REVISTA DE HISTÓRIA
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Chefe: Gustavo Acioli Lopes
Sub-Chefe: Regina Maria Rodrigues Behar
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Campus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V
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CONSELHO EDITORIAL
MISSÃO DA REVISTA
Sæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e,
a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da
mesma universidade. Sua frequência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e
debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo
espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.
ISSN 0104-8929
Semestral
268 p.
Sumário
Editorial ................................................................................................................ 7
ARTIGOS
Reflexões sobre um projeto de pesquisa em História comparada:
hagiografia, sociedade e poder na Península Ibérica medieval ............................... 183
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
Leila Rodrigues da Silva
O triunfo da Quaresma: práticas romanizadoras na Freguesia
de Nossa Senhora d’Ajuda ....................................................................................... 195
Magno Francisco de Jesus Santos
Quando o Recife sonhava em ser Paris: a mudança de hábitos
das classes dominantes durante o século XIX .......................................................... 215
Sandro Vasconcelos da Silva
RESENHAS
Navegando com tubarões: a máquina e os homens
que fizeram o tráfico .................................................................................................. 229
João Azevedo Fernandes
A judicialização da História: tempo presente, as
dobraduras de racismo e ações afirmativas ............................................................. 235
Elio Chaves Flores
Eduardo Fernandes
ENTREVISTA
Africanidades, cotas e questões raciais
uma entrevista com José Jorge de Carvalho ............................................................. 245
***
Em 1813, a africana mina Rosa Benedicta, liberta, solteira e sem filhos vivia na
Vila de Santo Amaro, “mais famosa e rica de toda a Capitania”2, na Rua da Santa
Cruz, em casa própria. Ela se auto identificou como proveniente da Guiné. Veio para
o Brasil em tenra idade, possivelmente próximo a década de 50 do século XVIII,
e por isso não se recordava os nomes dos pais. Foi escrava de Ignacia Queiroz e
adquiriu sua alforria através da compra. Após tornar-se forra conseguiu adquirir
alguns bens dentre eles dois tabuleiros, um par de brincos de ouro no formato de
lagartixa, além de botões também de ouro dentre outras posses como uma escrava.
A mesma liberta era senhora da escrava Thereza a quem alforriou após a sua morte.
Rosa Benedicta fazia parte da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, sediada
na Vila citada. Entre as suas últimas vontades estava a de alforriar a sua escrava
e ser enterrada na Capela da sua Irmandade. Desejo esse que foi cumprido pelo
seu testador, o crioulo João Valentino. Rosa Benedicta possivelmente mercadejava,
sobrevivia do trabalho com o seu tabuleiro, com essa renda comprou a sua alforria,
uma escrava, construiu a casa que residia, e estava construindo uma segunda
quando faleceu. Sua escrava deveria ajudá-la nas vendas e por isso ela possuía
dois tabuleiros. Essa atividade foi interrompida quando adoeceu e foi ajudada
financeiramente pelo crioulo baiano João Valentino com quem também estabeleceu
uma relação de solidariedade, afinal eram dois estrangeiros em terras sergipanas.
Rosa Benedicta faleceu em 1816, possuindo dívidas com o crioulo João Valentim e
o instituiu como herdeiro no seu testamento, esse fato evidencia uma gratidão pelo
referido crioulo, quiçá um liberto3.
Através dessa breve narrativa tem se a notícia de uma mulher forra que participou
da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de Santo Amaro possivelmente no final
do século XVIII e inicio do XIX, todavia inúmeras foram as mulheres que ingressaram
nessas associações, além delas homens, africanos e crioulos, brancos e pessoas de
cor. Os historiadores têm estudado as irmandades há algum tempo, incluindo as
dos Homens Pretos, e vários são os temas enfocados sobre essas, as construções
das capelas, a composição étnica dentre outros, no entanto, sobre as irmandades
em Sergipe o número de trabalhos é parco. Neste trabalho, pretendo pontuar alguns
aspectos das Irmandades do Rosário dos Homens Pretos de Sergipe, no interstício
de 1750 a 1835, analisando algumas categorias que faziam parte das citadas,
sobretudo as mulheres e os seus papéis nas irmandades, todavia, também apontarei
1
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia, docente da Universidade
Estadual da Bahia - campus XVIII. E-Mails: <jocunha@infonet.com.br> e <jocunha@uneb.br>.
2
Descrição do bispo D. Marcos Souza sobre a vila em 1808. Ver: SOUZA, Marcos Antônio. Memória
sobre a capitania de Sergipe, ano 1808. Aracaju: SEC, 2005.
3
Inventariada: Rosa Benedicta, 20 fev. 1816, Caixa 01/1764 ,Cartório Maruim, Arquivo Geral do
Judiciário de Sergipe.
4
MOTT, Luis. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade. Aracaju: Fundesc, 1986, p.145-
146; NUNES, Maria Thétis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
5
Estatutos das irmandades de Lagarto, São Cristóvão e Vila Nova. Compromisso da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Vila Nova Real do Rio São Francisco – Sergipe Del Rei.
AHU. Códice 1958; Compromisso da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos da Freguesia da
Vitória da Capitania de Sergipe Del Rei, IAN/TT, Chancelarias Antigas/Ordem de Cristo, Livro 292,
fls. 343v-347v; Compromisso da Irmandade de N.S. do Rosário dos Pretos da Freguesia de N.S.
da Piedade da Vila do Lagarto, IAN/TT, Chancelarias Antigas/Ordem de Cristo, Livro 280, fls. 324-
327. Torre do Tombo.
6
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991; MINTZ, Sidney W. & PRICE, Richard. O nascimento da
cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Pallas; Universidade Candido Mendes, 2003.
7
NUNES, Sergipe Colonial II.
8
OLIVEIRA, Vanessa. A Irmandade dos Homens Pretos do Rosário: etnicidade, devoção e caridade
em São Cristóvão – SE (século XIX). Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal
da Sergipe. São Cristóvão, 2008; SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e
famílias: a vida de homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004.
9
BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986.
10
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos...
14
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas...
15
REGINALDO, Os Rosários dos Angolas...; ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil.
3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1982.
16
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, Irmãos no poder: a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). Dissertação
(Mestrado em História). universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2001.
As cinco irmandades em estudo construíram suas capelas até 1841, o que também
evidencia uma organização das confrarias. A de São Cristóvão começou a sua
construção no inicio dos Setecentos, Rocha Pitta, a cita em 1724, já Thétis Nunes
afirma que sua construção foi iniciada em 1746 e concluída na segunda metade do
XVIII. Acredito que no momento de elaboração e aprovação do estatuto a capela não
estava concluída, pois não há menção a mesma no referido documento. Através de
Marcos Souza, sabe-se que a citada igreja em 1808 estava possivelmente concluída22.
Em Vila Nova, segundo o vigário Joaquim de Oliveira, em 1757 já existia a Capela
do Rosário23. No mesmo ano a capela da irmandade de Santo Amaro estava em
fase de conclusão, também não se sabe a data de término das obras da capela,
mas posso afirmar que na capela, em 1816, eram realizados inúmeros batizados de
crioulos e africanos24.
No início dos Oitocentos, 1818, a capela dos irmãos do Rosário da povoação
de Rosário do Catete já era construída, e era de pedra e cal, possuía dois altares
laterais, um com a imagem de São Benedito e outro com a imagem de Santa Ana,
além disso, tinha também dois confessionários, além de altares e púlpitos de madeira
e pintados25. Ou seja, era uma capela estruturada e com requintes arquitetônicos, o
que evidencia a circulação de dinheiro e/ ou bens na irmandade. A irmandade em
questão acertou com o mestre José Simão do Rosário o valor de 160 mil réis para
que ele fizesse o retábulo novo da igreja, esse valor seria pago em duas prestações
anuais. Os altares laterais podem indicar outras confrarias ou ainda devoções
familiares. A de Estância iniciou suas obras no final do XVIII e encerrou a construção
da sua capela em 1841. Algumas das pessoas que residiam na povoação no século
XVIII deixaram esmolas para a construção da citada Capela. Referente a capela
do Rosário de Lagarto sabe-se poucas informações de quando foram iniciadas
suas obras, apenas que ficou pronta em meados do XIX e que na segunda metade
do mesmo século passou por inúmeras reformas26. Em suma, logo após a criação
das irmandades elas se organizavam em torno da construção de suas capelas, em
seguida, faziam seus ornamentos.
Pinheiro mostra que os irmãos do Rosário de Mariana, Minas Gerais, no século
XVIII, esmolaram, cobraram as taxas, enfim utilizaram de vários recursos para
22
SOUZA, Memória sobre...
23
NUNES, Sergipe Colonial II, p.193
24
Conforme Relação dos lugares, povoações, distância da Freguesia à Vila Nova Real do São
Francisco, pelo Vigário Joaquim Marques de Oliveira. AHU – Bahia, doc. 2.708, anexo ao doc.
2.666, apud NUNES, Sergipe Colonial II, p.199; e Livros de Batismo, número 1. Arquivo Paroquial
da Paróquia Nossa Senhora da Piedade.
25
Relatório da Vistoria realizado pelo provedor, 9 dez. 1818, cx. 291, pacote 5, Mesa de consciência
e Ordens, Arquivo Nacional.
26
SANTOS, Entre farinhadas..., p. 73.
Os indícios mostram que nas cinco irmandades do Rosário dos Homens Pretos,
homens e mulheres, africanos, brasileiros e portugueses, escravizados, libertos ou
livres, brancos, pardos e pretos podiam torna-se irmãos.
Retornando a história de Rosa Benedicta percebe-se a participação de uma
africana na irmandade de Santo Amaro, além delas possivelmente inúmeros africanos
e africanas participaram dessas associações religiosas. E os estatutos indiciam
isso, dos três estatutos encontrados, dois fazem referência a nações africanas, o
de São Cristóvão e o de Vila Nova. E os dois colocam os africanos, angolas para
São Cristóvão e Ethiopinos para Vila Nova, em posição de destaque, pois os dois
grupos podiam ocupar cargos na irmandade. A minha hipótese para a não citação
aos africanos no estatuto da irmandade de Lagarto é devido ao pequeno número
de africanos na vila e por isso possivelmente não eram numerosos na irmandade
e, assim, pouco disputariam cargos na confraria.
Na irmandade de São Cristóvão, angolas e crioulos dividiam a mesa
administrativa, somando um total de quatro juízes, dois homens e duas mulheres e
quatro procuradores. Essa configuração evidencia como os angolas eram numerosos
na irmandade e possuíam uma relação amistosa e com alguns interesses comuns
aos crioulos, já que ambos dividiam a citada mesa administrativa. No entanto, esses
grupos além de possuírem interesses comuns também tinham os distintos e por isso
precisavam ser representados de forma distinta. Outro aspecto evidenciado através
da composição da mesa é que entre os africanos, os angolas possivelmente eram
hegemônicos nessa irmandade. No tópico seguinte mencionarei quem eram os
angolas.
27
PINHEIRO, Fernanda Aparecida. Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em
Mariana – Minas Gerais, 1745-1820. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2006.
28
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos..., p. 92.
Vários autores abordam a temática das nações africanas, dentre eles temos
Maria Inês Oliveira e Marisa Soares. Segundo a primeira, as nações africanas não
conservavam as culturas africanas. E, as nomenclaturas dadas aos africanos no tráfico
foram assumidas pelos próprios africanos. A identidade desses africanos sempre era
modificada, isso mostra a historicidade dos mesmos. Os etnônimos africanos eram
a base da identidade, no entanto foram realizadas outras alianças grupais entre
nações29. Ocorrendo assim uma reorganização da comunidade africana em torno
dos laços de nação, para isso, os africanos escolhiam entre seus pares, ou seja, os
da mesma nação, para serem os seus cônjuges, vizinhos, irmãos de confraria e
até mesmo para serem seus escravizados. Soares distingue dois termos, grupos de
procedência e étnicos. O primeiro corresponde a regiões amplas do comércio, e era
denominado por instâncias coloniais, ou seja, padres, traficantes dentre outros; mas
essas nomenclaturas eram incorporadas pelos africanos, pois esses termos marcariam
as fronteiras espaciais. Já o segundo termo, grupos étnicos marcava o local exato
que os africanos nasceram, seria a terra pátria.
Os africanos chamados de angolas por portugueses e brasileiros variou no decorrer
dos séculos e foram traficados da África Central. Essa região conheceu o tráfico no
inicio do século XVI e por volta de 1580, já eram traficados africanos da região do
Rio Cuanza para as Américas. Os guerreiros ngolas vendiam seus escravizados e
por isso atraíram a atenção dos portugueses para a região de Luanda e o reino do
Ngola ficou sendo conhecido como “angola” para portugueses e brasileiros. Aos
poucos além da região do Cuanza, também passaram a ser traficados africanos da
região do baixo rio Zaire, e os que viviam entre os rios Cuanza e Cumina, além do
interior de Luanda. Com a reconquista de Luanda pelos brasileiros, eles passaram
a conquistar Benguela. Angola no século XVII para os portugueses e brasileiros era
a região conquistada por Angola, e correspondia aos africanos traficados pelo porto
de Luanda. Dessa maneira, os africanos designados como angolas, correspondiam
a pessoas que viviam de diversas regiões da África Central, dentre elas as próximas
do Rio Cuanza, e que foram traficadas através do porto de Luanda30.
Esses angolas foram presentes no Brasil colonial e imperial, e Sergipe não foi
exceção e se fizeram presentes também na Confraria em São Cristóvão. A irmandade
dessa cidade é chamada no libelo cível como irmandade dos “A”. Acredito que o
“A” seria uma abreviação do termo angolas; pois na irmandade havia um casal de
juízes angolas e dois procuradores da mesma nação, saliento também que alguns
dos crioulos que faziam parte da irmandade podiam ser parentes, filhos e netos dos
angolas, assim não estariam distantes dessa nação.
29
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes. “Viver e morrer no meio dos seus”: nações e comunidades africanas
na Bahia do século XIX. Revista USP, n. 28, 1995/1996, p. 175-193.
30
MILLER, Joseph C. “África Central durante a era do comércio dos escravizados, de 1490 a 1850”.
In: HEYWOOD, Linda (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 29-80.
31
OLIVEIRA, Anderson José M. Devoção Negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial. Rio de
Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008; NUNES, Sergipe Colonial II...
32
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos...
33
OLIVEIRA, A Irmandade dos Homens Pretos...
Através dos estatutos é possível afirmar que a relação entre africanos e crioulos,
oscilou de região para a região na capitania e posterior província. Em São Cristóvão
e Lagarto, ela era possivelmente pacífica, já que na primeira ambos faziam parte
da mesa administrativa, e na segunda não faz menção nem a participação nem a
exclusão de nenhum grupo. Na confraria de Vila Nova provavelmente havia conflitos,
pelo cargo de juiz presidente, pois havia o revezamento entre ethiopinos e crioulos,
no entanto, havia crioulos e ethiopinos entre os juízes de mesa, evidenciando a
convivência dos dois grupos.
Na Vila de Santo Amaro, a história da já citada Rosa Benedicta também nos
indicia essa relação, de africanos e crioulos. Entre a africana Rosa e o crioulo João
Valentim foi estabelecida uma rede de alianças e de solidariedade. Através da história
de Rosa, vislumbra-se outra nação africana presente nas irmandades sergipanas, a
da Guiné que incluía os africanos nascidos na Costa da Mina.
Marisa Soares também encontrou escravizados da Guiné no Rio de Janeiro, e
com um olhar mais apurado, descobriu que esses eram os minas. Para essa autora,
o termo Guiné variou a significação no tempo. Inicialmente, em meados do século
XV, significava as primeiras terras que os portugueses alcançaram correspondendo a
costa ocidental do Senegal contemporâneo, no final do mesmo século correspondia
a região que ia do sul do Saara as terras de Angola. E, até o século XVIII o termo
continuou significando essa região, ou as terras citadas por Zurara, atuais Gâmbia,
Senegal, Guiné Bissau e Guiné35.
As mulheres nas irmandades do Rosário
Nos Setecentos, nasceu na vila sertaneja do Lagarto, em tão “remotas
distâncias”36, a escrava Eufemia Rodrigues, filha de uma escrava que pertencia
a uma senhora da família Dias. No entanto, no decorrer da sua vida foi vendida
juntamente com a sua mãe para o Reverendo Antonio Rodrigues Teixeira, de quem
34
PINTO, Tânia Maria de Jesus. Os negros cristãos católicos e o culto aos santos na Bahia Colonial.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2000, p.135-
142.
35
SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no
Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
36
Expressão utilizada pelo vigário Marcos Souza, que viveu em Sergipe no início do século XIX, ao
se referir à dificuldade que os filhos dos moradores de Lagarto tinham para ir estudar na capital de
Sergipe e na Vila de Santa Luzia.
37
Livros de Testamentos - Cx. 62 - Lv. 02,Cartório São Cristóvão, Arquivo Geral do Judiciario de
Sergipe.
RESUMO ABSTRACT
Os historiadores têm estudado as irmandades há algum Historians have studied the brotherhoods for some
tempo, incluindo as dos Homens Pretos, e vários são time, including the Black Men, and many are focused
os temas enfocados sobre essas. No entanto, sobre on these issues. However, in Sergipe, brotherhoods on
as irmandades em Sergipe o número de trabalhos the number of research jobs is meager. In this paper,
é parco. Neste trabalho, pretendo pontuar alguns I intend to point out some aspects of the organization
aspectos da organização das Irmandades do Rosário of the Rosary of Black Men Brotherhood of Sergipe,
dos Homens Pretos de Sergipe, no interstício de 1750 a in the interstitium from 1750 to 1835, examining
1835, analisando algumas categorias que faziam parte some categories that were part of the aforementioned,
das citadas, sobretudo das mulheres e os seus papéis especially of women and their roles in the brotherhoods,
nas irmandades, todavia, também apontarei alguns however, also point out some elements about Africans
elementos sobre os africanos e crioulos. Para isso, utilizei and Creoles. For this, I used the statutes of these
os estatutos dessas associações, ofícios, testamentos e associations, crafts, wills and postmortem inventories.
inventários post-mortem. As fontes foram fichadas e as The sources were filed and the information, crossed.
informações cruzadas. As irmandades que tratarei são The brotherhoods that are the treat of Our Lady of the
as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos Rosary of Black Men of São Cristovão, Santo Amaro,
de São Cristóvão, Santo Amaro, Lagarto, Estância e Lagarto, Estancia and Villa Nova. Through readings
Vila Nova. Através das leituras das referências e da of references and documentation gathered so far, I
documentação coletadas até o momento, concluo que conclude that the Our Lady of the Rosary was the
a Nossa Senhora do Rosário foi a principal invocação main invocation of black men and women in Sergipe,
das mulheres e homens pretos em Sergipe, incluindo as including African and Africans from different nations.
africanas e os africanos de diversas nações. A relação The relationship between Africans and Creoles varied
entre africanos e crioulos variou entre as vilas. Por fim, among villages. Finally, women who were part of the
que as mulheres que faziam parte das irmandades não brotherhoods were not homogenous and occupied
eram homogêneas e ocuparam lugares de destaque. prominent places.
Palavras Chave: Irmandades de Nossa Senhora do Keywords: Brotherhoods of Our Lady of the Rosary
Rosário dos Homens Pretos; Sergipe; Irmãs do Rosário. of Black Men; Sergipe; Sisters of the Rosary.
Introdução
Os últimos anos do Século XVIII operaram uma significativa mudança na Paraíba.
Foi durante essa época que a Capitania retomou sua autonomia política, pois, até
então, estava sob o domínio de Pernambuco3. A desanexação da Paraíba (1799)
possibilitou a retomada do seu desenvolvimento, embora seu crescimento econômico
estivesse, ainda, atrelado aos interesses dos grupos econômicos da Província vizinha.
Foi durante esse período que ocorreu a criação de novos municípios4, entre os quais,
o de Sousa. A antiga povoação, localizada na margem direita do Rio do Peixe,
confluente do Rio Piranhas, no sertão paraibano, em 1800, foi elevada à categoria de
vila, com a denominação de Vila Nova de Sousa, promoção devida ao crescimento
propiciado pela atividade criatória: o gado vacum. Essa atividade produtiva foi o
grande motor de desenvolvimento da região durante os séculos XVII e XVIII.
Revelam-nos, Galliza5 e Brandão6 que a atividade criatória, a princípio, não
necessitava da utilização de escravos nas fazendas. Essa afirmativa era revelada por
fatores como o caráter extensivo da atividade criatória, que limitava o número de
pessoas para o trabalho de manejo e, consequentemente, para o crescimento do
rebanho. Essa característica dependia, quase que exclusivamente, dos recursos naturais
e pouco exigia da interferência humana. A economia pecuarista apresentava, ainda,
outros aspectos que a tornavam atraente para aqueles que desejavam atuar nessa
área: era uma atividade que requeria baixo índice de investimento, em comparação
com a empresa açucareira; não sofria as flutuações dos preços no mercado externo;
1
Este artigo é parte de um capítulo de minha tese de doutorado defendida em 2010, na Universidade
Federal de Pernambuco.
2
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente realiza Estágio Pós-
Doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Informação da Universidade
Federal da Paraíba. E-mail: <toiavlima@hotmail.com>.
3
Em 1755, a capitania da Paraíba foi anexada à de Pernambuco. Esta ação se inseria no plano
de racionalização da política econômica pombalina de conter gastos e concentrar recursos e do
objetivo político de centralizar em Pernambuco o comando e a fiscalização de uma vasta região,
que não estava dando lucros. A Paraíba retoma a sua autonomia em 1799, após 44 anos sob o
domínio pernambucano. Sobre esse assunto, leia os trabalhos de: OLIVEIRA, Elza Régis. A Paraíba
na crise do Século XVIII: subordinação e autonomia (1755-1799). Fortaleza: BNB / ETENE, 1985;
ALMEIDA, Horácio de. História da Paraíba – Tomo I. João Pessoa: Imprensa Universitária, 1966;
CRUZ, Fábio Santiago Santa. Irmãs e Rivais: resistências paraibanas à influência do Recife (1870-
1889). Dissertação (Mestrado em História). Universidade de Brasília. Brasília, 2002.
4
Em 1800, além da criação de novos municípios, ocorreu a incorporação de novas terras à Paraíba,
como os municípios de Catolé do Rocha e Cuité, que pertenciam, anteriormente, ao Rio Grande
do Norte. Ver: ROHAN, Henrique Beaurepaire. Chorographia da Parahyba do Norte. [1870?],
Notação: 4, 3, 23 – Seção de Obras Raras, Biblioteca Nacional/RJ.
5
GALLIZA, Diana Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba (1850-1888). João Pessoa: Ed.
Universitária/ UFPB, 1979.
6
BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do
século XVIII. Teresina: ed. Universitária/ UFPI, 1999, p. 41.
11
Ver: Mapa dos habitantes que existem na paróquia da Vila Nova de Sousa no ano de 1804. AHU_
ACL_CU_014, Cx. 46, D. 3273. (CD 06).
12
Veja o Relatório do Presidente de Província, de 1854, João Capistrano Bandeira de Mello. Fundo
NDIHR, Arquivo do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional/ UFPB.
22
Karasch afirma que o preço médio que uma escrava africana pagava para obter a sua liberdade,
no Rio de Janeiro, entre os anos de 1807 e 1831, era cerca de 136$829,09; enquanto que o preço
médio da escrava brasileira era de 151$602,63 e dos escravos, também brasileiros, de 167$568,33.
KARASCH, A vida dos escravos..., p. 452.
23
FALCI, Miridan Brito Knox. Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações sociais. Piauí,
1826-1888. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995, p. 117-223.
24
Ver os documentos: CONSULTA do Conselho Ultramarino, ao rei D. Afonso VI, de 23 fev. 1658.
AHU-ACL-CU-014, Cx. 1, D. 43. (Cd 01). CONSULTA do Conselho Ultramarino ao príncipe
regente D. Pedro, de 17 jan. 1674. AHU-ACL-CU-014, Cx. 1, D. 89. (Cd 01). REQUERIMENTO
dos oficiais da Câmara da Paraíba ao rei [D. Pedro II], anterior a 7 jan. 1701. Localização: AHU_
ACL_CU_014, Cx. 3, D. 240 (Cd 01).
32
Veja Livro de Notas de Sousa, 1854-1855, n° 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
33
Veja Livro de Notas de Sousa, 1856, nº 33, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
34
Veja Livro de Notas de Sousa, 1854-1855, nº 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
35
Veja Livro de Notas de Sousa, 1857-1858, nº 35, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
36
Veja Livro de Notas de Sousa, 1845-1849, nº 29, Notação: A2P2, Fundo: Coleção de Documentos
Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano.
