beber podia mais. Andava a perguntar o
que devia fazer na Santa Missão; entregaram-lhe carretos.
Assim purgava qualquer pecado que tivesse.20
Mais uma vez aparece uma figura popular. O autor expõe o misticismo da vila
onde passou grande parte de sua infância, mas não menciona as crenças pertinentes
a elite local. Ou seria o caso da elite está envolvida em tais práticas? Certamente não.
Amado deixa claro que os nomes citados se referem aos moradores dos segmentos
populares. A elite açucareira aparece anônima, contribuindo na organização
das celebrações. É claro que em alguns momentos ele evidencia que as práticas
penitenciais eram comuns a todos os grupos da localidade, mas usa como exemplo
as camadas populares, ou seja, o povo “que constantemente ameaçava eclodir”. O
período entre os séculos XIX e XX foi marcado pelas mudanças das classes populares,
ou como afirma Hall, ocorreu a “reconstituição do próprio terreno da luta política”21.
Ao se referir à Santa Missão dos capuchinhos em Itaporanga, dois aspectos
sobressaltam na escrita de Gilberto Amado: a penitência dos romeiros e a ênfase
dos sermões dos frades sobre as mulheres e o pecado. A partir da confluência desses
olhares torna-se possível reconstituir os cenários elaborados para a solenidade em
uma cidade que se apresentava como católica e tradicional. Além disso, permite
entender o imaginário religioso em que a mulher estava associada ao universo do
pecado, portadora das tentações do mundo. O primeiro aspecto de destaque é a
penitência:
A multidão se reunia de tarde. As manhãs, até a hora do
almoço, eram ocupadas pelos frades em receber confissões
e donativos. À hora da penitência todos se dirigiam para o
ponto marcado. Aí os frades chegavam, com a enorme cruz
negra na frente. Organizava-se o préstito na plangência da
ladainha tirada pelos frades e entoada pela multidão. Depois,
esta, tomada de frenesi, começava a clamar “Piedade,
Senhor...”. Gente se ajoelhava na estrada, metia a cabeça
na areia, soluçava alto.22
Frenesi. Essa palavra não aparece de forma inocente no texto de Amado. Ela
exclama o desespero dos devotos que estavam presentes na Praça da Matriz, na
20
AMADO, História da minha infância, p. 149.
21
HALL, “ Notas sobre a desconstrução...”, p. 250.
22
AMADO, História da minha infância, p. 149.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 203
margem esquerda do Vaza-barris. Nas palavras do memorialista, a vila passava por
uma histeria coletiva e destacava os gritos, o desespero e a clemência. A cruz usada
na Santa Missão e que tanto impacto causava no romeiro era a mesma que abria
as procissões da Semana Santa e a procissão do Encontro. Era o mesmo madeiro
que abria o cortejo com o Cristo sofredor e o outro com os caçadores de pecadores.
Fora das horas de pregação encontrava-se gente nos cantos,
ajoelhada, batendo os beiços, com os olhos no céu. Voltando
uma noite com o meu pai de uma casa longe, ouvimos
sair do portal da igreja um ruído de prece angustiada.
Aproximamo-nos. Eram duas velhinhas acocoradas no
batente, que cantarolavam, ou antes, gemiam, lobregamente:
“Eram dez horas, Da cruz pendente, Nosso Senhor, Deus
onipotente”. A toada toda ficava no ar – ente... ente... As
velhinhas, debaixo dos xales, encolhiam-se no ar que o
vento arrepiava.23
O que teria despertado a vontade dessas duas velhinhas a permanecer noite
adentro entoando cânticos de penitência? Não temos provas que levem a uma
resposta definitiva, todavia existem pistas no próprio testemunho do memorialista.
Não era usual que mulheres usassem o espaço público no decorrer da noite, quanto
menos realizando práticas penitenciais. Isso era comum entre os homens. Entretanto,
nos sermões dos frades capuchinhos em Itaporanga havia um alvo espacial: as
mulheres, apresentadas muitas vezes como as agentes de satã, disseminadoras do
pecado sobre a terra. É o segundo enfoque pertinente à narrativa de Amado. Os frutos
dos pecados eram execrados nas palavras dos religiosos, como atesta a narrativa:
Gritos irrompiam desesperadamente. Durante uma das
pregações ouviu-se um ai! Muito esvaído. Voltaram-se os
rostos. Era uma moça conhecida que começou a sentir uma
coisa; sangue escorria. Muito pálida, acudiram-na. Saiu um
feto de cinco meses. Foi um dos casos que mais ouvir falar.24
Em uma descrição rica em sonoridade, o memorialista repete um dos casos que
ouvira falar. É instigante pensarmos que num texto de memórias nem tudo remete
ao individual. Gilberto Amado deixa claro que muitos dos trechos descritos tinham
por base o que ouviu de seus pais, avós e vizinhos. Desse modo, “a lembrança se
torna a sobrevivência do passado”25. Um passado herdado e perpetuado na escrita
do memorialista.
A escrita de Amado reflete uma busca de dramatização das cenas. Claro que o
texto literário possui exageros, modos próximos aos de uma caricatura, mas tudo
isso constituído a partir da leitura visual do que ocorria. Segundo Francesco Pecorari,
o grande momento das Santas Missões era o do sermão, pois:
Era o momento esperado em que o Missionário devia criar
23
AMADO, História da minha infância, p. 150.
24
AMADO, História da minha infância, p. 149.
25
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p. 53.

204 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
o impacto, tocar os corações empedernidos, despertar a
comoção e o arrependimento. Para isso ele recorria a uma
oratória impetuosa e arrebatadora com gritos e gestos
aterradores descrevia com exagerado realismo as penas dos
condenados e ameaçava os castigos do inferno.26
Realmente as palavras dos frades parecem ter mexido com o imaginário do jovem
Gilberto ao ponto de, quando adulto, registrar como um dos fatos mais marcantes
de sua infância. A naturalidade com que os frades falavam sobre o universo da
sexualidade escandalizou o garoto e grande parte da população católica que assistiu
as pregações.
O inferno que este (D. Amando) descrevia – um poço
de labaredas, inferno gênero Pedro Botelho, com diabos
chifrudos, de chuços na mão, um satanás vermelho
baforando fumaça. – este inferno estava ali, no oco da terra,
escancarado; ninguém escapava dele se amasiado não se
casasse, se pagão se batizasse, se batizado não se crismasse,
se mulher casada deixasse de servir ao desejo do marido.
Se me lembro de tudo, ou se guardei por ter ouvido dizer
depois, o fato é que a Santa Missão deixou em Itaporanga
a impressão de que os frades eram dominados por uma
obsessão a respeito dos coitos, relações entre homem e
mulher, de coisas de cama. Os termos horripilavam. Minha
mãe já não foi a segunda pregação. Ouvi meu pai declarar
na mesa: ‘ esses frades não estão bem orientados’.27
Tudo isso representa o que podemos denominar de primeira fase do processo de
romanização do catolicismo em Sergipe. Consiste na inserção do clero estrangeiro
nas comunidades rurais em visitas que duravam cerca de quinze dias e tinham por
objetivo fortalecer os laços de piedade cristã, quase sempre voltadas para a prática
penitencial e combater o que era visto como desvios na conduta social (bebidas
alcoólicas, homossexualismo, prostituição, mentira, ateísmo, liberalismo feminino,
etc.). Era uma forma também de observar como estava ocorrendo a atuação do clero
local. Nesse sentido, o processo de romanização se efetuava por meio da vigilância
da conduta social dos paroquianos e do próprio pároco. Outro ponto importante
era a assistência religiosa para comunidades que geralmente não eram atendidas
pelo clero, em virtude da deficiência existente na Arquidiocese da Bahia em relação
ao número de padres. Sob a retórica do medo, os capuchinhos cumpriam a missão
de evitar a eclosão de conflitos como o de Canudos.
Não é de se estranhar que um dos recursos usados pelos frades capuchinhos
nessas Santas missões foi justamente o imaginário popular barroco, povoado por
santos e por demônios. O inferno era pintado nos púlpitos. Os satanases eram
apontados entre os ouvintes. Assim, “D. Amando, com o pescoço compridíssimo,
um verdadeiro falcão crocitava: ‘Mis hermanos!’ Passava um tremor. Possuídos de
uma espécie de vesânia, desciam os frades em prédicas a minúcias arrepiantes”. O
26
PECORARI, “As missões populares...”, p. 57.
27
AMADO, História da minha infância, p. 150.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 205
inferno estava ali, apontado entre os pobres de Itaporanga.
Na cosmovisão desses primeiros agentes da romanização, os homens eram o sinal
da degradação, do pecado, da perdição. Os males sobre a terra eram os castigos de
Deus, que sinalizavam a insatisfação com as suas criaturas. Gilberto Amado relata
suas lembranças sobre as ameaças de castigo: “Ouvi muitas vezes comentar o sermão
em que D. Amando chamou os urubus que voavam sobre a multidão para devorarem
as mulheres-damas. Na ponta dos pés, parecia querer apanhar rapinantes para virem
ali mesmo estracinhar a carniça humana”. Nesse sentido, a cultura popular era o
alvo central das ações dos barbudinhos.
Essa primeira fase perdurou até 1910, ano da criação da Diocese de Aracaju,
que teve como resultado a criação de novas paróquias, a visitação pastoral do bispo
diocesano e a constituição da imprensa28 católica que registrava os avanços da nova
fase de romanização, dessa vez mais voltada para as práticas do catolicismo.
Os Dramas da Paixão nas Margens do Vaza-Barris

As celebrações do período quaresmal estão entre os principais eventos do


catolicismo no Brasil. Pomposas procissões com caráter penitencial faziam parte
do cenário de inúmeras cidades do país e envolviam a participação de diferentes
segmentos sociais. Em Itaporanga d’Ajuda a participação da população sobressaía-se
na Procissão do Encontro, realizada sempre no quarto domingo da Quaresma. Ela
era marcada pelo envolvimento da sociedade local no planejamento e realização
da solenidade. Todavia, nos primeiros decênios do século XX as ações dos devotos
da Paixão e morte de Cristo faziam sentir algumas diferenças substanciais nos atos
solenes. A tradição de percorrer as ruas com o Cristo com a cruz sobre os ombros
já não era a mesma que ocorria na centúria anterior.
Trata-se da segunda fase da romanização. Enquanto na primeira fase da
romanização em Sergipe os frades capuchinhos foram os protagonistas, com a
realização de Santas Missões itinerantes pelas mais distantes freguesias, inclusive
priorizando as comunidades que não eram assistidas por um pároco, na segunda fase
o clero local assumiu o protagonismo. Os padres formados no Seminário Sagrado
Coração de Jesus29 de Aracaju passaram a atuar em suas respectivas paróquias com
o propósito de reformar as práticas devocionais, construindo capelas, mudando os
padroeiros dos povoados e dirigindo a religiosidade dos paroquianos30. Nessa fase,
o bispo da Diocese de Aracaju, Dom José Thomaz, preocupou-se em substituir os
antigos párocos da diocese pelos seus representantes formados no Seminário de
Aracaju. Era uma estratégia de tentar homogeneizar as práticas clericais, de moldar
um novo perfil de pároco sob os auspícios das normativas do Concílio do Vaticano I.
Muitos dos padres formados pelo Seminário Sagrado Coração de Jesus se

28
SOUZA, Valéria Carmelita Santana. “A Cruzada” Católica: uma busca pela formação de esposas e
mães cristãs em Sergipe na primeira metade do século XX. Dissertação (Mestrado em Educação).
Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2005.
29
BARRETO, Raylane Andreza Dias Navarro. Os padres de Dom José: o Seminário Sagrado Coração
de Jesus (1913-1933). Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Sergipe. São
Cristóvão, 2004.
30
ANDRADE, Péricles. Sob o olhar diligente do pastor: a Igreja Católica em Sergipe. São Cristóvão:
Ed. UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2010.

206 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
tornaram importantes nomes da intelectualidade sergipana, com publicações de livros
e de artigos, além de serem atuantes na divulgação dos novos princípios da Igreja
no jornal A Cruzada. Um exemplo disso foi o padre José Augusto da Rocha Lima,
que difundiu as questões atinentes a Igreja Católica nos decênios iniciais do século
XX. Outro ator que se destacou na imprensa católica de Sergipe na primeira metade
do século XX foi o itaporanguense Antônio Conde Dias. Ele era o responsável pela
produção dos textos sobre as celebrações que ocorriam na diocese, assim como pela
produção de artigos que discutiam temas como família, religiosidade e educação.
Desse modo, festas de grande apelo popular na sociedade sergipana eram
descritas minuciosamente nos jornais. Foi assim que solenidades como a Procissão
dos Passos de São Cristóvão, a de Bom Jesus dos Navegantes de Aracaju e Propriá,
além de festas de padroeiros dos municípios mais relevantes foram registrados com
enfoque quase que etnográfico, constituindo uma fonte de considerável relevância
para os estudos a respeito da religiosidade católica de Sergipe em meados do século
XX.
Assim, o cronista das festas católicas de Sergipe anunciava a imponente Procissão
dos Passos na vizinha cidade de São Cristóvão: “É sempre com indisfarçável emoção
que revejo a velha cidade de Cristóvão de Barros, centro de irradiação da fé, colméia
de um passado de vida religiosa, marco imperecível de um passado de glória e de
espediendo”31. Como se pode perceber, as festividades católicas eram apresentadas
como foco irradiador da identidade sergipana. Palavras como fé, velha, glória e
passado reforçam a idéia de que as solenidades católicas deveriam estar associadas
à tradição. Todavia, expressões como tradição na concepção do clero reformador
não possuía a conotações voltadas para a religiosidade barroca e sim, a de uma
devoção marcada pela sobriedade e apelo aos sacramentos.
De sua terra natal duas solenidades se tornaram foco de suas colunas: a festa da
padroeira, Nossa Senhora d’Ajuda e a Procissão do Encontro. Até a década de 50 do
século XX essas eram os principais eventos da devoção católica na pequena cidade
cravada às margens do rio Vaza-barris. Além dessas duas festas, havia também a
procissão de Santo Antão, patrono de uma pequena capela edificada nas imediações
entre a Igreja Matriz e ladeira que lavava a periferia da cidade.
A principal festa da cidade era a da padroeira, realizada no dia da Purificação
da Virgem, dois de fevereiro. Tradicionalmente essa era a procissão que envolvia
a maior parte da população da cidade, principalmente os membros da Irmandade
Nossa Senhora d’Ajuda, que tinham como uma das obrigações estabelecidas pelo
compromisso a organização da festa32. Com o processo de romanização a festa
passou a exercer também uma conotação de direcionamento devocional por parte
do clero, tendo em vista que as novenas de preparação eram patrocinadas pelos
moradores dos povoados que seguiam em procissão até a matriz com a imagem do
padroeiro da comunidade33.
31
DIAS, Antônio Conde. “Passos em São Cristóvão”. A Cruzada, n. 511. Aracaju, 15 mar. 1947, p.
2, col. 1.
32
Arquivo Público do Estado de Sergipe. Termo de Compromisso da Irmandade Nossa Senhora
d’Ajuda, p. 2
33
SANTOS, Magno Francisco de Jesus & SANTIAGO, Márcia Maria Santos. “Padroeira: a festa de
Nossa Senhora d’Ajuda em Itaporanga. Revista Fórum identidades, ano 2, vol. 4, jul./dez. 2008, p.
153-160.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 207
Além disso, no dia da festa a procissão solene contava com a presença de mais de
dez andores apresentando ao público as imagens sacras alvo da devoção e piedade
cristã. Pode-se dizer que a festa da padroeira representa um momento insólito da
sociedade local, evocando os santos de povoados, assim como os seus moradores
para celebrarem a patrona do município. Era o símbolo maior da centralidade
devocional, como também um dos momentos em que o clero reformador tinha mais
possibilidades de observar a conduta dos fieis. A tradicional teatralidade barroca se
adequava ao novo enfoque da Igreja.
Todavia, apesar da força de atração exercida pela festa de Nossa Senhora d’Ajuda,
o momento que despertava o maior sentimento de piedade era a Quaresma. Essa
era também a ocasião em que as práticas religiosas condenadas pela nova postura
da Igreja Católica e consideradas demasiadamente próximas do paganismo se
apresentavam com maior visibilidade. Oportunamente, as celebrações da Quaresma
de Itaporanga eram descritas com minudência pela imprensa católica de Sergipe.
O que isso representaria? Seria uma estratégia de controlar as práticas devocionais
dos segmentos populares? Ou seria uma forma de evidenciar a vitória da concepção
ultramontana? Sobre essas inquietudes não temos como apresentar respostas
conclusivas. Resta-nos apenas seguir os percursos de historiadores como Natalie
Zemon Davis e Carlo Ginzburg, que evidenciaram que muitas vezes as possibilidades
são mais perspicazes do que as provas no ofício do historiador.
Provavelmente a segunda possibilidade esteja mais próxima do vivido.
Possivelmente a imprensa católica sergipana estava divulgando as celebrações
católicas de cidades do interior no intuito de reforçar o caráter normativo das mesmas
e a vitória da proposta romanizadora de celebrar os santos. Além disso, noticiar o
sucesso das ações do clero reformador poderia servir como exemplo para as demais
comunidades. Todavia, é evidente que a ordem e o sentimento de piedade das
procissões quaresmeiras que eram vangloriados na imprensa católica muitas vezes
não passavam de uma quimera.
Nesse sentido, o jornal A Cruzada apresentava o rigor do controle dos párocos
sobre as celebrações públicas como um sinal das bênçãos celestiais que se
propagavam em Sergipe. Aparentemente o estado que tinha um passado religioso
marcado pelos desvios e descontrole se tornava exemplo da difusão do sentimento
católico ultramontano. Desse modo, o referido jornal noticiava os prodígios
alcançados na Semana Santa de Itaporanga: “Notícias de Irapiranga. Viveu o povo
católico de Irapiranga, de 24 de março a 2 de abril, dias abençoados de elevação
espiritual e elevação cristã, com a celebração dos principais atos da grande semana.
O programa seguinte foi seguido a risca”34.
O texto noticioso aparentemente despretensioso, sem grande importância revela
inúmeros anseios da época em que foi publicado. Primeiramente ao delimitar de
quem estava falando. Os editores do jornal deixaram claro que estavam descrevendo
as ações da população católica de Itaporanga. Em suma, isso implica na tentativa
de demonstrar que as práticas devocionais da Quaresma eram uma tradição
do catolicismo, evocando a uma crítica silenciosa aos demais credos religiosos,
principalmente aos segmentos protestantes. Segundo, aparece a ideia da sacralidade

34
“NOTÍCIAS de Irapiranga”. A Cruzada, ano XI, n. 439. Aracaju, 08 abr. 1945, p. 3, col. 1.

208 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
temporal da Semana Santa, com o uso de termos como “dias abençoados”,
“elevação espiritual e elevação cristã” e “grande semana”. Nesse sentido, a vitória
da romanização se dava justamente no principal momento do calendário católico.
Terceiro, se refere ao rigor exercido pelo pároco. Quando foi noticiado que o
programa foi seguido à risca, os editores não estão preocupados com os improvisos,
mas com a afirmação do clero na regulamentação das solenidades. Não era mais a
Confraria Nossa Senhora d’Ajuda que convidava o padre para celebrar procissões,35
mas o clero que convocava o povo católico a seguir as práticas condizentes com o
novo momento da Igreja, sem espaço para improvisos, sem práticas consideradas
desviantes.
Por esse ângulo, percebe-se que o triunfo da Quaresma vangloriado na imprensa
católica não representava apenas a piedade do povo, mas primordialmente a
impregnação de uma piedade comandada pelo clero e voltada para os aspectos
de sobriedade. Em outras palavras, era a vitória conclamada da romanização. É
importante frisar que as conquistas do eldorado ultramontano eram apresentadas
como uma ação voluntariosa do povo. O clero era representado como aquele que
apenas observa, rege a grande orquestra popular que busca renovar suas ações.
No ideal cruzadístico romanizador o pároco apresentava-se como o comandante de
um exército de leigos. O jornal A Cruzada ressaltou essa situação ao anunciar que:
A população católica desta cidade (Itaporanga) está
associando os seus esforços aos do Vigário local, para a
celebração de alguns atos da Semana Santa, à semelhança
dos anos anteriores. Esses atos de culto religioso, muito
contribuirão para afervorar os sentimentos de piedade do
povo.36
“Afervorar os sentimentos de piedade” foi a proposta central da ação conjunta
entre clero e paroquianos. Muito provavelmente Antônio Conde Dias, cronista
atuante no impresso católico da Diocese era um desses leigos que buscavam auxiliar
o pároco na missão de reconduzir a devoção do povo para os anseios da Igreja. As
atividades da Paróquia Nossa Senhora d’Ajuda na Semana Santa eram densas e
muitas vezes marcadas por celebrações tradicionais do catolicismo barroco brasileiro,
todavia apresentando uma roupagem própria do processo ultramontano. Podemos
perceber as inovações criadas pelo pároco com o Quadro I.

35
APES. Compromisso da Irmandade Nossa Senhora d’Ajuda de Itaporanga, p. 4.
36
“A QUARESMA. Festa de Passos em Irapiranga”. A Cruzada, ano XI, n. 438, Aracaju, 25 mar.1945,
p. 3, col. 04.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 209
QUADRO I
SOLENDIADES DA SEMANA SANTA EM ITAPORANGA37

CELEBRAÇÕES NO
DIA CELEBRAÇÕES EM 1945
SÉCULO XIX
Bênção, distribuição e procissão
Domingo de das palmas.
Procissão de Ramos
Ramos A tarde última procissão do
Senhor dos Passos.
Quarta-feira de
Ofício de Trevas Procissão dos enfermos
Trevas
Pela manhã missa cantada,
comunhão geral, procissão
interna do Santíssimo
Sacramento e desnudação dos
Abertura do Santo Sepulcro;
Quinta-feira altares;
Cerimônia do lava-pés.
Maior Durante o dia Guarda de Honra
Procissão do Fogaréu
ao Santo Sepulcro
A noite, procissão de fogaréus,
uma alegoria do Horto das
oliveiras e Hora Eucarística.