37
Veja Livro de Notas de Sousa, 1822-1825, fl. 144v-145, nº 17, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
38
Veja Livro de Notas de Sousa, 1844-1855, fl. 9-10v, nº 32, Notação: A2P2, Fundo: Coleção
de Documentos Coloniais, Imperiais e Republicanos (CDCIR), Arquivo Flávio Maroja, Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano.
50
Em 1836, por Lei Provincial, foi criado o Liceu Paraibano. Em 1843, a Província tinha 20 escolas
elementares, com um total de 656 alunos de ambos os sexos. Em 1854, a Paraíba tinha 1343
alunos, de ambos os sexos, matriculados em suas escolas. Veja PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira.
Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos escolares na Paraíba. Campinas: Autores Associados;
São Paulo: USF, 2002.
RESUMO ABSTRACT
Este estudo discute alguns caminhos empreendidos This study discusses some ways carried out by
pelos escravos em busca da liberdade, através das slaves in search of freedom, through writs of
cartas de alforrias referentes ao município de manumissions referring to the town of Sousa,
Sousa, Paraíba, século XIX. Examinamos 171 Paraíba, 19th century. A total of 171 writs of
cartas de liberdade, registradas entre os anos de manumissions were examined, registered during
1800 e 1858, por meio das quais foram libertados the period between 1800 and 1858, by means of
177 escravos. Apresentamos considerações sobre which 177 slaves were set free. Comments about
o perfil do liberto em Sousa, destacando: quem the characteristic of the free one were presented,
era mais alforriado se o homem ou a mulher; a in Sousa, by pointing out some aspects such as:
cor da pele dos libertos; a procedência; a idade who was mostly manumitted whether the man or
dos que se libertavam e a que grupos pertenciam; the woman; the skin color of those set free; their
os preços que os escravos alcançavam e quem origin; their age and to what group they took part;
pagava a liberdade. Estudamos, ainda, o the prices provided for the slaves and, finally, who
estabelecimento de laços afetivos entre escravos paid for their freedom. It was also researched the
e senhores, a formação de pecúlio para comprar establishment of affective bonds between slaves
a liberdade. Também foi possível trabalhar com and masters, and the formation of savings in order
as diversas condições impostas ao liberto para to buy freedom. Several conditions imposed to the
conseguir completar o processo de liberdade. free for attaining the freedom process were also
Percebemos que as histórias de vida dos libertos analyzed. Life histories of those set free revealed
revelaram que elas se entrelaçavam com as de that they entangled with those of their masters,
seus senhores, na própria relação do ato de in their own relation in the act of manumitting.
alforriar. Keywords: Slaves; Manumissions; Sousa;
Palavras Chave: Escravos; Alforrias; Sousa; Paraíba; 19th Century.
Paraíba; Século XIX.
1
Doutor em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Professor titular do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo. E-Mail: <maestri@
via-rs.net>.
2
Cf. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975; ISOLA, Ema. La esclavitud en el Uruguay desde sus
comienzos hosta su extinción (1743-1852). Montevidéu: Facultad de Humanidades y Ciencias,
1975.
3
Cf. MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST; Caxias do Sul, EDUCS,
1984.
10
Arquivo Nacional, Série IJ (1) 585.
11
Arquivo Nacional, Série IJ (1) 585.
12
Arquivo Nacional, série IJ (1) 586, Correspondência do presidente da Província ao ministro e
secretário de Estado de Negócios da Justiça, 29 de novembro de 1864.
Mais do que vãs temores agitavam a província sulina em 1865. Em seu Relatório
sobre sua administração do Rio Grande, João Marcelino escreveria: “No princípio do
corrente ano [1865], houve um estremecimento geral proveniente de suspeitas da
existência de um plano de insurreição servil”. Novamente, para ele, não seria “plano
combinado”, mesmo reconhecendo a agitação em “alguns termos da Província”.
Na ocasião, repreendeu as “autoridades locais” que acionaram “ostensivamente”
a Polícia e louvou o delegado de Polícia de Pelotas, pelo “critério e discrição”, ao
tomar, “sem ostentação”, as medidas precaucionais. Registrou temer a participação
de orientais do Partido Blanco16.
A agitação no Rio Grande agravara-se com o ingresso das tropas imperiais no
Uruguai, em setembro de 1864, com o apoio dos colorados. Em fins daquele ano,
as tropas do Império cercaram Paissandu, ferrolho oriental sobre o rio Uruguai.
Tentando reverter a difícil situação, à espera do aliado paraguaio, em 27 de janeiro
de 1865, a cavalaria blanca atacou Jaguarão, na fronteira com o Uruguai17. Em seu
Relatório, João Marcelino acusou uruguaios vivendo no Rio Grande de tentarem
13
Arquivo Nacional, série IJ (1)586.
14
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul [AHRGS], Porto Alegre, Caixa 74, correspondência do
presidente da Província com o Ministro da Justiça, ofícios 286 e 287.
15
Cf. ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860). Passo
Fundo: UPF, 2002, p. 64.
16
GONZAGA, João Marcelino de Souza. Relatório com que o Bacharel João [...] entregou a
administração da Província de São Pedro do Rio Grande ao Ilmo. e Exmo. Sr. Visconde de Boa
Vista. Porto Alegre, Typ. do Rio-Grandense 1865, p. 20 et seq.
17
Cf. BANDEIRA, L. A. Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na bacia do
Plata: Argentina, Uruguai e Paraguai – Da colonização à guerra da Tríplice Aliança. 2. ed. Brasília:
Editora da UnB, 1995; BARÁN, José Pedro. Apogeo y crisis del Uruguay pastoril y caudillesco.
[1839-1875] Montevideo: Banda Oriental, 2007.
18
GONZAGA, Relatório com que o Bacharel João...
19
Diário de Rio Grande, Rio Grande, 1º fev. 1865.
20
Correspondência [Anno 1865]. Typografia Nacional: Rio de Janeiro, 1865, p. 10.
21
Correspondência [Anno 1865], p. 13.
22
Correspondência [Anno 1865], p. 13.
23
Diário de Rio Grande, Rio Grande, 2 fev. 1865.
24
O Commercial, Rio Grande, segunda e terça-feira, 6/7 fev. 1865.
25
AHRGS, Delegacia de Polícia, Jaguarão, 1865, pasta III.
26
AHRGS, Delegacia de Polícia, Jaguarão, 1865, pasta III.
39
APERGS, Piratini, 1ª Vara civil e de crime, 01.01.1863-31.12.1869.
40
Diário de Rio Grande, sexta-feira, 17 fev. 1865.
41
Diário de Rio Grande, 15 mar. 1865.
42
Diário de Rio Grande, Rio Grande, sábado, 18 fev. 1865.
43
Diário do Rio Grande, Rio Grande, domingo, 19 fev. 1865.
44
Correspondência [Anno 1865], p. 13; destacamos.
45
CUNHA, Rui Vieira da. “Escravos Rebeldes em Porto Alegre”. In: MENSÁRIO do Arquivo Nacional.
Rio de Janeiro, ago. 1978, p.11-15; Correspondência do Presidente da província de São Pedro do
RS ao Ministro da Justiça. AN, série IJ 591.
RESUMO ABSTRACT
Nos anos 1863-68, com população escravizada During the 1863-68’s, with its creole and
crioula e ladinizada, o Rio Grande do Sul ladinizada slave population, Rio Grande do Sul
conheceu importante ciclo de agitações e experienced an important cycle of unrest and
conspirações de trabalhadores escravizados. A slaves conspirations. Emancipated slaves’ and,
eventual participação de libertos e, sobretudo, de particularly, free men’s participation was mostly
homens livres, deveu-se em grande parte à crise due to the crisis in Plata region – 1864’s Empire
então em curso na bacia do Prata – intervenção intervention in Uruguay and 1865-70’s Paraguay
do Império no Uruguai, em 1864, e Guerra da War. These movements’ aim was to claim liberty or
Tríplice Aliança, em 1865-70. Esses movimentos promote flights to Uruguay, governed by Partido
destinavam-se a reivindicar a liberdade de posição Blanco, which fighted to make slave abolition be
de força ou promover fugas para o Uruguai, sob respected in the north of the country.
governo do Partido Blanco, que lutava para fazer Keywords: Slaves Insur rections; Urban
respeitar a abolição da escravatura no norte do Insurrection; Rio Grande’s Slavery.
país.
Palavras Chave: Insurreições escravas;
Insurreição urbana; Escravidão Rio-Grandense.
4
CARVALHO, Marcus Joaquim M. de. “De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e
escravidão no Recife, 1822-1850”. Afro-Ásia, Centro de Estudos Afro-Orientais, Salvador, n. 29/
30, 2003, p. 58. Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/>. Acesso em: 20 fev. 2008.
5
Para Astor Diehl, “a idéia de progresso está profundamente ancorada na mentalidade e nas
estruturas coletivas do pensamento das culturas históricas dos países industrializados e mesmo
naqueles que estão engatinhando no processo de modernização.” Dessa maneira, há muito atuou
nos horizontes da consciência histórico-coletiva alimentando sonhos e utopias, que na maior parte
das vezes não foram sequer concretizadas. DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória,
identidade e representação. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 21-44.
6
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002, p. 17.
7
No que se refere aos instrumentos de controle social criados pelo Estado, para lhes auxiliar na
consumação do “projeto normatizador” podemos apontar: os aparatos policiais, as posturas
editadas pela Câmara Municipal, o discurso jurídico e o emergente discurso médico (expresso na
criação do Conselho de Salubridade Pública, em 1845) entre outros. No entanto, é sabido que
esses meios não foram suficientes para atingir tal fim.
10
SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte Imperial: enfrentamentos e negociações
na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). Tese (Doutorado em História). Universidade
Estadual de Campinas. Campinas, 2007.
de se obter status social, mas salientamos que apenas um minoria conseguia enriquecer mediante
tal prática. FARIA, Sheila de Castro. “Mulheres forras: Riqueza e estigma social”. Tempo, Rio de
Janeiro, vol. 05, n. 09, jul. 2000, p. 77-78. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/tempo/>.
Acesso em: 20 mar. 2010.
15
As atividades de “portas adentro” também empregavam uma parte considerável das mulheres
populares que se ocupavam como cozinheiras, mucamas, amas-de-leite, amas-secas, entre outras
atividades.
16
Aqui entendemos o patriarcalismo como um contexto relacional, um processo tenso de cuja
construção as mulheres também participavam.
17
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
urbano. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 152.
18
SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de
vendeiras e criadas no Recife do século XIX (1840-1870). Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2004, p. 105.
28
O termo “belo sexo” foi usualmente utilizado em alguns periódicos do Recife oitocentista, tais
como o jornal O Carapuceiro. Tal expressão era empregada para se referir às mulheres de condição
livre e que gozavam de certo status social. No entanto, aqui o utilizamos para designar a todas as
representantes do gênero feminino, ou seja, nesse cenário incluímos as mulheres populares: livres,
forras e escravas.
29
A aludida sessão foi publicada no Diário de Pernambuco, Recife, 5 ago. 1831, n. 167, p. 679.
35
OFÍCIO do Presidente da Câmara Municipal do Recife em Sessão Ordinária, ao Presidente da
Província, de 26 set. 1838. Câmaras Municipais, cód. 17, fl. 69 – 69 v. Acervo do APEJE – Arquivo
Público Jordão Emereciano.
36
OFÍCIO do Presidente da Câmara Municipal do Recife em Sessão Ordinária, ao Presidente da
Província, de 26 set. 1838. Câmaras Municipais, cód. 17, fl. 69 – 69 v. Acervo do APEJE – Arquivo
Público Jordão Emereciano.
37
OFÍCIO do Prefeito de Comarca do Recife, Francisco Antônio de Sá Barreto, ao Presidente da
Província, de 04/09/1837. Prefeitura de Comarca do Recife, cód. 03, fl. 83. Acervo do APEJE –
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano.
38
OFÍCIO do Prefeito de Comarca do Recife, Francisco Antônio de Sá Barreto, ao Presidente da
Província, de 19 ago. 1839. Prefeitura de Comarca do Recife, cód. 10, fl. 83. Acervo do APEJE –
Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano.
Este trabalho versará sobre as relações, em nada This work will focus on relations, in unfriendly,
amigáveis, travadas entre os fiscais da Câmara fought between the inspectors of the municipality
Municipal do Recife e as mulheres populares of Recife and popular women (free, blinders and
(livres, forras e cativas) durante a primeira metade slave) during the first half of the nineteenth century
do século XIX (1830-1850). Centraremo-nos (1830-1850). Pay attention us in the strategies
nas estratégias elaboradas pelas autoridades developed by local authorities outside the control
municipais frente ao controle do comércio urbano of urban commerce (retail trade) practiced mainly
(comércio a retalho) praticado, sobretudo, por by women for this portion of streets, squares
esta parcela feminina pelas ruas, praças e pontes and bridges of the capital. In this scenario, when
da capital. Nesse cenário, ao oferecerem os seus offering their services for public places in order to
serviços (como, vendeiras, aguadeiras, meretrizes, secure their daily bread and their families, these
lavadeiras, cozinheiras etc) pelos logradouros women are confronted with the city authorities,
públicos a fim de garantirem o seu pão diário e o which in time, facing many difficulties to meet
de seus familiares, estas mulheres se confrontavam the requirements of municipal, trying to “watch”
com as autoridades citadinas que, por sua vez, and “educate” their peculiar ways of living and
enfretavam muitas dificuldades para fazer cumprir working in the city.
as exigências das posturas municipais, ao tentar Keywords: Women; Recife; Câmara Municipal.
“vigiar” e “educar” os seus peculiares modos de
viver e de agir na cidade.
Palavras Chave: Mulheres; Recife; Câmara
Municipal.
17
CHALHOUB, Sidney. “Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista
(XIX)”. Revista Social, n. 19, Dossiê Racismo, História e Historiografia, 2010.
18
Só podiam votar nas eleições primárias, não podiam ser delegados ou subdelegados de polícia,
jurados, juiz de paz, nem eleitos deputado ou senadores.
19
AGCRJ. Códice 6. 1. 28
20
Biblioteca Nacional; PR – SPR 38(1); Periódico – 4, 257, 03,18 “A organização do trabalho” – 1888
p.1; O fluminense, n. 1545, 29 abr. 1888.
bons costumes”.
26
ARANTES, Erika Bastos. “Negros do Porto: trabalho, cultura e repressão policial no Rio de Janeiro,
1900-1910”. In: AZEVEDO, Elciene et al (orgs.). Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no
Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 107-
156.
27
CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
Belle Époque. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.
28
KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
29
SOARES, O “Povo de Cam”...
30
CHALHOUB, Trabalho..., p. 43.
31
Fonte: MATTOS, Marcelo Badaró; Escravizados e livres: experiências comuns na formação da
classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom texto, 2008.
32
Vide quadro I.
33
MATTOS, Escravizados e livres...
34
AGCRJ – Infrações de Posturas - Notação – 9.2.34.
35
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemia na Corte imperial. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996, cap. 1.
37
VAZ, Lilian Fessler “Dos cortiços às favelas e aos edifícios de apartamentos – a modernização da
moradia no Rio de Janeiro”. Análise social, vol. XXXIX, n. 127, mar. 1994, p. 587.
38
O termo “Carioca” significa, em tupi, “casa de branco”.
100 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
tudo porque o Comendador não permitia que os escravos comercializassem produtos
das suas roças, mas somente para seu próprio consumo na Chacrinha. Com o milho
quase todo debulhado, eis que o africano João Moange os flagrou, ameaçando
denunciá-los. Mais do que isso, argumentaria tal africano que se todos os escravos
tinham esse “acordo” e o respeitavam, não via motivos para que fossem diferentes.
Ajoelhados diante do africano, Félix e Domingos teriam implorado para que nada
fosse revelado. Mas João seguiu seu rumo, sem nada prometer. Na ocasião acabaria
deixando cair sua faca no chão, sendo apanhada por Félix. Sentindo-se ameaçado,
o africano voltou para tirar satisfações, originando luta corporal. Resultado: Félix
golpeou João, na cabeça, com a foice usada para colher o milho. Ele e Domingos
viram João rolar ribanceira abaixo.
Em seu depoimento, Domingos – trabalhador de roça e nascido na província Bahia
– garantiu jamais haver agredido João. Apenas admitiu ter combinado com Félix
o roubo do milho para vender. Mas surpreendido com chegada do africano João,
procurou fugir, embrenhando-se pelos cafezais e indo para a sua “casa”. Portanto
nada sabia sobre a morte de João e quem tinha efetuado o crime. Interessante é que
o delegado de Valença no início não quis ouvir a versão de Domingos, mas somente
a de Félix e do acusado Eliseu. Com a prisão de Felix e Domingos foi necessária uma
acareação para o confronto de versões que acabaram mantidas: com Félix afirmando
que Domingos dera uma facada em João Moange e Domingos respondendo que tal
versão era “mentirosa”, pois sequer estava presente quando ocorreu o assassinato.
O juiz responsável acreditou que Domingos não participara do crime, absolvendo-o,
e Félix, acabou condenado a seis anos de prisão com trabalhos.
Não são as tensões entre africanos e crioulos ou as regras de acesso aos produtos
das roças as únicas chaves para entender este crime e as versões produzidas. Mas
sim o cumprimento ou não de “acordos” com os fazendeiros, o reconhecimento de
“direitos” e as regras de honra, ofensa e costumes que organizavam a comunidades
escravas locais. Conflitos e alianças eram permanentes, envolvendo escravos de uma
mesma fazenda, escravos de propriedades vizinhas, além de administradores, feitores
e os desejos e políticas senhoriais. Roubar em roças garantidas pelo paternalismo
senhorial só podia ser coisa de escravos da vizinhança. Constituía-se ali uma “moral”
das sociabilidades da fazenda. A regra de proibição de comercializar em mercados
locais – certamente demandas de mobilidade e autonomia das comunidades de
senzalas – tinha como contraponto a permissividade da constituição das roças, a
geração de excedentes e as trocas mercantis. Muita coisa estava em jogo na quebra
ou na manutenção de “acordos” para senhores, feitores, administradores, cativos
africanos e crioulos. João Moange, um potencial denunciante, deveria ser eliminado
da fazenda ou então cativos fujões, ladrões e contumazes recalcitrantes serem
punidos. Chama atenção nesse episódio a explícita manifestação de arrependimento
de Felix depois de instaurado o processo jurídico. Quando, após qual ato, isso ocorre?
Em qual espaço de tempo? Felix, em alguma medida, percebeu que havia quebrado
regras: colheu milho e palmito clandestinamente, matou um “parceiro”, mentiu
para o senhor e ainda envolveu escravos do fazendeiro vizinho ao acusarem-nos
de assassinos. Teve a oportunidade de desdizer tudo diante dos mais de centenas
de “camaradas” e do comendador, mas não o fez. Uma ação tão individualizada,
isolada da vontade de um grupo maior de trabalhadores, não teria sentido de ser
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 101
sustentada por eles ao ponto de arriscarem a quebra de acordos estabelecidos com o
senhor e administradores ou feitores. Tratava-se, então, de uma questão de vergonha
em relação a essas pessoas, porque Félix se viu constrangido a reconhecer – após
o primeiro depoimento e a investigação, mais precisamente quando foi chamado a
prestar novo depoimento – que seu projeto pessoal, compartilhado por Domingos,
havia fracassado12.
Félix e Domingos, talvez, ao verem que tinham atravessado uma das fronteiras
morais na fazenda, buscaram a proteção senhorial, adiantando-se a qualquer versão
da morte de João. Consistia numa gambiarra moral, remendo do que haviam
feito de forma errada e ineficiente. Em parte, o julgamento dependia do senhor,
que talvez nem levasse a questão à Justiça caso escravos do senhor vizinho não
tivessem sido envolvidos no caso. Aí não mais se trataria de uma questão interna
à fazenda Chacrinha e à administração dos escravos do comendador. Os escravos
do fazendeiro vizinho estariam mostrando que ele não tinha controle sobre suas
atitudes fundamentais em relação à propriedade do comendador, que cobraria dele
a reparação pela quebra de uma regra. Caberia ao Comendador perdoar ou não o
vizinho, avaliando o contrato que tinham entre si. Diante de nova versão, na qual Félix
admitia culpa e acusava a Domingos, assumia o limite do risco corrido, chegando ao
final a sua tentativa de restabelecer sua relação com o senhor e os demais escravos
da fazenda. Estava admitindo que cometera uma ação desvalorizada por essas
pessoas, que não teria como ser reparada segundo as regras morais estabelecidas
na Chacrinha.
A aplicação de punições a escravos, um monopólio de poder – senhorial, na
prática e na letra da lei pelos agentes do Estado Imperial – dependia da avaliação
que se fazia de cada situação. A manipulação dos códigos de castigo ou incentivos
era entendida, em diversos casos, como sendo direito costumeiro entre senhores
e escravos, com a intermediação de feitores e outros setores das comunidades de
senzalas. A conduta de uma pessoa era levada em consideração – assim como as
versões que ela fornecia sobre a mesma, bem como a avaliação do julgador – para
o arbitramento da sanção a ser aplicada, ou do perdão a ser dado; o que podia
significar a contração de uma dívida13. Nesse sentido, ao invés de terem escolhido
contrair uma dívida com um escravo africano – talvez um dos mais antigos na
fazenda Chacrinha e já conhecedor das formas do comendador conceber as ações
reprováveis ou esperadas da escravaria – os jovens crioulos Félix e Domingos, este
último proveniente da Bahia, teriam preferido tentar a sorte e contrair uma dívida
com o senhor, pessoalmente. Ao relatar o ocorrido ao comendador, Félix estava
selando o seu destino. Qualquer uma das versões apresentadas girava em torno das
inflexões dos modos de encarar o trabalho e seus rendimentos entre escravos de
12
Sobre a regulação dos critérios de bondade e perdão, ver: SIGAUD, Lygia. “Armadilhas da honra
e do perdão: usos sociais do direito na mata pernambucana”. Mana, vol. 10, n. 1, 2004, p. 131-
163. Para uma análise teórica conceitual instigante, ver: HERZFELD, Michael. Honour and Shame:
problems in the comparative analysis of moral systems. Man, New Series, vol. 15, n. 2, jun. 1980,
p. 339-351.
13
Ver: FAVRET [-Saada], Jeanne. “Relations de dépendance et manipulations de la violance em
Kabiylie”. L’Homme, vol. 8, n. 4, 1968, p.18-44; SIGAUD, Lygia. “Direitos e gestão de injustiças”.
Comunicações do PPGAS, n. 4. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social – Museu Nacional/UFRJ, s/d., p. 139-170.
102 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
uma mesma fazenda, revelando diferentes éticas e morais em relação ao mesmo.
A tentativa de furto de milho e palmito foi um meio para explicitar o sentido das
experiências do trabalho que aqueles escravos construíram e a percepção acerca do
que entendiam como punição, perdão, honra e vergonha de seu senhor.
Perfilar escravos observando-os com vagar e paciência; constranger os culpados
a assumir uma posição clara diante de todos; coordenar as investigações sobre
um suposto crime dentro de seus domínios; esclarecer se havia o envolvimento de
escravos de fazendeiros vizinhos; procurar definir os limites dos agentes do Estado
nas averiguações em seus próprios domínios; estabelecer em que sentido o delegado
deveria agir, quais versões deveriam ser aceitas e também se alguma informação
não se encaixava ali representavam ações em torno do exercício do poder e da
regulação do que se entendia por justiça na fazenda Chacrinha14. Não queremos
com isso sugerir a existência de uma absoluta autonomia das relações estabelecidas
no universo escravista; melhor perspectiva seria destacar as diferenças entre o nível
da estruturação das leis e o das ideias acerca das condutas esperadas na esfera
judiciária e em que medida comportamentos poderiam ser classificados dentro desse
enquadramento socialmente estabelecido. Quando algo passava a ser entendido,
inclusive e por isso mesmo gerando tipos de relatos escritos e burocratizados, através
dos mecanismos propostos na esfera do Estado, nada mais significava do que uma
perspectiva de compreender situações outrora fora dessa configuração15. As relações
entre as atitudes costumeiras e o que as tornava crime dependiam da avaliação tanto
de quem possuía mais poder no grupo e como acerca dos graus de importância
da aplicação de sanções ao não cumprimento das obrigações16. O rompimento das
mesmas nos ajudaria a identificar os conflitos e as disputas inter e intracomunitárias.