Adoração da Cruz (alegoria do


Sexta-feira da Sermão do Descimento da cruz; descimento da cruz);
Paixão Procissão do Enterro Procissão Solene do Senhor
Morto

O Quadro I é bem elucidativo das mudanças inseridas nas celebrações da


paróquia. A principal delas certamente é a inserção da eucaristia em todos os
eventos. A exposição do Santíssimo e a comunhão dos fieis aparece com evidencia
na programação, reafirmando a idéia de que o foco de toda a ação seria o Cristo
Eucarístico e não as imagens sacras, próprias da estética barroca que predominou
no século XIX.
No entanto, essas celebrações eram apenas de âmbito paroquial, sem grande força
de apelo popular e sem a participação de romeiros. A grande celebração popular
e católica da cidade era a Festa de Passos, realizada no quarto final de semana
da Quaresma, com duas procissões. No sábado à noite, era realizada a procissão
das velas, com a imagem de Nossa Senhora da Soledade entre a igreja matriz e a
capela de Santo Antão. Provavelmente era um momento oportuno de exercer as
tradicionais práticas de desobriga, que tanto marcaram as festas católicas de Sergipe.
No domingo, ápice da festa, era realizada a Procissão Encontro, com os andores
de Nossa Senhora da Soledade e do Senhor dos Passos. Ao longo do século XX a
participação popular era extraordinária para os padrões locais e a imprensa católica
registrou a participação de romeiros, ao anunciar: “Em Irapiranga, realiza-se hoje
a tradicional procissão dos Passos à qual anualmente acorre grande número de fieis
37
Quadro elaborado pelo autor. As fontes foram A Cruzada e o livro de tombo da Paróquia Nossa
Senhora d’Ajuda de Itaporanga.

210 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
de vários pontos de Sergipe”.
A Procissão Passos é uma das celebrações mais importantes no calendário católico
sergipano e era realizada em inúmeras cidades, entre as quais sobressaíam as de
São Cristóvão, Aracaju e Laranjeiras. Em Itaporanga, a participação popular era
notória e provavelmente era a única celebração capaz de se aproximar em termos de
quantitativo de romeiros a Festa de Passos da vizinha São Cristóvão. Assim como na
velha capital sergipana, a Procissão dos Passos foi controlada nos primeiros decênios
do século XX pelos frades franciscanos, tendo em vista que a Paróquia Nossa Senhora
d’Ajuda em algumas ocasiões compartilhou o vigário com a Paróquia Nossa Senhora
da Vitória. Esses frades, que eram alemães e estavam instalados no Convento Santa
Cruz na cidade de São Cristóvão, foram responsáveis pela introdução do processo
reformador na paróquia de Itaporanga, combatendo a devoção popular e as práticas
consideradas pagãs e destoantes do catolicismo romano.
O Triunfo da Eucaristia?

Era o quarto sábado da Quaresma, véspera de uma tradição católica de


Itaporanga. Tratava-se da Procissão de Nossa Senhora da Soledade, noturna e sob
a luz de velas, acompanhada pelo soar triste do sino da matriz. Esse era o momento
das práticas penitenciais, dos romeiros ajoelhados, da desobriga. Práticas que ao
longo do século XX paulatinamente foram alvo das críticas dos vigários. Práticas
que sucumbiram com o passar do tempo. Em 1945 A Cruzada revelou apenas uma
faceta da procissão, sem detalhes: “Á noite de véspera, como de costume, houve a
procissão da veneranda imagem de Nossa Senhora da Soledade”.
É inquietante o texto apresentado pelo jornal católico e nos leva a questionar o
que teria motivado a ausência de uma descrição mais detalhada. Provavelmente
isso teria ocorrido de forma pensada, para não revelar a persistência da desobriga
que era tão comum nas procissões noturnas de Sergipe. Em relação à Procissão do
Encontro, realizada no domingo, a imprensa foi bem mais minuciosa:
Realizou-se domingo na cidade de Irapiranga, a piedosa e
tradicional festa do Senhor dos Passos. Pregou, no momento
tocante e expressivo do Encontro, o Revmo Frei Batista
Vilar, estando a parte orquestral confiada à harmoniosa e
conceituada Lira São Cristóvão, especialmente convidada.
Após percorrer as sete estações, a procissão recolheu-se
à Matriz onde foi dada a bênção solene do Santíssimo
Sacramento.38
A descrição realizada pelo jornal evidencia que o espetáculo do domingo estava
condizente com as normativas estabelecidas pelo Concílio do Vaticano I. Era uma
festa piedosa e tradicional, mas que tinha como momentos marcantes o sermão e a
bênção final, mais uma vez com a exposição pública do Santíssimo Sacramento. O
texto evidencia que o foco central não era a imagem do Cristo sofredor com a cruz
sobre os ombros, mas a Eucaristia. Ao contrário do que ocorrera na nota a respeito
da noite anterior, em que predominou o silêncio, no registro sobre a Procissão do

38
“FESTA de Passos...”, p. 3, col. 3.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 211
Encontro sobressaía a declaração do triunfo da Quaresma, da penitência sobre o
mundanismo da estética barroca. Outro ponto a ser observado é que nem tudo
transcorria como peculiaridade de Itaporanga. O orador sacro do sermão e a
orquestra eram da cidade de São Cristóvão, ou seja, os mesmos que realizavam a
festa dos Passos. Pode-se dizer que a ação ultramontana em Sergipe não ocorreu de
forma isolada nas respectivas paróquias, mas por meio da gestão da Diocese e de
um corpo de especialistas em diferentes âmbitos. Nesse caso, o triunfo da Quaresma
em Itaporanga representava apenas a vitória de uma batalha ultramontana contra
o paganismo no seio da Igreja Católica, mas reforça também o sentimento de que
ainda havia uma guerra a ser travada.
Nesse sentido, uma simples procissão do interior sergipano abre uma fresta que
torna possível a compreensão da cultura popular, especialmente no tocante a sua
religiosidade, pois “há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por
parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente
a cultura popular”39. Assim, ao transitar entre as santas missões capuchinhas e as
procissões quaresmeiras sob a tutela dos franciscanos alemães, percebe-se a dialética
da luta cultural. Percebe-se que o processo de romanização no Brasil não se constituiu
em processo contínuo e linear, mas sim permeado de lacunas, querelas, tornando-se
portador de diferentes linguagens de acordo com os interesses a cada momento. No
caso de Itaporanga, esse processo transitou entre as santas missões capuchinhas,
com caráter fiscalizador e a reestruturação devocional com párocos estrangeiros.
Itaporanga se tornou o alvo da ação das classes dominantes no processo de
combate a cultura das classes populares e o exemplo da vitória da romanização sobre
as práticas do catolicismo barroco. Vitória da Eucaristia? Triunfo da Quaresma? Nem
tanto. A cultura popular se “define pelas relações que a colocam em uma tensão
contínua com a cultura dominante”. A devoção popular não foi derrotada, apenas
silenciada, ocultada pela imprensa católica que forjou as glórias do processo de
civilização. Enquanto os jornais católicos evidenciam o suposto controle do clero
sobre as práticas devocionais da Procissão do Encontro, ocultavam as expressões
da cultura popular que eram reproduzidas na Procissão da Soledade. As classes
populares continuavam a preocupar, a ser alvo da disciplina eclesiástica, do processo
de evangelização. Assim, ao inquirir sobre as práticas religiosas de Itaporanga,
podemos reafirmar que as culturas não são concebidas como formas de vida, mas
como formas de luta40. Desse modo, as procissões da Quaresma em Itaporanga
permaneceram com “a tendência de enfatizar as aparências, fato barroco por
excelência”41.

39
HALL, “Notas sobre a desconstrução...”, p. 255.
40
HALL, “Notas sobre a desconstrução...”, p. 257.
41
CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Semana Santa na América Portuguesa: pompa, ritos e iconografia”.
In: III Congreso Internacional del barroco Iberoamericano - território, arte, espacio y sociedad, 2003,
Sevilha. Actas Del III Congreso Internacional del Barroco Iberoamericano. Sevilha: Universidad
Pablo Olavide, 2003, p. 1200.

212 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
A Procissão do Encontro é uma das principais The Meeting Procession is one of the main
tradições do catolicismo penitencial em traditions of Sergipe’s penitential Catholicism.
Sergipe. Nas principais cidades do estado a In the major cities of the state is the procession
procissão é realizada em diferentes épocas da held at different times of Lent, involving a
Quaresma, envolvendo um contingente de considerable number of devotees. This article
devotos considerável. Esse artigo tem como focuses on the practices in that romanizating
foco as práticas romanizadoras na referida solemnity of Itaporanga de Nossa Senhora da
solenidade em Itaporanga d’Ajuda na primeira Ajuda (Our Lady of Helpness) in the first half of
metade do século XX. Era uma celebração que the 20th century. It was a celebration that attracted
atraía romeiros que presenciavam os atos que pilgrims who frequently saw the acts that remind
rememoravam os martírios de Cristo pelas ruas the sufferings of Christ through the city streets,
da cidade, reconstituindo uma tradição com forte retracing a tradition with strong appeal of Baroque
apelo da teatralidade barroca. A pesquisa foi theatricality. The survey was developed from the
desenvolvida a partir do levantamento de fontes survey of sources concerning this topic, focusing
concernentes ao tema, privilegiando as anotações on the book notes tumble, memoirists records and
no livro de tombo, registros de memorialistas e press reports Sergipe. Accordingly, the realization
as notícias publicadas na imprensa sergipana. of the Meeting Procession in Itaporanga was not
Nesse sentido, a realização da Procissão do only the fulfillment of a religious premise, but the
Encontro em Itaporanga d’Ajuda não era apenas attempt to highlight the desire of local elites to
o cumprimento de uma premissa religiosa, mas a show to the summit of the Sergipean clergy as
tentativa de evidenciar o desejo da elite local se legitimate guardians of Catholic tradition.
mostrar para a cúpula do clero sergipano como Keywords: Sergipe; Religiosity; Romanization.
legítimos guardiões da tradição católica.
Palavras Chave: Sergipe; Religiosidade;
Romanização.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 213
QUANDO O RECIFE SONHAVA EM SER PARIS:
A MUDANÇA DE HÁBITOS DAS CLASSES
DOMINANTES DURANTE O SÉCULO XIX
Sandro Vasconcelos da Silva1

Ao nos debruçarmos sobre a história de alguns centros urbanos geralmente


podemos observar entre alguns deles uma característica em comum: são considerados
como locais onde ocorrem as mudanças, o progresso e o desenvolvimento material e
cultural. Tais ambientes alimentam aquilo que pode ser considerado como uma das
principais características da modernidade: a inovação. Essa ideia/ desejo difunde-se
amplamente em alguns elementos das classes dominantes que habitam nesses locais.
Essas pessoas são, na maioria das vezes, responsáveis pela criação e perpetuação
das novas formas de se viver a cidade, suprimindo, modificando e desclassificando
usos e costumes considerados ultrapassados. No caso do Recife do início do século
XIX, alguns elementos das classes dominantes encantaram-se pelos hábitos urbanos
parisienses que eram considerados na época como o exemplo máximo da civilidade.
Nesse contexto de transformação, a paisagem urbana talvez seja o maior exemplo
das mudanças ocorridas, pois o nascimento e consolidação de novos hábitos
subsistem em um espaço que os dê sentido e que estimule a sua realização. Essas
mudanças também são responsáveis pelo desaparecimento ou criação de espaços que
suprimem ou originam territorialidades, estas podendo ser compreendidas através
de uma ordem de subjetividade individual e coletiva que possibilita aos grupos
imersos nessa conjuntura, articulações de resistência em relação à homogeneidade
imposta pela ordem social e a política dominante2. Essa tentativa de ordenação do
ambiente urbano sugere uma normatização do espaço público que além de uma
forma de controle social, também funcionaria como um dos elementos essenciais
para o estabelecimento da ideia de “sociedades civilizadas”.
O século XIX pode ser considerado o apogeu da ideia de civilização moderna
com a cientificização das sociedades, sobretudo a europeia. Cidades como Londres
e Paris despontavam como exemplos a serem seguidos pelas demais capitais do
mundo ocidental, devido aos avanços nos campos científico, tecnológico, social,
cultural e político. No caso do Brasil, os primeiros sinais dessa transformação
no âmbito da estrutura urbana ocorreram com o Rio de Janeiro, com chegada
da Família Real, reverberando pelas principais cidades brasileiras ao longo dos
oitocentos. Aspirações de ordem, progresso e civilização conduziram os desejos
das classes dominantes brasileiras para criação de uma nova sociedade, ganhando
força no período do segundo reinado com a intensificação das inovações materiais
visando a modernização da estrutura citadina e consecutivamente a normatização
e o refinamento do comportamento de seus habitantes, sobretudo das classes
dominantes.

1
Mestre em História Social da Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Responsável pelo Núcleo de Pesquisas José Antonio Gonsalves de Mello, do Museu da Cidade do
Recife. E-Mail: <sanohman@yahoo.com.br>.
2
Cf. HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 215
Logo, a incipiente intelectualidade, as lideranças políticas e econômicas brasileiras
deram início as tentativas de recuperação do “atraso” causado pelo período no qual
o país esteve sob o julgo de Portugal, absorvendo e praticando hábitos franceses e
ingleses. Para estes, os séculos anteriores representaram um verdadeiro isolamento
do resto do mundo, sendo assim seria inevitável a busca do tempo perdido, pois
“o Brasil como colônia, no seu longo isolamento do fluxo da cultura ocidental,
transformara-se numa espécie de ilha cercada de bugres e escravos por todos os lados.
(...) O Brasil era bárbaro!”3. Com a adoção dos novos hábitos estrangeiros, foram
novas modalidades de discursos, de comportamentos, de vestuários, etc., foram
incorporadas ao cotidiano urbano abalizando uma divisão maior entre o espaço
público e o privado, onde o primeiro destes deveria passar por um processo de
“educação” normatizando-se seus usos e comportamentos, e o segundo funcionaria
como berço para o desenvolvimento de uma sociedade “civilizada”.
Para isso foram elaborados princípios para uma ordem pública que segundo o
entendimento da época, originaria uma sociedade organizada em plena interação
com os padrões que estavam sendo importados; esses princípios foram adequados
preparando um terreno para a transição entre uma época que estava em via de
desaparecimento (permeadas de hábitos coloniais considerados agora como
“selvagens”) e outra marcada pela inovação (impulsionada pelo refinamento
dos costumes) tentando com isso, forçar essas modalidades a terem significado
dentro de novas condições4. Essas transformações começaram a surgir na cidade
do Recife ainda no alvorecer dos oitocentos, não só pela influência exercida pela
Corte estabelecida no Rio de Janeiro, mas também e principalmente pelo convívio
constante entre estrangeiros5 (ingleses e franceses, entre outros) e os comerciantes
locais, os políticos, os senhores de engenho etc., levando alguns desses componentes
das classes dominantes a se confrontarem com uma realidade sociocultural diferente
desencadeando nesse grupo uma busca pela adequação e equiparação ao novo
contexto social europeu baseado na sociedade parisiense e seus conceitos de
civilização e modernidade. Aos poucos um novo estilo de vida, baseado nas elites
cultas passou a ser aceito, pois era considerado como um elo perfeito que uniria
a estrutura oligárquica local à modernidade europeia, assumindo um aspecto
de continuidade natural, preservando o mais importante para essas pessoas: as
estruturas de poder.
No entanto, vale lembrar que essa transição desses comportamentos não se deu
de forma homogênea, rápida e ampla, e que mesmo dentro das classes dominantes
almejantes e promotoras das mudanças, havia sinais de resistência aos novos hábitos,
um exemplo de que certos aspectos da estrutura social permaneciam resistentes ao
processo de modernização da sociedade era a escravidão, uma verdadeira anomalia
dentro do entendimento de sociedade moderna naquela época. Tal entrave a uma
ampla e irrestrita aceitação dos “costumes modernos” talvez tenha a ver com o fato
3
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002, p. 24.
4
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988, p. 33.
5
A cidade se destacava no cenário econômico-político brasileiro devido às atividades econômicas
do seu porto que também incentivou o crescimento do corpo urbano de forma rápida e sem
planejamento, sobretudo a partir da década de 1830.

216 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
de que a sociedade recifense das primeiras décadas dos oitocentos apresentava um
modo barroco de ser, ou seja, embora desejante por certas mudanças, ainda estavam
fortemente ligada a valores do passado e permeada pela reserva, cultuando costumes
que eram considerados pelos estrangeiros como pitorescos, despertando nestes,
as mais diferentes impressões. A própria estrutura da cidade refletia esse aspecto
“barroco”, sendo motivo de divergências de opiniões, que ora despertava elogios
pela sua beleza natural, ora era alvo de duras críticas pela sua falta de ordenação,
como podemos observar nesses dois comentários, o primeiro da inglesa Maria
Graham, que visitou Pernambuco em 1821:
É uma localidade singular, adequada para o comércio.
Fica em diversos bancos de areia, separados por angras
de água salgada e pela foz de dois rios de água doce,
ligados por três pontes e divididos em igual número de
bairros: Recife, acertadamente chamado, onde estão as
fortificações, o arsenal e o comércio; Santo Antonio, onde
estão o palácio do Governo, e duas igrejas principais, uma
para os brancos e outra para os pretos; e Boa Vista, onde
moram os comerciantes mais ricos, ou os habitantes mais
desocupados, entre o seus jardins e onde os conventos, as
igrejas e o palácio do bispo dão um ar de importância às
habitações muito elegantes em torno deles.
(...) Ficamos assaz surpreendidos com a beleza da paisagem.
As construções são bastante largas e brancas, a terra baixa
e arenosa, salpicada de tufos verdes de vegetação e ornada
de palmeiras.6
E o segundo do francês Louis Tollenare residiu no Recife entre os anos de 1816-
1817, a percepção acerca do que via se mostrava outra:
O bairro da península, ou o Recife propriamente dito é o
mais antigo e movimentado, e também o mais mal edificado
e o menos asseado (...) A ilha de Santo Antonio, à qual
dá acesso uma ponte arruinada (...) tem ruas um pouco
mais largas do que as do Recife. Encontra-se ali uma praça
quadrada, onde estão construindo um mercado coberto (...)
Este bairro é habitado por muitos brasileiros brancos natos,
e mulatos e negros livres. (...) Quando se lança um olhar as
casas baixas de Santo Antonio e Boa Vista, vê-se mulheres
brasileiras seminuas, acocoradas ou deitadas sobre esteiras.
Estas mulheres quase nada deixam a desejar à curiosidade
libertina.7
Durante as primeiras três décadas do século XIX pouco havia sido feito no
sentido de urbanizar o Recife que sofria com diversos problemas administrativos e
6
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,
1990, p. 129-130.
7
TOLLENARE, L. F. Notas dominicais. Recife: Governo do Estado de Pernambuco/ Secretaria de
Educação e Cultura, 1978, p. 20-22.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 217
estruturais8. Sem contar que o espaço físico era muito escasso o que fazia a cidade
crescer estrangulada por entre rios, mar e pântanos. O espaço para construir era
disputado por uma crescente população geradora de uma camada pobre considerada
pelos ricos da época como “perigosa” e “problemática”, pois estes eram comumente
aliciados às fileiras dos movimentos revoltosos ao longo dos oitocentos9, e isso fazia
com que fossem considerados uma verdadeira ameaça aos planos de “civilização”.
Numa tentativa de amenizar essa situação de conflito foi estipulado um código
que determinava o uso dos espaços públicos e privados, visando manter a parcela
“perigosa” sob controle e longe do contato com as “famílias de bem”. Instituído
pela Câmara Municipal, esse conjunto de normas eram conhecidas por Posturas
que por si só não se faziam valer, era necessário para sua execução um mecanismo
de força repressora e isso ficou a cargo do corpo policial. Dentro desse universo de
proibições foram criados regulamentos para os mais variados assuntos: o horário
de permanência na rua, proibições aos batuques dos escravos, ao ajuntamento de
pessoas em tavernas, brigas entre vizinhos, uso de espaços como pontes, chafarizes,
jardins públicos, etc.
Os pobres, libertos e escravos viviam sob constante vigilância, eram os alvos
favoritos das proibições estipuladas pelas Posturas, ao contrário dos ricos – quase
invisíveis na documentação policial da época – pois era justamente para esses que
a cidade estava sendo modernizada com espaços de sociabilidade que oferecem
tanto diversão como desenvolvimento cultural (praças, passeios públicos, teatros,
restaurantes, cafés, clubes etc.). A organização dos espaços passava pelo crivo dos
interesses da classe burguesa10 que tentava se civilizar
A manutenção de espaços de referência que um dia
forjaram uma determinada identidade territorial, além
da potencialidade que manifesta para congregação de
interesses locais ou regionais de resistência a processos
que se pretendem homogeneizantes, pode ser também,
entretanto, uma garantia pra manter a ordem político-
econômica instituída.11
As ações de modificação da estrutura urbana começaram em fins da década de
1830 e no início da seguinte12, com a criação da Repartição das Obras Públicas
(ROP), cujos projetos começaram a ser postos em prática, chegando ao seu ápice em
8
A sujeira encontrada em logradouros públicos foi por muito tempo um dos principais problemas
da cidade; ruas e passagens sem o devido calçamento, construções irregulares e insalubres, falta de
saneamento, etc.
9
A Revolução de 1817; a Confederação do Equador (1824); a Setembrizada (1831); a Novembrada
(1831); a Abrilada (1832); a Guerra dos Cabanos (1833-1836) e posteriormente a Revolução
Praieira (1848-1850).
10
Geralmente comerciantes bem estabelecidos e/ou ascensão, produtores agrícolas, políticos,
médicos, etc.
11
HAESBAERT, Territórios alternativos, p. 86.
12
Sob a liderança de Francisco do Rego Barros que assumiu o cargo de presidente da província
de Pernambuco de 1837 a 1844. Nesse período, decidido a modernizar e higienizar a capital
pernambucana mandou buscar engenheiros franceses de renome para remodelação urbana
adequando-se aos novos padrões vigentes, incentivou as artes e as ciências, elevando o Recife ao
conceito das grandes cidades modernas da época.

218 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
meados da década de 185013. Vale lembrar que ainda eram muitos os entraves para
o desenvolvimento das obras públicas, entre eles: os já mencionados movimentos
revoltosos; cofres públicos em baixa e a falta de mão-de-obra especializada para
atender às novas demandas. Mesmo assim, uma cidade com ares modernos
começou a surgir, a princípio planejada sob o comando de Louis Léger Vauthier –
nomeado para o cargo de engenheiro chefe da R.O.P. em 1840 e posteriormente
por engenheiros do porte de José Mamede Alves Ferreira, que assumiu o mesmo
cargo na década de 1850, entre outros.
Com a R. O. P. amplos estudos e projetos foram realizados sobre as principais vias
de transporte, a salubridade, a estrutura das moradias, a implantação de iluminação
pública, abastecimento de água, obras de aterro para obtenção de espaço. Nesse
período difundiam-se rapidamente os modelos franceses, ou seja, a influência de Paris
era tão grande no cotidiano recifense que a numeração dos logradouros passou a ser
a mesma utilizada na capital francesa, como podemos observar nesse fragmento da
portaria datada de 20 de julho de 1839, na qual o Presidente da Província Francisco
do Rego Barros determinava:
(...) Todas as casas de cada rua, travessa, beco, etc. da
Cidade serão numeradas, principiando supra do Norte
para o Sul e do Leste para o Oeste, do lado direito com os
números pares, e do esquerdo com os ímpares, de modo
que fiquem os números na ordem seguinte, 1, 3, 5, 7, 9,
etc. 2, 4, 6, 8, 10, assim por diante.14
No decorrer dos oitocentos, o choque entre uma cultura normativa que tentava
se estabelecer e os antigos hábitos já consolidados geraram vários embates, onde o
resultado poderia ir desde a subjugação, da eliminação ou do fortalecimento tanto
de um como de outro, as classes mais elevadas continuava a busca pelo refinamento,
enquanto que as classes mais baixas resistiam. A principal barreira de distinção
encontrava-se no campo financeiro, pois com a chegada das ideias de progresso e
modernização, também chegaram produtos que simbolizavam esses ideais que eram
oferecidos a uma parcela restrita dessa sociedade com poder aquisitivo suficiente
para obtê-los. O consumo em excesso foi uma característica marcante desse
processo, mostrar através do mobiliário, das roupas, dos serviços que se dispunham
era um atestado que as pessoas que poderiam pagar por eles mais do que ricas,

13
A partir da década de 1840 a capital era constituída pelas Freguesias de São Frei Pedro Gonçalves,
localidade que deu origem ao Recife, porta de entrada da província, zona portuária e boemia; a de
Santo Antonio, local onde se encontrava a sede administrativa e os principais prédios públicos, igrejas
e locais de diversão; a de São José, apinhada de casas e sobrados, mal ordenada espacialmente,
local que oferecia moradia barata; e por fim a da Boa Vista, essencialmente residencial, com amplos
sítios e com farta vegetação.
14
BARROS, Francisco do Rego. Portaria decretando a numeração e sinalização dos logradouros
públicos. Recife, 20 jul. 1839. APEJE, Coleção Portarias, vol. 01, p. 100-101. A numeração das
casas seguia a mesma estipulada para a cidade de Paris em 1805, que determinava a disposição
dos números, os pares ficariam do lado direito e os ímpares do lado esquerdo, tomando como
princípio as construções que começavam a partir da ponte de Notre Dame. No caso do Recife, o
referencial partia da ponte que ligava as freguesias de São Frei Pedro Gonçalves (região do porto)
e Santo Antonio. Cf. COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos - vol. 7. Recife: FUNDARPE,
1983, p. 235-236.

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eram pessoas “modernas”. A aparência vai reinar absoluta ao passo os costumes
estrangeiros penetraram no cotidiano levando a classe burguesa a inserir em sua
vivência os bons costumes, conjunto de normas comportamentais que funcionavam
principalmente como barreira de admissão entre as esferas sociais, onde o desrespeito
a essas normas além de representar uma falta inaceitável, também seria passível de
uma punição representada muitas vezes pelo isolamento do convívio nos círculos
considerados como “civilizados”.
Mesmo com certa resistência aos novos comportamentos, rapidamente os modos
e modas importados foram seduzindo uma parcela da alta sociedade recifense
oitocentista que passou a atuar numa espécie de jogo, onde cada elemento movia-se
de acordo com os papéis pré-estabelecidos aos homens e as mulheres, determinando
sua atuação tanto no ambiente público como no privado, a parcela masculina caberia
o ar austero e polido e a feminina o recato e a delicadeza. A ideia aceita na época
era que, em tese, esses dois ambientes (público e privado) deveriam permanecer
separados, sendo que o homem pertencia a rua, e a mulher, a casa. Nesse ritmo
de mudanças as estruturas das moradias burguesas passaram por modificações
proporcionando um local mais seguro, higiênico e confortável, longe dos malefícios
que poderiam encontrados na rua.
Por mais que se tentasse levantar barreiras, estas, de certa forma, eram transpostas
mais comumente do que se pensava na época, um bom exemplo disso é uma maior
e mais permanente presença feminina nos locais públicos. Isso se deu a partir da
segunda metade dos oitocentos com a popularização dos passeios, das visitas, dos
bailes, das festas, e tantos outros eventos ocorridos clubes, salões e teatros. Outro
fator que contribuiu para estimular os passeios, inclusive a localidades distantes da
cidade foi a sistematização dos meios de transporte. O comércio e outros serviços
como os de entretenimento também animavam as saídas de casa, mas só em
horários e ocasiões especiais. Para o aconchego do lar eram reservadas atividades
mais reservadas, como por exemplo, jantares, encontros, saraus, etc., organizados
num ambiente muitas vezes aconchegante, rico e normatizado, preparados para
uma plateia previamente selecionada.
De um modo geral, as classes dominantes da época acreditavam que a
materialização de certos elementos considerados como essenciais para seu
desenvolvimento cultural como teatros, bibliotecas, salões de baile (e demais
espaços que estimulassem a cultura), associados aos esforços de planejamento e
normatização do espaço citadino; o acolhimento de normas sociais europeias no
intuito de normatizar as atuações dos indivíduos tanto na esfera pública como na
privada, utilizando-se do refinamento dos costumes, entre outros – levaria ao encontro
do caminho para o progresso. Mais uma vez a rua contribuiu como um importante
elemento no processo de transformação nos hábitos urbanos. Pois, era nesse espaço
que poder-se-ia encontrar e ter acesso aquilo que Adrian Forty nomeou de “objetos
de desejo”15, ou seja, artefatos que materializavam o ideal de modernidade.
Voltando às mudanças ocorridas na cidade, a partir da década de 1850, o
Recife pretendia ser uma réplica de Paris. A modernização nas formas de construir,
associada aos novos conceitos arquitetônicos se traduzia em moradias modernas
15
Sobre o surgimento de certos utensílios domésticos, decorativos, mobília, etc. Cf. FORTY, Adrian.
Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

220 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
onde se aprimoravam com isso as ideias de intimidade, pudor, higiene; em certo
nível a casa abria alguns de seus espaços antes reclusos para exibição de alguns
aspetos da privada. Seguindo o exemplo da cidade e da casa, os objetos domésticos
vão ser incorporados a essa estética de civilidade conferindo aos seus donos o
status de civilizados. No esforço para elaborar e executar um processo civilizatório,
as classes dominantes recifenses vão atribuir a imagem, a máxima importância
distintiva, ou seja, através da impressão captada pelo olhar, seja em objetos, na
forma de vestir, como se expressava ou falava, etc., era atribuída a categoria de
requintado. A burguesia recifense se esforçava para educar-se buscando, por meio
das regras da polidez, ser capaz “de revelar aos olhos estrangeiros o estado social e
político de (sua) sociedade”16. O antigo modo barroco de viver repleto de reserva,
agora era substituído pela exibição pública comedida, a sofisticação da aparência
e a normatização dos sentidos. Uma nova sociedade emergiu, transformando-se
tal qual a cidade.
A partir da segunda metade do século XIX o Recife apresentava uma melhoria
em sua estrutura17, as formas de se viver a cidade estavam se modificando o que fez
aparecer dois personagens urbanos, exemplo de comportamento cosmopolita para
época: o gamenho figura muito popular no meio masculino da época, romântico por
natureza vestia-se à última moda francesa: botins de lustro, calças justas, gravata de
gorgorão, sobrecasaca, bengala e tracelim na algibeira donde pendia um pequeno
relógio. Ficava à espreita nas esquinas ou ao pé dos muros namorando as moças
que se aventurassem nas janelas, nos bailes galanteava as moças, sempre gentil
não perdia o ensejo de ajudá-las a descer dos bondes ou de acompanhá-las ao
passeio, verdadeiro terror dos pais austeros; já seu correspondente feminino, a
gamenha, passava horas se preparando elegantemente para os bailes, seus rostos
escondidos pelos finos leques deixavam de fora apenas os olhos que lançavam
flertes e sinais de gentileza provocante. De dia jogava bisca e de noite dançava o
galope, ia ao teatro, quando estudada, lia os periódicos e tocava piano, falava e
gesticulava graciosamente, tinha apelidos como Mimi, Lili ou Zazá, e tratava os pais
por Mamá e Papá. Arrochava a cintura em corpetes para adequar os longos vestidos
pregueados de mangas bufantes, usava nos pés os borzeguins, como adornos brincos
em filigrana de ouro, lenços de seda e filó e para perfumar a elegante figura, gotas
de essência de rosas. A aparência, assim como, a educação dos sentidos ditou as
condutas sociais que tinha na linguagem da razão uma maior eficácia na imposição
das suas regras, pois:
À medida que as maneiras se refinam, tornam-se distintivas
de uma superioridade: não é por acaso que o exemplo
parece sempre vir de cima e, logo é retomado pelas camadas
médias da sociedade, desejosas de ascender socialmente.
Essa imitação é um dos grandes veículos da difusão das
boas maneiras.18

16
HAROCHE, Claudine. Da palavra ao gesto. Campinas: Papirus, 1998, p. 18.
17
Dentre as melhorias, podemos citar a sistematização da iluminação pública, passeios públicos,
teatros, sistema de transportes coletivos, etc.
18
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime: do sangue a doce vida. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 19.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 221
Um aspecto interessante a notar é como a parcela feminina vai ganhar espaço
dentro dessa nova cidade que está surgindo, resguardada as devidas proporções,
a partir da segunda metade dos oitocentos, as mulheres burguesas, passaram a ter
hábitos mais arrojados se comparados a sua geração anterior. O belo sexo – como
eram conhecidas as mulheres aristocratas - começou ter uma participação mais
ativa tanto no cotidiano como na vida cultural da nova cidade como bem observou
Antônio Pedro de Figueiredo, em sua coluna A Carteira, publicada no Diário de
Pernambuco de 12 de janeiro de 1857:
O belo sexo já vai participando dos progressos da civilização
entre nós. Que diferença a este respeito entre Pernambuco
de há vinte anos e o nosso Pernambuco!
Ainda nessa época, tão pouco remota, a recepção de
uma visita, principalmente do sexo masculino, dependia
ordinariamente do homem chefe de família, por qualquer
título que fosse. Graças à administração do Exmo. Barão
da Boa Vista, a sociabilidade foi penetrando entre nós e,
louvores a Deus, hoje já vai se estendendo a ação do belo
sexo da sua influência secular nos negócios domésticos há
uma muito legítima influência nas reuniões públicas.19
A elitização da diversão pública também foi um dos principais agentes para
a modernização dos hábitos. O espaço do teatro, por exemplo, era um dos mais
importantes locais de sociabilidade, era nas dependências do Teatro de Santa Isabel
que as famílias aristocratas encontraram o divertimento adequado: cantatas, óperas,
peças e apresentações extraordinárias. Os encontros ocorridos em seu salão principal
eram responsáveis por lançamentos de modas, flertes, encontros políticos, etc.
De uma forma mais resumida, tais encontros aconteciam nas residências,
sobretudo com o advento da sala-de-estar ou de visitas; agora os novos domicílios,
antes inacessíveis aos olhares curiosos, ambientes de reserva e descanso, ofereciam
alguns de seus cômodos para abrigar uma plateia seleta, tornando-se o local ideal
para demonstração dos novos modos. Nesse contexto nenhum outro instrumento
trouxe maior status de sofisticação aos lares do que o piano. Popularizado nesse
período, esse objeto permitia as pessoas da família, especialmente às moças,
divertimento e ao mesmo tempo, a exibição dos seus talentos como concertistas. Nas
festividades além do canto traziam-se, à baila literalmente, coreografias europeias
(reproduzidas à risca ou adaptadas), entre elas as mais refinadas como: o pas de
deux e o pas de quatre; assim como as populares caxuxa, quadrilha, valsa e galope20.
Um exemplo de como a diversão foi uma das responsáveis pela interiorização das
sociabilidades no espaço que se tornou público nas casas, observemos uma cena
19
MELLO, José Antonio Gonsalves de. Diário de Pernambuco: economia, sociedade no 2º Reinado.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 1996, p. 432-433.
20
Originários da França, tais passos de dança envolviam diferentes formações: o pas de deux, um
casal; o pas de quatre, dois casais. Já a caxuxa ou cachucha, era uma dança popular espanhola de
par solto, sapateada e acompanhada por castanholas. A quadrilha, por sua vez, também de origem
francesa, envolvia quatro ou cinco pares e um dançarino avulso que dava orientação dos passos.
A valsa, era uma dança vienense onde os pares se abraçavam firmemente e executavam rodopios.
Por fim, o galope consistia numa dança marcada por batidas dos pés e desfile pelo salão, aos pares.

222 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
descrita por Lucilo Varejão em seu livro De que morreu João Feital?, romance que
reporta alguns hábitos do final do século XIX ao comentar um baile feito em casa
de um dos personagens centrais:
Pelos cantos do salão, onde as cadeiras, agora, se arrimavam
à parede, velhotas casadouras se abanicavam com risinhos
de censura às toilletes alheias, numa algazarra de maitacas
em bando.
As raparigas, essas estacionavam quase todas no quarto que
abria para o salão, transformando neste dia, em vestiário;
algumas, com exageros de atavios, davam-se mesmo a
liberdade acenar aos derriços ocasionais, entre requebros
estudados e olhares de provocação, por trás dos leques.21
Como podemos observar as pessoas relacionadas nessa narrativa ocupavam um
espaço que antes representavam um espaço de reserva, local de maior intimidade
(o quarto) agora, diante de uma situação diversa, esse cômodo servia como espaço
de uso coletivo para aqueles que não faziam parte da família residente no local.
No campo da normatização dos sentidos, as tensões criadas através das
exigências de civilidade contribuíram para uma maior divisão do entendimento
acerca da atuação do indivíduo na esfera privada e na pública, reverberando não
só na alta cultura da época como também nas esferas mundanas, o resultado disso:
a proliferação dos manuais de conduta, livros com “regras de ouro” das relações
sociais22. Os bons modos e a etiqueta serviram como demarcadores, separando o
“selvagem” do “civilizado”. A ideia seria que ao conter os instintos brutais através
dos bons modos, o controle de si levaria ao controle do grupo, gerando assim
uma sociedade pacífica, ou seja, “os valores estéticos servem assim como fator
de equilíbrio na sociedade, reduzindo a sua violência”23. Podemos especular que
talvez essas pessoas, não simplesmente imitavam modos ou modas alheios, ao
assumir uma nova postura social, elas deveriam realmente acreditar que poderiam
desvencilhar-se da imagem selvagem e violenta adquirida em séculos anteriores.
Dentre tantos tratados de civilidade, citamos o Código do bom-tom, do padre J. I.
Roquete, publicado em 1845, onde:
Termos como polidez, civilidade, cortesia e urbanidade,
ganham as páginas da obra, introduzindo o leitor nas
novidades desses conceitos e atitudes que, segundo o autor,
constituem ‘um verdadeiro passaporte para entrar nas
casas nobres e passar por cavalheiro bem-criado, tal qual
se aprende nas salas de Paris’.24
Além de educativo, o código também era normatizador, pois recomendava o
controle absoluto de emoções e sentimentos considerados desnecessários e ainda
21
VAREJÃO, Lucilo. “De que morreu João Feital?”. In: __________. Romances recifenses. 3. ed.
Recife: Ed. do Organizador, 2006, p. 62 (grifo meu).
22
SENNET, O declínio do homem..., p. 34.
23
RIBEIRO, A etiqueta no Antigo..., p. 31.
24
ROQUETTE, J. I. Código do Bom-Tom ou Regras da civilidade e de bem viver no século XIX.
Organizado por Lília Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 21-22.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 223
regulava as propriedades de ambos os sexos. Outro manual bastante utilizado pelas
famílias abastadas recifenses na segunda metade dos oitocentos foi o periódico O
monitor das famílias, endereçado ao belo sexo, recomendando atitudes “nobres e
respeitáveis”.
Como observamos anteriormente, a aparência foi um dos principais recursos para
consolidação da ideia de civilidade, sendo assim, a moda era utilizada como uma
das principais formas de diferenciação social, pois “através dela constantemente se
resgatam critérios que distinguem as classes”25. Percebamos que nos referimos a moda
para além do vestuário, estabelecendo-se no forma de se expressar oralmente, de
andar, de gesticular. Na criação de novos costumes a moda passou a ser um elemento
decisivo, tanto que o termo “costume” poderia indicar um hábito determinante
de comportamento de um grupo social, retendo a uma estrutura, um sistema de
elementos relacionados entre si. Isso ocorre quando o desejo pela novidade, pelo
requinte, pela elegância, etc. torna-se um valor, mudando feitios e tornando-se uma
regra estável, um hábito e uma norma coletiva26.
Chamamos a atenção para o fato de que nem todos que faziam parte da classe
dominante e intelectual estavam satisfeitos com essas mudanças, por exemplo, o
conservador e sarcástico Lopes Gama, homem da religião, editor responsável do
periódico O Carapuceiro, observava cuidadosamente os hábitos da época, assim
como modas e os eventos sociais, e tecia comentários ácidos sobre eles, como
podemos observar nesse fragmento do artigo de 07 de dezembro de 1843, intitulado
“O nosso progresso”:
Por meio desses viajeiros e desses doutoraços é que as
doutrinas ímpias dos filosofantes da França pouco a pouco,
se foram importando no Brasil (...) não se conheciam
sociedades, partidas, bailes nem soirées, quadrilha só se
conheciam as de ladrões, não se sabia o que era vis-à-vis,
e passear um marmanjo com uma senhora pelo braço
seria motivo para se por em conflagração um reino inteiro.
(...) As moças eram góticas no que se mostravam versadas
era nas graças (...) raras vezes saíam de casa (...) nunca
falavam com um homem. (...) Hoje as senhoras de bom
tom dormem todo o dia e velam todas as noites nos bailes,
nas companhias, nos teatros, etc.27
E ainda prossegue, criticando o afrancesamento dos hábitos:
Nossos avós tinham certo ar, certo porte, certo caráter
que os distinguia, mas hoje o que somos nós senão uns
macacos da França? (...) As nossas sinhazinha e iaiás já não
querem ser tratadas senão por demoiselles, mademoiselles
e madames. Nos trajes, nos usos, nos modos, nas maneiras
só aprova o que é francês, de sorte que já não temos uma
25
RIBEIRO, A etiqueta no Antigo..., p. 19-20.
26
CALANCA, Daniela. História social da moda. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2008, p. 11-12.
27
Apud MELLO, José Antonio Gonsalves de (org.). O Diário de Pernambuco e a história social do
Nordeste (1840-1889). Vol. I. Recife: Diário de Pernambuco, 1975, p. 50-57.