Moralidades, exemplos e vizinhança
O senhor não era só aquele a quem devia ser destinado o produto do trabalho,
mas também aquele que devia prover seus escravos com alimentos, roupas e
moradias, tratá-los nas enfermidades e castigá-los quando necessário. Nas palavras
do Barão de Paty do Alferes, um poderoso fazendeiro da região de Vassouras, o
senhor deveria “ser severo, justiceiro e humano”. Nesta seção ampliamos a reflexão
sobre os significados efetivos e simbólicos, analisando mais dois episódios acontecidos
no Vale do Paraíba. O primeiro em Vassouras, em 1844, quando 58 escravos de
uma fazenda pertencente a Marcelino José de Avelar – durante o serviço no eito –
revoltaram-se em virtude de “maus-tratos”. Atacaram o feitor Bento Luiz Martins
com paus, foices e enxadas, ferindo-o gravemente também com chicotadas. Após
o atentado, fugiram para o mato, indo depois se “apadrinharem” na casa de outro
14
Ver definições de WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. 11ª
reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1997 [1922], p. 170-192, acerca de autoridade
do tipo tradicional e suas formas de legitimação, levando em consideração a diversidade e o peso
de fatores racionais e afetivos no processo de relações de dominação e subordinação envolvendo
os agentes sociais estudados. O papel desempenhado pelo senhor seria um exemplo aproximado
do que Weber analisou.
15
Sobre esse tipo de atitude é paradigmático o estudo de: ARENDT, Hannah. Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1964].
16
BRONISLAW, Malinowski. Crime e costume na sociedade selvagem. São Paulo: Imprensa Oficial;
Brasília: Editora da UnB, 2003 [1926].
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 103
fazendeiro. De volta à fazenda de seu senhor, sumariamente foram castigados, tendo
sido aberto um processo crime, no qual acabaram indiciados e sentenciados: Antônio
Moçambique, com condenação à morte por enforcamento (pena transformada
em galés perpétuas) e Círio Congo, condenado a 800 açoites e ao uso de ferro ao
pescoço durante três anos.
Neste episódio são igualmente revelados códigos de condutas redefinidos
permanentemente nas comunidades de senzalas e que estariam em tradução ou
não pela legislação formal. Segundo a versão do escravo Círio:
[...] um dia em que ele junto com seus parceiros iam para
a roça o feitor bateu no seu parceiro Januário com uma
man...[ileg.] que levava na mão por ter demorado na
senzala [...] e aí estiveram todos trabalhando até chegar o
almoço em que largaram o serviço para comer, que quando
ele respondente com seus parceiros estiveram almoçando
tinham comido só três ou quatro colheres, e logo o feitor
mandou que largassem o almoço e fossem juntar milho,
que ele respondente com seus parceiros largaram o almoço,
o feitor mandou botar a comida na gamela e deu a seu
cavalo, que ele com seus parceiros foram juntar milho e que
o seu parceiro Dario foi beber água e acendeu cachimbo,
que o feitor ralhou por ele, digo, por ele saiu e disse que
havia de bater nele, que quando o mesmo Dario voltou o
feitor agarrou nele, amarrou-o no pau e surrou muito, que
depois do feitor já ter surrado muito o Dario ele respondente
com seus parceiros já estava muito surrado, e que o feitor
respondeu que ainda não bastava e que ia mandar buscar
o bacalhau para o tornar a surrar, nisto o seu parceiro
Januário disse para ele respondente a seus companheiros
que ele Januário já estava com as cadeiras machucadas com
as bordoadas que o feitor lhe havia dado, que Dario estava
apanhando surra, que isto assim não podia ser, e que ele
Januário ia pegar no feitor, que quando o feitor passou perto
de Januário, este com ele, digo este o agarrou, e logo ele
respondente com Antonio Moçambique ajudaram a agarrar
no feitor, deitaram-no ao chão, que nisto Januário puxou
pela faca para matar o feitor, que ele respondente disse a
Januário que não matasse o feitor, e Januário respondeu
‘tá bom você pede pra não matá feitor, então eu vou surrar
ele porque eu também estou descadeirado com as porradas
que ele me deu’, que nisso Januário pôs-se a tocar no feitor
com o relho dele feitor e que também Antonio Moçambique
surrou o feitor. [...]17
17
CDH, Processo crime de Ofensas Físicas, Réus: Círio, Antônio Moçambique e outros escravos
pertencentes a Marcelino José d’Avelar, Cartório do Segundo Ofício de Vassouras, ano de 1844,
caixa 482, interrogatório do escravo Círio Congo, fls. 38 e 38 v, e 43 e 43 v.
104 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Um extenso depoimento onde se mergulha na atmosfera de tensões e conflitos
que permeava a lavoura cafeeira em meados do século XIX, no Sudeste escravista.
O depoimento de Círio Congo parece indicar a existência de algo como uma
“economia moral”, envolvendo relações cotidianas entre escravos, senhores e
feitores18. O feitor Bento havia levado ao limite o exercício de domínio e de poder,
a despeito das regras consensuais que, por certo, regiam o trabalho e controle sobre
a vida escrava naquela propriedade. Não se tratava de castigos exagerados, mas,
sobretudo, daqueles considerados injustos. Inicialmente, o feitor tinha agredido
Januário Monjolo porque havia demorado a sair da senzala na hora da alvorada.
Depois interrompeu inesperadamente o almoço no campo, ordenando aos escravos
o retorno imediato ao trabalho. Pior que suspender o almoço á pouco iniciado, o
feitor utilizou a comida para alimentar seu cavalo. Arbitrariedades e truculências se
misturaram, então, com injustiça e perversidade. Não satisfeito, ao perceber que Dario
Cabinda tinha interrompido o trabalho para beber água e acender um cachimbo,
o feitor o amarrou num pau e lhe deu uma surra. Ao ser abordado pelos demais
escravos – que a tudo presenciaram com indignação e lhe pediram que parasse
de bater em Dario – ameaçou castigar todos e mandou “buscar o bacalhau” para
continuar a surra. Numa ação conjunta, os escravos se revoltaram contra Bento Luiz.
Agarraram-no e deram-lhe repetidas surras. No depoimento de Círio revela-se que,
por um instante, os cativos comandados por Januário pensaram em matar o feitor.
Depois da interferência do próprio Círio, resolveram “castigá-lo” da mesma forma
como este frequentemente fazia com eles, isto é, usando o relho (chicote). Mais do
que um ato de vingança, fruto de explosão de ódio diante dos desmandos deste
feitor, optaram por puni-lo com uma surra de chicote, utilizando o mesmo símbolo
de obediência e coerção a que eram submetidos19.
Embora a atitude desses escravos – ao que parece – não tivesse sido premeditada,
contudo, temendo represálias, fugiram para a floresta e logo depois procuraram
“apadrinhar-se” na casa de um fazendeiro próximo, Francisco José Teixeira Leite.
Este declarou em seu depoimento:
[...] foram a casa dele testemunha uns cinqüenta escravos
pouco mais ou menos, do capitão Marcelino José de Avelar
tomar padrinho, e perguntando ele testemunha aos ditos
escravos a razão porque tinham eles fugido da casa do seu
senhor, eles escravos lhe responderam que o feitor era
muito ruim, que por qualquer coisa açoitava a eles escravos,
e acabava de açoitar a um parceiro, o qual nesse ato foi
mostrado a ele testemunha. Que ele testemunha mandou
os ditos escravos para a casa de seu senhor conduzidos por
um moço chamado Aureliano Carlos de Carvalho, ficando
na sua Fazenda o escravo surrado por não poder seguir.20
18
MORGAN, Philip, Slave counterpoint: black culture in the eighteenth-century Chesapeake &
Lowcountry. Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 1998, p. 524-525 e 530.
19
CDH, Processo Crime de Ofensas Físicas citado. Interrogatório feito ao ferido Bento Luiz Martins,
fls. 6 a 9.
20
Ver Processo Crime de Ofensas Físicas citado. Autos de perguntas da Testemunha Francisco José
Teixeira Leite, fls. 60 a 61.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 105
Havia toda uma lógica de confrontos, negociações, ameaças e conflitos. Os
escravos, após surrarem o feitor, se esconderam nos matos próximos e depois
procuraram “padrinho” (no caso um fazendeiro local) para então retornarem à
fazenda de seu senhor. A estratégia do “apadrinhamento” podia servir também como
forma de controle e repressão. Mas retornando à fazenda, o capitão Marcelino José de
Avelar deu pouca atenção ao fato de estarem “apadrinhados” e consequentemente
protegidos de castigos, segundo rezava a tradição. Antes mesmo da instauração do
processo e a posterior condenação de dois escravos, o capitão Marcelino mandou
punir todos severamente. Em seu testemunho ponderou que "mandou castigar
os pretos, pois que queria dar exemplo a fim de que não acontecesse outro caso
semelhante. Que, com efeito, foram castigados todos os escravos”21.
O outro episódio aconteceu em Paraíba do Sul, na freguesia de Sant’Ana de
Cebolas, em 1876. Dois escravos fugidos estavam escondidos da fazenda São
Romão, propriedade do Dr. Jerônimo Macário Figueira de Melo. Foi enviado o feitor
Antônio Gonçalves para capturá-los, havendo luta e ferimentos. Mais tarde um dos
escravos faleceu, não sabendo “se das contusões recebidas ou de outro qualquer
incômodo”. Detalhe: os dois escravos fugidos pertenciam ao Tenente Guilherme
Antônio de Carvalho. Foi instaurado um processo crime contra o feitor Antônio
Gonçalves, com o julgamento só acontecendo em 1883. Revelam-se nesse processo
as redes sociais que envolviam senhores e escravos – inclusive os fugitivos – no
Vale do Paraíba Fluminense, na segunda metade do séc. XIX. Os pretos Abraão e
Damásio estavam escondidos nos “terrenos” da Fazenda São Romão. Abrão foi um
dos protagonistas das “cacetadas” deferidas pelo feitor Antônio Gonçalves e teve
melhor sorte que o preto Damásio, que acabou morrendo. Em seu depoimento,
Abraão narraria suas aventuras como fugido e as redes de vizinhanças acionadas
entre as comunidades de senzalas:
Respondeu que não se lembra quando foi, mas que já há
muitos anos ele respondente um dia sem que tivesse motivos
só com medo do feitor que então havia na fazenda, mas
não que fosse castigado nem promessa de o ser, porém é o
costume do escravo que foge quando quer, que tentado pelo
diabo fugido que seguiu para os lados do Cavarú para onde
esteve por muitas vezes no mato, roubando ora em um ora
em outro lugar até que resolveu voltar para as proximidades
da fazenda de seu senhor para ver se resolvia apadrinhar-
se para apresentar-se a seu senhor, mas em certa noite ele
respondente encontrou-se com seu parceiro Damásio que
já estava fugido há mais de doze anos e com ele se juntou
gostando de o ver muito gordo e forte, e seguiram para o
mato, onde ele estava com seu quilombo na Fazenda de
São Romão, em uma capoeira acima do cafezal, onde já
tinha um rancho, ai continuaram a habitar escondendo-se
de dia e saindo de noite, roubando mandioca e milho em
vários lugares, apanhando café para venderem, e assim
21
Ver Processo Crime de Ofensas Físicas citados. Autos de perguntas da Testemunha Capitão
Marcelino José d’Avelar, fls. 62 a 63.
106 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
continuavam até que em certa noite andando eles em sua
digressão encontraram-se com dois escravos de Vicente
Antônio que também tinham fugido e estes se ajuntaram
com ele respondente e Damásio e todos seguiram para
o quilombo e ali continuaram a habitar e no seu firme
propósito de roubarem para comer e viver.22
O feitor Antônio Gonçalves, da fazenda de São Romão, realizou uma expedição
nos matos, prendeu escravos e acabou gerando mortes. O tempo longo de duração
desse processo tem explicação. Não necessariamente por interesse do Tenente
Guilherme Antônio de Carvalho, foi aberto um inquérito para saber de quem era a
responsabilidade da morte de Damásio. Suspeitas indicavam que sua morte nada
tivera a ver com os ferimentos causados quando da sua captura. Talvez algo tivesse
acontecido no período em que ficou preso nas mãos do dito feitor Gonçalves antes
de ser entregue a justiça. Todas as testemunhas do processo concordavam que o
preto Damásio era muito forte, alguém difícil de ser dominado, mesmo por um
grupo de pessoas. Gabriel Porcino Pereira, um liberto africano, pequeno lavrador
no lugar denominado Jatahy não fez acusações, “não sabendo ele respondente se
à morte fora motivada pelas pancadas, ou por que motivo”. Tudo que soubera foi
de “uns pretos escravos” do Tenente Carvalho “que haviam ido enterrar o cadáver
do preto Damásio”. Do feitor Gonçalves ouvira apenas notícias sobre a existência
de um quilombo naquelas paragens, sua tentativa de capturar os fugitivos e “que
lhe fora preciso dar algumas cacetadas”. Não conhecia Damásio, “embora [sabia]
que freqüentava a fazenda do mesmo tenente”, por que estava fugido há muitos
anos. Porém, “conhecia Abraão por este estava fugido há muitos meses, mas não
chegava há um ano”.
Outras informações aparecem no testemunho de Antônio dos Reis Lopes, um
português, que trabalhava como feitor da fazenda dos herdeiros do Dr. Ignácio
Álvares da Silva. Aliás, entrou na história porque tinha sido antigo feitor da fazenda
do Tenente Carvalho. Quanto à morte de Damásio, “ninguém acreditava que das
pancadas ele viesse a falecer porque os ferimentos eram insignificantes”. Da sua parte,
ele “ainda até agora não pode compreender como o dito feitor pôde conseguir a
prisão desses escravos e com especialidade de Damásio, por que este era um escravo
que apresentava ter uma força descomunal, tipo mal encarado”. Era “dotado de mau
instinto, sendo prejudicial por que era origem de fugidos de outros escravos não só
de seu amo”. Na ocasião seria realizado exame de corpo de delito – por solicitação
do Tenente Carvalho – apenas para evitar responsabilidades futuras, mas “não se
manifestou de forma alguma contra o dito feitor por que conheceu o perigo que o
mesmo correu para efetuar essa prisão”. De fato, o Tenente Carvalho não fez apelação
no processo contra o feitor Gonçalves. Ao contrário disto ficou agradecido, pois:
[...] ele respondente ficou surpreendido por que tendo
Damásio fugido há mais de doze anos e quase que não
lhe prestado serviços desde que era seu escravo jamais
contava ele, e Abraão que há onze meses mais ou menos
havia também fugido e supondo que houvesse procurado
22
Museu da Justiça, Comarca de Paraíba do Sul, Caixa 446, processo-crime, 1876.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 107
Damásio e com ele se ajuntado o supunha também
perdido.23
Fugitivos e escravos da mesma fazenda, com caminhos diferentes, acabaram
se unindo. Damásio tinha um invejável currículo de fuga. Falava-se em “mais de
doze anos”. Interessante: continuava escondido na região onde morava seu senhor.
Sendo “forte” e bastante esperto, talvez fosse um ídolo dos escravos locais. Tanto
tempo fugido, tanto sucesso em não ser capturado certamente funcionava como
estímulo para os projetos de escapadas de outros escravos. O sucesso da fuga se
entende aí, como a capacidade de Damásio em conseguir proteção. Isso não só
dos matos. Roubando, permutando produtos e prestando pequenos serviços para
taberneiros e lavradores já fazia parte da paisagem local. A estratégia de fuga de
Abraão também ajuda a entender a trajetória de Damásio. Num primeiro momento
o fugitivo ia para bem longe – podia ser mesmo a Corte – ou então permanecia
escondido nas proximidades. Estratégias e direções tomadas iam depender das redes
de solidariedade e proteção que pudesse acionar. Abraão contou que inicialmente
fugiu para longe: vivia no mato roubando aqui ou acolá. A vida nas matas era
dura e certamente por isso resolveu voltar para as proximidades da fazenda de seu
senhor. Encontrou-se com o “gordo e forte” Damásio. Mais que isto, articulou-se
com as redes socioeconômicas que Damásio e outros fugidos já tinham. Roubavam
milho, mandioca e café, comerciando-os nas vendas locais. Para isso montavam e
desmontavam “ranchos” naqueles matos. Fazendeiros e autoridades não viam os
fugitivos, mas encontravam os rastros de suas atividades: roubos.
Estas narrativas sugerem pensar como tentavam reinventar suas vidas. Na
condição de fugidos ou acoitadores deles. Reuniam – também com conflitos –
várias comunidades escravas em torno das vizinhanças e redes de proteção com
conexões de experiências e reconfigurações de identidades. Aquelas de crioulos,
de africanos, de libertos, de roceiros, de taberneiros etc. Não só isso, os fugitivos
do Vale Paraíba não procuravam necessariamente rumar para a cidade ou seguir
para os quilombos; nem tão pouco se isolavam. Ocupavam outros “territórios” – de
fronteiras econômicas, culturais, simbólicas e sociais – na plantation. Assim não eram
“marginais” das comunidades de senzalas e nem dos complexos universos do mundo
da escravidão24. Além disso, não era incomum fugitivos – de diferentes fazendeiros
– se encontrarem nos matos. Podiam trocar experiências e expectativas. Muitas
dessas viagens-fugas seriam interrompidas por capturas, condenações e mortes. As
notícias sobre roubos praticados por pequenos grupos de fugitivos podiam ter vários
significados. De um lado, podiam ser verdadeiras as informações desses roubos e
furtos, porém, tentava-se acabar com as possíveis redes de comércio clandestino
que unia fugitivos, escravos assenzalados e outros personagens.
23
Museu da Justiça, Comarca de Paraíba do Sul, Caixa 446, processo-crime, 1876.
24
Reflexões clássicas sobre a dimensões da autonomia escrava aparecem em: MACHADO,
Maria Helena P. T. “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social
da escravidão”. Revista Brasileira de História, vol. 8, n. 16, mar./ago. 1988, p. 143-160. Mais
recentemente uma proposta de debate historiográfico surgiu em: FARIA, Sheila Castro. “Identidade
e comunidade escrava: um ensaio”. Tempo - Revista do Departamento de História da UFF, vol. 11,
2007, p. 133-157.
108 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Espaços, camadas e territórios da cultura material
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 109
mesmo paisagens podemos entender como africanos e crioulos imprimiriam diversos
significados de “adaptação” e “criação” nas sociedades escravistas, mesmo levando
em conta diferentes inserções de identidades e comunidades geracionais28. Isso
envolveria investigações a respeito do agenciamento de “territórios” de mobilidade,
autonomia e reprodução da cultura material nas vivências e nos mundos do
trabalho29.
Nos últimos 20 anos a arqueologia brasileira tem oferecido importantes
contribuições para pensar a sociedade e o cotidiano, inclusive sobre a escravidão,
como bem destacou recentemente Symanski30. Com base no registro arqueológico,
para além das memórias, cronistas, inventários, registros paroquiais, precisamos
perscrutar a vida escrava para alcançar os significados – não exclusivamente
senhoriais – que os próprios africanos e crioulos atribuíam às suas vivências e a
cultura material constituída. Investigações mais recentes envolvendo pesquisadores
de várias áreas e projetos institucionais poderão ampliar as possibilidades de reflexões
em torno do passado da escravidão através da arqueologia31. No Brasil – para além
das novas pesquisas de Symanski, Souza, Agostini e outros – os arqueólogos que
se interessaram pela escravidão focaram mais os quilombos, destacadamente os
estudos clássicos de Guimarães, Funari, Orser Jr. e Allen32.
Mas podemos “invadir” plantations, casas-grandes, casebres, senzalas, etc.
28
Ver as perspectivas de: DECORSE, Christopher. “Oceans Apart: Africanist Perspectives on Diaspora
Archaeology”. In: SINGLETON, Thereza (Eds.) I, too, Am America: Archaeological Studies of
African-American Life, Charlottesville: University Press of Virginia, 1999, p. 132-158.
29
SYMANSKI, Luís C. P. “O Domínio da Tática: práticas religiosas de origem africana nos engenhos
de Chapada dos Guimarães (MT)”. Vestígios - Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica,
v.1 (2), 2007, p. 7-36; __________. “Alocronismo y Cultura Material: Discursos de Dominación
y la Utilización de los Bienes Materiales En la Sociedad Brasilera del Siglo XIX”. In: ACUTO, &
ZARANKIN, Sed nos ..., p. 255-275
30
SYMASNKI, Luís Cláudio Pereira. “Arqueologia Histórica no Brasil: uma revisão dos últimos vinte
anos”. In: MORALES, Walter Fagundes & MOI, Flavia Prado (org.). Cenários regionais de uma
Arqueologia plural. São Paulo: Annablume, 2009.
31
Ver: BARRETO, Cristiana. “A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da
arqueologia do Brasil”. Revista da USP, Dossiê “Antes de Cabral: Arqueologia Brasileira”. São
Paulo, n. 44, 2000, p. 32-51; __________. “Arqueologia Brasileira: uma perspectiva histórica e
comparada”. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. In: Anais da I Reunião Internacional
de Teoria Arqueológica na América do Sul. São Paulo, suplemento 3, 2000, p. 201-212; GASPAR,
M.D. “A história da construção arqueologia histórica brasileira”. Anais do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, vol. 13, 2003, p. 269-301; e PROUS, Andrés. Arqueologia Brasileira. Brasília:
Editora da UnB, 1991.
32
Ver: GUIMARÃES, Carlos Magno. “Mineração colonial e arqueologia: pontecialidades”. Revista de
Arqueologia, Rio de Janeiro/Soc.Arq.Brasil., v. 9, p. 55-64, 1996; __________. “Esclavitud, Rebeldia
y Arte”. Arte Rupestre Colonial y Republicano de Bolivia y Paises Vecinos, La Paz, v. 1, 1992, p.
212-219; e GUIMARÃES, Carlos Magno & LANNA, Ana L. D. “Arqueologia de Quilombos em
Minas Gerais”. Revista de Antropologia, v. 31, p. 23-28, 1980; FUNARI, Pedro Paulo A. & ORSER
JÚNIOR, Charles E. “Pesquisa arqueológica inicial em Palmares”. Estudos Ibero-Americanos, Porto
Alegre, vol. 18, n. 2, 1994, p. 53-69; FUNARI, Pedro Paulo A. “A Arqueologia de Palmares - sua
contribuição para o conhecimento da história da cultura afro-americana”. In: REIS, João José
& GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 26-51; __________. “A ‘República de Palmares’e
a Arqueologia da Serra da Barriga”. Revista USP, n. 28, 1995-6, p. 6-13; _________. “Novas
perspectivas abertas pela Arqueologia na Serra da Barriga”. In: SCHWARRCZ, Lília Moritz & REIS,
Letícia Vidor de Sousa (orgs.). Negras imagens: escravidão e cultura no Brasil. São Paulo: EDUSP,
1996, p. 139-151.
110 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
investigando a constituição de “territórios” como um movimento analítico para
localizar e entender os registros – históricos, antropológicos e arqueológicos – da
cultura material produzida na escravidão e pelos escravos. Estudos pioneiros sobre
paisagens, arquitetura e símbolos da vida material senhorial e escrava 33 podem
se juntar as pesquisas sobre a cultura escrava, nas análises arqueológicas e na
documentação arquivística34. Quais “territórios” – para além das paisagens de poder
e controle senhorial – foram constituídos pelas comunidades de senzalas em torno das
plantation? Seriam caminhos possíveis para encontramos indícios da cultura material
e imaterial da escravidão e seu legado. Num projeto de pesquisa em andamento (com
apoio do CNPq e da FAPERJ) pensamos em – no cruzamento da pesquisa empírica
e nas dimensões comparativas proporcionadas pela bibliografia especializada que
trata da temática para o Caribe e EUA – identificar “territórios” empíricos (na chave
da arqueologia histórica) e analíticos de espaços da cultura material da escravidão em
torno das senzalas, roças, áreas de caçadas, áreas de “encontros”, jongos, tabernas,
pesca etc. Significariam “territórios” de circulação cultural – permeados também de
conflitos e confrontos – entre senzalas, casas-grandes, casebres e a vida camponesa
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 111
Partindo da metáfora da pesquisa arqueológica poderíamos pensar estes
“territórios” como camadas de espaços constituídos pelos escravos – com dinâmicas
próprias e de conteúdos culturais profundos – no interior da plantation, em zonas de
fronteira entre poder, hierarquias, alianças, confrontos e barganhas. Significariam
espaços de silêncios da narrativa histórica formal mas que inscreveriam visões
de mundo adaptadas dos africanos e crioulos, daquilo que viam, enxergavam e
produziam em torno de práticas sociais e vida material36. O cruzamento de análises de
material diverso, conexões interdisciplinares e releitura da documentação manuscrita
podem ser caminhos, entre outros37.
Os episódios de Valença, Vassouras e Paraíba do Sul já fornecem algumas
aproximações inicias entre territórios e gestação de espaços de produção de cultura
material de escravos. De início podemos pensar as fronteiras da plantation e sua
circunvizinhança38. Entre espaços em torno de fazendas limítrofes – especialmente
roças de milho e palmito de um lado e cafezais do outro – havia políticas senhoriais
e escravas com dinâmicas próprias. Mas há menção – ao longo das narrativas
sobre o conflito – de outros espaços como o rio que pescavam e suas moradas que
pareciam individuais, percursos e rotas de fugitivos, vendas de produtos roubados,
sugerindo “territórios” de mobilidade e rearranjos socioeconômicos em torno da
plantation-casa-grande-senzala-terreiro. As indicações de conflitos envolvendo
gerações de africanos e de crioulos, alguns com origens de outras regiões via tráfico
interprovincial pode ser articular com a possibilidade de construções e disputas por
estes “territórios”. Significariam camadas de sociabilidades e de comunidades no
Sudeste cafeeiro, especialmente um espaço da cultura escrava e faces material e
imaterial com arranjos de moradia, parentesco, hierarquias ocupacionais, etc.39.
Seriam comunidades escravas com regras próprias de sociabilidades ajustadas por
demandas culturais, políticas senhoriais e contraponto locais, incluindo os aspectos
dialógicos de escravos e comunidades de senzalas de fazendas vizinhas, sem falar
de roceiros livres e donos de vendas que comercializavam miudezas com estas
escravarias.
1995, p. 72 e segs. BERLIN, Ira. Many Thousands Gone. The first two centuries of slavery in
North America. Cambridge, Harvad University Press, 1998, p. 162-163; MORGAN, Philip. Slave
Counterpoint: Black Culture in the Eighteenth-Century Chesapeake & Lowcountry. Chapel Hill
& London: University of North Carolina Press, 1998, p. 113 e segs.; e SINGLETON, Theresa A.
“Slavery and Spatial Dialetcs on Cuban Cofeee Plantations”. World Archaeology, vol. 33, n. 1,
2001, p. 98-114.
36
ZAECK, Natalie. “Voices and silences: the problem of slave testimony in the English West Indian
Law Court”. Slavery & Abolition, vol. 24, n. 3, dez. 2003, p. 24-39.
37
Continuam inspiradoras as reflexões pioneiras de SLENES, Na senzala...
38
Ver as abordagens de KAYE, Anthony. Joining Places: Slave Neighborhoods in the Old South,
Chapel Hill & London: University of North Carolina Press, 2008, especialmente capítulos 1 e 2.
39 P
ensamos no texto imperdível de MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “A cultura material no estudo
das sociedades antigas”. Revista de História, São Paulo, n. 115, 1985, p. 103-117.
112 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
As leis são balizadoras de condutas, The laws are graded behaviors,
dos julgamentos sobre as mesmas e judgments about the same institutional
de formas institucionais de observá- forms and to observe them. Have no
las. Não têm valor em si mesmas, value in themselves, and the reports
e os relatos produzidos sob suas produced under their protocol guidelines
diretrizes protocolares fornecem pistas provide clues and evidence of conflicts
e evidências de conflitos acerca de over issues that put people and groups
questões que colocaram em tensão in tension at times turning everyday
pessoas e grupos em momentos de negotiations. In slave societies was not
inflexão nas negociações cotidianas. Nas different. Analyze sources produced by
sociedades escravistas não era diferente. the judiciary in the nineteenth century,
Analisaremos fontes produzidas pelo claiming the murders, attempted murders
judiciário, no século XIX, que versam and assaults that targeted both masters,
sobre assassinatos, agressões e tentativas managers and foremen, as slaves and
de homicídio que tiveram como alvo freedmen. They occurred in various parts
tanto senhores, administradores e of Southeast slavery, especially in coffee
feitores, como escravos e libertos. areas. Collecting material for ongoing
Eles ocorreram em diversas partes do research and dialogue with the literature
sudeste escravista, especialmente em and current consecrated at the national
áreas cafeeiras. Juntando material de and international, we evaluate the
pesquisas em andamento e diálogo concepts of “honor”, “moral”, “space”
com a bibliografia consagrada e atual, and “neighborhood” to think the outlines
nos âmbitos nacional e internacional, of the hierarchy, the logical and evidence
avaliamos as noções de “honra”, of culture in different “territories” through
“moral”, “espaços” e “vizinhança” para the plantation slaves of conflicts involving
pensarmos os contornos das hierarquias, communities in the southeast from
das lógicas e dos indícios da cultura the narratives (new interpretations) of
em variados “territórios” na plantation criminal cases. In this paper, we propose
através de conflitos envolvendo only as a preliminary test for analytical
comunidades escravas no sudeste a testing.
partir das narrativas (novas leituras) Keywords: Anthropology and History of
de processos crimes. Neste artigo, tão Slavery; Material Culture; Hierarchies in
somente propomos um ensaio preliminar the Slave Quarters.
para uma experimentação analítica.
Palavras Chave: Antropologia e
História da Escravidão; Cultura Material;
Hierarquias na Senzala.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 113
ESCRAVOS E MORADORES NA TRANSIÇÃO PARA
O TRABALHO ASSALARIADO EM FERROVIAS EM
PERNAMBUCO
1
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente aposentado do Departamento
de História da Universidade Federal de Campina Grande. Professor Visitante da Universidade Estadual
da Paraíba. E-Mail: <jcdemelo@uol.com.br>.
2
Uma versão deste artigo foi apresentada como comunicação no 4º Encontro Cultura e Memória:
História e Trabalho, UFPE, 2009; trata-se de um fragmento de nossa tese: MELO, Josemir Camilo
de. Modernização e Mudanças: um trem inglês nos canaviais do Nordeste (1852-1902). Tese
(Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2000.
3
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. São Paulo: José Olympio, 1948, p.105.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 115
britânico de escravos, no século XVIII, tinha ampliado seu tráfego de navios em
880%. Mesmo assim, a concorrência com luso-brasileiros no tráfico e no valor da
terra levava a Inglaterra a ficar em desvantagem, iniciando por isso, a batalha contra
o tráfego escravo para o Brasil, no período 1810-1845/504.
Trabalho forçado sob escravização
4
MARX, Karl. Capital: a critique of Political Economy. Vol. 1. Londres: Lawrence & Wishart, 1983,
p. 878; MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias inglesas e mobilidade social no Nordeste (1850-1900).
Campina Grande: EDUFCG, 2008, passim; MANCHESTER, Alan K. British Preeminence in Brazil.
New York: Octagon Books, 1964, p. 166; WILLIAMS, Eric. Capitalism and Slavery. 5. ed. Londres:
s.r., 1981, p. 138. Sobre a escravatura interna na África e o papel dos africanos no tráfico, ver também:
BOKOLO, Elikia M’. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das
Áfricas, 2009. FOREIGN Office, Public Record Office (London). British Parliamentary Paper (BPP)
1826-1827. Convention Between His Majesty and the Emperor of Brazil, for the Abolition of the African
Slave Trade: Signed at Rio de Janeiro, November 23d, 1826.
5
MARX, O Capital, Livro 1, vol. 2, cap. XXV, p. 883-894. Wakefield, com seu livro Letters from Sydney,
de 1829, teve seguidores no Brasil, os conservadores Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário
de Miranda Ribeiro; DEAN, Warren. “Latifundia and Land Policy in Nineteenth-Century Brasil”. The
Hispanic American Historical Review, 1972, vol. LII, n. 4, p. 613.
116 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
presença de 33.500 africanos entrados, nessa situação, no Brasil6.
Com a proibição do tráfico, os donos de terra, conforme já vinham fazendo em
pequena escala, arrendavam seus escravos urbanos, nos momentos de recessão da
produção açucareira, como viram viajantes estrangeiros nas primeiras décadas do
século XIX. Os negros-de-aluguel foram bastante utilizados em serviços urbanos e
domésticos, devido à elasticidade da plantation açucareira, uma vez que o açúcar
tinha de operar dentro da recessão econômica, durante a escravidão. O engenheiro
francês e também senhor de engenho Henri-August Milet (aportuguesado por ele
mesmo Henrique Augusto Milet), na década de 1870, notara esta capacidade.
Infelizmente, dados sobre a população escrava no Brasil para o período anterior a
1872 é pura estimativa. Em Pernambuco, a população escravizada correspondia a
23% do total da população geral, nos anos 1840, e 21% nos anos 1850, declinando,
então, para 12%, em 1872. Esta população teria decrescido ou foi mal contabilizada,
ente 1823 e 1840 (de 150 mil para 146 mil), pois em 1850 se apontava para 154 mil.
Estranhamente, para 1867, temos uma cifra de 250 mil, quando para 1872, aparece
o número de 89 mil, chegando a 41 mil em 18877.
TABELA 01
POPULAÇÃO ESCRAVA /NORDESTE AÇUCAREIRO (milhares)8
PROVÍNCIAS 1823 1840 1850 1867 1872 1880 1887
237 - - 280 168 165 129
Bahia
35% - - 19% 12% - -
40 - - 50 36 27 15
Alagoas
31% - - 17% 10% - -
150 146 154 250 89 92 41
Pernambuco
31% 23% 21% 25% 10% - -
20 - 29 40 22 26 20
Paraíba
16% - 16% 13% 6% 7% 4%
14 18 - 5 13 - -
R.G.do Norte
20% - - 2% 6% - -
20 - - 30 32 - -
Ceará
10%- - 5% 4% - -
6
BULHÕES, L. de. Meio circulante e Abolição dos escravos, 1883. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,
1883, p. 29; BURTON, Richard. Explorations of the Highlands of the Brazil. 2 Vols. Londres: s.r., 1869,
p. 5; EISENBERG, Peter L. “Abolishing Slavery: the process on Pernambuco’s sugar plantations”.
The Hispanic American Historical Review, 1972, vol. LII, n. 4, p. 580-597; GODINHO, Vitorino
Magalhães. A estrutura na antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, p. 36.
7
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961; MILET,
Henrique Augusto. A lavoura da cana de açúcar. 2. Ed. Recife: Massangana; FUNDAJ, 1989, p. 32.
8
Fontes: MARCÍLIO, Maria Luíza. “Évolution historique de la population brésilienne jusqu’en
1872”. In __________. La Population du Brésil. Paris. CICRED, 1975, p. 07-25; CONRAD. Robert.
The destruction of Brazilian Slavery: 1850-1888. Berkeley; Los Angeles: University of California
Press, 1972, p. 284 e 292; GALLIZA. Diana. O declínio da escravidão na Paraíba. João Pessoa:
UFPB, 1979; LEFF. Nathaniel H. & KLEIN. H.S. “O crescimento da população não-européia antes
do início do desenvolvimento: o Brasil no Século XIX”. Anais de História. Ano VI, 1974, p. 69;
MELLO, Jeronymo Martiniano Figueira de. Ensaio sobre a estatística civil e política da Província
de Pernambuco. Recife: s.r., 1852; EISENBERG, Peter. Modernização sem mudanças: a indústria
açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 170; GALLOWAY,
J. H. “The Last Years of Slavery on the Sugar Plantations of Northeastern Brazil”. The Hispanic
American Historical Review, vol. 51, n.4, 1971, p. 588.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 117
Pernambuco teria diminuído sua população escrava em 41%, mesmo antes de o
tráfico ter sido proibido. Trata-se, aqui, de uma grosseira estimativa, ou o nível de vida
útil do escravo era muito baixo. Em 1850, eles constituíam a população de 154.000,
o que representava somente 21% da população livre. Nestes dados devem ser
considerados os “emancipados” (escravos entrados no Brasil a partir da lei de 1831,
que deveriam ser livres), embora fossem poucos. Segundo a lei, o Governo Provincial
podia empregar tal força de trabalho, mas como a lei não se completou, eles não
foram libertados. Nem escravos, nem livres, tal era o status dos emancipados, um tipo
de trabalhador do Estado não assalariado. Em 1839, proibiu-se, em Pernambuco, o
emprego de trabalho escravizado em obras públicas. Só homens livres, assalariados
(“jornaleiros”) eram admitidos. Além destes, começara a surgir a prática a partir da
lei de 20de outubro de 1823, de os escravos pagarem certa quantia por semana
para trabalharem por sua conta. Talvez configurem estes os “fabris”, pois tinham que
entregar devida quantia ao seu senhor.
A despeito dos escravos entrados na região depois de 1850, muitos foram
vendidos para o Sul, devido tanto à baixa produtividade açucareira, como à
concorrência de Cuba e à lucratividade da plantation cafeeira. De 1840 a 1874,
o Rio de Janeiro comprou cerca de 77.000 escravos, e na década de 1850,
aproximadamente de 3.100 por ano. Pernambuco exportou 4.123 para o sul entre
1855-65. A população escrava, em Pernambuco, em 1874, era apenas de 12,4%
da população livre, enquanto que, em Alagoas, chegava a 10,3%, caindo, na
Paraíba, para 7,0% e, mais ainda, no Rio Grande do Norte, para 5,5%9.
Donos de terra passaram a substituir, parcialmente, a força de trabalho escrava
por moradores e diaristas assalariados nas safras, porque manter um grande número
de escravos se tornava muito caro. Engenhos e propriedades reduziram sua mão-
de-obra escravizada em cerca de 40 homens, sendo 30 para trabalho no campo e
10 para serviços domésticos e técnicos também, supomos. Alguns plantadores, na
década de 1840, ousaram manter um exército de 150 escravos, em Pernambuco.
O viajante inglês MacGregor estimou haver 6 escravos por engenho em Alagoas,
mas, provavelmente, a referência seria de homens trabalhando na parte industrial
dos engenhos e não nas tarefas agrícolas. Em Pernambuco, por exemplo, a atividade
açucareira dependeu da força trabalho escrava até poucos anos antes de 1850, como
relatou o Presidente da Província. Por volta de 1854, ele acrescentava que se estava
produzindo muito mais com a força de trabalho livre, apesar de haver 10.471 escravos
e somente 3.037 trabalhadores livres nas 532 propriedades e engenhos. Enquanto
que apontava uma média de 19 escravos por engenho, enquanto os trabalhadores
livres, em geral, eram aqueles que trabalhavam no setor industrial10.
Os escravos também foram colocados no mercado de trabalho livre urbano. Em
1856, a população de Recife era de 10.382 escravizados e de 44.371 pessoas livres,
(destas, cerca de 25.000 era do sexo masculino)11. O Presidente de Pernambuco
9
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
MEC, 1975, p.78 e 350.
10
MacGREGOR, John. Commercial statistics. Vol. IV. Londres: Whitaker and Co., 1848, p. 180;
RELATÓRIO do Presidente da Província, apud DIÉGUES JR., Manoel. O Escravo no Tempo de
Joaquim Nabuco. Revista do Arquivo Público, Recife, anos V e VI, n. VII/ VIII, 1950/ 1951), p. 49 e
nota 9.
11
MELO, Ferrovias inglesas..., p. 64.
118 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
relatava que, em 1852, seria necessário lançar uma taxa sobre escravos que
trabalhavam como artesãos e técnicos (“mecânicos”) para que eles não competissem
com homens livres e retornassem para as atividades da agricultura. As capitais das
províncias viraram cidades negras12. Provavelmente, os salários pagos anteriormente
aos trabalhadores da Companhia de operários alemães teriam influenciado nestas
perspectivas, que seriam duplicadas com a construção e operação da primeira ferrovia
inglesa no Nordeste.
No entanto, surtos de febre amarela e cólera na década de 1850 e começo da de
1860 diminuíram a população escravizada, causando aumento do seu valor. O que,
de fato, aconteceu é que esta população, em Pernambuco, decresceu de estimados
145.000 (1855) para 88.560 (1872), uma média de 3.323 escravos por ano. Acredita-
se, também, que 37.408 escravos deixaram o Nordeste entre 1850 e 1863, cerca de
2.877 por ano. Pernambuco tinha vendido 4.123 no período 1855/ 64, chegando ao
pico em 1861/ 64, numa média de 1.025 escravos. O Rio importou cerca de 30.407
escravos do Norte e apenas 3.303 do Sul, na década de 1852-186113.
Pernambuco representava somente 11% de todos os escravos vendidos para
a plantation cafeeira, o que significava que a agroindústria açucareira podia reter
a grande parte de sua força de trabalho. De acordo com Eisenberg, o comércio
interprovincial de escravo teria sido responsável por 3.900 escravos vendidos entre
1852/3 e 1864/5. Os preços, em média, caíram nos anos 1860 para £890, quando
tinham alcançado £1,410 no fim dos anos 1850; na década de 1870, baixaram para
£790 e, provavelmente, decresceram em mais £ 40. Isto evidencia o decréscimo
apontado por Eisenberg, de que em 1872 de que os trabalhadores livres eram em
maior número que os escravos, numa proporção de quatro livres para um escravizaso14.
Toplin diz que, por volta de 1875/1880, cerca de 2/3 da força de trabalho na
agroindústria açucareira eram de escravos. Ainda de acordo com o censo de 1872, em
Pernambuco, 57% da população escravizada trabalhava na agricultura; dos restantes
43%, 18,5% estavam empregados em serviços domésticos, 4,5% como artesãos e
19% “sem profissão”. Não obstante, tais números, por exemplo, em Pernambuco,
podem representar a baixa distribuição de escravos por engenho. Eisenberg calcula
1.446 engenhos para a década de 1870, enquanto o número de escravos na
agricultura era de 52.634, o que significa 33 por unidade produtiva15.
12
RAILWAY Times. Londres, 18 out. 1856, p.1232-1233; Arquivo Público Jordão Emerenciano (APEJE).
Relatório que à Assembléia Legislativa Provincial de Pernambuco apresentou (...) o Exmo. Sr. e
Conselheiro Dr. José Bento da Cunha Figueiredo, Presidente da Província. Recife, 1856; MacGREGOR,
Commercial statistics..., p. 192-193.
13
CONRAD, Os últimos anos..., p. 350.
14
APEJE. Mesa do Consulado de Pernambuco, 2 abr. 1855; Tesouraria da Província, 58, 1860. Nota dos
Escravos Exportados (...) Seccão da Contadoria Provincial de Pernambuco, 28 fev. 1866; EISENBERG,
Modernização..., p. 170-178 e 201; EISENBERG, Abolishing Slavery..., p. 594-595; GALLOWAY, The
Last Years..., p. 590. Carvalho vê este crescimento mesmo nos anos 1840, e dá como exemplo um
latifundiário que tinha 200 famílias em suas terras. CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e
rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002, p. 144.
15
BPP 1875 LXXV. Report by Consul Lennon-Hunt on the Trade and Commerce of Rio de Janeiro for
the year 1873, p. 303-321; TOPLIN, Robert Brent. The Abolition of Slavery in Brazil. New York:
Atheneum, 1972, p. 708; EISENBERG, Modernização…, p. 260-265; MELO, Ferrovias inglesas..., p.
52.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 119
Moradores de ‘condição’: um exército rural de reserva
120 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
para o trabalho rural que pudessem parar o que eles denominavam de vadiagem.
Pediam por direitos e deveres não somente para colonos, mas para proprietários,
e até mesmo para a manutenção da ordem, como dizia o juiz Joaquim Nunes da
Cunha Machado:
Com respeito à locação de contrato de serviços, arranjos
de emprego não têm sido como deveriam, constantemente
sendo desfeito, (o contrato) que deverá obrigar vagabundos
para trabalhar e punir enganadores que andam pelo país,
mas estão faltando para a agricultura19.
Percebe-se, pois, como os discursos econômicos e jurídicos se associavam para o
controle da força de trabalho e da manutenção da escravização. De fato, em termos
de força de trabalho, os proprietários de terra desejavam um suprimento fixo de força
de braços para as safras, como os moradores. Por outro lado, os trabalhadores não
estavam acostumados às regras do incipiente mercado de trabalho livre, pelo fato
de que era mais fácil conseguir alimentos pescando e caçando, bem como colhendo
frutos nas matas e outros produtos naturais. O Ministro da Agricultura relatara que
“[...] a força de trabalho livre não estava acostumada a trabalhar constantemente: eles
satisfaziam a sua imediata necessidade com o produto de um ou dois dias de salários
e gastavam a maior parte de seu tempo caçando e pescando”20. Milet criticava o
discurso dos latifundiários no Congresso Agrícola no tocante a obrigar o povo livre a
trabalhar, mas lamentava o fim da lei do recrutamento militar, com o qual se corrigiam
os “vadios”.
A força de trabalho livre21 disponível, em Pernambuco, era estimada em 10.000
homens na colheita de 1856. É também importante verificar os 9.000 homens que
a Província enviara para a Guerra contra o Paraguai. Na Paraíba, Galloway estimou
que havia mais homens livres nos campos e engenhos do que escravos, numa média
de 13 moradores para cada 10 escravos, em 37 propriedades e engenhos. A mão de
obra livre e ou alforriada podia viver da pesca também na Paraíba onde, em 1854,
existiam mais de 80 embarcações, envolvendo diretamente cerca de 200 pessoas22.
Se tomarmos a história de um trabalhador negro, livre, como modelo de análise
desta transição poderíamos ver como o capitalismo estava minando o mercado
escravo. É o que se constata a partit da leitura de Cem anos de suor e sangue (1971),
a vida do maquinista afrodescendente Manoel do Ó23.
19
APEJE. Relatórios de Juiz de Direito (JD) 22. Ofício do Juiz Joaquim Nunes da Cunha Machado ao
Presidente de Pernambuco, 10 de agosto de 1858.
20
INFORMAÇÕES sobre o Estado da Lavoura. Rio de Janeiro, 1874, p. XVII.
21
Sobre o pensamento de Milet, ver: PERRUCI, Gadiel. “O Canto de Cisne dos Barões do Açúcar.
(Introdução)”. In: Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife, outubro de 1878. Edição fac-similar.
Recife: Fundação Estadual de Planejamento Agrícola de Pernambuco/ CEPA-PE, 1978, p. XXXII.
22
EISENBERG, Abolishing Slavery..., p. 549; GALLOWAY, The Last Years..., p. 9; ROCHA, Solange
Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São
Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 102.
23
DO Ó, Manoel. Cem anos de suor e sangue: homens e jornadas da luta operária do Nordeste.
Petrópolis: Vozes, 1971.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 121
Trabalho livre e assalariado
A situação verificada em Pernambuco antes da instalação da ferrovia Recife-São
Francisco apresentava flagrantes contradições com respeito à unicidade da manutenção
do trabalho escravizado. Ainda fazia eco na capital a falência da Companhia de
Operários, contratada na Alemanha, para obras urbanas, na década de 1830, já que,
pela lei de 1831, o Estado proibia o trabalho dos 'emancipados'. Obedecendo a Lei
de 1837, que estabelecia padrão para contratar trabalhador estrangeiro, a Presidência
de Pernambuco mandou buscar, na Europa, 200 alemães para as Obras Públicas.
As reformas urbanas levadas a efeito pelo Presidente de Pernambuco, Francisco do
Rego Barros (depois Barão da Boa Vista) (c.1840), com uma equipe de engenheiros
franceses, também usou mão-de-obra livre. Os ''operários' (há que se discutir o
impacto deste termo – discurso – frente ao universo do trabalho escravo e da mão-
de-obra livre flutuante) recusaram a remuneração proposta, abandonaram o contrato
e 45% se empregaram em Recife. Este foi um dos primeiros conflitos por salário
dentro da economia escrava. As profissões ainda eram artesanais: pedreiro, cavador,
carpinteiro, marceneiro e ferreiro. Além disto, há que se contar com mão-de-obra
livre advinda da extinta Colônia Santa Amélia, criada em 1829, inutilmente, para
acabar com os quilombos do Catucá. Dissolvida, por volta de 1835, a companhia
deixou reflexo na melhoria da mão de obra, como se revela na construção da casa de
detenção, entre 1850 e 1855, que usou cerca de 100 operários24.