224 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
usança, uma prática, uma coisa onde se possa dizer: isto é
próprio do Brasil.28
Aproveitemos essa deixa e como um dos habitués do baile oferecido pelo
personagem Totônio Sales no romance oitocentista Os Azevedos do Poço, de Mário
Sette. Imaginemo-nos sentados ao lado de duas senhoras para ouvi-las a respeito
da intimidade proporcionada pela modernidade:
– Isso vai num progresso. Onde já se viu, no meu tempo, uma
mocinha de braço com um rapaz, passeando, conversando,
talvez inconveniências, rindo-se um para o outro nas barbas
dos mais velhos!
– Um escândalo!... Antigamente uma donzela só ficava
sozinha com o rapaz na noite do casamento. Antes, nem
por sonhos. Agora, é ‘soarê’, é teatro, é banquete, tudo
misturado. Os namorados juntos; as casadas umas com os
maridos das outras; as viúvas, até as viúvas se derretem,
D. Porcina! Não está vendo D. Amalinha, de luto aliviado,
toda caída pelo capitão Bianor?... Viúva no nosso tempo
tirava mais o vestido preto e o chorão?.29
E por mais que se tentasse resguardar a “santidade do lar” protegendo-o de
olhos curiosos o que se passava nas alcovas e outros cômodos, às vezes, a casa se
transformava em palco de espetáculo público, como comenta Mauro Motta:
(...) o ataque histérico que se rebentava nas casas, às vezes
em série, quando alguém adoecia “gravemente” ou morria
gente da família – a saída do enterro a casa só faltava vir
abaixo, o que constituía forma de prestigiar o morto –
quando se rompiam os noivados, quando havia briga mais
violenta entre marido e mulher, ou entre pai e filha. Então
havia um desadoro no quarteirão, na rua toda.
Percebia-se o tamanho dessas tragédias ou comédias
domésticas pelos gritos que as anunciavam, convocando
curiosos para as janelas, a vizinhança e parentes para
socorrer a histérica em geral contorcendo-se no sofá da
sala-de-visita, local mais correto par ao exibicionismo.30
Percebemos que a modernização da cidade acabou por influenciar a novos
costumes, não só no espaço público como também e na esfera privada e mesmo
tendo força em alguns campos, não foi imune às críticas. A busca pela inclusão
no novo contexto social ocorreu de variadas formas e não só no sentido de mera
imitação. Pois, são múltiplos os olhares opiniões, conceitos e preconceitos sobre seus
espaços e os usuários desses espaços. Assim são definidos valores relacionados ao
que deve ser conservado e preservado e o que pode e até deve ser destruído em
nome do progresso31.
28
Apud MELLO, O Diário de Pernambuco, p. 54.
29
SETTE, Mário. Os Azevedos do Poço. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1978, p. 313-314.
30
MOTA, Mauro. Modas e modos. Recife: Ed. Raiz, 1977, p. 106-107 (grifo meu).
31
ALMEIDA, Maria das Graças de Andrade Ataíde de & LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 225
É por esse motivo que discordamos do Padre Lopes Gama e sua opinião sobre
a disposição de “macaquear” os europeus. Enxergamos para além da simples
mimetização onde a adoção dos costumes estrangeiros levou uma reinterpretação dos
desejos, um reflexo captado através de outros olhos onde os anseios que moveram
essas pessoas eram múltiplos, seus parâmetros e referenciais, díspares. De forma
bilateral, surgiram adaptações dando um novo sentido à palavra modernização e com
isso os hábitos passaram a repercutir num ajustamento de teor local, transmutando
palavras, gestos, atitudes, etc., criando de fato um novo mundo que não era nem
a França e nem o Brasil, era o Recife.

RESUMO ABSTRACT
Influenciada pelas ideias de modernidade Influenced by the ideas of modernity originated
originada em cidades cosmopolitas europeias in European cosmopolitan cities of the nineteenth
do século XIX, assim como pelas mudanças century, as well as the changes implemented in
implantadas na sociedade urbana do Rio de the urban society of Rio de Janeiro since the
Janeiro desde a chegada da Família Real, as elites arrival of the Royal Family, Recife elites sought
recifenses buscaram ao longo dos oitocentos, over the eight hundred, promote changes in both
promover modificações tanto na estrutura the urban structure and social and cultural order
urbana como social e cultural visando equipara- to equate it to the examples described above.
la aos exemplos acima descritos. Essa tentativa This attempt unleashed a taste for refinement
desencadeou um gosto pelo refinamento dos of manners, the main inspiration Paris. From
costumes, tendo como principal inspiração Paris. this premise, we observe in everyday city how
Partindo dessa premissa, observamos no cotidiano this process of ‘modernization’ took place, we
citadino como esse processo de “modernização” conducted our historical research through the
se deu, conduzimos nossa investigação histórica ideas of Richard Sennett, among others, seeking
através das idéias de Richard Sennett, entre to understand how to incorporate the experience
outros, procurando perceber como a experiência of customs “civilized” Europeans led to a cultural
de incorporação dos costumes “civilizados” hybridization. We utilize our research as a source
europeus levou a uma hibridização cultural. Para of the novels, and on the chronicles of the period
isso, utilizamos como fonte de nossa pesquisa os in which we concentrate, as well as some stories
romances, as crônicas do e sobre o período em printed in newspapers.
que nos debruçamos, bem como algumas notícias Keywords: Custom; Recife; 19th Century.
estampadas nos jornais da época.
Palavras Chave: Costumes; Recife; Século XIX.

Andrade. História (nem sempre) bem-humorada de Pernambuco (140 caricaturas do século XIX).
Recife: Bagaço, 1999, p. 98.

226 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
NAVEGANDO COM TUBARÕES:
A MÁQUINA E OS HOMENS QUE
FIZERAM O TRÁFICO

João Azevedo Fernandes1

REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. Tradução de Luciano Vieira Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 446 p.

Em 1843, na costa índica da África, a nau inglesa que transportava o reverendo


Pascoe Grenfell Hill capturou um navio negreiro brasileiro, o Progresso, de acordo
com a lei inglesa e os tratados internacionais que escreviam os capítulos finais da
tragédia do tráfico africano para as Américas. Em meio a chocantes descrições da vida
e morte em um negreiro lotado, em sua maior parte por crianças, Hill observou uma
cena que nos diz muito acerca da natureza do “infame comércio”. Alguns africanos
eram encarregados de prestar serviços no navio, recebendo por isso roupas e outros
sinais distintivos, o que divertia os marinheiros, como descreve o reverendo:
A estranha aparência e os desajeitados esforços causaram alguma hilaridade
entre a tripulação. “Nós devemos ter sentimentos para com esses infelizes, mais do
que temos”, disse um marinheiro para o seu companheiro. O outro replicou: “Ora,
nós não temos sentimento uns pelos outros, muito menos por eles.” Mesmo os mais
respeitosos estavam propensos a olhar aquela infeliz raça como seres de uma ordem
inferior; como se o Criador não tivesse “feito de um sangue todas as nações dos
homens em toda a face da Terra”. Assim ouvimos as expressões: “Isso vai morrer”,
“Aquilo está morrendo”, “Aquele sujeito não pode viver.”2
Neste trecho transparece toda a crueldade envolvida em um negócio no qual
a principal mercadoria era a carne humana. A violência da escravidão é um tema
tratado há muito pelos historiadores, mas poucos até agora se debruçaram sobre
as experiências de vida dos indivíduos que efetivamente realizavam o comércio, ou
daqueles que eram traficados.
Esta é a principal questão posta em cena pelo mais recente livro do historiador
norte-americano Marcus Rediker, O Navio Negreiro: Uma história humana (publicado
originalmente em 2007). Rediker é um reconhecido participante da chamada
“história atlântica”, à qual acrescenta uma adesão entusiástica à history from below.
Em seu livro (com Peter Linebaugh) anteriormente publicado no Brasil, A hidra de
muitas cabeças,3 Rediker já havia exercitado sua abordagem ao estudar os motins
e insurreições que agitaram o mundo atlântico, em um momento de revoluções
econômicas e políticas.

1
Doutor em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
Membro do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista (UFPB / CNPq).
2
HILL, Pascoe Grenfell. Cinqüenta dias a bordo de um navio negreiro. Tradução de Marisa Murray.
Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006, p. 82.
3
LINEBAUGH, Peter & Marcus REDIKER. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus
e a história oculta do Atlântico revolucionário. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 229
Agora Rediker dirige sua atenção ao tráfico de escravos africanos, a enorme
transferência de populações através do Atlântico que moldou o mundo contemporâneo
e forneceu um dos pilares para a ascensão do capitalismo. Sua abordagem, contudo,
é bem distinta daquela presente em estudos que se tornaram clássicos nas últimas
décadas, em especial com autores como David Eltis ou Paul Lovejoy. Rediker não se
detém sobre a cliometria do tráfico, mas usa seus conhecimentos da história marítima
e um grande uso de documentos pessoais, como cartas e diários de viagem, para
construir uma narrativa na qual os indivíduos e suas histórias de vida ocupam um
lugar de destaque.
É bem verdade que o título do livro é um tanto enganoso. Embora prometa fazer
uma história do próprio navio negreiro, a máquina sobre a qual se desenrolou o
drama da viagem forçada pelo Atlântico, a maior parte do livro é dedicada às histórias
pessoais, especialmente a do ex-escravo Olaudah Equiano, do marinheiro James
Field Stanfield, e do capitão de navios negreiros John Newton. Estes testemunhos
ajudam Rediker a mostrar o tráfico como muito mais do que uma empresa colonial,
na qual as forças do capitalismo nascente se defrontaram com a demografia africana,
mas também como uma tragédia na qual os indivíduos que trabalhavam nos barcos e
entulhavam os porões com gente aterrorizada também tinham uma vida de extremo
sofrimento, por vezes sendo mais mal tratados do que aqueles que representavam, no
fim das contas, um “investimento” muito mais valioso do que as vidas de marinheiros
que podiam ser substituídos com extrema facilidade.
O período abordado por Rediker abrange de 1700 a 1807, data do Slave Trade
Act que pôs fim ao tráfico de escravos no Império Britânico. É o período de ouro
deste comércio, no qual foram transportados dois terços de todos os africanos
trazidos à América, quarenta por cento dos quais vindos em barcos ingleses ou norte-
americanos. O autor aborda o período com base em quatro “dramas” humanos,
nos quais atuavam atores como os capitães dos navios, a multidão heterogênea que
formava as tripulações, os escravos em sua diversidade e, por fim, os abolicionistas
que deram fim ao comércio de escravos com suas descrições pungentes baseadas
nos depoimentos daqueles que participavam da empreitada.
O primeiro drama é o do relacionamento entre capitães e subordinados. Sem
tentar diminuir o sofrimento dos escravizados, Rediker mostra que as relações entre
os comandantes e as tripulações dos barcos só poderia ser caracterizada como
infernal, marcada por extrema violência e disciplina férrea. Os capitães tinham que
estar preparados para exercer seu poder (a eles confiados pelos donos dos navios)
com todos os meios possíveis, o que tornava a vida dos marinheiros tão dura quanto
a dos escravos, já que a taxa de mortalidade entre os marinheiros era semelhante à
dos próprios cativos. A análise do autor sobre esta relação particular deve bastante
ao tipo de abordagem realizada em A hidra de muitas cabeças: os marinheiros
eram unanimemente vistos como seres turbulentos e perigosos que deveriam ser
disciplinados à força, ou eliminados.
A violência dos capitães, portanto, era uma parte integral do processo que se
iniciava nos portos britânicos e americanos, como Bristol ou Newport, e em vários
outros portos do Atlântico, e se encerrava com a viagem de volta, nos quais os navios
retornavam aos portos de origem após despejar os sobreviventes da passagem na
América. Reunir a tripulação era uma parte importante das tarefas de um capitão, e

230 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
isto era feito geralmente com métodos de sedução. Recrutavam-se os marinheiros,
muitos de primeira viagem, nas tabernas, com fartas distribuições de rum. Nos
discursos dos agenciadores, os navios eram sempre novos e confortáveis, com boa
comida e bebida. Os destinos na África eram sempre os mais agradáveis e salubres,
e ainda havia a promessa do sexo com jovens virgens africanas. Os marinheiros
mais experientes diziam que, se as coisas fossem tão boas, não haveria dificuldade
em reunir as tripulações, mas os inexperientes costumavam engolir as promessas.
Nem sempre, porém, as coisas se resolviam com toasts de rum e descrições
melífluas. As prisões estavam atulhadas de devedores, vagabundos e toda a sorte de
gente despojada pela revolução econômica da Inglaterra do século XVIII. Para estes
não havia muita escolha: a incerteza da viagem à África parecia melhor do que a
morte na prisão ou o envio, como trabalhadores forçados, para as Américas ou para
as workhouses, destino que afetou centenas de milhares de europeus, especialmente
crianças órfãs. E havia, é claro, a perspectiva dos ganhos: um marinheiro poderia,
caso tudo corresse bem, ganhar o equivalente a US$ 4.500 atuais (o capitão poderia
ganhar US$ 100.000), o que significava bastante no século XVIII. Naturalmente este
resultado feliz somente ocorria na distante hipótese de que o marinheiro sobrevivesse
às doenças, à crueldade dos capitães e mestres, às revoltas dos escravos e às tabernas
e prostitutas dos portos de retorno.
O segundo drama desenrolava-se entre os marinheiros e os cativos. Embora
coubesse ao capitão a tarefa de zelar pelos lucros dos investidores (e o seu próprio),
eram os marinheiros que executavam o trabalho de controlar os escravos e mantê-los
vivos. Comida estragada, violências inauditas e estupros de escravas (que já eram
divididas pelos marinheiros, e capitães, na chegada ao navio negreiro) eram moedas
correntes nestas relações. Os africanos respondiam a este horror com inúmeras
formas de resistência, que iam do suicídio à recusa em se alimentar, passando
pelas revoltas e pelo assassinato de marinheiros e capitães. Alguns procuravam cair
nas boas graças dos captores, assumindo tarefas a bordo, inclusive no controle e
repressão de seus companheiros. Mulheres e crianças, que tinham maior liberdade
de movimentos, eram especialmente valorizadas para assumir tais funções, o que
também lhes permitia praticar pequenos crimes a bordo, como roubar comida e a
valiosíssima água, e mesmo organizar rebeliões.
Em boa parte do livro, Rediker se dedica a relatar as inúmeras formas pelas
quais os homens podem torturar, aterrorizar, humilhar e matar seus semelhantes.
Nas páginas de O Navio Negreiro, a passagem da África à América se parece, com
boa dose de razão, a um holocausto avant la lettre. Muito embora o autor não
deixe de apontar a miséria dos marinheiros, e o fato de que havia a necessidade
comercial de manter os escravos vivos, ninguém deixará este livro sem se convencer
da indizível violência dirigida aos cativos. Deixo ao leitor a tarefa de descobrir por si
só as crueldades descritas por Rediker. Mas não posso deixar de comentar o papel
dos tubarões no tráfico de escravos.
Os tubarões já se aglomeravam nos portos africanos, aguardando os mortos
enterrados em covas rasas nas praias, e descobertos pelas marés, ou atacando
os pequenos barcos que faziam o transporte entre as praias e os negreiros. Cair
de um barco era morte certa, o que fazia dos tubarões “o terror dos marujos”. E
mais ainda dos escravos: os capitães gostavam de ver seus navios cercados por

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 231
tubarões que seguiam os navios em busca do lixo dos navios, como vísceras e tudo
que não pudesse ser transformado em comida para os escravos, e especialmente
corpos humanos. Os tubarões, que se juntavam ás centenas em torno dos navios,
eram usados como instrumentos de terror: escravos renitentes, mulheres que se
recusavam a ser estupradas, e mesmo crianças que roubavam comida ou água
eram simplesmente jogadas aos tubarões, por vezes com requintes – nada raros –
de crueldade, como na oportunidade em que uma escrava rebelde foi amarrada
pelas axilas e jogada na água pela metade do corpo. Em poucos segundos a água
estava vermelha de sangue: metade do corpo da escrava havia sido arrancada pelos
tubarões. Para aumentar o horror, por vezes os tubarões eram caçados e abertos na
frente dos escravos: não era incomum que partes de corpos saíssem dos estômagos,
o que não deixava dúvidas quanto à falta de perspectivas de fuga.
O terceiro drama se desenrolava entre os próprios cativos. Pessoas de diferentes
origens, línguas e etnias eram jogadas em porões infectos, e quando decidiam se
manter vivos tinham que construir novas relações entre si, que muitas vezes assumiam
a forma de um “parentesco” fictício, que transformava estranhos em “irmãos” e
“irmãs”, o que garantiu a sobrevivência de muitos. Vários autores, como Richard
Price ou John Thornton, já haviam apontado a importância dos laços criados na
viagem no negreiro para a construção de uma identidade afro-americana, Mas
Rediker avança nesta reflexão ao detalhar as formas pelas quais estas novas relações
se construíam dentro das circunstâncias catastróficas encontradas a bordo. Este é,
diz Rediker, o fato mais importante a se destacar em toda a tragédia da escravidão:
“sua criatividade e capacidade de resistência os tornaram indestrutíveis, em termos
coletivos, e aí reside o capítulo mais glorioso de todo o período” (p. 16).
Por fim, Rediker se detém sobre o movimento abolicionista, quando membros
da elite britânica e norte-americana, como Thomas Clarkson, denunciaram as
iniquidades do tráfico ao público leitor. Em O Navio Negreiro aprendemos que
a percepção da tragédia da escravidão não se deveu apenas aos sentimentos
humanitários de alguns, mas à ação dos próprios envolvidos no tráfico, especialmente
os marinheiros que retornavam aos portos com histórias monstruosas e cicatrizes
emocionais e físicas. Foi a partir destes relatos que se construiu paulatinamente
a percepção de que o tráfico deveria ser extinto. Tais relatos colocaram um fim à
ideologia que afirmava que a escravidão, embora repulsiva, era uma necessidade
econômica e mesmo um bem aos “miseráveis africanos”. Histórias como a do ex-
escravo Olaudah Equiano, ou o famoso diagrama do navio Brooks – no qual os
escravos aparecem apinhados como sardinhas em lata – foram essenciais para a
transformação da mentalidade do público britânico e norte-americano.
Outro ponto importante no livro diz respeito aos próprios navios negreiros. Para
Rediker, o navio negreiro era uma das mais importantes máquinas inventadas pelos
europeus para a conquista do mundo. A partir das primeiras navegações no século
XV, os europeus usaram suas armas de fogo e barcos cada vez mais desenvolvidos
para dominar os povos da Ásia e América e para trazer os africanos que deveriam
trabalhar nas colônias. A máquina do navio era um contraponto necessário às
máquinas que movimentavam as plantations do Caribe e América do Norte. Além
disso, os navios eram fortalezas e prisões, cheios de armas e instrumentos de
contenção e tortura, o que fazia deles artefatos extremamente complexos, os quais

232 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
deveriam satisfazer a várias necessidades de defesa, transporte e manutenção (dentro
do “possível”) das vidas das mercadorias humanas. Sem dúvida, a descrição da
fabricação e das características buscadas nos negreiros é uma parte interessante do
livro de Rediker, mas a necessidade de atingir o público mais amplo faz com que os
conhecimentos de história náutica do autor sejam usados com grande parcimônia.
Seria interessante complementar a análise de Rediker com a leitura do livro de Jaime
Rodrigues, De Costa a Costa4, que traz descrições bem mais aprofundadas a este
respeito, embora, é claro, em um contexto e período diferentes.
Rediker também analisa os caminhos que traziam os escravos do interior da África
para os portos onde eram comprados pelos negreiros. Como é sabido, a escravidão
era tradicional nas sociedades africanas, mas a aparição dos europeus transformou
esta instituição em uma forma colossal de expropriação, à qual correspondia a
exploração nas plantations. Nesta máquina azeitada de exploração, os indivíduos
escravizados eram os elos fundamentais, não apenas pelos seus corpos, mas também
pelo seu trabalho na América. O rum (e, no caso do Brasil, a cachaça) era produzido
em milhares de destilarias na Inglaterra e América do Norte para servir de moeda de
troca, entre outras, nos portos exportadores de escravos na África. Era o trabalho dos
escravos que produzia novos escravos para as plantações e engenhos americanos.
Rediker aponta o papel dos europeus em incentivar as guerras africanas, ao
comerciar os meios de fazer a guerra, como cavalos e armas de fogo. Isto não o
faz, contudo, embarcar em qualquer tipo de negacionismo politicamente correto:
ao descrever as diferenças entre as várias regiões produtoras de escravos, Rediker
mostra como vários estados africanos se constituíram para o tráfico. Desta forma,
quem era escravizado era uma imposição das próprias sociedades africanas. O autor
também discute outras formas de escravização, como as condenações por feitiçaria
e os raids feitos por europeus ou africanos a seu serviço em aldeias próximas da
costa. Seguindo seu método de ilustrar os fatos com testemunhos pessoais, Rediker
apresenta vários casos em que os indivíduos eram sequestrados em suas aldeias
e levados aos portos do Atlântico, o que representa um dos pontos altos do livro.
Naturalmente, todos estes fatos já eram bastante conhecidos, mas o livro de Rediker
tem a enorme virtude de dar voz e rosto a um fenômeno que se espalha por séculos
e que afetou milhões de pessoas.
Rediker confere grande importância aos relatos de seus personagens icônicos: o
escravo Equiano, o marinheiro Stanfield e o capitão Newton. É, obviamente, uma
escolha bastante direcionada, já que os três personagens foram figuras marcantes do
movimento abolicionista. Por vezes o autor assume os riscos de uma idealização de
seus ícones, o que pode comprometer a acurácia histórica. Equiano, por exemplo,
traficou escravos durante certo período, o que é ignorado na narrativa de Rediker.
É de se lamentar, já que a história completa de Equiano – escravo, marinheiro,
traficante e abolicionista – seria justamente um caso exemplar de sobrevivência e
adaptação a uma situação dramática.
Mas este tipo de falha, em um livro claramente voltado para o público mais
amplo, não compromete suas muitas virtudes. Rediker usa uma enorme variedade
de fontes, que formam um requintado pano de fundo para suas histórias individuais.
4
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro
de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 233
Dos debates sobre o abolicionismo no Parlamento britânico aos diários de capitães
e marinheiros, dos registros portuários aos relatórios médicos, Rediker constrói sua
argumentação com base em dados bastante sólidos, o que não o impede de fazer
escolhas que privilegiam uma determinada visão sobre a história deste período.
Tanto em A Hidra de Muitas Cabeças quanto em O Navio Negreiro Rediker lança
o foco sobre os pobres e despossuídos da Europa, da América e África. A todo o
momento o autor mostra as formas como as massas turbulentas que povoavam as
margens do Atlântico influenciaram a história, seja resistindo à exploração, como
nas revoltas de escravos ou nos motins contra recrutamentos e trabalhos forçados
por miseráveis europeus, seja construindo “sociedades alternativas” ao sistema de
dominação global, como os piratas e os quilombos. Rediker aponta, neste livro atual,
que os relatos de marinheiros e, no final das contas, sua recusa em participar do
tráfico foram elementos centrais na modificação cultural e política que propiciou o
fim do tráfico no Atlântico anglófono.
Sua análise do impacto do tráfico entre as sociedades africanas é também
bastante válida. O livro mostra como o tráfico alterou as relações sociais de forma
definitiva, seja permitindo e incentivando a hierarquização e a formação de classes,
seja provocando uma cisão definitiva entre os povos africanos e suas elites, com
consequências que se fazem sentir até hoje. Não custa repetir, contudo, aquele que
talvez seja o ponto mais interessante do livro: ao mesmo tempo em que uma máquina
infernal, o navio negreiro, sugava e destruía milhões, era justamente nesta viagem
de dor que se formava uma nova consciência por parte de ibos, efiques, cassanjes,
e tantos outros que descobriam, para seu espanto, que faziam parte de uma nova
categoria, os “negros”, com tudo o que isso significava para suas histórias individuais
e para a formação das sociedades americanas.
Todas estas qualidades, aliadas à escrita atraente e ao entusiasmo com que o
autor apresenta seus personagens, faz de O Navio Negreiro uma leitura indispensável
para aqueles que querem compreender a complexidade do tráfico de escravos e
seu impacto nas sociedades americanas. É de se lamentar, contudo, a pobreza do
mercado editorial brasileiro, que já publicou dois livros de Rediker (com razão, aliás),
mas nunca publicou outros livros ainda mais importantes, como Way of Death, de
Joseph C. Miller, entre outros.