A ferrovia Recife-São Francisco e o assalariamento do trabalho
A implantação de uma ferrovia em pleno canavial (e cidade do Recife) escravista
é consequência da expansão de bens de capitais da Inglaterra, associada a uma crise
ou depressão ferroviária, sendo representadas ambas as partes pela presença de uma
família de engenheiros ingleses no Brasil. Os De Mornay trabalharam nos estudos da
primeira ferrovia planejada para São Paulo (o pai, Aristides F. Mornay) e os filhos se
radicaram entre Recife e Maceió (e Penedo), inicialmente atuando em Obras Públicas e
projetando máquinas para a agricultura canavieira e, só posteriormente, se dedicaram
ao projeto de uma ferrovia (1852/54), cujo capital foi levantado em Londres. As obras
começaram em 1854 e o primeiro trecho até a vila do Cabo foi aberto em 1858. De
pronto, precisava-se de mão-de-obra qualificada e de trabalhadores braçais.
Na demanda por trabalhadores livres para a ferrovia, Freyre relata que o
engenheiro John Bayliss oferecia 10 contos a quem lhe fornecesse 2.000 operários;
sendo 200 mecânicos (entre 2 mil réis e 4 mil réis por dia) e trabalhadores braçais (a
1.260 réis por dia). O Recife vivia contradições flagrantes no uso da mão de obra,
mesmo antes da ferrovia. As duas fundições, a de Bowman e a de Starr, empregavam
trabalhadores livres e escravizados, além de terem vários técnicos e operários
contratados na Inglaterra por 3 anos como ferreiros. Star tinha, em 1848, 28 escravos
na fundição. De uma delas, afirma Freyre, fugira para a Paraíba um operário Thomas
Spink, que trabalhava na Starr, por volta de 1830. Estas fundições, assim como a
fábrica têxtil de Gervásio Pires, fechada em 1826, admitiam tanto trabalhadores livres
como escravizados25.
24
GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Brasiliense, 1986,
p. 77 a 83; MELO, Ferrovias Inglesas..., passim.
25
FREYRE, Ingleses no Brasil, p. 104 e 102; CARVALHO, Liberdade..., p. 60.
122 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
No intuito de providenciar força livre de trabalho para as ferrovias, o Estado, com a
lei ferroviária de 1852, teve de fazer arranjos jurídicos, para, ao mesmo tempo, manter
a tradicional relação de produção escravista, no âmbito da agricultura. Isto nos levou
a refutar algumas teses que apontam a lei de 1871, a Rio Branco, ou o Contrato de
Trabalho de 1879, como pontos de partida para o mercado livre de trabalho. Esta
instância, antes de 1852, conformava-se de profissões artesanais e manufatureiras
exercidas pelos escravos e negros de ganho, destacando-se a profissão de “mecânico”.
Num levantamento que realizamos a partir de Freyre26, enfocando 203 trabalhadores
escravizados que tentaram a liberdade (e que Freyre, como sujeito discursivo, assume
o termo ‘fujão’, enunciado constante do Diário de Pernambuco e dos proprietários),
verificamos que suas profissões eram artesanais, ou quando muito, propiciavam
aquilo que Marx chamaria de work (trabalho social não produtivo): alfaiate, areeiro,
barbeiro, canoeiro, carregador, carreiro, cozinheiro, doméstica (45 dentre eles/as)
trabalhador de engenho (11 dentre eles/as), trabalhador em estaleiro, lavrador,
músico, padeiro, pedreiro, pescador, sapateiro, serrador e vendedor. Esta seria a
realidade que a companhia inglesa The Recife-São Francisco Railway encontrou
quando, atraída pelos 7% de juros pelo risco de capital, se instalou em Pernambuco:
uma sociedade escravista, mas com grande número de homens livres, mão-de-obra não
especializada para o trabalho industrial ou para atividades similares como construção,
operação e manutenção de uma ferrovia. O que a RSF estava impedida de fazer é o
que fizera a St. John D’El Rey Mining Company na primeira metade do século XIX,
embora contrariando decisões abolicionistas inglesas. A empresa chegava a publicar em
jornais anúncios dos tipos de escravos de 1ª ou de 2ª classe, e isto por volta de 185827.
A importância da cláusula 9ª também pode ser observada no exército de cerca
2.000 trabalhadores não especializados (aproximadamente 0,5% da população livre
provincial) e 200 especializados britânicos, no início das obras da RSF, em 1854. Surtos
de febre amarela e cólera, naquela década, vitimaram os trabalhadores estrangeiros
especializados e parte da força de trabalho local.
Para se ter uma ideia desta mão-de-obra livre de moradores rurais ou urbanos, de
então, cartografamos certo contingente na RSF, no trecho do município de Escada.
Entre os 187 trabalhadores locais em 1863, estavam assim distribuídos: quanto à
etnia, havia 146 mestiços (78%), 26 brancos (14%), 15 negros (8%). Quanto à idade
95 deles estavam entre 15/25 anos (50%), 60 (32%) entre 26/35 anos, e acima de 36
anos 32 (18%). Referente à profissão, sob a rubrica genérica de trabalhadores, havia
150 homens, o que representava 80,2%; trabalhadores mestres (sic!) 21 (11,3%),
carpinteiros, 4 (2,1%), oleiros, 4 (2,1%) , funcionários, 8 (4,3%)28.
Concomitante à abertura da ferrovia, em 1858, a Presidência de Pernambuco
contratou, na Bélgica, 53 trabalhadores para a repartição de Obras Públicas, enquanto
26
FREYRE, Gilberto. O Escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, apud MELO,
Josemir Camilo de. “Trabalhadores negros urbanos escravizados em busca da liberdade: de “fujões”
a guerrilheiros”. Cadernos Nordeste em Debate, DHG/UFPB, Campina Grande, 1996, p. 23-36.
27
MELO, Ferrovias inglesas…, passim; LIBBY, Douglas Cole. Trabalho escravo e capital estrangeiro no
Brasil: o caso de Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984, p. 96- 97.
28
APEJE. Coleção Estradas de Ferrro (EF) 5, Mappa dos Trabalhadores da Linha Férrea de Cinco Pontas-
Escada; EF 6, Mappa dos Trabalhadores de Escada a Una, March 28, 1863; EF 8, Lista Supplementar
Demonstrativa dos Salários, Jornais e mais despesas mensais relativos ao serviço de tração do mês de
julho, 1864.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 123
a Recife-São Francisco contratou alemães, holandeses e italianos. Por sua vez, a Bahia-
São Francisco Railway (BSF) admitiu 1.000 operários na Europa e, até 1859, só 500
haviam chegado. As fontes são contraditórias, pois Benévolo mostra outra cifra, para
aquele mesmo ano, de 1886 ‘obreiros’. Ao todo, então, havia, lá, 446 italianos e 107
ingleses. Já a RSF se utilizou de alemães e belgas. Já em 1864, Pernambuco planejou
introduzir cerca de 2.700 trabalhadores estrangeiros, através de uma companhia
organizada por um conde polonês. Esta companhia não atraiu mais que 3% do
planejado29.
As ferrovias, com este exército de homens qualificados, os emigrantes, criaram uma
situação trabalhista vexatória para o Estado imperial, pois o que fazer com tal massa
de trabalhadores assalariados quando a ferrovia estivesse implantada e funcionando,
para se precisaria de apenas 10% daquela mão de obra? Tanto assim que o diretor da
BSF solicitava garantias ao Presidente da Bahia para garantir trabalho aos cerca de
3000 trabalhadores que seriam despejados, ao final da construção30.
Para se vislumbrar o impacto que as ferrovias tiveram dentro de uma sociedade
e mercado escravagistas, entre 1850 e o fim da escravidão, basta lembrar que foram
implantadas em Pernambuco 5 ferrovias (as particulares e inglesas RSF, GWBR, e a
particular local, EF Ribeirão-Bonito; as estatais EF Sul de Pernambuco e EF Caruaru).
Além disto, registre-se que houve 3 linhas de bondes: a inglesa The Brazilian Street
Company, a Trilhos Urbanos Olinda-Recife, a linha de bondes sobre trilhos puxados
a cavalo, e a Ferro-Carril de Pernambuco. Pode-se, até, admitir neste cenário a
Empresa Locomotora, de carroças para transporte de gêneros. A RSF, como amostra
deste impacto, em 1856, empregava 1.886 homens e, um ano depois, apenas 500.
Para onde teria ido esta massa de mais de 1.300 trabalhadores livres? A própria
The Great Western, por volta de 1880, usou 1.300 trabalhadores. A Ferro-Carril de
Pernambuco, uma empresa de bondes em trilhos puxados por animal, empregava 72
estrangeiros dos seus 176 homens, em 1873. É possível que, aproximadamente, 2.000
trabalhadores livres tivessem sido empregados nas linhas de trilhos, alternadamente,
ao longo de 1870 e 1880, no que diz respeito a Pernambuco. Este tipo de relação
de produção se expandiu para outras províncias. Uma ferrovia um tanto deslocada
de um mercado então dinâmico, como o de Recife, a inglesa Natal-Nova Cruz tinha,
em 1880, cerca de 1.000 trabalhadores em obras. Foi o processo de construção e
operação ferroviárias que iniciou, de fato, o mercado de trabalho livre e assalariado31.
Trabalho, protestos e greves numa sociedade escravista
Junto com o impacto econômico que as ferrovias causaram, há que se notar o efeito
político e o social, pois surgiram protestos e greves por salários em plena vigência das
relações escravistas. Isto fica claro desde as duas primeiras greves “ferroviárias” que
ocorreram no Brasil, na Recife-São Francisco, conduzidas por trabalhadores belgas e
29
MELO, Ferrovias inglesas..., passim; BENÉVOLO, Ademar. Introdução à história ferroviária do Brasil.
Recife: Edições Folha da Manhã, 1953, p. 310-311; Segundo Richard Burton a BSF, entre 1858 e
1866, teria empregado de 3.000 a 4.000 trabalhadores. BURTON, Explorations of the Highlands..., p.
360, nota 10.
30
BENÉVOLO, Introdução..., p. 310-311.
31
A moeda inglesa até 1971era dividida em libra (pound - £), shillings – sh, e penny (plural: pence)
representado em português pela letra d (denarius) para pence. CUNHA GALVÃO, 1969, p. 219-220,
apud MELO, Ferrovias inglesas..., p. 219-220.
124 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
ingleses. A primeira greve ocorreu em 1858, quando os belgas reclamaram que seus
salários estavam sendo menos do que o acertado. Tidos como bons trabalhadores,
na Europa, Thomas Brassey os empregava por causa de sua frugalidade e dedicação,
mas principalmente, devido à sua força de trabalho que era muito barata. Em 1854,
Brassey pagava seus homens a 7 shillings, 6d (pence) (3$420 rs) ao dia, enquanto
pagava 6 shillings e 5d (2$926 rs), por dia a belgas não especializados. A força de
trabalho brasileira não especializada, na RSF, custaria cerca 1 shilling e 3 pence
(0$570 rs) por dia32.
Os belgas foram contratados, num grupo de 238 europeus, em 1858, para
substituir os trabalhadores britânicos vítimas da cólera. Eram tidos na Inglaterra como
"trabalhadores modelos". Marx, pelo contrário, os via como conservadores nas lutas
sindicais, já que não tinham tomado parte na luta do movimento pelas 10 horas de
trabalho. No entanto, mesmo para Marx, tal ponto de vista foi dissipado pela greve
dos mineiros belgas em 1868 33.
Os belgas recusaram a diária entre 1$280 rs e 1$500 rs, 30% menos que os salários
da força de trabalho especializada, por 6 dias na semana, cerca de 10 horas por dia,
mesmo sob chuvas. Não aceitavam qualquer diária abaixo de 2$000 rs. A RSF ofereceu
8 shillings e 1 penny (3$686 rs) a mais por quinzena, o que significava mais 16,5%,
embora mantivesse o salário abaixo de 54 pence (2$052 rs). O câmbio estava a 27
pence por 1$000 rs. A Companhia rejeitou a petição deles por um aumento entre
54 pence (2$052 rs) e 81 pence (3$078 rs), porque, dizia a RSF, isto era exigência
de trabalhadores especializados. Um comitê de 30 homens foi ao Consul belga,
um brasileiro que era acionista da RSF, solicitando sua intervenção com respeito à
detenção dos seis líderes e requerendo revisão sobre o contrato de trabalho. O Cônsul
se posicionou a favor da Companhia, não concordando com as reivindicações, e
chamou a polícia para mandá-los de volta para o trabalho, escrevendo ao contratador
da RSF para liberar os presos. O contratador afirmava que: "era mais fácil eles irem
para a prisão do que trabalhar por menos que 2 shillings 7 pence (1$178 rs) ao dia".
Fugiram 14 deles; uns se tornaram bêbados e pedintes, enquanto outros obtinham
empregos a 81 pence (3$078 rs) ao dia, em engenhos nas províncias vizinhas34. Estes
trabalhadores não especializados foram substituídos por mão-de-obra local.
A segunda greve (‘strike’) ocorreu na linha da RSF, em 1862, quando um maquinista
matou uma mulher nos trilhos e foi imediatamente preso. Seis maquinistas ingleses
e oito foguistas (sendo sete brasileiros) se recusaram a dirigir os trens a menos que o
companheiro fosse solto. Além disto, 17 outros trabalhadores especializados britânicos
pediram o direito de serem ouvidos por uma corte britânica. O impasse resultou numa
semana de negociações. Juntaram ao protesto reclamações contra baixos salários
e péssimas condições de trabalho. A RSF os ameaçou com prisão e demissão, mas
todos os trabalhadores da linha desafiaram a companhia, com a ameaça de fechar o
32
COLEMAN, Terry. The Railway Navvies. Londres: Penguin, 1968, p.205, 212 e 214.
33
MARX, O Capital, Livro 1, Vol. 2, p. 697, p. 779-780; p. 341, nota 190.
34
MELLO, José Antônio Gonsalves de. “Trabalhadores Belgas em Pernambuco (1859/1863)”.
Boletim do Instituto Joaquim de Pesquisas Sociais, Recife, n. 8, 1959, p. 14, 15 e 16,17-18; EF
3. Dispatch by the Belgian Consul to Mr. Bayliss, January 25, 1859; Dispatch by R. Saunders to Mr.
Bayliss, February ll, 1859; APJE. EF 2. Dispatch by R. Saunders to Mr. Bayliss, January 25, 1859; EF 3.
Dispatch by Mr. Bayliss to President of Pernambuco, January 28, 1859; Dispatch by Mr. Bayliss to the
Belgian Consul, Luis A. Sequeira (sem data).
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 125
serviço. Além do mais, a companhia não poderia demitir todos os maquinistas, já que
não haveria outros para substituição. O maquinista foi libertado e os trens voltaram
a correr. O Ministro de Agricultura se referiu a ela como: "Este affair, que não era o
primeiro a acontecer em nossas ferrovias, merece sérias considerações" 35. De fato, dois
meses mais tarde, o Governo lançou um decreto estabelecendo prisão e multa que
variavam entre 15 dias a dois anos. Além do mais, a Companhia inglesa reconheceu
aquele movimento como uma greve, “a strike”36.
Outro conflito entre capital e salário ocorreu no trecho da EF Prolongamento
(da RSF) estrada construída pelo Estado e que passou a ser oficialmente EF Sul de
Pernambuco, que ia de Palmares a Garanhuns. Por volta de 1879, os trabalhadores
braçais reclamaram sobre erros nos seus salários, e interromperam a construção
ferroviária. Este empreendimento estatal usava também como mão-de-obra o povo
‘flagelado’ pela seca, empregando-o para abrir a linha e rodagens vicinais. O protesto
foi rechaçado pela polícia, que feriu vários trabalhadores, prendendo quatro deles. Um
deles foi levado à força para a cidade, debaixo de pancadarias, tanto que o engenheiro
relatou para as autoridades que aquele homem nunca se reabilitaria para o trabalho,
além do que teve sua cabana incendiada. De fato, os trabalhadores estavam certos e
o contratador os reembolsou, mas os demitiu em seguida37.
Considerações Finais
Usar o trabalho dos moradores parecia ser um caminho econômico para os donos
de terra, a fim de compensar a desvalorização do açúcar no mercado internacional.
Nenhum capital era aplicado em tal força de trabalho, nem havia direito à terra,
embora fosse permitido dispor de roçados, uma vez que eles transformavam áreas
incultas, como florestas ou capoeiras, em terras aráveis. O que significava que
eles acrescentavam valor à terra incrementando a fertilidade, sem qualquer novo
adiantamento em instrumentos de trabalho: “[...] uma imediata fonte de maior
acumulação, sem a intervenção de qualquer novo capital”38.
Embora seja uma forma pré-capitalista de produção, onde a geração de trabalho
excedente não tem limites, tal força de trabalho quando aplicada à produção açucareira
35
EF 5. Ofício do engenheiro fiscal, Manoel Buarque de Macedo ao Presidente de Pernambuco, Fevereiro
de 1862; Dispatch by the RSF Engineer Mr. Withfield to the Fiscal-Engineer, Fevereiro 2 1862; Ofício do
engenheiro fiscal a Mr, Bramah, the RSF Superintendent, 4 de fevereiro de 1862; Ofício do engenheiro
fiscal ao Presidente de Pernambuco, 6 de setembro, 1862; Reply by Mr. Bramah to the Fiscal-Engineer,
Fevereiro 6, 1862; Relatórios do Ministério da Agricultura, RMA 1862, p.39; EF 6. Dispatch by R.
Austin, for the RSF Superintendent, to President of Pernambuco, September 5, 1862.
36
EF 5. Ofício do engenheiro fiscal, Manoel Buarque de Macedo ao Presidente de Pernambuco, Fevereiro
de 1862; Dispatch by the RSF Engineer Mr. Withfield to the Fiscal-Engineer, Fevereiro 2 1862; ofício do
engenheiro fiscal a Mr, Bramah, the RSF Superintendent, 4 de fevereiro de 1862; ofício do engenheiro
fiscal ao Presidente de Pernambuco, 6 de setembro, 1862; Reply by Mr. Bramah to the Fiscal-Engineer,
Fevereiro 6, 1862; Relatórios do Ministério da Agricultura, RMA 1862, p.39; EF 6. Dispatch by R.
Austin, for the RSF Superintendent, to President of Pernambuco, September 5, 1862. The Railway
Times, April 19, 1862, p. 538 a 540.
37
EF 18. Ofício de H.E. Weaver, Chefe da Segunda Secção da EF Sul de Pernambuco (então chamada
EF Prolongamento da RSF), ao engenheiro Adriano Eugênio da Cunha e Mello, 23 de janeiro de 1879;
Idem, Ofício de H.E. Weaver ao engenheiro residente, 4 de janeiro de 1879; Ofício do engenheiro
residente a H.E. Weaver, 5 de janeiro de 1879.
38
MARX, O Capital, p. 701.
126 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
gerava mais-valia relativa, pois o fazer açúcar era uma função social, diferente das
atividades rurais onde havia somente trabalho excedente. Como produtores de
mercadorias, isto é, adicionando valor ao produto, sejam trabalhadores assalariados
ou escravos, estavam participando do modo capitalista de produção, já que o açúcar
envolvia todas as atividades e combinava todas as relações dentro da sociedade
escravocrata, no Nordeste. De acordo com Marx, não interessa se o trabalho produtivo
seja feito em uma antiga padaria ou em modernas fábricas de algodão. Neste caso, os
escravos que trabalhavam na agroindústria açucareira produziam mais-valia e, neste
caso, absoluta39.
Na produção açucareira, então, moradores geravam apenas trabalho excedente,
enquanto o trabalho escravizado aplicado em tarefas industriais no engenho produzia
mais-valia, tomando-se seus preços como fator distintivo entre ambas as categorias.
O capitalista industrial aplicava capital para renovar sua maquinaria, enquanto donos
de terra compravam escravos. Os limites do mercado de suprimento de trabalho
levavam a força de trabalho escrava a produzir mais-valia. Comparada com a força
de trabalho dos moradores, onde nenhum capital fora necessitado anteriormente, a
não ser o acesso à terra, a mão-de-obra escrava se tornou mais cara, especialmente
depois de 1850. Vendendo escravos para o sul e os substituindo por moradores,
os latifundiários fizeram uma grande economia. Devido à força de trabalho livre de
moradores, os escravos se tornaram mais caros para os produtores, considerando
a diária em cerca de 27d (pence) pouco mais de 1$000 rs, (a 26 pence ao par),
em 1870, segundo Milet, ou 18$240 rs por mês (equivalente a 40 shillings e 5 (d)
pence). Sobre preços do trabalho escravizado, os Relatórios dos Cônsules ingleses são
bastante esclarecedores, quando mostram a tendência pelos já nascidos no Brasil, os
crioulos. Em Pernambuco, por volta de 1860, o trabalhador africano escravizado valia
1:718 (um conto, setecentos e dezoito mil réis) enquanto um 'crioulo' valia 1:872 (um
conto, oitocentos e setenta e dois mil réis) 40.
Ao se comparar o valor da força de trabalho escravo por 8 anos de vida econômica,
ela deveria custar cerca de £ 23 (cerca de 215$000 rs, a 26p) por ano ao proprietário
do escravo. É possível que depois do fim do comércio transatlântico de escravos, sua
taxa de vida útil tenha se prolongado para economizar força de trabalho. A esta soma
devemos adicionar a manutenção, e qualquer que seja o custo de vida, a força de
trabalho escravo será mais cara do que a assalariada, principalmente se os donos de
terra usavam pagá-la com produtos ou permitindo o uso da terra pelos moradores.
Além do mais, o preço do trabalho escravo cresceu cerca de 145% entre 1840 e 1860,
(a média de 1840, estimada por MacGregor foi de £ 65 por escravo), enquanto o
salário nominal fora reduzido de 1.200 réis em média. No começo dos anos 1860,
em Pernambuco a mão-de-obra escravizada custavam mais (£ 172, ou cerca de
1:651$000 réis, a 25p) que no Rio de Janeiro, onde podia ser comprada por £ 156
(algo em torno de 1:498$000 réis). Dez anos antes, os preços tinham sido muito mais
baixos e alguns escravos tinham sido vendidos por somente £ 132 (1:109$000 rs, a
28p) no Rio de Janeiro. Taxas em cerca de 3% ad valorem levaram Pernambuco a
baixar seus preços para £ 102 (980$000 rs) em meados de 186041.
39
MARX, O Capital, Vol. 2, p.354.
40
MARX, O Capital, Parte Quinta; MILET, A lavoura da cana…, p. 36; MELO, ferrovias inglesas..., p. 57.
41
MARX, O Capital, p. 300-302; MacGREGOR, Commercial statistics..., p. 182; SOARES, Sebastião
Ferreira. Histórico da Companhia Industrial da Estrada de Mangaratiba e analyse crítica e econômica
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 127
A força de trabalho livre era a mais barata para a plantation açucareira, já que ela
era empregada somente por seis meses de safra e, no caso de moradores, estes eram
capazes de providenciar seu próprio suprimento de alimento. Investir em escravos
significava imobilizar grande soma de dinheiro e assegurar a sua manutenção em
termos de alimento e roupa. Gomes Percheiro estimava a manutenção de um escravo
em cerca de £ 435 pelos 20 anos de vida econômica ativa, enquanto o trabalho livre
custaria cerca de £ 1.500 pelo mesmo período. Tentava mostrar o ponto de vista
conservador de alguns donos de terra, mas sua cotação parece estar errada, porque
não leva em conta o trabalho sazonal, a circulação da mão-de-obra e a própria queda
do salário real. Alternativamente, o autor deve estar se referindo à produção de café
no sul42.
Já Reis estimava a manutenção de um escravo em aproximadamente 55 mil-
réis (£ 6) por ano, enquanto um trabalhador assalariado custaria 144 mil réis por
safra. O autor, porém, não inclui o investimento original no custo de escravo e sua
manutenção, enquanto Gomes Percheiro atribui 192 mil-réis (£ 22). De fato, se o
trabalhador escravizado tinha sido comprado por £ 115 para trabalhar no campo, seria
mais barato ensinar-lhe tarefas industriais do engenho para substituir o trabalhador
assalariado, uma vez que o último custaria aproximadamente £ 1.620 por 20 anos.
Mesmo incluindo a manutenção, o escravo empregado em tarefas industriais custaria
somente um terço do valor do trabalhador assalariado. Reis assegura, deste modo,
que a força de trabalho livre era mais lucrativa para o senhor de engenho, quando os
salários eram menos que 800 réis (cerca 22d) diários. Além deste limite, o trabalho
escravo era mais lucrativo43.
Neste caso, o trabalho excedente extraído dos escravos em atividade industrial,
como produzir açúcar para o mercado internacional, se tornava mais-valia, já que
o produto era mercadoria. Marx faz distinção entre trabalho que produz valor de
uso (“work” - trabalho), para auto consumo, por exemplo, e aquele que adiciona
valor para mercadorias (“labour”). Portanto, o trabalho escravo quando aplicado
para produzir valor de uso e para o imediato consumo local, obedece ao antigo e
patriarcal modo de produção - trabalho escravo não produtivo. Esta não é a situação
da plantation canavieira nordestina, em que o trabalho escravo foi mudado para
trabalho produtivo, originando a mais-valia:
[...] quando povos cuja produção ainda se encontra nos
estágios inferiores da escravidão, da corvéia etc., são atirados
no redemoinho de um mercado internacional de trabalho
dominado pelo modo de produção capitalista, tornando-
se a venda de seus produtos para exportação seu principal
dos negócios desta companhia. Rio de Janeiro: s.r., 1861, p. 69; BPP 1862 LXX. Report by Consul
Cowper on the Trade and Commerce of Pernambuco, for the year 1861, p. 57/8; BPP 1862 LXX.
Report by Consul Westwood to Lord J. Russel. Rio de Janeiro, 2 jan. 1861, p. 63; Livro de Compra e
Venda de Escravos, 1864. Revista do Arquivo Público, Recife, ano II, n. III, 1947, p. 158-171.
42
PERCHEIRO, D. A. Gomes. Portugal e Brasil, emigração e colonização. Lisboa: s.r., 1878, p. 50.
43
REIS, James. From Bangüê to Usina: social aspects of growth and modernization in the Sugar
Industry of Pernambuco, Brasil, 1850-1920. In: DUNCAN, Kenneth et allii, Land and labour in
Latin. America. Cambridge : Cambridge University Press, 1977, p. 386-387; REIS apud COSTA,
Emília Viotti da. Da senzala a colônia. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1982, p. XLVIII, nota
12; PERCHEIRO Portugal e Brasil..., p. 50.
128 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
interesse [...] 44.
Marx adota, como paradigma, o trabalho escravo (‘the negro labour’) nas
plantations algodoeiras nos Estados Unidos. Assim, no trabalho escravo, no particular
caso da indústria açucareira no Nordeste, produzia-se mais-valia e não meramente
trabalho excedente. Se o Estado não tivesse proibido o uso de escravos em obras
ferroviárias, poderia ter provocado uma evasão desta força de trabalho dos engenhos
para as companhias ferroviárias, prejudicando enormemente os latifundiários. Além
disto, outra forma de manter o poder econômico dos latifundiários era manter o povo
livre fora da propriedade da terra. Em outros termos, significava ter disponível a mais
barata força de trabalho para o pique da colheita, sem precisar adquirir mais trabalho
escravo, consequentemente mais caro. Um pequeno número de proprietários mantinha
toda a terra, como já denunciava Antônio Pedro Figueiredo, em O Progresso, em
1846, e se recusava vender ou arrendar qualquer parte dela para a população branca
e pobre: “[...] a expropriação da massa da população do solo forma a base do modo
de produção capitalista”45.
Com a abolição do sistema de trabalho forçado em 1888 para a adequação do
mercado de mão-de-obra assalariada e com os projetos de ‘reforma agrária’ de
Rebouças e outros, engavetados, pelo menos 45.000 ex-escravos em Pernambuco
entraram no mercado de trabalho assalariado, baixando, naturalmente, os preços da
força rpodutiva46. É sintomático como o número de greves aumentou nas primeiras
décadas da era republicana, principalmente em Pernambuco.
44
MARX, O Capital, p. 226.
45
MARX, O Capital, p. 883; MELO, Ferrovias inglesas..., p. 54-55.
46
AC. Parecer da Associação Comercial Beneficente de Pernambuco ao Governador do Estado, 2 de
maio de 1894; EF 30. Ofício do Superintendente da EF Sul de Pernambuco ao Governador do Estado,
19 de setembro de 1891.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 129
RESUMO ABSTRACT
Pretende-se verificar a transição da mão-de-obra This article aims to verify the transition from the
escrava para o trabalho assalariado no nordeste slavery labour force to the free and waged labour
açucareiro, tendo como baliza a proibição do force in the sugar cane region in the Northeastern
tráfico africano bem como a implementação da Brazil, based on the prohibition of the Atlantic
lei que proibia escravos na construção e operação slave traffic and law issued by the Brazilian
das ferrovias, face à larga disponibilidade de Government prohibiting the use of slave force
trabalhadores livres sob a forma de moradores on the construction and operation of railways
de condição. Coube ao Estado e ao capitalismo due to the widespread free labour force under
incipiente manter as três formas de mão-de- the ancient social condition of ‘moradores’. The
obra convivendo aparentemente sem conflito. Brazilian State as well the capitalism system
Estudos mostram que a escravidão mantida na tried to manage in order to maintain these three
agricultura como a mão-de-obra dos moradores forms of labour force in a acting apparently
terminou por retardar a formação de um without conflicts, but the surviving slavery in
mercado de mão-de-obra assalariada, mas the agriculture as well as the ‘moradores’ brake
diante da possibilidade que a ferrovia abriu the organization of a free waged labour market,
para esse mercado, revelou-se a inconsequente which reveal, on the other hand, the impossibility
manutenção da mão-de-obra escravizada por of maintenance of the slave force due to its high
seu encarecimento. costs.
Palavras Chave: Escravidão; Moradores; Keywords: Slavery; ‘Moradores’; Waged Work.
Trabalhador Assalariado.
130 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
REFLEXÕES SOBRE RETRATOS
DE MANUEL QUERINO1
Sabrina Gledhill2
1
Gostaria de agradecer as valiosas contribuições de Cláudio Pereira, Flávio Gomes, Jaime
Nascimento, Jeferson Bacelar e Luiz Freire.
2
Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade da Califórnia de Los Angeles – UCLA.
Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade
Federal da Bahia – CEAO/UFBA. E-Mail: <sabrina.gledhill@gmail.com>.
3
BURNS, E. Bradford. “Manuel Querino’s Interpretation of the African Contribution to Brazil”. The
Journal of Negro History, vol. LIX, n. 1, jan. 1974, p. 82.
4
BURNS, “Manuel Querino’s …”, p. 83.
5
BURNS, “Manuel Querino’s …”, p. 84.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 131
no lugar do “probo escritor e jornalista José Teixeira Barros”6. Nas palavras do
consócio, Manuel Raimundo Querino “Há de permanecer admirado na memória dos
pósteros, íntegro pela honestidade com que soube investigar, exemplar na exatidão
do dever, inexcedível na modéstia, que mais relevo deu ao seu valor, de que esta
homenagem, de agora, é sereno julgamento”7.
Segundo o secretário perpétuo do IGHB, Bernardino de Souza, num ofício
reproduzido na biografia de Querino da autoria de Gonçalo de Athayde Pereira,
seu retrato foi “inaugurado juntamente com o do sábio brasileiro Nina Rodrigues,
na Galeria dos nossos homens ilustres”8. Para deixar clara a estima em que Querino
era mantida por seus contemporâneos e colegas, Bernardino observa: “Bem sabe
que foram eles, até agora na Bahia, os dois maiores estudiosos da raça africana.
Recebo constantemente do Rio, de S. Paulo e de outros Estados do Brasil, pedidos
de informação a respeito dos seus trabalhos”9. Entretanto, de acordo com Pedro
Calmon, houve uma diferença significativa entre os dois estudiosos:
Curioso é notar que, sendo africanista, [Nina Rodrigues]
não foi africanófilo. Ao contrário, polvilhou de pessimismo,
marginou de comentários sóbrios, os seus ensaios, não
querendo perpetrar a política de lisonjear o elemento
étnico que estudava, nem ter a originalidade de o sobrepor
às outras influências sociais. Caberia a Manuel Querino
insistir, não só na defesa, porém na reivindicação espiritual
do negro, como fator de progresso; ele próprio, um desses
esplendidos artistas pretos que dissipam, com o seu caso
pessoal, os preconceitos correntes sobre a inferioridade da
raça.10
Em seu prefácio à coletânea de obras de Querino intitulada Costumes africanos
no Brasil, Artur Ramos opina que, “inaugurando o seu retrato juntamente com o
do grande mestre Nina Rodrigues, a Casa da Bahia prestou-lhe uma homenagem à
altura dos seus méritos” e cita as palavras de Bernardino de Souza, transcritas acima11.
Jorge Calmon, num ensaio publicado pela primeira vez em 1980, intitulado
“Manuel Querino, O Jornalista e o Político”12 e relançado no livreto O Vereador
Manuel Querino em 1995, utiliza esse mesmo retrato para dar ao leitor uma noção
do caráter do retratado:
6
VIANNA, Antônio. “Manoel Querino”. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n.
54, 1928, p. 305-316. Segundo Bernardino de Souza: “Na solenidade em que inauguramos o
seu retrato, falou o confrade Antonio Viana, por ter se escusado irremovívelmente nosso grande
Teixeira de Barros, verdadeiro abencerragem solitário, que não sabe quanto o venero e estimo pelo
seu muito valor”. PEREIRA, Gonçalo de Athayde. Prof. Manuel Querino, sua vida e suas obras.
Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1932, p. 34.
7
VIANNA, “Manoel Querino”, p. 316.
8
PEREIRA, Prof. Manuel Querino..., p. 34.
9
PEREIRA, Prof. Manuel Querino..., p. 34.
10
CALMON, Pedro. História da literatura bahiana. 2. ed. São Paulo: Livraria José Olympio Editora,
1949, p. 154.
11
QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Prefácio e notas de Artur Ramos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1938, p. 12.
12
CALMON, Jorge. “Manuel Querino, o jornalista e o político”. Ensaios/ Pesquisas, Salvador, UFBA/
CEAO, n. 3, mai. 1980.
132 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Agora, vejamos, também rapidamente, que homem era ele,
sua aparência, sua maneira de ser.
Seu retrato conserva-se no Instituto Histórico da Bahia. Foi,
aliás, colocado ali, na galeria de honra, cinco anos depois
da morte, em reconhecimento do que ele tinha feito pela
cultura e pela instituição. Esse retrato nos mostra um homem
de fisionomia serena e afirmativa, o rosto descarnado e
bem composto, no olhar firme e reflexivo transparecendo
a inteligência e a permanente curiosidade.
A impressão que nos dá o retrato confere com o depoimento
dos que conhecem Manuel Querino mais de perto.13
O retrato de Querino que ilustra essa edição triplamente comemorativa14 conforma
perfeitamente com a caracterização acima – “fisionomia serena e afirmativa”, “rosto
descarnado e bem composto” e “olhar firme e reflexivo” – levando o observador à
conclusão que se trata da imagem em questão (ver Fig. 1).
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 133
expressão desejada – enfim, um papel e uma máscara que
estivesse de acordo com sua auto-imagem.[...] O termo
“expressão” começou a representar o objetivo principal do
retrato – um olhar animado, inteligente, refletindo o caráter
interior. A verdadeira arte do retrato resumia-se em capturar
uma essência interna, uma “expressão” de “caráter”.15
Os profissionais do ramo argumentavam que fixar a imagem do sujeito num retrato
seria o equivalente de fixar o caráter do retratado. Os fotógrafos adotaram o conceito
que a aparência externa indivíduo era um reflexo de seu caráter e estabeleceram
um “repertório de poses expressivas”16. Por exemplo, deveria ter uma determinada
pose para advogados e outras para religiosos e oradores. Os poetas deveriam estar
sentados numa mesa. “Na verdade, as poses convencionais abordavam categorias
mais sociais do que morais, identificando o caráter [do retratado] com o seu papel”17.
Num ensaio sobre as fotografias de escravos brasileiros tiradas no século XIX
por Christiano Jr., Manuela Carneiro da Cunha faz a seguinte observação:
Num retrato, pode-se ser visto e pode-se dar a ver,
alternativas que estão francamente ligadas à relação
do retratado com o retratante. Quem encomenda uma
fotografia mostra-se, dá-se a conhecer, esparrama-se pelo
papel, a si e a seus atributos e propriedades, como gostaria
de ser visto, como se vê a si mesmo no espelho. É o sujeito
do retrato. [...] o escravo é visto, não se dá a ver. É visto
sob formas que o despersonalizam de duas maneiras,
mostrando-o seja como um tipo, seja como uma função.18
As poucas fotografias que temos de Manuel Querino (sabemos de apenas três)
sempre mostram-no com uma expressão grave e uma pose séria ou até altiva (ver
Figs. 2 e 3). Diferente de Machado de Assis, por exemplo, Querino nada fez para
“branquear” sua imagem. Pelo contrário, fez questão de mostrar que ele e muitos
ilustres brasileiros eram “homens de cor preta”. Por exemplo, as pranchas que
ilustram a primeira edição de Artistas Bahianos contem vários retratos de artistas
brancos, negros e pardos19. A segunda edição de contem apenas dois, ambos de
homens negros – uma gravura do autor (Fig. 3) e um desenho retratando o poeta,
historiador e militar Ladislau da Silva Titára (1801-1861), autor da letra do Hino
2 de Julho quando alferes do Corpo de Estado-Maior do Exército e veterano da
Independência. Titára aparece fardado, ostentando quatro medalhas no peito,
encimando a medalhão da Ordem da Rosa20.
15
TRACHTENBERG, Alan. Reading american photographs: images as History – Mathew Brady to
Walker Evans. New York: Hill and Wang, 1989, p. 26-27.
16
TRACHTENBERG, Reading American…, p. 28.
17
TRACHTENBERG, Reading American…, p. 28.
18
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Olhar Escravo, Ser Olhado”, In: AZEVEDO, Paulo Cesar de, e
LISSOVSKY, Mauricio (orgs.). Escravos brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São
Paulo: Ex Libris, 1988, p. xxiii.
19
QUERINO, Manuel. Artistas Bahianos (indicações biographicas). Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1909.
20
QUERINO, Manuel. Artistas Bahianos (indicações biographicas). 2. ed. melhorada e cuidadosamente
revista. Salvador: Officinas da Empreza “A BAHIA”, 1911.
134 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Fig. 2 – Manuel R. Querino.
Fonte: Querino, 1911.
Outro afrobrasileiro que utilizava essa tática foi Francisco Dias Coelho, o “coronel
negro de Chapada Diamantina”. Segundo Moiseis de Oliveira Sampaio:
Nas fotografias, as imagens apresentadas eram diferenciadas
a depender da camada social à qual eram dirigidas. Para
os mais pobres, eram distribuídas fotografias envergando
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 135
a farda da Guarda Nacional, assentado na cadeira que
se assemelhava a um trono, com o semblante tranqüilo
e imponente.[...] Para a elite, a fotografia era outra. Ele
aparece com um terno, aparentemente bem ajustado
com uma gravata alinhada, também demonstrando
tranqüilidade com um semblante mais grave e solene,
mas, em nada lembra a fotografia da farda, exceto o
personagem fotografado. Para o destinatário desta foto,
a imagem transmitia que o personagem retratado era um
dos seus, também culto e rico, embora a fotografia não
negasse a sua cor.21
Nisto, o Coronel Dias Coelho pode também ser comparado com Booker T.
Washington, que sempre dirigia as incontáveis imagens de sua pessoa (retratos de
ateliê, imagens foto-jornalísticas, gravuras etc.) para o consumo de dois públicos –
os brancos e os negros. Segundo Bieze, Washington conhecia muito bem o gosto
vitoriano dos filantropos brancos com os quais lidava e, para eles, procurava projetar
uma imagem de um intelectual de sensibilidade e bom gosto; para o público negro,
projetava um ar de poder e autoridade22.
Querino utilizou imagens de negros para ilustrar seus trabalhos, com o intuito
de mostrar uma imagem positiva do africano e seus descendentes e fazer frente
a imagens negativas produzidas por Lindemann, Christiano Júnior e outros e
mostrar a contribuição do “colono preto” com a cultura baiana23. De certo modo,
imagens de Querino também foram usadas e adotadas por dois públicos – os
intelectuais branco/mestiços de um lado e os negros e operários de outro. Em
1923, a Renascença – Revista Ilustrada publicou a fotografia em Figura 3 (uma
foto idêntica pode ser vista até hoje no salão nobre da Sociedade Protetora dos
Desvalidos) com a seguinte nota:
PROF. MANOEL RAYMUNDO QUERINO – Pela passagem
do 30o dia do falecimento deste distinto artista, que tanto
soube honrar a sua classe, os seus bons amigos realizaram
uma homenagem póstuma no “Centro Operário”, havendo
vários oradores e grande assistência. Por essa ocasião
foi inaugurado, em um dos daqueles salões o retrato do
homenageado em rica moldura, e distribuída elegante
polyanthéa com o busto do ilustre morto.
O prof. Manoel Raymundo Querino, além de ser um
sincero caráter era um homem de valor nas letras baianas
21
SAMPAIO, Moiseis de Oliveira. O coronel negro: coronelismo e poder no norte da Chapada
Diamantina. Dissertação (Mestrado em História Regional e Local). Universidade do Estado da
Bahia. Salvador, 2009, p. 78.
22
BIEZE, Michael. Booker T. Washington and the Art of Self-Representation. Nova York: Peter Lang,
2008.
23
GLEDHILL, Sabrina. “Representações e Respostas: Táticas no Combate ao Imaginário Racialista
no Brasil e nos Estados Unidos na Virada do Século XIX.” Sankofa - Revista de História da África e
de Estudos da Diáspora Africana, vol. IV, n. 7, jul. 2011, p. 44-72; VASCONCELLOS, Christianne
Silva. “O Uso de Fotografias de Africanos no Estudo Etnográfico de Manuel Quirino”. Sankofa
-Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, n. 4, dez. 2009, p. 88-111.
136 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
e por isto ocupava na sociedade lugar de apreço. A classe
operária, que sempre foi parte integrante do progresso
mundial, tem na memória do falecido um escudo de
quanto merecem na organização da sociedade.
“Renascença” despetala no túmulo do saudoso conterrâneo
mãos cheias de flores.24
Fica evidente, através de uma análise deste retrato e daquele que foi
incluso na galeria do IGHB, que as imagens foram tiradas na mesma época
– parcialmente calvo, com cabelos e bigode brancos e sobrancelhas ainda
escuras – provavelmente no ateliê que pertencera a Lindemann, na época
dirigido por um fotógrafo mulato, Diomedes Gramacho.25 Mesmo assim,
cada uma tem um aspecto ligeiramente diferente. O retrato do IGHB (Fig. 1)
mostra apenas o busto, enquanto a imagem publicada na revista Renascença
(Fig. 3) retrata Querino com os braços cruzados e a cabeça levemente
inclinada, numa pose que reflete poder e autoridade. Em nada lembra a
caracterização do pesquisador, líder operário e jornalista militante como um
“humilde professor negro” por Artur Ramos e Pinto de Aguiar26. Também
foi publicado no jornal A Tarde para ilustrar uma nota sobre o centenário
de Querino em 21 de junho de 1951. Não é a toa que foi justamente essa
imagem que foi escolhida para ilustrar a capa do livro Manuel Querino, Seus
Artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, organizado
por Jaime Nascimento e Hugo Gama27.
O retrato de Querino da autoria de Catarina Argolo (Fig. 4), encomendada
em 2000 pelo Liceu de Artes e Ofícios, do qual foi aluno fundador e professor,
e recebeu medalhas de bronze, prata e ouro28, inspirou-se na imagem do
IGHB (Fig. 1), mas a cor do retratado é ligeiramente escurecida, seu cabelo
mais grisalho e sua expressão, mais altiva. Outro retrato, da autoria de Graça
Ramos (Fig. 5), produzida em 2005, é claramente inspirada na imagem que
ilustra Artistas Bahianos (Fig. 2) e o sujeito tem um aspecto humilde, quase
triste. Este quadro encontra-se no acervo da Escola de Belas Artes, onde
24
Segundo Bacelar, citando o Diário da Bahia, Querino recebeu “flores naturais” do Movimento
Negro em 1933, quando foram colocadas no seu túmulo na Igreja de N.S. do Rosário dos Homens
Pretos de Salvador nas comemorações do 13 de maio numa “verdadeira romaria aos túmulos
dos profs. Maxwel Porphirio, Ascendino dos Anjos e Manuel Querino”. BACELAR, Jeferson. A
hierarquia das raças. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p. 148.
25
Por essa informação, agradeço a Prof. Dr. Cláudio Luiz Pereira e Prof. Jaime Nascimento.
26
Respectivamente, em QUERINO, Manuel. Costumes africanos no Brasil. Prefácio e notas de Artur
Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 12; e QUERINO, Manuel. A raça africana e
os seus costumes. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955, p. 11. De fato, o prefácio de Pinto de
Aguiar na edição de 1955 representa uma síntese do texto de Artur Ramos publicado na edição de
1938.
27
NASCIMENTO, Jaime & GAMA, Hugo (orgs.). Manuel Querino, seus artigos na Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, 2009.
28
QUERINO, Manuel. Elementos de desenho geométrico. Primeira parte. Bahia: Papelaria e
Typographia Baptista Costa, 1911.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 137
Querino também foi aluno fundador, diplomou-se como artista e professor
de desenho geométrico, recebeu duas medalhas de prata e quase se formou
em arquitetura29.
138 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
póstumo de Querino, A arte culinária na Bahia. Nesse retrato e aquele usado para
ilustrar Artistas Bahianos, a pose e o olhar do retratado são bem diferentes dos
retratos do IGHB e do Centro Operário e Sociedade Protetora dos Desvalidos.
Tirada quase 10 anos antes, a fotografia usada para criar a gravura encontrada
numa prancha de Artistas Bahianos (Fig. 2) mostra um Querino grisalho, já com
uma calvície aguda, olhando para sua esquerda, trajando um terno risco de giz. O
retrato utilizado por Leal e os editores de A arte culinária é claramente inspirado
nessa foto.
Segundo Trachtenberg, na época do daguerreótipo, os fotógrafos eram
aconselhados a fazer com que seus sujeitos olhassem “vagamente” para um objeto
distante para evitar um olhar vazio ou uma expressão carrancuda30. Pode ser que
essa estética ainda predominava quando a primeira foto de Querino foi produzida.
Possivelmente seja devido ao estado ainda primitivo da arte da fotografia na primeira
década do século XX na Bahia. De qualquer forma, em vez de encarar o espectador,
como faz nas fotografias mais recentes, Querino fixa um objeto distante – talvez um
horizonte a ser ampliado – despojando sua expressão da altivez e autoridade de um
olhar direto. Sua expressão é mais de um sonhador do que de um líder e militante
(no caso do retrato do Centro Operário/SPD – Fig. 3) ou intelectual (no caso do
retrato do IGHB – Fig 1).
As múltiplas imagens de negros escravos ou libertos, exercendo profissões
humildes, produzidas no século XIX por fotógrafos como Lindemann e Christano
Júnior ajudaram a criar a imagem do negro da época como miserável e marginalizado.
As expressões dos sujeitos são vagas ou sofridas. Vestem roupas simples ou em estilo
africano. Para os brancos, essa imagem da Bahia era vista como uma afronta porque,
segundo o autor anônimo da nota intitulada “Propaganda Indigna”, publicada na
Bahia Ilustrada em 1921, vinha de “invejosos da grandeza da Bahia que, procurando
amesquinhá-la, a pintam com as cores mais negras, à vista de quem verdadeiramente
a não conhece”. O autor conclui que as imagens de negros e caboclos produzidas
pela Casa Lindemann “pretendem mostrar um profundo retrocesso para a Bahia,
quando a verdade é que esse glorioso Estado é hoje um dos mais belos e populosos de
todo o país” – com “typos fortes, morenos, belos ou brancos ou mesmo trigueiros”31.
De outro lado, os próprios negros que conseguiram profissões intelectuais e
científicas – e não eram poucos, como o próprio Querino mostra em “Os homens de
cor preta na História”32 – procuravam os ateliês dos fotógrafos para produzir imagens
que refletiam sua “condição de pessoa”33. O uso de cartes-de-visite, seguidos por
cartes-cabinet, no século XIX popularizou o costume de encomendar retratos de
indivíduos e famílias, inclusive para marcar ritos de passagem como nascimentos,
formaturas e enterros. Estas imagens foram produzidas aos milhões em estúdios
fotográficos no mundo inteiro.
No meio dos Candomblés – e Manuel Querino não só pesquisou a religião mas
30
TRACHTENBERG, Reading American Photographs, p. 26.
31
“Propaganda Indigna”. Bahia Ilustrada, ano V, n. 39, jun. 1921.