234 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
A JUDICIALIZAÇÃO DA HISTÓRIA:
TEMPO PRESENTE, DOBRADURAS
DE RACISMO E AÇÕES AFIRMATIVAS

Elio Chaves Flores1


Eduardo Fernandes2

FERREIRA, Renato (coord.). Ações Afirmativas - A Questão das Cotas: análises jurídicas de um dos
assuntos mais controvertidos da atualidade. Niterói: Impetus, 2011, 404 p.

Parece ser uma evidência entre os historiadores do século XXI (todos eles sem
exceção nascidos no século anterior) que a divisão entre o visível e o invisível
passa por profunda e quase trágica desestabilização. Bem disse o historiador das
antiguidades clássicas, François Hartog, preocupado com o que os historiadores
veem, ao disparar sem papas no francês: “o que há para ver quando se pode ver
tudo?”3.
Não deixa de ser uma ironia o fato de que o país entra num novo século, que
abre o terceiro milênio cristão, tentando resolver o mais invisibilizado dos seus
teoremas no século XX, o problema racial. Basta que citemos o primeiro parágrafo
da obra seminal do escritor negro norte-americano WEB Du Bois, em 1903, que
na sua reflexão prévia foi anunciador: “o problema do século XX é o problema da
barreira racial”4. Mas o Brasil não leu WEB Du Bois e levamos quase cem anos para
ter a sua obra traduzida para o português enquanto que a mais inconsútil novidade
historiográfica francesa chega de Paris no mesmo momento, até em lançamentos
simultâneos. O tempo presente do historiador e a simultaneidade dos tempos do
capitalismo cultural parecem não deixar nada para depois: o que ainda se pode ver
sobre a questão racial no Brasil que ainda não foi visto pela “historiografia pátria”
e pelos “intérpretes do Brasil”?
Em recente tradução para o português da História Geral da África, em oito
volumes, o autor da Introdução Geral, Joseph Ki-Zerbo, fala da “diversão alienadora”
que poderia levar à abstração das “tarefas da atualidade”. Ao ponderar que “a
história é a memória dos povos” o historiador de Burkina Faso também alertava
numa premissa que não seria estranho ao mundo jurídico: “é preciso que a verdade
histórica, matriz da consciência desalienada e autêntica, seja rigorosamente examinada
e fundada sobre provas”5. Esse foi um bom motivo para propor a resenha de um
1
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB). Pesquisador do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). E-Mail: <elioflores@terra.com.br>.
2
Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professor do Centro de
Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB). Pesquisador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas
(NEABI/UFPB).
3
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica,
2011, p. 16.
4
DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999, p.
49.
5
KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In: História Geral da África. Vol. I (Metodologia e Pré-História
da África). Brasília UNESCO; São Paulo: Cortez, 2011, p. XXXIII.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 235
livro que permite ao historiador a compreensão de um evento que se tornou “vida
cotidiana” na “arena judicial”. Evento presentista, posto que em curso, o livro traz à
tona análises jurídicas de “um dos assuntos mais controvertidos da atualidade”, as
ações afirmativas e as cotas para negros e indígenas no ensino superior. Outro motivo,
não menos importante, é o evento acadêmico de maior impacto na universidade
para a “história do futuro”, a aprovação pela UFPB, das cotas raciais e sociais no
sentido de democratizar o acesso ao ensino superior no estado da Paraíba. Uma
luta dos movimentos negros e indígenas que não durou menos do que uma década,
traduzindo-se num acesso tardio às políticas públicas de ações afirmativas6.
O coordenador da obra, Renato Ferreira, advogado, especialista em direitos
humanos e relações raciais, pesquisador do LPP (Laboratório de Políticas Públicas)
da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), reuniu dezoito autores que
atuam na área jurídica e traçam reflexões sobre o direito como instrumento para
“o enfrentamento da injustiça”. Cabe a nós indagar se a historiografia teria essa
mesma determinação. Na primeira parte, as entrevistas com Carlos Roberto Siqueira
Castro (UERJ), Fábio Konder Comparato (USP) e Luís Roberto Barroso (UERJ),
explicitam a situação do tempo presente a partir das “igualdades materiais previstas”
pela Constituição de 1988 e de suas urgências como imperativo categórico, isto é,
necessidade histórica. Para os historiadores que trabalham com testemunhos, o
depoimento do jurista Fábio Konder Comparato, não deixa de ser um estímulo de
pesquisa ao que nos legou a escravidão:
Eu sou descendente do maior proprietário de escravos do
segundo reinado, o Comendador Joaquim José de Souza
Breves. Tive que entender, e só entendi isso muito tarde,
que a responsabilidade pela escravidão se transmite aos
descendentes, como a herança de um débito social. É um
débito social porque, se eu sou o que sou, hoje, é pelo fato
de eu ter herdado várias coisas, notadamente a instrução e
a educação, e isto só foi conseguido porque durante séculos
os negros sustentaram nossa economia (p. 14).
A segunda parte do livro é composta por onze artigos, abrindo-se a seção com
“Justiça Social e Justiça Histórica”, de autoria de Boaventura de Sousa Santos, cuja
reflexão resume a sua experiência na sociologia do direito7. Para ele, no Brasil, “a
injustiça social tem forte componente de injustiça histórica” que pode ser observada
na persistência do “colonialismo social”. Boaventura toca num ponto caro à
historiografia brasileira: “a ideia de democracia racial como dado, não como projeto”
(p. 34). Depois se seguem os artigos de Cláudio Pereira de Souza Neto e João Feres
Júnior, Daniel Sarmento, Flávia Piovesan, Luiz Fernando Martins da Silva, Otavio
6
Ver o dossiê “Ações Afirmativas”, organizado pelas pesquisadoras Surya Aaronovich Pombo
de Barros e Teresa Cristina Furtado Matos, publicado na revista Política & Trabalho - Revista de
Ciências Sociais (n. 33, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da
Paraíba, out. 2010). Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/politicaetrabalho>.
7
Basta que se pense no grande projeto do autor, intitulado “Para um Novo Senso Comum: a
ciência, o direito e a política na transição paradigmática”, cujo primeiro volume aponta para, no
mundo jurídico, “a tensão entre regulação e emancipação”. Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. A
crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p.
119-188.

236 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Brito Lopes, Roger Raupp Rios, João Mendes Rodrigues e Carlos Eduardo Silva
Gonçalves, Tanya M. Washington, Deirdre Bowen e Jessica Erikson, Hédio Silva
Júnior e Daniel Teixeira, com atuação na área do direito no Brasil e alguns com
atuação jurídica nos Estados Unidos.
Os autores seguintes, Cláudio Pereira de Souza Neto e João Feres Júnior, discorrem
sobre os argumentos básicos que legitimam as políticas de ações afirmativas.
Esses são a reparação (histórica), a justiça social (distributiva) e a diversidade
(multiculturalismo). Aqui aparecem as temporalidades historiadoras que implicam
olhares que se entrecruzam numa mesma problemática: “Enquanto a reparação
olha mormente para o passado, e a justiça social foca a desigualdade presente, a
diversidade tem um registro temporal incerto, às vezes sugerindo a produção de um
tempo futuro quando as diferenças poderiam se expressar em todas as instâncias da
sociedade” (p. 48). Ao final se critica a “apologia indiscriminada do mérito” numa
sociedade em que as condições competitivas “são terrivelmente desiguais”.
Daniel Sarmento, ao pontuar o grau elevado de desigualdade racial no país,
chama a atenção para o historiador do tempo presente e sua pesada “estrutura do
cotidiano” numa acepção braudeliana:
Para quem tem olhos de ver, basta um giro pelos shopping
centers ou restaurantes frequentados pela elite em
qualquer centro urbano do país para constatar a exclusão
social dos negros, que, no entanto, estão muitíssimo ‘bem
representados’ em outros espaços menos m como os
presídios e favelas (p. 64).
O autor traça “breves notas históricas sobre o princípio da igualdade” para
compreender a “discriminação de fato” e a “discriminação indireta” à luz da “teoria do
impacto desproporcional”. Isso significa dizer que a adoção de políticas universalistas
não estaria simplesmente reforçando o “mito nacional da democracia racial” senão
que também desfavorecendo grupos estigmatizados e vulneráveis. Ora, a perspectiva
ideológica do sujeito histórico universal não seria uma racionalização do racismo
eurocentrado no “fardo do homem branco”? Para o autor, a diversidade racial
estaria assegurada na medida em que as instituições públicas e privadas adotassem
práticas e ações afirmativas. De forma que, “de alguma maneira o branco também
se beneficia da ação afirmativa promovida em favor do negro” (p. 86).
Para Flávia Piovesan, a historicidade da construção dos direitos humanos, permite
observar que a primeira fase (os direitos civis e políticos) teria sido “marcada pela
tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença” (p. 117). Entretanto,
as mais graves violações a esses mesmos direitos afirmados foram produzidas pela
escravidão, os campos de extermínio, as práticas sexistas, a xenofobia e tantas outras
práticas de intolerância. Para a autora, se as intolerâncias e as injustiças raciais “são
um construído histórico” seria emergencial a “adoção de medidas emancipatórias para
transformar esse legado de exclusão étnico-racial e compor uma nova realidade”. Ao
defender as ações afirmativas Flávia Piovesan também aponta para a visão do “anjo
da história” benjaminiano, tão citada pela historiografia pós-moderna, porém tão
pouco perscrutada. Mas nunca é tarde para ler Flávia Piovesan: “As ações afirmativas
devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo − no sentido de

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 237
aliviar a carga de um passado discriminatório −, mas também prospectivo − no
sentido de fomentar a transformação social, criando uma nova realidade” (p. 122).
O artigo do advogado Luiz Fernando Martins da Silva analisa o sistema legal
que anima o debate jurídico sobre “o tema ação afirmativa e seus mecanismos para
negros no Brasil”. De extrema importância é o documento jurídico do acórdão
proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro, de 10 de dezembro
de 2003, relatado pelo desembargador Cláudio de Mello Tavares, negando o
pedido de inconstitucionalidade impetrado por um candidato que se sentia lesado
pela adoção do sistema de cotas no vestibular da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro. Trata-se de um veredito que põe em delicada evidência a tese historiográfica
de que as decisões dos tribunais brasileiros primam pelo conservadorismo. Eis o seu
teor mais eloquente e categórico:
Cidadania não combina com desigualdades. República não
combina com preconceito. Democracia não combina com
discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico,
não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e
preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente
cidadão o leitor que lhe buscasse a alma, apregoando o
discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história
pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso ter sempre
presentes essas palavras. A correção das desigualdades é
possível. Por isso façamos o que está ao nosso alcance, o
que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida,
não há espaço para o arrependimento, para a acomodação,
para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber
a origem, a tudo que é novo (p. 163).
De fato, a revolução historiográfica ocorrida nas últimas décadas, especialmente
aquela da “história social da escravidão”, mas que ainda não ultrapassou o “14 de
maio”, talvez devesse se situar num tempo presente em que as demandas por ações
afirmativas e reparações históricas sejam significações materiais e simbólicas que,
de certa forma, reverberam o palco histórico de 1695: “a pressão historicamente
exercida pela comunidade negra e demais segmentos sociais excluídos” e “resultado
de um contexto caracterizado por grandes mudanças externas e internas” (p. 167).
A reflexão que o texto do Procurador Geral do Trabalho, Otavio Brito Lopes,
proporciona é uma perspectiva de também replicar elementos acadêmicos dentro do
Poder Judiciário, enquanto agenda política e ações jurídicas de uma das instituições
do sistema de justiça que tem como missão observar a situação dos/as trabalhadores/
as no Brasil, pois, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem a capilaridade de
atuar no campo individual, assim como nas demandas coletivas, trazendo teses que
são analisadas pelos Tribunais do Trabalho. O autor revela que no ano de 2005 o
lançamento, dentro do Ministério Público do Trabalho, do Programa de Promoção de
Igualdade de Oportunidades para Todos, é um marco fundamental para construção
de uma metodologia de trabalho do que considera a discriminação do ponto de
vista direto ou indireto, ou seja, o MPT trabalha também em cima da hipótese
constituída de um racismo à brasileira. É evidente que os conflitos no campo da

238 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
empregabilidade, de cunho discriminatório, não estão presentes nos discursos, editais
e chamadas de emprego, porém, estão arraigados nas opções dos contratantes. A
presença marcante de homens brancos no mercado de trabalho não condiz com a
realidade brasileira quando mensurados os recortes de gênero e étnico/racial, tais
análises também refletem no campo salarial e das oportunidades de promoção
funcional nas empresas privadas ou públicas, principalmente no campo dos cargos
de chefia e confiança. O autor observa o grau significativo de negação de que a
discriminação indireta reproduza as “persistentes desigualdades de raça e gênero”
(p. 201) assim como a “negação de que a discriminação poder ser evidenciada por
meios de estatísticas” (p. 209). Nesse caso, a prova estatística, ainda se mostra frágil
aos olhos dos juízes diante da complexidade das relações raciais. Algo semelhante
como medir a violência da escravidão pela quantidade de açoites que o escravizado
sofria do seu senhor. Ora, um açoite já um é indício, é história repetível.
O objeto de análise inicial do longo artigo de Roger Raupp Rios é propor uma
discussão constitucionalista sobre a eficácia jurídica do princípio da igualdade,
especificamente nas dimensões hermenêuticas principiológicas (pós-positivista) que
permita uma relação direta entre as possibilidades de incorporação dos tratados
internacionais e o ordenamento jurídico brasileiro. Tal discussão apenas é possível,
de acordo com o autor, quando mensurada a ideia de igualdade no plano material
e formal. Para tanto, tais argumentos são baseados em pesquisadores como Abdias
do Nascimento, Luís Fernando Barzotto, Robert Alexy, Marcelo Neves, Joaquim
Barbosa Gomes, entre outros que transitam no campo das análises da teoria geral
do direito, constitucionalismo, história e filosofia. Os argumentos centrais estão
baseados em algumas análises comparativas entre Brasil e Estados Unidos da
América (EUA) sob a ótica dos seguintes postulados: o direito da antidiscriminação;
o conceito jurídico de discriminação; discriminação direta e indireta, a gênese
das ações afirmativas nos EUA; o conceito e debate sobre ações afirmativas; os
argumentos favoráveis e contrários às ações afirmativas no Brasil e uma análise
sobre o princípio da igualdade a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (STF). O trabalho desenvolvido por Rios é denso, especialmente para os
iniciantes em leituras jurídicas, pois, utiliza as relações dos autores com os casos nas
esferas do STF e da Suprema Corte Norte-Americana, entrelaçando tais espaços
decisórios com elementos teóricos da perspectiva liberal do direito, proporcionando
um grande debate sobre as possibilidades de julgamentos favoráveis às teses das
ações afirmativas no âmbito brasileiro.
O artigo seguinte, de João Mendes Rodrigues e Carlos Eduardo Silva Gonçalves,
trava um debate sobre as possibilidades de diálogo dentro do sistema jurídico da
comunidade europeia denominado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
(TJCE), órgão responsável pela análise sobre a pertinência legal dos atos comunitários
em uma perspectiva regional, principalmente no âmbito do direito trabalhista e a
relação de gênero no ambiente de trabalho e acesso a cargos públicos nos Estados-
membros. Os autores demonstram que a construção da jurisprudência nesse Tribunal
é tímida, também em face do pouco avanço legislativo nos Estados. Por outro
lado é possível vislumbrar que as diretivas apontadas por esse órgão é de extrema
relevância política para grupos específicos ou indivíduos, porém, apenas o discurso
não basta para dar sustentabilidade às posições festejadas no âmbito europeu, os

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 239
próprios autores sinalizam que em casos emblemáticos o TJCE tende a ser temerário.
Vale no texto acompanhar os diversos casos citados no âmbito europeu que ainda
estão em trâmite dentro do TJCE, assim como a discussão sobre a universalidade
do princípio da igualdade.
A professora Tanya M. Washington elabora no seu artigo uma síntese sobre o
projeto de ações afirmativas nos Estados Unidos da América (EUA), sendo a crítica
inicial da autora uma análise binária (brancos e negros) na atual sociedade norte-
americana recortada por outras identidades e experiências étnicas coletivas que
vivenciam problemas econômicos, políticos e sociais de igual repercussão, como
é a situação dos asiáticos, latinos e índios. Trata-se de um texto com forte teor
historiográfico e equivocadamente discutido no Brasil que vale a pena se entender
na sua análise. A narrativa proposta pela autora nos leva desde a instituição da
escravidão (1654-1865) nos EUA o que corresponde a mais de 200 anos de
opressão e construção de códigos identitários nacionais nas quais os/as negros/as
foram/estão excluídos, entre eles o acesso à educação universitária, visto que os
números apontam um total de quatro milhões de africanos escravizados no auge
do sistema. Os anos de 1866-1877 aparecem enquanto a possibilidade de alguns
avanços da população negra, principalmente, a partir do ideal de controle central
(União) da federação americana, por exemplo, a autora aponta a existência de um
Departamento de Refugiados, Homens Libertos e Terras Abandonadas, com foco no
assentamento das famílias negras provenientes do Sul. É o período da construção
das Emendas constitucionais 13, 14 e 15, esta última previu a condição de voto
igual para cada pessoa, independente de cor, raça ou condição econômica. Por
outro lado também é o tempo de surgimento e intensificação da violência por parte
da Ku Klux Klan, que além das ações pessoais (ameaças, assassinatos e torturas),
também tinha articulações políticas em todos os setores do Estado. Os embates dessa
época levaram a um outro momento histórico turbulento entre os anos de 1876 e
1950, pois, como destaca a autora, os negros eram obrigados por lei a financiar sua
própria exclusão, as Leis Jim Crow (leis estaduais e locais nos Estados do Sul que
determinavam a segregação racial) e um montante de quase 4.000 linchamentos
públicos de negros no sul demonstravam que os grupos brancos não estavam
dispostos a perder a sua centralidade de comando nas decisões políticas e sociais
do Estado, em vários casos levados a Suprema Corte Norte-Americana, mas sem
condenações exemplares. Apenas a partir de 1954 até os anos de 1978, temos a
retomada ou construção de uma época de ativismo, a própria Suprema Corte Norte-
Americana centraliza o debate sobre educação, enquanto função mais importante do
Estado e que deve ser constituída a partir de elementos que traduzam a diversidade.
Esse debate jurídico demorou praticamente cinquenta anos, mas houve avanços e
novas políticas no campo das ações afirmativas surgiram, assim como a consciência
racial foi ampliada com as mobilizações sociais. Também é um dos momentos da
consolidação das escolas e universidades de negros/as para negros/as. Por fim a
autora chama atenção para o risco da amnésia nos dias atuais da questão racial,
pois, desde 1974 até eleição de Barak Obama, a Suprema Corte Norte-Americana
vem analisando casos concretos de acesso às universidades sem a devida acuidade
no campo das ações afirmativas, como se o processo de integração estivesse dado
na sociedade norte-americana. Tal risco é tão presente que a autora se refere à

240 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
eleição do primeiro presidente negro nos EUA na perspectiva de que as realidades e
contradições históricas estejam superadas, e isso pode levar a retrocessos em alguns
setores, principalmente no que ela caracteriza como a importância do conhecimento
e ensino da história racial norte-americana.
Para os autores seguintes, Deirdre Bowen e Jessica Erikson, as ações afirmativas
nos Estados Unidos da América são visualizadas a partir de elementos estratégicos. As
autoras apontam inicialmente que a discussão sobre raça está superada do ponto de
vista biológico, sendo importante perceber a dimensão sociológica do uso do termo
que não são necessariamente o compartilhamento de características físicas de um
determinado grupo, mas sim, de sua experiência em coletividade que se constituem
em suas interações humanas. O termo etnia também ganha destaque na análise
inicial para construção de uma política emergencial e contextualizada para essas
demandas que chegam ao poder judiciário e que possam ser analisadas de forma
ampliada, principalmente em face dos movimentos existentes, que são contras as
ações afirmativas e, constantemente, procuram o espaço jurídico com a finalidade
de desconstruir o legado das ações afirmativas nas instituições de ensino, cargos
públicos, ascensão funcional e outros mecanismos para implementação integral da
política de ações afirmativas. As autoras ainda destacam os casos atuais estudados
na Suprema Corte Norte-Americana que vem apontando uma tendência de enxergar
os Estados Unidos como uma sociedade/Estado “pós-racial”.
A ideia central dos autores do artigo que fecha o livro, Hédio Silva Júnior e Daniel
Teixeira, é comprovar que desde a Segunda República (a lei da nacionalização do
trabalho, de 1931) até os dias atuais o Estado brasileiro vem sendo tomado por uma
avalanche de ações afirmativas em várias dimensões da vida social e política, sejam
elas no campo do Direito do Trabalho, ou das ações afirmativas de 1968, conhecidas
enquanto Lei do Boi – reserva de vagas nos cursos de ensino médio e superiores de
Agricultura e Veterinária. O Brasil vem também desde 1970 desenvolvendo parcerias
com países africanos para troca de conhecimentos no campo da tecnologia, onde
estudantes são alçados aos cursos superiores sem passar pela seleção do vestibular.
Também são reconhecidas as cotas para portadores de deficiência no setor público
e privado, para as mulheres nas candidaturas partidárias e no direito do consumidor,
onde o ônus da prova é invertido. Também são elementos do reconhecimento das
tensões em torno do princípio da igualdade previsto na nossa Constituição de 1988
que pode ser vislumbrado por uma ótica negativa e outra positiva, principalmente
no que tange ao “direito formal” versus “igualdade material”.
As considerações finais dos autores também podem ser as desta resenha, no
sentido de marcar uma historicidade profunda em meio às evidentes soberbas
(dobraduras de racismo?) que ainda se registram no tempo presente:
À guisa de conclusão, é possível afirmar que aceitar,
como fazem os opositores ao sistema de cotas, que há
desigualdades raciais históricas no Brasil, observáveis em
diversos setores da vida social, a exemplo da Universidade
Pública, e assim mesmo opor-se aos instrumentos que visam
refletir nestes âmbitos a nossa rica diversidade etnicorracial,
é condescender com a exclusão histórica do negro dos

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 241
espaços de participação e decisão em nossa sociedade,
solidificando o que se delineou, com raríssimas exceções,
na História do Brasil: o lugar do branco e o lugar do negro,
em outras palavras, a segregação de facto (p. 378).
Com efeito, não seria chegada a hora de definir, de uma vez por todas, que se
a história não se apresentar como uma ciência aplicada à cidadania, a qual outros
demônios ela servirá?