32
QUERINO, Manuel. “Os homens de côr preta na Historia”. Revista do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, Salvador, n. 48, 1923, p. 353-363.
33
WALLIS, Brian. “Black Bodies, White Science: Louis Agassiz’s Slave Daguerreotypes”. American
Art, vol. 9, n. 2, summer 1995, p. 39-61, p. 55.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 139
foi ogã do terreiro do Gantois34 – como Lisa Earl Castillo observa, retratos são
utilizados como lembranças dos ancestrais, que representam uma parte importante
da sua cosmologia. “A forte valorização de retratos antigos em Candomblé pode
ser entendida como resultante do elo físico com a presença material do falecido”35.
Através dessas imagens, podemos olhar nos olhos daqueles que viveram outros
tempos. O próprio Querino incluiu retratos de duas ialorixás do Gantois nas pranchas
que ilustram A raça africana36.
Por todos esses motivos – o número escasso de fotografias de Manuel Querino, a
minoria esmagadora de imagens de intelectuais negros do início do século XX, e o
valor desses retratos como “ícones de memória” dos ancestrais – é triste e lamentável
verificar que, no inventário do acervo do IGHB realizado na década de 7037, o
famoso retrato acompanhado pela palestra de Viana e citado por Burns e Calmon
já não consta mais. Foi removido da galeria de honra e seu destino é ignorado.
Hoje, dependemos de reproduções em livros para ver com nossos próprios olhos
como era Querino e como foi homenageado por seus confrades e companheiros.
RESUMO ABSTRACT
Em 13 de maio de 1928, o Instituto Geográfico On May 13, 1928, the Geographic and Historic
e Histórico da Bahia prestou uma homenagem Institute of Bahia paid tribute to a founding
ao sócio fundador Manuel Querino cinco meses member, Manuel Querino, five months after
após sua morte – colocou seu retrato na Galeria his death – placing his portrait in its Gallery of
de Ilustres da Casa da Bahia. Este artigo analisa as Illustrious Members. This paper analyzes the
imagens produzidas de Manuel Querino em vida e images produced of Manuel Querino in life and
depois da morte, e identifica duas vertentes no seu after death, and identifies two ways of using them
uso para reforçar visões diferentes do intelectual to reinforce different views of the Afro-Bahian
afro-baiano – como militante altivo e “humilde intellectual – as a proud activist and a “lowly
professor negro”. black teacher”.
Palavras Chave: Manuel Querino; Retrato; Keywords: Manuel Querino; Portrait; Imagery.
Iconografia.
34
LIMA, Vivaldo da Costa. “Sobre Manuel Querino”. In: __________. A anatomia do acarajé e outros
escritos. Salvador: Corrupio, 2010, p. 94.
35
EARL CASTILLO, Lisa. “Icons of Memory: Photography and its Uses in Bahian Candomblé”.
Stockholm Review of Latin American Studies, n. 4, mar. 2009, p. 18.
36
QUERINO, Manuel. A raça africana e os seus costumes: memória apresentada ao 5º Congresso de
Geographia. Bahia: Imprensa Official do Estado. 1917.
37
INVENTÁRIO. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador, vol. 85, 1972-1975,
p. 183-283.
140 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
NOSSAS PERSISTÊNCIAS HISTÓRICAS:
CAMINHOS DAS PEDAGOGIAS
DO MOVIMENTO NEGRO NO BRASIL1
Ivan Costa Lima2
Introdução
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 141
êxitos, o que (e o como) foi construído, para poder enxergar
adiante. Emergir é preciso.4
Fazer emergir, eis o significado do que procurei discutir, ao trazer para a História
da Educação as proposições pedagógicas pensadas e exercitadas em seus tempos e
lugares, que, no entanto, apesar da distância se entrecruzam e se interpenetram como
uma tentativa do Movimento Negro conceber uma resposta ao sistema educacional,
e acima de tudo a sociedade brasileira quando o tema é a população negra.
Desta forma essas investigações trazem à tona as trajetórias históricas das
pedagogias desenvolvidas por diferentes pessoas e organizações negras no Brasil,
que vai do final da década de 70, do século XX, ao início do XXI. Primeiramente, o
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB) e a Pedagogia Interétnica (PI), em Salvador
(BA), apresentada como dissertação de mestrado, no Programa de Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2004. A segunda, a Pedagogia
Multirracial desenvolvida por Maria José Lopes da Silva e um grupo de educadoras
no Rio de Janeiro, na década de 80. Em seguida, o desdobramento e novas
abordagens desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Negros (NEN) de Florianópolis,
com a Pedagogia Multirracial e Popular, no início de 2000, tese defendida em 2009.
O texto estrutura-se na reconstituição das diferentes trajetórias do MN baiano,
carioca e catarinense, e como esta mobilização produz diferentes interseções,
na educação e sociedade brasileira. Para isso tem-se como base entrevistas
semiestruturadas junto aos integrantes do MN, e da análise dos documentos
produzidos sobre os temas abordados. A pesquisa teve como referencial teórico-
metodológico uma perspectiva sócio histórica5, considerando os sujeitos, suas origens
e as relações sociais, que se estabeleceram em cada uma de suas trajetórias. Esta
visão histórica foi combinada, com o uso da História Oral temática (MEIHY, 2002)6,
como possibilidade de aprofundar os significados do universo cultural e político dos
integrantes deste movimento e seus reflexos nas políticas educacionais no Brasil.
É preciso pensar, ainda, que as lembranças são fragmentos. À medida que ocorrem
na vida das pessoas os fatos são desconexos e sem sentido. Quando elas dedicam-
se aos “trabalhos da memória”, lembram, reelaboram e dão um sentido aos fatos.
A construção de uma narrativa é histórica e culturalmente constituída. Exige uma
lógica, um sentido e, consequentemente, leva o depoente a pensar, reelaborar e
reorganizar sua fala, e ao mesmo tempo seus sentimentos, buscando dar a isso um
sentido no presente. Sobre estas observações Couto escreve:
São elaborações da memória tratando do passado no
presente, sem deixar de lado elementos de projeções e
expectativas do futuro no presente. Quando um sujeito
recorda fatos de seu passado e interpreta-os no presente,
essa interpretação não diz respeito somente ao que
aconteceu, mas também à maneira como ele gostaria que
4
PEREIRA, Amauri Mendes. Cultura de consciência negra: pensando a construção da identidade
nacional da democracia no Brasil. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000, p. 3.
5
FENELON, Dea. “Pesquisa em História: perspectivas e abordagens”. In: FAZENDA, Ivani (org.).
Metodologia da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 2000.
6
MEIHY, José C. Sebe Bom. Manual de história oral. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002.
142 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
tivesse sido, e isso tem um significado profundo em sua vida
e em sua percepção das possibilidades existentes no futuro. 7
Nessa perspectiva busco saber que conhecimentos, informações e dados,
acumulados por militantes negros e negras, durante sua trajetória de vida poderiam
contribuir para a reconstrução do patrimônio cultural negro brasileiro. A partir dessa
questão surgirão outras que irão aparecendo no decorrer do desenvolvimento da
pesquisa.
Tem-se que no Brasil, a memória não é valorizada como um modo significativo
de se formar referência que orientem escolhas coletivas. A sociedade capitalista
destrói os apoios da memória e substitui a lembrança pela história oficial celebrativa8.
Pensar a questão da memória é pensar as pessoas, suas lutas, militâncias, resistências,
manifestações culturais, mas vivemos em uma sociedade histórica que não sabe
reconhecer e julgar a sua experiência coletiva.
Trabalhar a memória de militantes negros e negras significa desvendar caminhos,
trajetos e potencialidades de uma parcela influente na história e cultura do país,
é contribuir para outra interpretação do que seja a cultura de matriz africana. A
memória é vida, é força, é conhecimento armazenado na lembrança, que ao emergir
para fora, desvela histórias desconhecidas, no entanto, riquíssimas para se entender
a própria vida e o contexto histórico cultural em que se está inserido. Nesse sentido
o objetivo da memória é fazer emergir sentidos de vida que não foram registrados
e também dizer aquilo que está silenciado. Nessa perspectiva, busco desvelar a
memória através de relatos orais de militantes negros e negras, partindo da ideia de
que parte da trajetória de vida desses, contribui para a recuperação de sua história
individual como também a recuperação da história coletiva do seu grupo racial.
Significa ainda que, para além da questão da lembrança como uma atitude
individual, outro aspecto muito significativo da reflexão sobre memória para que
Couto9 chama a atenção é a sua dimensão social. Os sujeitos, ao recordarem,
lembram individualmente, mas suas lembranças estão carregadas de experiências
sociais compartilhadas por outros sujeitos, uma vez que a vivencia, ainda que
individual é, sobretudo, uma experiência social.
O universo de pesquisa procurou evidenciar no campo cultural, religioso, social
e político, a ação do Movimento Negro, e especialmente os que formularam e
desenvolveram as propostas pedagógicas na tentativa de apreender os diversos
olhares imbricados na construção de um discurso e de uma prática pedagógica
antirracista. Assim como, atentar para o contexto social e político que vai do
surgimento destes grupos, os processos de intervenção de suas propostas no espaço
escolar, levando em consideração suas possíveis imbricações no âmbito de outros
territórios dentro de cada cidade, com isso localizar os momentos mais significativos
na trajetória de elaboração e implementação destas pedagogias formuladas em
tempos e espaços específicos.
7
COUTO, Ana M. Silva. “Memória e consciência: narrativas individuais e experiências sociais
(trabalhadores urbanos – costumes, práticas e valores)”. Cadernos do CEOM, Chapecó, Argos, n.
17, 2003, p. 418.
8
FRENTRESS, James; WICKHAM, Chis. Memória social: novas perspectivas sobre o passado.
Tradução de Telma Costa. Lisboa: Teorema, 1992.
9
COUTO, “Memória e consciência...”, p. 418.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 143
A Pedagogia Interétnica (PI), uma ação de combate ao racismo
Para alcançar os objetivos traçados no mestrado realizei entrevistas na cidade de
Salvador, em janeiro e setembro de 2003, tendo como interlocutores: Manoel de
Almeida Cruz, Geruza Bispo dos Santos, Lino Almeida, Ana Célia da Silva, Jônatas
da Silva e Raimunda Rodrigues.
Dentre esses, cabe destacar Manoel de Almeida Cruz, um dos fundadores do
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB), e principal divulgador da PI, falecido em
junho de 2004. Conforme seu depoimento, o intelectual Manoel de Almeida nasceu
em 2 de abril de 1950, em um bairro proletário de Salvador, Liberdade, filho de
um operário da construção civil e de uma empregada doméstica. Sua trajetória
no ensino formal foi irregular, levando-o a partir dos 14 anos de idade a tornar-se
autodidata. Em seguida, interessa-se pela sociologia, entrando em contato com
Guerreiro Ramos, proeminente sociólogo do ISEB (Instituto Sociológico de Estudos
Brasileiros), esse encontro, segundo seu depoimento “despertou do ponto de vista
intelectual a minha consciência negra no Brasil, aliado também a minha vivência de
negro baiano, o negro tem uma presença marcante e significativa [na Bahia], contudo
é um dos estados mais racistas da União”10. O reconhecido enquanto sociólogo se dá
a partir de 1985, com a regulamentação da profissão no Brasil, Manoel credencia-se
a obter esse título levando-se em consideração inúmeros artigos escritos sobre o tema
das relações raciais. Ao mesmo tempo, submete-se e é aprovado no mestrado em
sociologia na UFBA. Em sua trajetória de ativista vai esta a frente de diferentes ações
procurando investigar e agir no debate das relações raciais, chegando à constituição
de uma organização, o Núcleo Cultural Afrobrasileiro (NCAB).
O NCAB surgiu em 1º de agosto de 1974, segundo seus fundadores foi à
primeira organização do Movimento Negro na Bahia, numa perspectiva de ação
política, no questionamento da situação dos negros em Salvador, tendo em vista os
vários espaços de mobilização de seus vários membros. O espaço que propiciava
o desenvolvimento do debate de outra forma de ação política, num momento de
repressão, foi encontrado junto ao Centro Cultural Brasil – Alemanha, com apoio
na figura de seu diretor Roland Schaffner:
Em agosto de 1974, nós procuramos nesta época, era época
da ditadura, e o único espaço aberto aqui na Bahia que
nós tínhamos era justamente o Instituto Goethe, também
conhecido como Instituto Cultural Brasil-Alemanha.
Intelectuais progressistas afluíam para este ponto, e de
repente surgiu esta ideia de se criar uma instituição mútua
cultural para refletir sobre a cultura negra, o negro na
sociedade brasileira... Então me associei a Roberto Santos,
Manoelito dos Anjos, Atolenildo Ferreira de Santana, Jorge
Milton Conceição, e procuramos o diretor do Instituto
Cultural Brasil-Alemanha e ele cedeu provisoriamente
às instalações para que nós nos reuníssemos e aí a gente
começou a fazer uma série de reuniões e formalizamos
10
Entrevista concedida em setembro de 2003.
144 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
legalmente o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro.11
A perspectiva do NCAB, como organização de tipo novo, era uma releitura da
herança africana, diferenciando-se do que os setores hegemônicos da sociedade
baiana e da academia entendiam sobre a cultura afro-brasileira. Foi desta forma
que a imprensa local noticiou o seu surgimento:
Com o objetivo de estudar, pesquisar e difundir a cultura
afro-brasileira, de maneira menos acadêmica e sem vínculos
religiosos, um grupo de onze jovens acaba de criar o
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, com sede provisória no
Instituto Cultural Brasil-Alemanha. A curto prazo, pretende
a entidade implantar um curso de Yorubá – língua ainda
falada em alguns Terreiros de Candomblé da cidade. A
longo prazo, estudos do processo de integração do negro
na sociedade brasileira.12
Seus membros tinham grande preocupação em tematizar às relações raciais, a
partir da crítica da “democracia racial” e da naturalização do lugar do negro na
sociedade brasileira. Esta crítica era alicerçada não apenas pela luta cultural, mas pela
via do conhecimento científico e da trajetória de vida cada um dos seus membros,
como também “[...] em face de uma necessidade que nós tínhamos de formularmos
uma teoria que desse resposta a esse processo de alienação e de exclusão que o
negro vivenciava na estrutura educacional brasileira”13.
A construção da Pedagogia Interétnica se deu a partir dos acúmulos das ações
promovidas pelo NCAB, que nominava sua teoria como educação interétnica. A
mudança para pedagogia ocorreu pela percepção dos integrantes do NCAB, de que
falar em educação seria muito abrangente. Pedagogia significaria a possibilidade
de melhor sistematizar a proposta, a partir de métodos e técnicas como diferente
resposta da história e cultura dos afro-brasileiros para os sistemas de ensino. Destaca-
se uma pesquisa sobre o preconceito racial contra o negro desenvolvida na cidade de
Salvador, no ano de 1975, como base para a formulação de um sistema de educação
interétnica. Neste sentido, estes argumentos colocaram o debate educacional não
só como causa, mas, também, como resposta ao desafio do combate ao racismo:
[...] surgiu à ideia de uma intervenção no processo
educacional, a partir de nossos estudos e pesquisas
nós detectamos que o preconceito racial e o racismo
eram transmitidos pelo processo educacional, e só uma
intervenção sistemática poderia dar uma resposta mais
científica e positiva com relação a este fenômeno [...] veja
bem, a escola é um dos fatores, há a família, a própria
comunidade, os meios de comunicação social que integram
todo este complexo que formam fatores transmissores de
preconceito racial e estereótipos.14
11
Manoel de Almeida, entrevista concedida.
12
Diário de Notícias, 1º ago. 1974
13
Lino Almeida, entrevista concedida.
14
Manoel de Almeida, entrevista concedida.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 145
Em 1985, realizou-se o I Seminário de Pedagogia Interétnica, cujo programa
trouxe os objetivos da então chamada PI, que aglutinava a pesquisa do etnocentrismo
e a transmissão destes valores pelo processo educacional. A novidade era a
elaboração de maneira sucinta, da estrutura básica dos cincos pilares da PI, de
métodos recomendados de combate ao racismo, procedimentos metodológicos e
a concepção da necessidade de construção de um currículo baseado nos valores e
na cultura dos grupos étnicos dominados, assentado na questão da educação do
negro e na questão da educação do índio.
A partir destes processos de atuação do NCAB tem-se o lançamento do livro:
Alternativas para combater o racismo: um estudo sobre o preconceito racial e o
racismo, uma proposta de intervenção científica para eliminá-los, em 1989, escrito
e editado por Manoel de Almeida Cruz.
Esta obra sistematizou os referenciais teóricos da PI, e aglutinou o que já havia
sido desenvolvido nos seminários anteriores e na divulgação da proposta pedagógica
em vários encontros15 pelo Brasil. Aqui a PI amplia e desenvolve considerações tanto
sobre o negro quanto o índio, e apresenta como um de seus objetivos:
A pedagogia interétnica tem como objetivo fundamental o
estudo e a pesquisa do etnocentrismo, do preconceito racial
e do racismo transmitidos pelo processo de socialização ou
educacional (família, comunicação, escola, sociedade global
e meios de comunicação social), além de indicar medidas
educativas para combater os referidos fenômenos.16
Além disto, esta pedagogia propõe o uso de outras linguagens para discutir o
significado da discriminação racial,
[...] recomenda uma linguagem total (escola, teatro,
imprensa, rádio, história em quadrinhos, pôster, cine, TV,
vídeo, palestras) como um meio de mudança de atitudes
preconceituosas e discriminações raciais, propondo ainda
uma intervenção sistemática na área da educação formal,
a partir da elaboração de um currículo escolar baseado nos
valores dos grupos étnicos subalternos.17
15
Temos registrado, na década de 1980, as seguintes participações onde foi divulgada a PI: VI
Simpósio de Estudos e Pesquisa em Educação: UFBA/FACED: 18 a 22 de outubro de 1982; Encontro
Nacional Afro-Brasileiro, realizado pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 1982, e publicado no
Caderno de Estudos Afro-Asiáticos 8-9, 1983, Conjunto Cândido Mendes/RJ; II Encontro Nacional
sobre a Realidade do Negro na Educação, promovido pela Sociedade Recreativa Cultural Floresta
Aurora, Porto Alegre, 1985; Seminário “O Negro e a Educação”, promovido pelo Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, organizado pela
Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 1986. Resultou na publicação “Raça Negra e Educação”,
Cadernos de Pesquisa, n. 69, novembro de 1987; Seminário “Educação e Discriminação dos
Negros”, promovido pela Fundação de Assistência do Estudante e o Instituto de Recursos Humanos
João Pinheiro, 1987. A publicação foi organizada por Regina Lúcia Couto de Melo e Rita de Cássia
Freitas Coelho. Belo Horizonte, Instituto de Recursos Humanos João Pinheiro, 1988.
16
Cf. CRUZ, Manoel de Almeida. Alternativas para combater o racismo: um estudo sobre o preconceito
racial e o racismo - Uma proposta de intervenção científica para eliminá-los. Salvador: Edição do
Autor, 1989, p. 51.
17
CRUZ, Manoel de Almeida. idem, 1989, p. 51.
146 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
A estratégia apresentada, de disseminação da PI estava estruturada em dois
blocos: o primeiro busca conceituar os usos, os sentidos e os estudos realizados
até este período sobre as ideias de raça, preconceito, discriminação, etnia e cultura
– aqui a ideia é atualizar o debate destas categorias à luz das Ciências Sociais,
principalmente a Sociologia e a Antropologia; o segundo bloco busca apresentar,
sistematicamente, como se estrutura a PI, a partir da utilização de procedimentos e
métodos que assim se apresentam:
- Psicológico – estuda os complexos de inferioridade da pessoa negra, o
de superioridade da pessoa branca e o processo de auto rejeição do negro,
além de indicar medidas teóricas e práticas de caráter psicoterapêutico,
visando à mudança de atitudes preconceituosas contra o negro em nossa
sociedade.
- Histórico – investiga as raízes históricas do preconceito racial e os fatores
que levaram este ou aquele grupo étnico a se desenvolver mais do que
outro, além de propor uma revisão crítica da historiografia do negro
brasileiro.
- Sociológico – estuda a situação socioeconômica do negro em nossa
sociedade, investigando as causas histórico-sociológicas que determinaram
a sua marginalização na estrutura social estabelecida.
- Axiológico – discute a dominação a partir da imposição de valores
estéticos, filosóficos e religiosos de um povo sobre outro e, assim, fornece
subsídios para corrigir essas distorções provocadas pela dominação dos
valores ocidentais sobre os demais grupos étnicos do País e no Mundo.
- Antropobiológico – analisa as “teorias” pseudocientíficas da superioridade
racial, desmistificando-as de acordo com as pesquisas da Antropologia
atual.
No decorrer desta apresentação Cruz traz considerações acerca de cada um destes
métodos e procedimentos, situando o leitor nas concepções e nos debates que devem
ser travados para a consecução desta proposta pedagógica18. Até este momento, a
PI apresentada constrói seu arcabouço conceitual baseado em apropriação do que
as Ciências Sociais vêm produzindo. É a partir da apresentação da questão do índio
e do negro que a proposta situa a luta dos movimentos sociais, de leis e propostas
para a construção de um currículo interétnico.
Para dar conta destes conhecimentos vai propor como didática interétnica uma
postura de natureza crítica e emancipatória, tendo como metodologia o ensino/
pesquisa, de caráter participativo tendo como foco a transformação social. É
interessante observar que os conteúdos apontados são reivindicações há muito
tempo protagonizadas pelo movimento negro no Brasil, que notadamente apenas
no século XXI transformam-se em políticas públicas para os sistemas de ensino.
Por fim, posso caracterizar a PI como uma construção eminentemente sociológica,
que contribuiu na crítica da construção de raça como fator biológico. Ao se apropriar
do conceito de etnia, enfatiza-se seu uso por outros povos em conflitos étnicos,
conforme afirmava Manoel:
Primeiro, que a gente viu o seguinte, somos negros, somos
18
Devido ao limite deste artigo, ver este debate em: CRUZ, Alternativas..., p. 51-101.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 147
discriminados, mas ao lado do negro tem outros grupos
étnicos que também são discriminados, por exemplo, o
índio, o próprio cigano, então a nossa pedagogia não ficou
centrada somente na raça negra, não é uma pedagogia, como
prega Maulana Karenga lá nos Estados Unidos, afrocentrada
ou afrocentrista, a nossa pedagogia é interétnica, pode ser
aplicada em qualquer parte do mundo onde haja conflitos
entre etnias, quando digo etnias, envolve raça e cultura.19
Em meus estudos noto como maior preocupação o caráter de intervenção no
processo educativo, já que a PI se apresentou como resposta científica no combate
ao racismo dentro desses espaços, com isso pretendia-se intervir em todas as esferas
do processo educativo, do currículo até a formação de professor/a.
Foi esse caráter de intervenção, que levou a PI a buscar outros espaços educativos20
a fim de afirmar as suas bases teórico-metodológicas, numa conjuntura em que a
legislação educacional foi abrindo brechas para a cultura afro-brasileira21.
Pedagogia Multirracial se apresenta à Cidade Maravilhosa
Com a finalidade de melhor conhecer o campo de pesquisa realizei entrevistas
exploratórias na cidade do Rio de Janeiro, em julho de 2005, como tarefa inicial
para a primeira qualificação no doutorado.
Estive com pessoas ligadas a constituição do movimento negro carioca, como
também contei com o depoimento da principal responsável pela elaboração da
Pedagogia Multirracial. Entre os que estavam listados por ocasião da orientação,
obtive nesta primeira incursão depoimentos com Ivanir dos Santos, Amauri Mendes
Pereira e Maria José Lopes da Silva. Além das várias informações fornecidas, cada
um dos colaboradores/as contribuiu em indicar outras pessoas relevantes para a
compreensão do universo de atuação do MN no Rio de Janeiro, na década de 70
em diante.
No ressurgimento do MN no Rio de Janeiro, na referida década, percebemos que
as lutas contra a discriminação racial são permeadas pela vigilância dos aparelhos
repressivos. Com isso, a questão cultural será muitas vezes enfatizada mais do que
diretamente a questão racial, como estratégia para driblar a ditadura existente. Nesse
quadro, o que caracteriza o movimento neste período é a promoção da autoestima,
a partir de elementos estéticos e culturais.
Nos anos seguintes, houve a necessidade de uma maior politização das atividades,
das ideias de participação política dentro dos canais tradicionais contra o regime
militar, como os partidos políticos (Ivanir dos Santos, entrevista concedida).