242 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
AFRICANIDADES, COTAS E QUESTÕES RACIAIS

Entrevistadores: Solange Pereira da Rocha1, Elio Chaves Flores2 e Alessandro Moura de Amorim3.

Transcrição: Mayara Juvito4.

Na primeira quinzena do mês de junho de 2010 o professor José Jorge de


Carvalho, antropólogo e etnomusicólogo, da Universidade de Brasília (UnB), aceitou
gentilmente o nosso convite para participar do debate Implantação das Políticas
de Cotas nas Universidades Federais Brasileiras, evento que discutiu o acesso e
a permanência dos estudantes negros na UFPB. O professor é Coordenador do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Inclusão no Ensino Superior e
na Pesquisa, do CNPq/ MCT, dedicado a construir um Observatório com um Banco
de Dados completo sobre as ações afirmativas vigentes em todas as universidades
brasileiras.
Especialista nas religiosidades afro-brasileiras e um dos mais respeitados
defensores das cotas para estudantes negros no ensino superior, o professor José
Jorge de Carvalho também foi nosso entrevistado, especialmente para o dossiê
História e Africanidades, que Saeculum − Revista de História publica nessa edição.
A entrevista foi, na verdade, uma longa conversa no LABORHIS (Laboratório
de História), que durou toda a manhã do dia 11 de junho de 2010 e, por isso
mesmo, tivemos de cometer o “copidesque acadêmico” de editá-la conforme as
regras metodológicas da história oral, para livrar o leitor de Saeculum de nossas
próprias ilações.
Portanto, dispomos aos nossos leitores as argumentações e resultados de pesquisa
do professor José Jorge de Carvalho cujo conteúdo versa muito sobre o tempo
presente na complexidade das demandas da população afrobrasileira por igualdade,
justiça e democracia substantivas.

Os Entrevistadores

1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). E-Mail: <banto20@
gmail.com>.
2 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
Pesquisador CNPq. Pesquisador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB).
E-Mail: <elioflores@terra.com.br>.
3
Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. Professor da Rede Municipal de Ensino
Público de João Pessoa. E-Mail: <ale.histor@gmail.com>.
4
Graduanda em História pela Universidade Federal da Paraíba.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 245
Saeculum: Conte-nos um pouco sobre sua formação acadêmica.

José Jorge de Carvalho: Minha formação acadêmica de graduação é em


Música. Entrei na Universidade de Brasília para fazer o curso de Física e depois
de um ano troquei para Música. Depois fiz especialização em Etnomusicologia e
Folclore na Venezuela, no Instituto Interamericano de Etnomusicologia e Folclore,
em Caracas. Meu Mestrado foi em Antropologia Social (Etnomusicologia) e meu
Doutorado em Antropologia Social, ambos cursos de Pós-Graduação feitos na
Universidade Queen’s, de Belfast.

Saeculum: Qual foi a época?

José Jorge de Carvalho: Logo depois da graduação, em 1973, fui para


a Venezuela. Na verdade lá é como se fosse o meu segundo país porque fiz a
especialização e, em 1974, me tornei pesquisador do Instituto Venezuelano de
Antropologia e História, ligado à Universidade Central da Venezuela, tanto do Oriente
como das tradições de origem africana do sul do Lago Maracaibo. Meu tema de
pesquisa era a música tradicional na Venezuela. Depois acabei indo para a Europa
fazer o mestrado em Etnomusicologia na Queen’s University of Belfast (Irlanda do
Norte), onde estudei com John Blacking, talvez naquele momento o etnomusicólogo
mais importante mundialmente5. Continuei pesquisando etnomusicologia e folclore,
onde, na mesma universidade e com o mesmo orientador, concluí o doutorado
em Antropologia da Música, em 1984, com tese sobre música e ritual nos cultos
Xangô do Recife6. Apesar de minha atividade intelectual navegar por muitos outros
interesses e paixões, como etnomusicólogo, nunca suspendi minha vinculação, que
foi constitutiva da minha formação, com as culturas populares e com o folclore.

Saeculum: O senhor falou de cultura popular e folclore, qual a visão sobre essas
duas manifestações? A dimensão folclórica da cultura parece não agradar muito
aos historiadores.

José Jorge de Carvalho: Falei cultura popular porque muitos consideram a


palavra folclore desgastada, mas ela continua a existir na Sociedade Brasileira do
Folclore7. Pode ser que você resolva não usar a palavra folclore, mas não quer dizer
5
John Blacking (1928-1990) pesquisador de referência na etnomusicologia, autor do livro How
musical is man? (1973). Suas reflexões teóricas sobre etnomusicologia mais sofisticadas apareceram
originalmente no South African Journal of Musicology, em 1984, com o título “The study of
‘music’ as cultural system and human capability”, traduzido como o primeiro texto do autor em
português com o título Música, Cultura e Experiência (Cadernos de Campo, São Paulo, n. 16,
2007, p. 201-218). Ver mais em TRAVASSOS, Elisabeth. John Blacking ou uma humanidade
sonora e saudavelmente organizada. Cadernos de Campo. São Paulo, n. 16, 2007, p. 191-200.
6
CARVALHO, José Jorge de. Cantos sagrados do Xangô do Recife. Brasília: Fundação Cultural
Palmares, 1993.
7
A Sociedade Brasileira do Folclore foi fundada por Luís da Câmara Cascudo, em 1941. Nesse
mesmo ano, também foi fundada a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnografia, por Arthur
Ramos, um estudioso das manifestações negras no Brasil. O primeiro publicou, em 1964, Made
in Africa (São Paulo: Global, 2002) e o segundo já havia publicado, em 1934, o livro O Negro

246 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
que a palavra não possa ser usada por outros colegas, ainda que não seja a melhor
palavra para você. Hoje em dia se fala mais em culturas populares, mas eu tive a
oportunidade de estudar com grandes folcloristas latino-americanos e europeus.
Quando eu retornei ao Brasil, depois do doutorado, fui para o Instituto Nacional
do Folclore com proposta de assumir a sua direção. Por tudo isso, os estudos sobre
folclore estão muito próximos das minhas preocupações, fiz uma grande pesquisa
no Nordeste brasileiro no que muitos estão chamando, hoje, de culturas populares8.

Saeculum: Outra expressão bastante polêmica é o sincretismo que, durante


muito tempo, foi utilizada para explicar as manifestações religiosas afrobrasileiras.
O que o senhor diria disso?

José Jorge de Carvalho: São muitos os processos de difusão dos hibridismos


e multirreligiosidades, que são muitas vezes colocados ao lado da expressão
sincretismo. Às vezes a luta teórica pode tomar dois rumos. Há uma luta teórica que é
um investimento fortíssimo em cima da terminologia, muitos teóricos investem contra
as palavras para desqualificá-las e decretam a morte dessas palavras. Outra postura
seria repensar os conteúdos das palavras e não necessariamente investir contra elas,
porque as palavras têm uma história; se decretarmos a censura de palavras que
nos desagradam, corremos o risco de ficar sem vocabulário. Por exemplo a palavra
sincretismo pode ser detestada, por alguns que acham que ela não explica nada, e
o seu uso chega a causar constrangimento. Outra postura seria preservar a palavra
e refazer o seu sentido. Escrevi recentemente um artigo sobre alguns conceitos dos
Estudos Culturais, a partir de Homi Bhabha, com o conceito de emergência (que ele
retirou das Teses da Filosofia da História de Walter Benjamin), então se pode falar
de hibridismo totalmente aberto, sem uma linha definida de atuação, sem uma lei
de crescimento que você possa prever ou uma totalidade múltipla, se você quiser9.
O conceito de emergência é uma maneira de ler esse processo cultural pelos dois
Brasileiro: etnografia religiosa (Rio de Janeiro: Graphia, 2001).
8
Indicamos a seguinte produção bibliográfica: CARVALHO, José Jorge de. “Metamorfosis de las
Tradiciones Performáticas Afrobrasileras”. Proyectar Imaginários. Bogotá, IECO - Universidad
Nacional de Colombia/La Balsa, 2006, p. 281-315; “A tradição musical Iorubá no Brasil: um cristal
que se oculta e revela”. In: TUGNY, Rosângela Pereira de & QUEIROZ, Rubem Caixeta de (orgs.).
Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 265-292;
“Por que e como apoiar as Culturas Populares”. In: FARIA, Hamilton & LIMA, Ricardo (orgs.).
Fomento, difusão e representação das Culturas Populares. São Paulo: Instituto Pólis; Brasília:
Ministério da Cultura, 2006, p. 12-28; “Espetacularização e canibalização das Culturas Populares”.
In: I Encontro Sul-Americano das Culturas Populares. II Seminário Nacional de Políticas para as
Culturas Populares. Brasília: Editora do Ministério da Cultura, 2006, p. 79-101; “Metamorfoses das
tradições performáticas Afro-Brasileiras: de Patrimônio Cultural a indústria de entretenimento”. In:
CENTRO Nacional de Folclore e Cultura Popular (org.). Celebrações e Saberes da Cultura Popular.
Rio de Janeiro: IPHAN, 2004, p. 65-83.
9
Ver CARVALHO, José Jorge de. “Os Estudos Culturais como um Movimento de Inovação nas
Humanidades e nas Ciências Sociais”. Cadernos da Escola de Comunicação da Unibrasil, 2005, p.
01-17. O autor em referência é o crítico indo-britânico Homi K. Bhabha, conhecido no Brasil pela
tradução de O Local da Cultura (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003); Ver também CARVALHO,
José Jorge. “O olhar etnográfico e a voz subalterna”. Ver também os verbetes:” Criollización”,
“Hibridación”, “Mestizaje y Sujeto Intercultural”, escritos por José Jorge de Carvalho para o
Diccionario de Relaciones Interculturales, organizado por Ascensión Barañano, José Luis García,
Maria Cátedra y Marie Devillard (Madrid: Editorial Complutense, 2007).

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 247
sentidos: como situação de perigo completo e onde coisas novas podem aparecer.
Nesta perspectiva, seria possível usar o hibridismo como emergência e não como
uma maneira específica de difusão ou de um produto que surgiu de uma junção,
ou fusão no seu sentido usual, como parece ser a metáfora biológica do híbrido.

Saeculum: A ideia do hibridismo é bastante discutida pela historiografia brasileira


contemporânea, especialmente a partir da leitura de Serge Gruzinski. Como o senhor
analisa isso e qual sua repercussão para as identidades negras?

José Jorge de Carvalho: Aqui, nós entramos em uma discussão teórica e


ideológica fascinante. Há uma espécie de curto circuito entre a discussão européia
e a norte-americana comparada com a mestiçagem que se discute no Brasil, pois
no momento em que essas pessoas estão lá no chamado Primeiro Mundo parecem
ser progressistas, mas quando elas vêm para cá, muitas vezes ficam do lado dos
conservadores. A mestiçagem tem sido uma metáfora para nós infeliz politicamente.
É uma metáfora paralisante e quase sempre invocada para que você não afirme
que existe um grupo reconhecido na nossa sociedade que é discriminado, qual
seja, o grupo negro. A mestiçagem vem para impedir a identificação de um grupo
oprimido racialmente, porque o mestiço passa a ser justamente não discriminado,
ele é aquele que está no campo possível da convivência, já que “somos todos
mestiços”. No momento presente, em que toda a discussão das ações afirmativas e
das políticas públicas significa recuperar um século de exclusão social e afirmar, em
grande medida, a identidade negra, o idioma da mestiçagem vem para impedir essa
afirmação, e esse parece ser o exemplo de Gruzinski10. Nesse sentido, a metáfora
da mestiçagem, dá a impressão para nós, de uma metáfora ineficaz; ou pior ainda,
eficaz ao contrário, porque é desmobilizadora, além de empobrecida, pois, afinal
de contas, quem não é mestiço? Após mais de cem mil anos de história dos grupos
humanos se misturando, desde os primeiros “homo sapiens”, inicialmente com a pele
muito escura, até chegar, a uns dez mil anos atrás, os que foram chamados muito
depois de “negros” ficou demonstrado que as misturas não são modernas. Visto
dessa maneira, o que não é mestiço? Tudo é mestiço, então invocar a mestiçagem
conduz a uma ideia esvaziada, até mesmo do ponto de vista biológico. Agora o
que está acontecendo com essas pessoas no Primeiro Mundo? Como muito deles
são intelectuais que querem ser progressistas em um mundo que instituiu o grande
racismo nos colonialismos dos últimos dois séculos (Inglaterra, França, Alemanha)
então eles vão dizer o seguinte, “os nossos povos não eram esse povo branco
dominante de hoje, eles são povos mestiços!”. Eles estão invocando a mestiçagem
para se distanciar e dizer assim, “não estamos nos associando ao grupo dominante
racista, imperialista e colonialista”. Entretanto, como nossa academia na América
Latina é colonizada e parte dessa academia também não gosta da afirmação da
10
Serge Gruzinski é historiador francês, diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS) e professor École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris). Entre suas
obras destacam-se A Colonização do Imaginário (1988) e O Pensamento Mestiço (1999), traduzido
para o português (São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e com significativa repercussão na
historiografia brasileira. Para uma síntese de suas idéias, ver GRUZINSKI, Serge. O que é um objeto
mestiço?, disponível em português em: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Escrita, linguagem,
objetos: leituras e história cultural. Bauru: Edusc, 2004, p. 253-278.

248 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
identidade negra, ela passa a utilizar esses autores estrangeiros que aparecem como
progressistas para desmobilizar a afirmação negra no Brasil11.

Saeculum: Isso poderia explicar a tradução e divulgação no Brasil de “autores


hibridistas” em detrimento da tradução de autores clássicos africanos? Qual é a sua
posição?

José Jorge de Carvalho: É assim que certos autores ditos progressistas


confundem tudo, que não existe raça, que não existe mais nada no Brasil, a não ser
a mestiçagem. Há casos estranhos, como por exemplo, o de Anthony Appiah, ele é
contra as cotas porque essas afirmam a raça no Brasil, ele não quer que a raça seja
afirmada na Inglaterra e por isso é contra políticas públicas para negros no Brasil12.
A mesma coisa é Paul Gilroy, cuja influência no Brasil tem sido um desastre, não
tem nada a ver conosco, Por exemplo, uma historiadora que é contra as cotas, Célia
Marinho de Azevedo, traduz um de seus livros e o aplaude porque é tudo o que ela
precisa para justificar sua posição anti-cotas. Gilroy já veio ao Brasil, e ele também
contribuiu para a frente contrária às cotas, deu entrevista a jornais dando munição
ao argumento dos que lutam contra as cotas, insinuando que o modelo de cotas
que desenvolvemos no Brasil foi copiado dos Estados Unidos. Se ele afirmou isso,
significa que sua referência para diálogo acadêmico no Brasil são os anti-cotas. Nós,
que defendemos as cotas, nunca afirmamos que estamos copiando modelos dos
Estados – justamente porque não estamos! E lembremos que no seu livro Against
Race, Gilroy não cita o Brasil nem uma única vez e nem cita nenhum autor brasileiro.
É um desastre, de fato.
Em que nos interessa que um intelectual da França ou Inglaterra venha ao Brasil
para se posicionar – ainda que indiretamente – do lado contrário às cotas?13 Com
11
Outro historiador europeu propenso a requentar a “teoria da mestiçagem” e a “democracia racial”
no Brasil, a partir de uma leitura “culturalista” de Gilberto Freyre é o nosso muito conhecido Peter
Burke, cujas obras são presença constante nos cursos de história. Ver BURKE, Peter. Hibridismo
Cultural. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003; e, do mesmo autor junto com Maria Lúcia
Palllares-Burke, Repensando os Trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre (São Paulo:
Unesp, 2009). Na historiografia brasileira contemporânea pode-se ver a leitura da mestiçagem na
obra de PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-
1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001; e, mais recentemente, o dossiê “Imagens: escravidão
e mestiçagens”, organizado e apresentado pelo autor para a revista Vária História. N.º 41, jan/jun
2009, p. 9-148.
12
Kwame Anthony Appiah é filósofo afro-britânico cujo principal livro, Na Casa de Meu Pai: a África
na filosofia da cultura (1992), foi publicado no Brasil no início dos debates das cotas raciais (Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997). Sua posição contra as cotas no Brasil foi externada numa entrevista
a um dos periódicos que mais combate as ações afirmativas na imprensa brasileira, a revista Veja.
A entrevista poder ser checada em Veja On-line. Edição 1946, 08 de março de 2006, com acesso
pelo seguinte endereço eletrônico: <http://veja.abril.com.br/080306/entrevista.html>.
13
Paul Gilroy é sociólogo britânico de origem afro-caribenha, diretor do Center for African American
Studies, lecionou em várias universidades inglesas e estadunidenses. Um de seus livros mais
conhecidos, O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (1993), foi publicado no Brasil
no início do século (Rio de Janeiro: Editora 34, 2001). José Jorge de Carvalho se refere a um outro
livro seu traduzido mais recentemente, Entre Campos: nações, culturas e o fascínio da raça (São
Paulo: Annablume, 2007). A coordenação da equipe de tradução e a revisão técnica estiveram
sob a responsabilidade da historiadora Celia Maria Marinho de Azevedo, uma das signatárias do
manifesto contra as cotas, em 2006 (ver nota 11). Em entrevista ao jornal baiano A Tarde, de

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 249
essas “autoridades acadêmicas internacionais” você paralisa o debate sobre as cotas
e a sua efetivação. Então, a “razão mestiça” pode ser utilizada do mesmo modo,
pode não ser o primeiro interesse de Gruzinski se colocar conservadoramente em
um debate brasileiro, mas o campo semântico manipulado politicamente no Brasil
faz com que essas teorias venham apenas reforçar aquilo de que nós procuramos
justamente nos distanciar, a saber a utilização ideológica e reacionária da teoria da
mestiçagem. O efeito ideológico é como se fosse o mundo de cabeça pra baixo.
É claro que existe uma complexidade fenotípica que implica em uma diversidade
racial, mas essa diversidade nada diz sobre a discriminação concreta sofrida pelas
pessoas não-brancas. Nossa luta, que não é por categoria analítica necessariamente,
é contra o racismo e a discriminação. Então, quando algum acadêmico estrangeiro
invoca a categoria mestiçagem, pode estar, ou involuntariamente, ou por obedecer
a lealdades políticas para quem o convidou ao Brasil, ajudando a fragilizar essa
luta local.

Saeculum: Bem, já entramos na questão do racismo no Brasil, estamos falando


na discussão intelectualizada e na prática mesmo que é esse racismo à brasileira.
Como esse racismo atua no ensino superior?

José Jorge de Carvalho: Primeiro, eu acho que não parece necessariamente


estratégico pensar na singularidade do racismo brasileiro, eu não acredito que ele
seja singular, isso faz parte de uma ideologia, justamente de um nacionalismo racista
disfarçado que diz que o Brasil é diferente, mas ele não é diferente. Se você for pensar
na América Latina, a ideologia é a mesma em todo lugar, a mestiçagem é invocada
em Cuba, Colômbia, Venezuela, México, Puerto Rico, República Dominicana, etc. Há
racismo também nos países da ideologia da mestiçagem. Portanto, talvez a questão
não seja discutir a singularidade, pois não há singularidade na configuração racial
do Brasil, visto que ela é muito parecida com a dos outros países acima referidos.
Diferente, provavelmente, seria um racismo muito mais abertamente confrontado,
como o racismo do estilo anglo-saxão. O centro dessa discussão é que, aqui, há
um confronto simultâneo de opressão e de racismo, com ideologia de cordialidade
interracial: o racista, além de oprimir e discriminar racialmente, nega todo tempo que
é o discriminador, algo muito parecido com a esquizofrenia, “estou te acolhendo, mas
não quero você perto de mim!”, são essas as injunções que caracterizam o discurso
do esquizofrênico no nosso caso, de um tipo de racismo que parece esquizofrênico.
Um exemplo maior é o trabalho monumental (no mau sentido do termo) de Gilberto
Freyre, ele que lutou contra a Frente Negra Brasileira (1931-1937) e ao mesmo tempo
dizia que a cultura negra é valiosa para o Brasil14. Isso é a própria esquizofrenia.
Salvador, em 07 de agosto de 2006, Gilroy não se manifesta contra as cotas, mas contra o conceito
de raça. A mesma entrevista está postada no Boletim CEAO, de 07 de agosto, com o título “A
questão é combater o racismo, não exaltar a raça”.
14
A Frente Negra Brasileira é considerada a mais importante entidade política de afrodescendentes na
primeira metade do século XX. Ver BARBOSA, Márcio. (Org.). Frente Negra Brasileira: depoimentos.
São Paulo: Quilombhoje, 1998; DOMINGUES, Petrônio. A Nova Abolição. São Paulo: Selo Negro,
2008, p. 59-95. Para contrapor a historicidade dos intelectuais negros ao percurso freyreano, ver
FLORES, Elio C. “Gerações do Quilombismo: crítica histórica às mitografias da Casa Grande”,
publicado em BITTAR, E. C. B. e TOSI, G. (orgs.). Democracia e educação em direitos humanos

250 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
É possível ver a reprodução disso entre profissionais que desconfiam do
Movimento Negro e ao mesmo tempo afirmam que as tradições culturais brasileiras
são importantíssimas nas suas origens africanas. O tempo todo é amar e odiar, eles
não podem só odiar, tem que estar sempre colocando um discurso de simpatia e de
acolhimento. O Brasil é um dos maiores países racistas do mundo, não há um dia
nos jornais que não tenha um incidente de violência racista, mas esses incidentes
concretos não necessariamente mobilizam a classe acadêmica para posicionar-se
contra o racismo. É um confronto que não pode ser direto e uma energia imensa é
usada para não permitir que o discurso antirracista seja afirmado. Na Colômbia é
igual, cada vez que vou lá e me encontro com os colegas negros é a mesma coisa,
o racismo é altíssimo e eles não podem denunciá-lo abertamente para ser ouvidos
porque a ideologia do país é a da mestiçagem. A ideologia da mestiçagem é o
álibi para que você não deixe afirmar a posição antirracista. Esta é a característica
ideologicamente mais forte do nosso racismo.

Saeculum: O senhor poderia falar desse racismo no ensino superior?

José Jorge de Carvalho: É principalmente no ensino superior que é gerada essa


estrutura racista. Então, para mim, o racismo no ensino superior aparece como uma
super intelectualização dos temas, onde as pessoas buscam explicações altamente
elaboradas para desviarem-se do tema central, que é a violência racial cotidiana.
Teorizam convivência, laços de cordialidade no cotidiano, ambiguidade de identidade
racial, varações de fenótipos, multiplicidade dos termos para designar a cor das
pessoas, argumentam que as raças não existem, insistem em que não temos leis
segregacionistas, etc. Eu vejo muito esse discurso por parte de sociólogos, cientistas
sociais, historiadores, antropólogos. Em síntese, o racismo como conceito aparece no
pensamento social brasileiro como uma abstração apenas. Os ensaístas do chamado
“pensamento social” nunca fazem uma discussão concreta do racismo; ficam sempre
em uma abstração gigantesca sobre a sociedade. Uso o termo hiper-intelectualização
como um equivalente, em linguagem psicanalítica, da racionalização, por um lado,
e do deslocamento, por outro. Sabemos que essa hiper-intelectualização esconde o
substrato racista da nossa academia, que se construiu como um espaço inteiramente
segregado e todos os recursos e privilégios ficaram sempre nas mãos dos brancos.
Como eles não querem dividir seu poder nem seus recursos com os negros, e não
podem dizer abertamente esse seu desejo racista, desenvolvem todo um discurso
intelectualizado acerca das ambigüidades da identificação racial. Assim, nem eles são
brancos (logo, não necessitam justificar a origem dos seus privilégios); nem excluídos
afrodescendentes são negros (logo, ninguém foi excluído, por razões de racismo).

Saeculum: Mas muitos intelectuais se aproximaram dos movimentos sociais,


principalmente das comunidades negras. Como é que o senhor vê essa relação dos
intelectuais com os ativistas e com as comunidades negras, quilombolas e indígenas
e outros intelectuais que agem e trabalham contra as ações afirmativas?
numa época de insegurança. Brasília: SEDH-PR, 2008, pp. 107-122. Uma crítica mais apurada
à ideologia da mestiçagem encontra-se em MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem:
identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 251
José Jorge de Carvalho: Posso falar etnograficamente como antropólogo.
Qual a etnografia que eu faço? Já faz muitos anos, são dez anos, por exemplo, que
participo da discussão das ações afirmativas. Percebo que continua sendo muito
pouco o convívio dos meus colegas brancos com o movimento negro. E então, visto
dessa maneira, é um mundo segregado. Os que se manifestam contra as cotas se
apresentam como neutros Mas se você disser que é a favor das ações afirmativas
você é chamado de ativista. Eles saem dos seus lugares acadêmicos de antropólogos,
sociólogos, historiadores, supostamente neutros, antropológicos, e continuam
dizendo que não são ativistas; mas eu não posso sair nem um segundo desse lugar
que sou acusado de ativista. Então há essa clivagem, eles assinam manifestos, vão
para os jornais, dão entrevistas, vão ao Congresso Nacional, depois vão ao Supremo
Tribunal Federal, entregam documento ao presidente do STF contra as cotas e ainda
têm coragem de dizer que são neutros, que são cientistas15. Mas exatamente por
que é que estamos encurralados? Utilizando da linguagem, da estratégia discursiva,
por que eles nos colocam em uma função defensiva? Isso nós precisamos analisar,
precisamos fazer a mesma coisa e colocá-los em posição defensiva, devolver o caráter
contraditório do discurso deles, dessa clivagem do discurso deles.
Por tudo isso, eu perguntaria o seguinte: por que o racismo brasileiro é também
um racismo acadêmico e não apenas do cotidiano? Porque os discursos sobre as
relações raciais são elaborados em grande medida na academia, através de uma
estrutura esquisofrenizante, que nega e afirma simultaneamente e, na medida em
que ela nega e afirma, produz uma eficácia para deixar tudo como está. Uma
pessoa posicionada contra o ativismo negro não é mais neutra, mas quer colocar
em você o lugar de posicionamento, de ativista negro, então você fica paralisado
discursivamente diante dessa pessoa, você tem que se fraturar internamente para
posicionar seu discurso. É como se o discurso dela se apresentasse coeso e o seu
discurso fosse externamente fraturado. A discussão do pensamento social brasileiro
é um pensamento de brancos, os negros não entram, então você se acostuma a
ficar num mundo confinado. Sendo assim, o que acontece nesses últimos anos,
que me é mais inteligível, é o sofrimento negro. A intelectualidade negra é muito
confinada, ela tem muito pouco acesso ao mundo branco, conversa muito pouco
com os brancos, sou muito amigo de intelectuais negros e evidentemente tenho
amigos brancos, percebo como pouco intelectuais negros sabem como é o mundo
dos brancos, há muito pouco acesso mutuo entre intelectuais negros e brancos, e
este é um hiato muito difícil de resolver.

Saeculum: Quais os intelectuais negros que o senhor considera importantes no


cenário nacional. Quais os que mais o influenciaram?

José Jorge de Carvalho: Abdias do Nascimento para mim é o mais importante,


15
O movimento contra as cotas e ações afirmativas para a população negra dispõe de dois documentos
amplamente divulgados nos meios de comunicação e que serviram de base para que o DEM (antigo
Partido da Frente Liberal) entrasse com uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra
a adoção do sistema de cotas pelas universidades, com vários historiadores como signatários. Vide
os documentos: Carta Pública ao Congresso Nacional, 30 de maio de 2006; e Cento e Treze
Cidadãos Anti-Racistas Contra as Cotas Raciais, de 21 de abril de 2008, que podem ser acessados
em: <http://www.noracebr.blogspot.com>.

252 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
no cenário nacional, dos grandes intelectuais que o Brasil teve no século XX. Acho
Abdias fascinante desde quando eu ainda fazia trabalho de campo em Recife. O
quilombismo, como atitude, é incrível, uma ideologia maravilhosa, aquele é um dos
manifestos mais corajosos que já foi escrito no Brasil, é um dos grandes manifestos
afrocêntricos, não somente um manifesto brasileiro, mas afro-americano16. Ele foi
corajoso demais, enfrentar a Bahia, desconstruir o racismo folclorizante de Jorge
Amado (este, que é um grande autor racista, que criou um imaginário desconstituidor
e desqualificador da mulher negra, tudo um grande estereótipo). Abdias não tinha
paciência alguma com isso, não cedeu jamais a essa cobertura falsa e desonrosa.
Guerreiro Ramos é outro maravilhoso intelectual, criador e teórico, ele inventou
inclusive uma técnica psicológica ligada ao teatro, o “psicodrama”. Ele já tenha
feito isso na década de 1940, como teoria e conteúdo de como administrar, pessoal
e coletivamente, o trauma negro. Guerreiro Ramos também discutiu a “redução
sociológica”17. Os dois são extraordinários pensadores e a academia branca sempre
os silenciou.

Saeculum: O senhor também poderia falar de Edson Carneiro e Clóvis Moura,


como foi a relação deles com a academia? Eles nunca estiveram fazendo parte do
corpo docente das Universidades?

José Jorge de Carvalho: Claro! Primeiro Edson Carneiro, que é um escritor


delicioso de ler, porque ele tem uma forma de escrever com frases brilhantes,
telegráficas e elegantes. Justamente por minha trajetória folclorista eu li com prazer
os livros de Edson Carneiro sobre folclore brasileiro, cuja militância intelectual estava
relacionada com os folcloristas. Ele se candidatou a uma vaga na Universidade
Federal do Rio de Janeiro e perdeu, foi reprovado nesse concurso por um professor
cujo nome nem sabemos, isso precisa ser dito por fazer parte de uma injustiça. Ele
não perdeu para um igual, perdeu para alguém inexpressivo. Então é duríssimo o
fato de ele não ter sido professor da UFRJ, um desastre para essa universidade até
hoje. Clóvis Moura foi outro caso análogo. Por que ele não foi professor da USP?
Olhe a biografia dos professores do departamento de história da USP e veja se são
todos maiores que Clóvis Moura. Dificilmente. Em um certo momento, a USP deu
a ele um título, mas não é dar um título, ela tinha que ter absorvido Clóvis Moura
como professor.
16
Abdias Nascimento (1914-2011) é considerado um dos grandes intelectuais negros do século XX e
fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944. Autor, entre outros livros, de O Negro
Revoltado (Rio de Janeiro: Edições GRD, 1968); O Quilombismo: documentos de uma militância
pan-africanista (Petrópolis: Vozes, 1980); O Brasil na Mira do Pan-Africanismo (Salvador: Edufba/
Ceao, 2002), reedição conjunta das obras O Genocídio do Negro Brasileiro (Rio de Janeiro; Paz e
Terra, 1978) e Sitiado em Lagos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981). Uma autobiografia, com
depoimentos e extenso uso da memória oral, pode ser vista em Éle Semog e Abdias Nascimento,
O Griot das Muralhas (Rio de Janeiro: Pallas, 2006).
17
Alberto Guerreiro Ramos, sociólogo baiano, junto com Abdias Nascimento fundou o Teatro
Experimental do Negro. Era o responsável pelos cursos e reflexões do teatro para negros, feito por
negros, publicados no jornal Quilombo (1948-1950). Publicou, entre outros livros, Introdução crítica
à Sociologia brasileira (Rio de Janeiro: Andes, 1957); A Redução Sociológica (Rio de Janeiro: MEC/
ISEB, 1958); A crise do poder no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar, 1961). Sobre Guerreiro Ramos, ver:
OLIVEIRA, Lucia Lippi. A Sociologia do guerreiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 253
Então, são intelectuais que não conseguiram ser professores das universidades,
isso já não diz alguma coisa? Se eles tivessem sido absorvidos pela academia, esta
teria dado uma guinada no rumo que tomou, porque Edson Carneiro teria tido
alunos, provavelmente alunos negros que iriam continuar lá dentro, e a mesma coisa
teria acontecido com Guerreiro Ramos, Clóvis Moura e mesmo Abdias Nascimento,
que foi professor em outros países e não aqui. Como é possível toda essa exclusão?
Portanto, há uma dívida profunda das nossas universidades com a intelectualidade
negra, e sem contar outros que nem sequer estão nesse time de maiores. Não é
também muito fácil pensar a própria figura do Milton Santos, que também sofreu
isolamento na USP.

Solange: Qual seria o diferencial de Milton Santos, já que ele conseguiu inserção
acadêmica?

José Jorge de Carvalho: Porque, na minha opinião, Milton Santos não se


apresentou abertamente como militante. Milton Santos não gostava de falar da
questão racial como acadêmico, ouvir dizer que em aula ele não gostava de falar
disso. Eu o conheci e convivi com ele na Venezuela. Várias vezes conversei com
ele, nunca o vi apresentar-se enfatizando que era uma pessoa negra, (pelo menos
naquela época em 1974). Naquela época ele estava muito fascinado por filosofia,
dizia que estava lendo Filosofia sem parar. Acho que ele foi um diferencial por ter
se apresentado como acadêmico, tanto que demorou muito, somente nos últimos
anos de vida, em uma ou outra entrevista, que ele falou sobre racismo. Um momento
marcante foi aquela entrevista que aparece no livro Racismo Cordial, já li aquela
entrevista pelo menos três vezes e a cada vez que eu volto para aquela entrevista,
com um sentimento de carinho e admiração por Milton Santos, vejo nas entrelinhas
um sofrimento muito grande, um incômodo muito grande, um desconforto profundo
quando ele fala assim: “Sim, quando vocês dizem qual é porcentagem de racismo, o
que quer dizer isso? Aonde chegamos com isso?” Eu nunca entendi completamente
o que ele estava querendo falar, ele estava presente como se estivesse ausente ao
mesmo tempo e transmitia um grande desconforto. Parece que ele também falava
para os amigos íntimos que gostava da terça-feira, que era o dia em que ele não ia
à USP, e dizia “esse é o dia em que eu não vou ser discriminado”18.

18
Milton Santos (1926-2001) concedeu entrevista ao Caderno Especial, Racismo Cordial: a maior
e mais completa pesquisa sobre o preconceito de cor entre os brasileiros, publicado no jornal
Folha de São Paulo, na edição de 25 de junho de 1995. A entrevista de Milton Santos consta à
página 8. O arquivo pode ser consultado em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/>. A pesquisa
foi depois publicada em livro com o mesmo título (São Paulo: Ática, 1995). A principal crítica de
Milton Santos à pesquisa era de que ela se baseava numa atitude de marketing para o jornal. A
entrevista foi republicada num livro póstumo de artigos que Milton Santos escrevia para o próprio
jornal, onde também consta o seminal “Ser Negro no Brasil Hoje”. Ver, O País Distorcido: o
Brasil, a globalização e a cidadania. Organização, apresentação e notas de Wagner Costa Ribeiro
(São Paulo: Publifolha, 2002, p. 136-140; p. 157-161). Sobre a vasta produção bibliográfica de
Milton Santos que pode interessar ao historiador, pelo menos, as seguintes obras: O Trabalho do
Geógrafo no Terceiro Mundo (São Paulo: Hucitec, 1978); Técnica, Espaço, Tempo: globalização e
meio técnico-científico-informacional (São Paulo: Hucitec, 1994); Por Uma Outra Globalização: do
pensamento único à consciência universal (Rio de Janeiro: Record, 2007).

254 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Saeculum: As suas pesquisas sobre religiões incluem-se nos estudos
afrobrasileiros. O senhor poderia explicar as vertentes ou as matrizes africanas?

José Jorge de Carvalho: Para muitas pessoas eu sou especialista em religiões,


em religiões comparadas, em grande parte o que me mobiliza é a espiritualidade e
a mística. Tenho escrito sobre a mística internacional, a mística das varias tradições
é algo que muito me ocupa. Faço meditação contemplativa, tenho um lado da
espiritualidade que me é constitutivo, que está acionado uma boa parte do tempo.
Uma das minhas especialidades, (entre aspas, porque não acredito nisso, esse
mundo acadêmico que você coloca no Lattes), são religiões comparadas, religiões
afrobrasileiras. Minha pesquisa, no Mestrado foi mapear as relações entre as
abordagens antropológicas e o tipo de interpretação que os antropólogos deram às
religiões. No período da tese de doutorado passei mais de um ano em uma casa de
santo, no Xangô do Recife. Estive sempre em contato com rituais, mas não tenho
iniciação, tenho relação de proximidade com os orixás Xangô e Oxum, que são
meus orixás, e também Oxalá e com aspectos da Jurema.

Saeculum: Como o senhor vê a repressão e os preconceitos às religiões


afrobrasileiras? Antes o senhor falou de confinamento acadêmico por parte dos
intelectuais negros, haveria também um confinamento religioso?

José Jorge de Carvalho: Ah! Muito Bom! A gente pode fazer esse paralelo, até
porque nunca parei para meditar sobre esse paralelo. Interessante, é um confinamento
porque primeiro é um confinamento geográfico e social, pois as casas de santo foram
expulsas dos centros das cidades e foram para as periferias. Foram para lugares com
menos implementos de cidadania, onde não tinha rua asfaltada, não tinha esgoto,
não tinha água, não tinha nada. Assim foram confinadas, em um jogo extremamente
complexo entre presença e ausência, entre completude e carência, se você quiser. A
gente poderia chamar, talvez diferente dos intelectuais negros, de um confinamento
pleno no interior de uma insígnia de carência, sem acesso à saúde, mercado de
trabalho precário, isso é uma característica do “povo do santo”, a precariedade de
sobrevivência, quer dizer, uma subcidadania constante. Você poderia se perguntar:
pode o racismo potencializar a discriminação religiosa? Eu diria que o confinamento
dos intelectuais negros é mais dramático do que o confinamento da religião afro-
brasileira, porque os intelectuais negros estão duplamente desenraizados. Muitas
vezes eles não estão com as raízes simbólicas africanas fortes, porque nem todos
estão conectados ao candomblé, por exemplo, então estão mais soltos do ponto de
vista espiritual mais profundo, porque nem sempre também adquirem a centralidade
análoga através do mundo cristão, além de sentirem o peso do racismo geral da
sociedade. O pessoal do candomblé sofre a rejeição do racismo, mas está firme
espiritualmente, inclusive pela âncora da comunidade. Então, “povo de santo” é um
conceito que nós poderíamos utilizar como utopia, seria a resposta à mestiçagem,
em vez de falar de mestiçagem falamos de povo de santo, porque nessa condição
negros e brancos se unem de fato, na medida em que é estabelecido entre todos
um parentesco espiritual, dado pelos orixás.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 255
Saeculum: Qual é a possibilidade da tradição laica e não religiosa no universo
africano? Para o senhor, que é especialista em religiões comparadas, é possível pensar
num africano ou afrobrasileiro na condição de ateu ou agnóstico?

José Jorge de Carvalho: É uma pergunta desafiadora. Eu penso que na


perspectiva africana seria mais difícil, porque a cosmovisão africana inclui os invisíveis,
o que poderíamos chamar de planos invisíveis. O espaço espiritual é constitutivo
do ser humano, talvez a religião, a adesão a uma estrutura religiosa específica pode
ser circunstancial. Você não precisa ficar o tempo todo consultando para saber o
que vai acontecer com sua vida, pode consultar Marx, Freud ou quem quiser para
substituir. É possível imaginar essa intelectualidade africana dessa maneira. Acho
que também afrobrasileiro é possível pensar assim, eu entendo que Milton Santos
foi uma pessoa laica. Eu penso até assim: você está numa sociedade plural e não
tem que cobrar que a pessoa negra tenha alguma relação com religiões de matriz
africana, ela faz o que quer. A gente não tem que reinventar a condição humana. Nós
estamos combatendo o racismo fenotípico, a luta contra o racismo, para mim, fica
por aí, o resto é plural, a pessoa pode ser laica, evangélica, budista, pode ser o que
ela quiser. Agora, na África, é mais difícil, porque é como se você perguntasse a um
indígena na Amazônia se ele poderia não ter uma relação com o mundo espiritual se
ele já nasce parte constitutiva disso. Claro que existe uma intelectualidade africana
que é laica no sentido europeu – muitos marxistas, revolucionários, ativistas – que
não se conectam com as religiões tradicionais.

Saeculum: Quando e como o senhor começa a se dedicar às cotas e aos projetos


de acesso dos estudantes negros ao ensino superior?

José Jorge de Carvalho: No final dos anos de 1990 eu ministrava regularmente,


na UnB, a disciplina “Estudos Afrobrasileiros”, com ênfase nas tradições religiosas
afrobrasileiras e nas questões raciais, privilegiando o pensamento negro, isto é,
os autores afrobrasileiros. No ano de 1996, estive nos Estados Unidos e pude
acompanhar as ações afirmativas num tipo de sociedade que não me agrada. E eu
tinha sempre ouvido dos colegas que o modelo norte-americano não nos servia, que
aquelas ações afirmativas de lá não valiam para o Brasil, que não tinham nada a ver
com nossa realidade. Lembro que no ano de 1998 tivemos um caso dramático de
racismo na Universidade de Brasília. Aquele foi um ano muito ruim e tenso. Então,
no final de 1999, tivemos um estalo, na semana da consciência negra, um momento
de intuição de fato, porque na semana de novembro íamos lançar o número da
revista Humanidades, dedicado à cultura negra. E na tarde que a gente ia apresentar
a revista tivemos um estalo com as cotas para os negros na Universidade de Brasília.
Você precisava ver a reação, foi impressionante. Em seguida os estudantes negros
fizeram debates e conseguiram rapidamente - essas coisas misteriosas: conseguiram o
Auditório da Reitoria, que é um espaço privilegiado na UnB, pedido por estudantes
de graduação, e fizemos lá o primeiro debate público sobre as cotas (provavelmente
o primeiro feito em todas as universidades brasileiras), apenas uma semana após

256 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
o lançamento da proposta. Um aluno norte-americano que estava na minha casa
filmou todo o debate. Edson Cardoso também estava e isso não parou mais19. A
proposta começou simplesmente como intuição de que nós precisávamos desviar
o foco do confronto do caso de racismo, em vez de confinar o debate no interior
da Antropologia, era necessário abrir o debate na universidade e fora dela. Foi um
efeito impressionante e quem levou isso adiante foram os estudantes, porque poucos
professores se envolveram.

Saeculum: O senhor falou até agora da questão interna e qual foi o contexto
mais geral?

José Jorge de Carvalho: Isso se conectou com o contexto mais geral,


primeiro a “Marcha de 95”, que foi um evento, o divisor de águas. Por quê? Com a
movimentação, Fernando Henrique Cardoso foi obrigado a fazer algumas concessões
e instaurou o GTI (Grupo de Trabalho Interministerial) que abriu mais espaço
discursivo público sobre o racismo20. Ele não pôde deixar passar mais tempo sem
responder minimamente às demandas do Movimento Negro. Mas houve respostas
já no governo FHC. Primeiro, ele foi o primeiro presidente da República que admitiu
publicamente o racismo no Brasil, foi um passo. Depois ele fez o GTI, de uma forma
muito tímida, mas ali constava uma primeira plataforma. Outro momento que se
somou a esses anteriores foi a preparatória para Durban, no último ano do século
XX. Nós começamos uma luta no interior de um espaço estritamente acadêmico, mas
lutas paralelas estavam acontecendo também no movimento social21. A conjuntura
ficou mais favorável no ano de 2001, com a Conferência de Durban, antes e depois.
Os que foram voltaram muito mais animados para aumentar a discussão das ações
afirmativas. Então o contexto é esse, o contexto tem que ver com Durban, mas foi
19
Edson Cardoso é jornalista, escritor e professor, militante do movimento negro desde a década de
1970, é editor do informativo Irohin, um importante veículo da imprensa negra contemporânea,
fundado por ele no ano de 1996. Também foi um dos professores do Curso Pensamento Negro
Contemporâneo, da Universidade de Brasília. Atualmente Edson Cardoso ocupa o cargo de
assessor da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial).
20
A Marcha Zumbi 300 anos Contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, foi o ponto culminante
da Semana da Consciência Negra, em 20 novembro de 1995, em Brasília, com mais de 30 mil
participantes. Depoimentos de militantes negros sobre o evento e a criação do GTI no governo
FHC, ver o livro organizado por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira, História do Movimento
Negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC (Rio de Janeiro: Pallas/Editora Fundação Getulio Vargas,
2007, p. 337-358).
21
Vários são os textos de José Jorge de Carvalho sobre a questão das cotas. Entre livros, capítulos
de livros e artigos em revistas especializadas, ver Inclusão Étnica e Racial no Brasil. São Paulo: Attar
Editorial, 2005; Racismo Institucional. O caso do Ministério Público Federal. Brasília: Editora da
ESMPU/Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão/SinJus, 2009; O Confinamento Racial do
Mundo Acadêmico Brasileiro. In: Revista USP, v. 68, 2006, p. 88-103; Inclusão Étnica e Racial no
Ensino Superior: Um Desafio para as Universidades Brasileiras. In: NUNES, Margarete Fagundes.
(Org.). Diversidade e Políticas Afirmativas: Diálogos e Intercursos. Novo Hamburgo: FEEVALE,
2005, p. 21-40; A Luta Anti-Racista dos Acadêmicos deve Começar no Mundo Acadêmico. Série
Antropologia (Brasília. Online), 2006, p. 1-14; Usos e Abusos da Antropologia em um Contexto de
Tensão Racial: O Caso das Cotas para Negros na UnB. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre,
2005, p. 237-246; As Ações Afirmativas como Resposta ao Racismo Acadêmico e seu Impacto nas
Ciências Sociais Brasileiras. Série Antropologia, Brasília, v. 358, 2004. Uma Proposta de Cotas para
Negros e Índios na Universidade de Brasília. In: O Público e o Privado, Fortaleza, 2004, p. 9-59.

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 257
uma movimentação que começou em 1995.

Saeculum: Qual é a sua avaliação sobre o percurso das cotas na Universidade


de Brasília?

José Jorge de Carvalho: A avaliação tem vários planos. Você pode fazer uma
avaliação técnica do rendimento dos estudantes, uma observação primeiro dos
cotistas, qual a porcentagem de evasão e rendimento, isso é um tipo de avaliação.
Sete anos depois, nós poderíamos dizer o seguinte: a metáfora da catástrofe não
se cumpriu, não é um fracasso como projeto de políticas públicas, os estudantes
não fracassaram. Então, o sistema se sustenta academicamente, isso é um nível
de avaliação. Vários estudantes estão terminando, uns vão entrar no mercado de
trabalho para desenvolver suas profissões, outros vão tentar entrar na pós-graduação,
como qualquer estudante branco. Num plano maior, é o seguinte: a UnB é outra
universidade agora, mais completa e plural. Primeiro, porque ela tem muito mais
estudantes negros, tem coletivo de estudantes negros, tem combate ao racismo
instituído, ligado à Reitoria, que promove um curso chamado “Pensamento Negro
Contemporâneo”. Tem o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros. A UnB foi a primeira
universidade federal a adotar as cotas, isso é um orgulho institucional também, que
nós somos uma universidade de avanço. Eu acho que esse ponto é muito importante
porque ele vai sustentar outro. Há uma mudança da imagem institucional, a UnB
não quer se colocar como instituição racista de forma alguma, uma instituição que
esteja na retaguarda dessa discussão; pelo contrário, isso passa a fazer parte da
visão institucional positiva, acho isso um ponto muito importante e o impacto é
grande por isso.

Saeculum: Como o senhor avalia a situação nos cursos de prestígio, no caso


de Medicina e Direito?

José Jorge de Carvalho: Não vi na Medicina muito impacto, mas no Direito


sim, porque agora sempre tem estudantes negros, mesmo que não tenham entrado
na área jurídica. Está começando a haver um efeito na UnB que ainda não tem cotas
na pós-graduação, mas há uma tendência para a adoção, é politicamente correto
que os cursos e programas que queiram se apresentar como progressistas tenham
estudantes negros, mesmo que não tenham entrado através de um sistema de cota.
Isso é o efeito das cotas na graduação. O direito na UnB é especial, porque muitos
ministros do STF são professores na instituição, são colegas nossos, e isso não é
comum no Rio de Janeiro, nem em São Paulo, nem em qualquer outra cidade. A
primeira dissertação sobre ações afirmativas na UnB foi contra, foi defendida pela
Roberta Kaufmann, orientada pelo professor (e ministro) Gilmar Mendes, que foi
logo publicada22. Que acontece? Vem a Roberta e torna-se porta-voz do Democratas
(antigo Partido da Frente Liberal) e do grupo anti-cotas e apresenta ação contra

22
A dissertação de Roberta Fragoso Kaufmann, advogada dos Democratas contra as cotas, foi
publicada com o título, Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? (Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2007).

258 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
as cotas no STF. De novo a Faculdade de Direito da UnB fica na berlinda, porque
Gilmar Mendes é professor de lá e Roberta Kaufmann é sua ex-aluna. No Direito,
as posições se dividem.
Então, a Faculdade de Direito desperta muito mais para essa questão e isso vai
continuar por muito tempo, porque as ações afirmativas estão no cenário nacional
e o STF vai ter que decidir um dia se elas são ou não constitucionais. Eu penso que
vai ser difícil para o STF ser contra, decretar o fim das cotas. Muito difícil. Porque
são vínculos institucionais muito profundos, um campo complexo. O meu medo é
o seguinte: o grupo contra as cotas desenvolveu essa retórica, que eu chamo de um
discurso coeso e o nosso discurso é fraturado, eles nos encurralaram nessa discussão.
Eles dizem que as cotas puramente raciais não são legítimas. Assim, alegam que
o grupo negro brasileiro não merece uma reparação pelo racismo que sofreu. O
meu medo é que esse discurso que começou agora a diabolizar as cotas raciais
seja assimilado pelos ministros e eles coloquem condicionantes – por exemplo, que
somente os negros pobres possam ter cotas ou somente os negros que estudam em
escola pública. Eles inventaram as tais “cotas sociais”. Isso é uma derrota da nossa
luta antirracista. É um absurdo que a esta altura ainda venham dizer que o racismo
não precisa ser reparado nos seus termos de racismo. Sabemos muito bem que os
negros de classe média também são discriminados, o racismo não esta confinado
aos negros pobres.

Saeculum: O senhor é defensor das cotas raciais (negros, indígenas) e um crítico


das cotas sociais. O senhor poderia aprofundar essa discussão?

José Jorge de Carvalho: Temos que partir sempre do real. Estudos de várias
áreas disciplinares (Pedagogia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, etc.) apontam
para uma realidade, que é o regime de racismo no Brasil. Vamos comparar. Não
é um regime conforme foi o apartheid na África do Sul, não é aquele regime de
segregação geográfico-social norte-americano. O que ele aponta? Na escola primária
a criança negra é vitima de discriminação por parte dos colegas e por parte dos
professores. Nós temos uma biblioteca de textos com exemplos empíricos, que
descrevem e analisam esse racismo escolar. A socialização da criança negra aqui
no Brasil é uma socialização racista. A socialização racista continua no secundário.
Na adolescência, as meninas negras sofrem muito mais por conta do cabelo, pela
aparência. Os meninos negros também sofrem em comparação com os brancos,
recebendo apelidos horrorosos como “tiziu”, “carvão”, destituições da autoestima.
Nesse universo racista, evidentemente que se fragiliza a autoestima e isso leva a uma
reprovação maior dos estudantes negros do que dos brancos, isso interfere na entrada
dos negros no mercado de trabalho. O Estado já reconhece isso há décadas; se o
homem branco ganhar cem reais, a mulher branca ganha oitenta, o homem negro
ganha sessenta, a mulher negra ganha quarenta. Até a questão de gênero se inverte,
onde a mulher branca ganha mais do que o homem negro. Ou seja, a comunidade
negra tem desvantagem na escola, na socialização e no mercado de trabalho.
Após tudo isso, não é possível que a questão das cotas seja uma discussão
social, quando nós sabemos que nosso racismo é estrutural, ele está na estrutura

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 259
da sociedade brasileira. Nós não estamos simplesmente afirmando uma opinião,
nós sabemos porque as pesquisas do próprio Estado já reconhecem a existência do
racismo generalizado na sociedade, conforme indicam todos os dados empíricos
oficiais. Dados do mercado de trabalho, escolaridade e saúde. As pesquisas da área
da saúde demonstram que a mulher negra recebe menos atendimento no pré-natal e
no pós-parto, inclusive recebe menos atendimento e menos anestésicos - sofre mais
dor, portanto, que a mulher branca. De repente, todo esse saber acumulado, que o
Estado reconhece como importante não vale na hora de tomar uma decisão? Essa
para mim é a questão. No momento em que avançaram as cotas para os negros houve
um bombardeio, uma reorganização dos grupos anti-cotas e inventaram as cotas
sociais. Eles criaram um termo que é uma caricatura do debate. Pessoas de extrema
direita, de partidos patronais, começam agora a falar em cotas sociais, de repente
se lembraram dos brancos pobres. Pessoas que são donos de terras e latifundiários
da pior qualidade, chefes de jagunços que mandam matar os líderes camponeses,
começaram a ficar com pena dos brancos pobres que serão discriminados pelos
negros por causa das cotas. Então nós precisamos desconstruir essa ideia.
A resposta que eu dou a isso é que nós temos que desarmar o sofisma. Exemplo:
não tem cem vagas? Digamos que de cada universidade você separa cem vagas,
digamos que você colocou vinte vagas para negros. Então ficam sobrando oitenta
vagas, não é? Quem foi que disse que o branco pobre terá que entrar nessas vagas
dos negros? Não foram os negros que geraram a pobreza dos brancos no Brasil, até
porque os negros eram também pobres no final do século XIX quando se proclamou
a República. Então, se existem brancos pobres hoje, você não pode colocar esse
passivo de justiça na conta dos negros. Na verdade, sabemos perfeitamente que
foram os brancos ricos que geraram os brancos pobres e os negros pobres. Então o
sofisma deles pode nos fazer esquecer que sobram oitenta vagas. Os brancos pobres
podem perfeitamente entrar nas vagas dos milionários; quem vive com mais de vinte
salários mínimos pode ceder sua vaga para quem ganha dois salários mínimos. Enfim,
você pode fazer o que quiser com as oitenta vagas restantes da política de cotas.
Por que são questionadas as vinte vagas dos alunos negros? Portanto, os brancos
pobres podem entrar nas vagas da classe média, nas vagas dos milionários, nas vagas
dos latifundiários, dos donos de indústrias, dos especuladores, dos banqueiros, dos
donos das redes de televisão, defina como você quiser. Confinar a discussão para
uma arena pequena (as vinte vagas) faz você esquecer que a arena é maior. É um
artifício sofisticado, porque eles ficam falando de cotas sociais, que você discriminará
os brancos pobres, ao adotar as cotas raciais. Então eles decretaram que cotas para
negros são igual à exclusão de brancos pobres, você pode imaginar?

Saeculum: Trata-se de um argumento retórico?

José Jorge de Carvalho: Não, trata-se de um argumento racista com um


artifício retórico extraordinário, porque cotas é um pensamento complexo, é um
pensamento típico do ponto de vista da teoria da complexidade, que é interdisciplinar
necessariamente. Temos que lançar mão de várias disciplinas, inclusive Análise de
Discurso, para expor com todas as letras esse arcabouço racista desse argumento

260 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
dito “social”, mas que é simplesmente contrário às cotas para negros. Os anti-cotas
sabem disso perfeitamente.

Saeculum: A UFPB propôs e tem aprovado o modelo de cotas sociais com


recorte etnicorracial, como o senhor avalia isso?

José Jorge de Carvalho: Eu avalio que vocês, aqui na UFPB, poderiam ser
a vanguarda, a mais recente universidade que aprovou o sistema, uma forma de
acumular experiências que as outras não tinham. É o momento em que a UFPB
pode participar desse debate e desconstruir definitivamente, rejeitar o grande sofisma
que é esse discurso sobre as cotas sociais. A UFPB pode retomar a luta que a UnB
começou, que tem que ter cotas para os negros. E se quiser colocar escola pública,
ela faz uma segunda cota para as escolas públicas; se quiser colocar baixa renda, que
faça uma terceira cota para baixa renda. Não há nada que a impeça de estabelecer
cotas para escola pública e para baixa renda, mas não precisa, para isso, eliminar as
cotas exclusivamente para os negros. Eu não conheço tanto a realidade da Paraíba,
mas meu medo é de que cotas somente para negros das escolas públicas vão ser
mais frágeis, pois uma parte dos que poderiam entrar não vai entrar, isto é, aqueles
que estudaram em escolas particulares. Isso pode dividir a comunidade negra. Vocês
foram a universidade pública que aprovou as cotas imediatamente após o debate
no STF, com isso vocês estão legitimando essa tendência do Supremo a não deixar
as cotas só para os negros. Claro que essa vai ser uma das linhas possíveis: “a
tendência é fazer cotas sociais.”, está vendo? Virou uma mania! Então, permanece
o fato de que o Brasil não consegue afirmar uma luta antirracista, como outros
países conseguiram, que após séculos de massacre dos negros, eles não merecem
nenhuma reparação. É uma derrota parcial e/ou uma vitória parcial. Assim como
parcial é a própria avaliação que eu acabo de emitir.

Saeculum: O senhor teme que as cotas sociais não combatam o racismo nem
mude a representação do país? As cotas para os estudantes negros teriam esse
potencial de mudança?

José Jorge de Carvalho: A elite e a representação social hegemônica do país


se apóiam no chamado “pensamento social brasileiro”. Com as cotas para negros
nós estávamos redesenhando a ideia de nação. Veja bem: enquanto se afirma cota
racial, vai ter que ter uma mudança na representação de nação. Ela não é essa nação
cordial, senão não precisava ter cotas para negros23. É isso.
23
Além da produção de José Jorge de Carvalho (ver nota 17) há uma gama de autores que se
situam no campo de defesa, necessidade e reparação das cotas para estudantes negros e indígenas.
Elencamos alguns trabalhos coletivos. Ver SANTOS, Renato Emerson e LOBATO, Fátima. (Orgs.).
Ações Afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro, DP&A, 2003;
BERNARDINO, Joaze e GALDINO, Daniela. (Orgs.). Levando a Raça a Sério: ação afirmativa e
universidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2004; GOMES, Nilma Lino e MARTINS, Aracy Alves. (Orgs.).
Afirmando Direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004; MEC/BID/UNESCO. Ações Afirmativas e Combate ao Racismo nas Américas.
Brasília: Ministério da Educação/SECAD, 2005; FERES JUNIOR, João e DAFLON, Verônica Toste.
(Orgs.). Ação Afirmativa no Sul Global: Brasil, Índia e África do Sul. Rio de Janeiro: Editora PUC-

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 261
Saeculum: No ano de 2006, mais de trinta instituições de ensino superior
aderiram ao sistema de cotas, porém, a partir do ano seguinte temos observado
menos ritmo de adesão. Estaria havendo desaceleração na adesão ao sistema de
cotas?

José Jorge de Carvalho: Não, o ritmo de adesão não diminuiu. Isso é um ponto
importantíssimo. Em 2006 nós tivemos uma coisa dura, que foi aquele manifesto
deles, fez muito mal à causa negra. Os jornais aproveitaram para falar mal das
cotas e os ideólogos da democracia racial aproveitaram para publicar livros com
títulos apocalípticos do tipo “Divisões Perigosas” e “Não Somos Racistas”24. E não
parou por aí, em 2008 teve outro manifesto deles, os “cientistas neutros”, contra as
cotas. O que se observa também é que no Nordeste teve menos adesão às cotas.
O racismo aqui não é tão disfarçado como em outras regiões e por isso fica mais
difícil de afirmar a questão negra. Outro problema é que a reflexão dos governantes
não leva em conta a dimensão do sofrimento da comunidade negra brasileira. E a
desigualdade racial é tão profunda que você não pode intervir no sistema sem pensar
minuciosamente no que pretende fazer, pois a desigualdade racial pode piorar com
a intervenção. Dependendo do que você fizer, a situação dos negros piora. Porque
a desigualdade racial é profunda e complexa de combater.

Saeculum: Então como o senhor analisa a representação emblemática da África


para os afrobrasileiros e para os brancos (não negros)?

José Jorge de Carvalho: Acho que a pobreza é o símbolo principal. A África


é sinônimo de miséria no Brasil. Atraso. Do que não se quer. Acho que é uma
representação totalmente negativa da África. É uma idéia de miséria, de criança
morrendo de fome. Também é cultivado o imagético artístico. Geralmente uma ideia
mais estética, na qual a corporeidade e a música dominam. Não é uma imagem de
tecnologia, não é uma imagem de ciência, não é uma imagem política. Uma imagem
da África, para mim, muito mais calcada na estética. Muito culturalista. Não se pensa
no africano como um ser político, de inteligência política e de inteligência para a
ciência. Apenas uma inteligência estética. É a idéia de que o branco ocidental pensa
com a cabeça e o africano com o coração. Uma imagem de que os africanos não
acessam o Logos (pensamento e razão). Eles supostamente não ascendem ao grau
superior do universo que é o Logos, sempre vai ter um gestor ou técnico europeu
que vai ao continente para discipliná-los. É a ideia de que o africano tem o discurso
fraturado e o europeu possui o discurso coeso. A imagem da África no Brasil é uma
Rio, 2008; FERES JÚNIOR, João; ZONINSEIN, Jonas (Orgs.). Ação afirmativa e universidade:
projetos nacionais em perspectiva comparada. Brasília: Editora da UnB, 2006; FERREIRA,
Renato. (Org.). Ações Afirmativas. A Questão das Cotas: análises jurídicas de um dos assuntos mais
controvertidos da atualidade. Niterói, Editora Impetus, 2011.
24
Além dos manifestos já elencados (vide nota 11), vieram a lume os seguintes livros contra a adoção
de cotas e de políticas afirmativas para a população negra, que tiveram ampla divulgação nos
meios midiáticos: Ali Kamel. Não Somos Racistas (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006); Peter
Fry e Yvonne Maggie. (Orgs.). Divisões Perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007); Demétrio Magnoli. Uma Gota de Sangue: história do
pensamento racial (São Paulo: Contexto, 2009).

262 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
instância de manifestação do imaginário racista generalizado na nossa sociedade.

Saeculum: O senhor admite a conexão e a importância de Nelson Mandela


para a África do Sul e paras lutas negras do Brasil?

José Jorge de Carvalho: Eu acho que a elite brasileira não capitalizou ainda
nenhuma familiaridade com o mundo africano. Porque sequer a gente conseguiu
vincular as lutas das cotas, as lutas das ações afirmativas, com as lutas equivalente
dos Estados Unidos e da África do Sul25. Não vejo que estão muito conectadas ainda.
Na verdade, Nelson Mandela é uma grande referência, ninguém dúvida disso. Mas
a celebração de Mandela não fez crescer na consciência das pessoas a importância
da celebração de Abdias do Nascimento. Não creio que tenha melhorado muito nem
intensificado a grandeza da trajetória de Abdias Nascimento pelo fato das pessoas
celebrarem Mandela. Não acompanhamos a luta das cotas na África do Sul, não
sabemos como é que estão as universidades por lá. Mas não quero ser pessimista,
muitos eventos nas nossas universidades que discutem literatura africana e história
da África estão ganhando importância.

25
Sobre os debates atuais, tais como a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo (Durban,
2001), cotas para negros nas universidades e educação étnico-racial na perspectiva negra, ver o
livro organizado por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira, História do Movimento Negro no
Brasil: depoimentos ao CPDOC (Rio de Janeiro: Pallas/Editora Fundação Getulio Vargas, 2007,
p. 358-439); e também, NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). Cultura em Movimento: matrizes
africanas e ativismo negro no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2008 [Coleção Sankofa, 2].

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