Maria José está na confluência destes eventos, que buscava afirmar o movimento
negro como força social, desembocando na década seguinte na proposição da
Pedagogia Multirracial, por diferentes processos. Para este artigo, destacamos o
primeiro processo, ligado a sua prática profissional, o que a leva a perceber no
19
Manoel de Almeida, entrevista concedida.
20
Aqui se refere ao processo de implementação da PI na Escola Criativa Olodum, ligada ao Bloco
Cultural Olodum, em 1993, e na Escola Municipal Alexandrina dos Santos Pita, em 1994.
21
Aqui se refere aos Parâmetros Curriculares Nacionais que entre outros temas transversais propôs a
discussão da diversidade.
148 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
espaço da escola uma trajetória de exclusão e elevada reprovação de alunos negros,
e em consequência a falta de discussão sobre estas questões e as relações raciais.
O processo primeiro foi a minha prática educacional, eu
era professora do estado e do município e lidava com
comunidade popular o tempo todo. E me vi diante de alunos
negros que eram reprovados como moscas, absolutamente
reprovados, não tinham menor sucesso, a gente reprovava
assim com tranquilidade [...] era um negócio, era uma
fábrica, como até hoje de exclusão, e com uma falta de
sensibilidade do professorado muito grande, o professorado
ele reprovava e não parava para pensar porque ele tava
reprovando, ele não para pra perceber que na verdade
não é o aluno que está reprovando, e ele que está se auto
reprovando [...] o professor não tem esta sensibilidade, não
tem esta percepção.22
Para ela, uma das dificuldades mais sérias reside sobre a realidade educacional
brasileira, a ausência de subsídios para desencadear tal discussão entre os professores.
Procura chamar a atenção para que valores culturais demarcam este sistema, tendo
em vista que “a cultura assim reproduzida é a cultura dos grupos privilegiados, branca
e eurocêntrica, o êxito escolar será função do capital humano adquirido por meio
de uma pedagogia implícita”. Portanto, na elaboração da Pedagogia Multirracial vai
chamar a atenção para a necessidade de evidenciar o pertencimento racial como
dado fundamental na análise do debate sobre o fracasso escolar.
Para este artigo interessa o depoimento com Maria José Lopes, linguista,
educadora das redes municipal e estadual de ensino, militante do MN, atualmente
aposentada. A sua narrativa indica que as experiências familiares, educacional e
os vínculos institucionais, são elementos que vão conformar o quadro que levam
a elaboração da Pedagogia Multirracial. Para ela, o processo primeiro está ligado à
prática profissional, como professora municipal e estadual, o que a leva a perceber no
espaço da escola uma trajetória de exclusão e elevada reprovação de alunos negros,
e em consequência a falta de discussão sobre estas questões e as relações raciais.
O segundo elemento foi a partir da experiência pessoal, enquanto aluna negra
no ensino particular, lugar de pouquíssimo ou nenhuma presença negra naquele
momento no Rio de Janeiro. Esta vivência de ser “rigorosamente vista, observada,
eu não era acalentada, eu não era acarinhada, eu nunca tomei um carinho de uma
professora”23 contribui para pensar em mudanças no currículo e na escola em
relação aos negros.
Uma foi a minha própria vivência como aluna dentro de
sala de aula, que foi muito dura minha trajetória, foi muito
dura, até porque minha família, imaginado me dar o melhor,
apesar do que falei antes, que fui de uma geração que a
escola pública era considerada melhor, mas a minha família
sempre querendo me dar o melhor, do melhor, me colocou
22
Cf. entrevista.
23
cf. entrevista concedida.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 149
na escola particular, desde o primário, eu nunca estudei em
escola pública, eu fui ingressar numa instituição publica só
na universidade. E porque, porque a instituição pública era
a melhor, então eu fui pra federal, mas ate então só estudei
nas melhores escolas particulares, estudava nas escolas de
brancos [...] as professoras tratam as crianças na escola
pública como filhos, acaricia e botam no colo e dão beijinho,
eu, por exemplo, nunca, tive essa experiência e foi assim
pelo antigo ginasial.24
O terceiro elemento que completa esse processo de elaboração, é a politização
a partir da participação partidária de esquerda e na militância negra:
[...] e aí entra o Movimento Negro como um momento de
politização na minha vida... de perceber o seguinte porque
a esquerda, a esquerda convencional, nos discutíamos
muito educação, sobre a ótica da esquerda eu discuti muitos
autores, quer dizer, eu recebi essa informação também.
Mas acontece que com um viés do Movimento Negro,
um outro tipo também de crítica perpassou também esse
discurso de esquerda que eu tinha de educação, que era
o discurso progressista, etc e tal. Eu fui percebendo que o
discurso de esquerda clássica, as classes populares, elas não
tem cor, não elas não tem cor, então a questão do racismo,
ela não se colocou de maneira clara, contundente e já no
discurso do MN, quando o MN formula as suas diagnoses
sobre a situação do aluno negro na sala de aula, era um
viés totalmente novo, há um viés totalmente outro, eu me
aproprio deste aparato...25
Assim como e a experiência educacional nos países em processo de descolonização
da África, como Angola e Moçambique. Processo que alimenta a discussão, no dizer
de Fanon26, sobre o estatuto colonial, e sua consequência no projeto de libertação.
A minha passagem pela sala de aula na África porque eu
fui trabalhadora de educação em países africanos de língua
portuguesa e durante os anos de reconstrução da África e
aquele tipo de sala de aula me ajudou muito [...] Eu estava
trabalhando basicamente com alunos negros recém-saídos
de um processo colonial.27
Assim argumenta que o compromisso com as classes trabalhadoras, de onde
vem a maioria dos alunos da escola pública, obriga a explicitar os mecanismos de
que se valem os donos do poder para mascarar a discriminação racial, quando
pretendem vincular emprego e escola de modo imediato. Não há como analisar
24
cf. entrevista concedida.
25
Maria José, entrevista concedida.
26
FANON, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
27
Maria José, entrevista concedida.
150 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
o sistema educacional brasileiro sem desmistificar o modelo econômico altamente
concentrador e excludente vigora em países periféricos como o Brasil.
A depoente ressalta ainda que a experiência de dirigir um projeto28 na rede
municipal do Rio de Janeiro, em 1982 foi outra influencia determinante para o seu
trabalho. A Pedagogia Multirracial em seu desenvolvimento vai indicar a necessidade
de se trabalhar na construção da identidade do brasileiro, com especial atenção ao
patrimônio cultural e histórico alicerçados em padrões civilizatórios africanos.
É de fundamental discutir que os valores africanos de
cultura estão presentes tanto na religião, quanto nas artes,
na organização social, na historia e na visão de mundo
dos brasileiros. As culturas negras estão profundamente
internalizadas no “inconsciente coletivo” do homem
brasileiro, independente de raça, cor, ou classe social. A
maneira de ser, de pensar e agir do brasileiro reproduz, em
muitos aspectos, o modelo cultural e comportamental dos
africanos. A própria língua que falamos é um português
africanizado e/ou um aportuguesamento das línguas e
falares africanos.29
Este aspecto civilizatório é bastante ressaltado nos documentos da Pedagogia
Multirracial, tendo em vista que os debates em torno da “cultura nacional” têm-se
caracterizado pelo recalcamento do processo civilizatório levado a cabo no continente
africano.
O início da elaboração da Pedagogia Multirracial é marcada por debate onde as
referências iniciais giravam em torno do multiculturalismo, teoria com mais evidência
naquele momento. De suas diferentes vertentes, Maria José se alinha aquela cuja
doutrina se centrada no respeito à diferença como a mola mestre no combate as
desigualdades raciais, o multiculturalismo crítico30. Do ponto de vista da educação
popular como um elemento importante na estrutura da Pedagogia Multirracial, terá
como aporte o trabalho de Paulo Freire, em conjunto com o processo de educadora
em África, Maria José nos conta:
O Paulo Freire também foi importantíssimo nessa
formulação. A minha passagem pela sala de aula na África
porque eu fui trabalhadora de educação em países africanos
de língua portuguesa e durante os anos de reconstrução
da África e aquele tipo de sala de aula me ajudou muito[..]
Então, veja bem, eu trouxe o Paulo Freire, pois o Paulo
28
Projeto Zumbi dos Palmares, conforme se lê em Ferreira (1987, p. 72): “O projeto tem como
objetivo: deflagrar um processo de reconhecimento da cultura afro-brasileira como parte integrante
da política cultural da Secretaria de Educação, de modo a promover a incorporação do saber
emanado desta cultura no currículo escolar.” Neste mesmo documento temos a informação de que
o projeto atingiu, até 1986, 100 escolas e 42 CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública).
FERREIRA, Vanda de Souza. “Projeto Zumbi dos Palmares”. Raça Negra e Educação – Cadernos
de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, n. 63, nov. 1987, p. 72-73.
29
SILVA, Maria José Lopes da. “Pedagogia multirracial”. NEN: As idéias racistas, os negros e a
educação. Florianópolis/NEN, n. 1, 1997, p. 30.
30
MCLAREN, P. Multiculturalismo crítico. Tradução de Bebel Orofino. São Paulo: Cortez, 1997.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 151
Freire nesta época tava andando na África também, ele tava
na Guiné Bissau, e a gente tinha notícias dele trabalho na
Guiné Bissau, e eu me lembro que o trabalho dele na sua
experiência na Guiné Bissau, esse trabalho veio parar nas
minhas mãos [...] a sala de aula dele que não era muito
diferente da que eu tinha em Moçambique, mas como ele
tava lidando31 lá com aquela realidade, como nos estávamos
lidando aqui, então tudo isso somou, entendeu. 31
No Brasil, diferentes frentes e estudiosos do MN contribuem para este referencial.
Reconhecer tais autores como importantes no processo de elaboração da pedagogia
multirracial, possibilita entender a escola como um campo de batalhas políticas. No
entanto, Maria José vai chamar à atenção que estes estudos não são suficientes,
para moldar as bases da pedagogia pretendida, em função dos seus limites como
respostas às demandas colocadas pelo movimento negro naquele momento. Para
tanto, vai buscar o referencial de África como elemento dinamizador da pedagogia.
Com isso, vai indicar como estruturante para a pedagogia multirracial um autor
que considera de fundamental importância no coroamento que buscava situar sua
proposta pedagógica, a figura de Molefi Asante32. Seu debate crítico gira na discussão
do afrocentrismo, cujo foco é “corrigir o sentido de lugar da pessoa negra e de outro
tecemos a crítica do processo e extensão do deslocamento criado pela dominação
cultural, econômica, e política pela Europa”.
Para Maria José interessa como acúmulo fundamental para a pedagogia multirracial
pensar este deslocamento, defendido por Asante, como não excludente. Ela vai
defender “uma filosofia orientadora do trabalho pedagógico a ser desenvolvido: a
construção de uma visão não-etnocentrada do conhecimento”33. Para ela centrar no
universo africano não significa substituição, como procura explicitar na sua fala sobre
a influência desta teoria para os propósitos da proposta pedagógica em formatação.
Pode-se dizer que este é um processo, mesmo sem está explicitado, que nos remete
a uma dialética cuja centralidade encontra-se em diferentes formas do processo
civilizatório africano. Pode-se ver sobre isto em Cunha Júnior34, ao introduzir o itan35
sobre a narrativa do orixá Exú, como um preâmbulo a dialética africana. Parece-
me evidente um esforço em colocar outros conceitos e conteúdos para a ideia de
elaboração e transmissão da cultura de maioria africana.
Alicerçada por todas estas referências a Pedagogia Multirracial aponta como
pontos fundamentais para seu desenvolvimento, o combate à democracia racial,
ter a escola como um espaço de superação das desigualdades raciais, seja do ponto
de vista de seus conteúdos, das metodologias educacionais até aos processos de
31
Maria José, entrevista concedida.
32
Molefi Kete Asante é americano, doutor em Comunicação pela Universidade da Califórnia,
fundador da teoria afrocentrista
33
SILVA, Maria José Lopes da. Pedagogia multirracial. NEN: As idéias racistas, os negros e a educação.
Florianópolis/NEN, nº 1, 1997, p. 32. (Série Pensamento Negro em Educação).
34
CUNHA JR., Henrique. “Conceitos e conteúdos nas culturas africanas e afrodescendentes”. In:
COSTA, Sylvio G. &PEREIRA, Sonia (orgs.). Movimentos Sociais, educação popular e escola: a
favor da diversidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006, p. 75.
35
Itans são narrativas orais elaboradas em diferentes regiões do continente africano, onde se
transmitem elementos históricos, culturais e sociais de determinado povo.
152 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
avaliação. A Pedagogia Multirracial implica, portanto:
1) Trabalhar o patrimônio cultural e histórico dos grupos
étnicos excluídos numa perspectiva transdiciplinar, ou seja,
em cada um dos componentes curriculares, pois é através do
universo simbólico que a escola mantém os valores racistas
da sociedade abrangente;
2) Incluir nos currículos do pré-escolar ao segundo grau,
nos currículos dos cursos de formação de professores (antigo
Normal), nos currículos do ensino de jovens e adultos
(suplência), nos currículos das faculdades de educação e
demais licenciaturas, o saber fundamentado nos referenciais
do povo brasileiro, sem excluir nenhuma contribuição.36
Para a Pedagogia Multirracial, é de fundamental discutir a dimensão que o
continente africano marca com seus diferentes valores a nação brasileira;
Os valores africanos de cultura estão presentes tanto na
religião, quanto nas artes, na organização social, na história
e na visão de mundo dos brasileiros. As culturas negras
estão profundamente internalizadas no “inconsciente
coletivo” do homem brasileiro, independente de raça, cor,
ou classe social. A maneira de ser, de pensar e agir do
brasileiro reproduz, em muitos aspectos, o modelo cultural e
comportamental dos africanos. A própria língua que falamos
é um português africanizado e/ou um aportuguesamento
das línguas e falares africanos.37
Em 1989, os fundamentos desta proposta são publicizados, onde o documento
da Pedagogia Multirracial apresenta-se em dois grandes tópicos. No primeiro trata
dos Fundamentos Teóricos da Pedagogia Multirracial, onde se subdivide em: redação
de objetivos e perspectivas, redação dos fundamentos filosóficos e metodológicos,
revisão e organização. O segundo tópico destina-se à chamada parte específica.
Nesta parte equipes de educadores e educadoras organizam propostas de reflexão
e intervenção por áreas específicas, a saber: alfabetização, curso de Formação de
professores, ensino Supletivo, História e Integração social. Ainda há mais duas equipes
neste tópico responsáveis pela revisão e organização das referências bibliográficas.
A colaboradora vai situar que a Pedagogia Multirracial é uma proposta datada,
já que não foi incorporada por inteiro nos processos escolares no Rio, tornando-
se uma referencia teórica para outros lugares, muito especialmente na cidade de
Florianópolis/SC.
O NEN e a Pedagogia Multirracial e Popular ao sul do país
Para contextualizar o surgimento da pedagogia e multirracial e popular, em
Santa Catarina, selecionei documentos escritos existentes no Núcleo de Estudos
Negros (NEN), localizando informações do contexto da luta antirracista no estado.
36
SILVA, M. J. Lopes da. Pedagogia multirracial. In: NEN. As ideias racistas, os negros e a educação.
Florianópolis/NEN, nº 1, p. 28, 1997. (Série Pensamento Negro em Educação).
37
SILVA, M. J. L. idem, 1997, p. 30.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 153
Posteriormente, colhemos depoimentos dos militantes38 do MN em Florianópolis, e
dos integrantes do NEN39, mais diretamente da educação.
De maneira geral, no estado existem praticamente em todos os municípios
catarinenses, entidades, grupos, associações e clubes, que despontaram com maior
visibilidade a partir dos anos 80, do século XX, contribuindo para a luta antirracista,
e que ainda necessitam de novas e aprofundadas pesquisas.
A Pedagogia Multirracial e popular surge como iniciativa do Núcleo de Estudos
Negros (NEN), entidade que emerge na cena pública catarinense, na capital
Florianópolis no ano de 1986. É fruto de uma série de discussões iniciadas por
debates informais entre ativistas sem vínculos organizativos e de antigos membros
de outros grupos organizados.
Os debates eram animados pela crítica ao papel do Estado, como partícipe
na perpetuação das desigualdades sociais e a necessidade de políticas públicas
à população negra. Em vista o quadro diferenciado de formações, os integrantes
do NEN optaram por se organizar em comissões de trabalho, que abrigassem
as diferentes atuações. Esta fase inicial, que vai de 1986 a 1994, o NEN atuou
fortemente em estruturar suas ações no estado de Santa Catarina, a partir de um
trabalho militante e voluntário de seus membros.
De 1994 a 2000, marca a fase de consolidação do NEN, tanto pela ação política,
quanto pelo financiamento da Fundação Ford a este trabalho em Santa Catarina.
Momento onde surgem os programas: Justiça e Desigualdades Raciais, cujo objetivo
é atender as vítimas de violência racial e da capacitação de lideranças comunitárias
em direitos humanos e cidadania e operadores jurídicos na busca de instrumentos
legais sobre o direito. Mulheres, logo depois, em promover políticas públicas na
perspectiva de gênero e raça, e ações no campo da saúde reprodutiva e sexualidade,
mercado de trabalho e violência doméstica; e o Programa de Educação, que objetiva
capacitar educadores na compreensão das relações raciais na sociedade e nos
sistemas de ensino.
Este momento marca o processo que tornou o NEN uma referência. Por um
lado, nos debates públicos sobre justiça e desigualdades raciais. E por outro lado, ao
consolidar nos sistemas de ensino, uma estratégia diferenciada sobre o tema negro
e educação. Avalio que tenha sido pelo acerto em função do foco definido pelo
programa, que aliava experiências até então acumuladas por seus membros, com
um olhar para o espaço da escola. Ou seja, definimos o educador como o centro de
nossa intervenção, na preparação de material didático-pedagógico e na discussão do
currículo como arena de luta sobre a história e a cultura do negro no Brasil. Nesse
processo, é importante ressaltar, que estamos na vigência do mandato do vereador
Márcio de Souza, na Câmara Municipal. Tendo como assessoria uma integrante do
NEN, Jeruse Romão, é aprovada a lei que institui a inclusão do conteúdo história
38
Foram entrevistados do movimento negro: Jeruse Romão, Centro de Referência de material
Didático Afro-brasileiro, fundadora e ex-integrante do NEN; Valmir Ari Brito, do grupo de capoeira
Ajagunã de Palmares; Vanda Pinedo, do Movimento Negro Unificado; Marcio de Souza, vereador
e ativista negro, fundador do NEN; Márcia Pereira, microempresária, ex-integrante do Grupo de
União e Consciência Negra; e do movimento de mulheres negras Arilda Cerqueira e Vera Fermiano.
39
Do programa de educação: Joana dos Passos, José Nilton, Adilton de Paula, e o ex-coordenador
geral João Carlos Nogueira.
154 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
afro-brasileira nos currículos das escolas municipais de Florianópolis, em 199440.
Leis de igual teor serão acatadas por cidades como Itajaí, em 1993 e Criciúma, em
1999, com uma intervenção decisiva do programa de educação na interlocução
junto a estas casas legislativas a fim de viabilizar suas respectivas aprovações.
Tendo o respaldo da lei, o programa de educação vai atuar fortemente no processo
de implantação e de formação dos educadores sobre o tema. Para tanto, desafiados
pelos educadores quanto à ausência de subsídios para este trabalho, desenvolveram-
se suportes. Portanto, neste período dei consequência à uma série de publicações
entre eles do Jornal Educa-Ação Afro41. Inicialmente, este material se dirigia à rede
municipal de Florianópolis, que atravessa um processo de reorientação curricular.
Posteriormente, o jornal se reestrutura e vai ter circulação nacional, com sistema de
assinatura para apoio à sua continuidade. Nesta mesma linha tem-se a produção de
bonecos, fantoches e jogos com enfoque na história e cultura negra. Estas iniciativas,
juntamente com a constituição de uma biblioteca temática, contribuem em estruturar
dentro do NEN um acervo, que vai ser paulatinamente aberto ao público interessado.
Do mesmo modo aparece a série de cadernos Pensamento Negro em Educação42,
como afirmação da existência de uma reflexão já aprofundada sobre o tema negro
e educação no Brasil. Além disso, tenho várias participações e organizações de
seminários, debates, oficinas de formação, com especial atenção a intervenção
junto à secretaria de educação em Florianópolis no processo de redefinição de um
novo currículo para o município. Assim como, a ampliação deste debate para o sul
do Brasil ao propor uma rede de educadores da região, na temática sobre o negro
e educação, que posteriormente desemboca na produção de pesquisa sobre esta
temática na região. Foram momentos intensos, de pensar, discutir, planejar executar e
divulgar conjuntamente, com poucos integrantes e ainda assim com poucos recursos,
a luta de combate ao racismo no sul do país.
Na educação, a partir de 2000, houve na trajetória de construção da pedagogia
dois movimentos que impulsionaram o NEN: primeiro uma exigência interna em
sistematizar a sua significativa experiência educativa numa proposição; segundo uma
exigência externa pelo reconhecimento do NEN como a organização do MN com
capacidade técnica e política a ser consolidado numa proposição. Para Joana Passos
Então a gente também se coloca para o debate, eu acho que
mais que uma demanda, é uma exigência que nos tínhamos,
que a entidade tinha com ela mesma, como uma obrigação,
ah, ta na hora da gente dizer o que a gente quer de fato
com educação. E pensando pra além da escolarização, que
onde eu acho que a gente consegue avançar, porque pensar
pra além da escolarização e agregando a questão de raça,
classe e gênero. Que pra mim são os pilares pra pensar a
40
NEN. Multiculturalismo e a pedagogia multirracial e popular. Florianópolis/NEN, n. 8, 2002.
41
O jornal é editado a partir de 1995, com uma periodicidade trimestral, pelo Programa de Educação
do NEN, e continua a circular até o presente momento.
42
Cadernos de textos produzidos a partir de 1997, pelo Programa de Educação do NEN, a fim de
subsidiar os educadores sobre o tema das relações raciais, cultura e história da população negra.
Inicialmente com uma periodicidade semestral, que vai do número 1 ao 8. Hoje continua a ser
publicado de forma não contínua.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 155
PM e P hoje, além de pensar todo o contexto da educação
popular e os princípios teórico-metodológicos e trazer pra
dentro a questão racial.43
O NEN com diferentes trajetórias dos membros que compunha o programa de
educação buscou traçar os encaminhamentos que consideravam indispensáveis a
formulação da pedagogia: a retomada da argumentação teórica produzida por Maria
José Lopes; debates internos a fim de equalizar diferentes concepções; e estratégias de
socialização dos acúmulos estabelecidos no processo de formação interna para este
exercício de concepção de uma proposta pedagógica. Esta percepção de retomada
dos alicerces da pedagogia a partir do que fora traçado no Rio de Janeiro é indicado
na fala de Adilton de Paula:
Precisamos deixar nítido que o NEN não é o formulador
da Pedagogia Multirracial. Pedagogia Multirracial surge
centralmente com a Maria José, a partir dali, dos estudos
também que ela já vinha dialogando com a pedagogia
interétnica, do Manuel e com outras figuras. Então a
grande contribuição, inclusive, que se resgatou no Colóquio
Pensamento Negro em Educação 2006, foi a de Maria
José como uma das grandes formuladoras da Pedagogia
Multirracial, e inclusive, com disposição dela de fazer uma
revisão e um diálogo com a questão popular.44
No campo educativo afirma sua relação com os sistemas de ensino, tomando-os
como tema de estudo, reflexão e intervenção, que inicialmente aconteciam atendendo
as demandas isoladas de professores, estudantes ou escolas públicas, em momentos
específicos, a exemplo das datas comemorativas, o que restringia a atuação apenas
aos momentos em que se estava presente na escola. Disso decorre a necessidade
de um redirecionamento do NEN para a formação dos professores. Com isso, a
Pedagogia Multirracial e Popular (PM e P), se fundamenta internamente, a partir
dos projetos sistemáticos desenvolvidos nas redes municipais de educação, onde se
problematiza as relações sociais e raciais existentes na escola e aponta possibilidades
para o tratamento pedagógico destas, na perspectiva da população negra. Com
tal dimensão, o NEN compreende a pedagogia em tela articulada com a educação
popular, cuja dimensão nasce nas lutas dos negros no Brasil. Assim,
Quando o Núcleo de Estudos Negros/NEN insere a
denominação Pedagogia Multirracial o termo “Popular”,
compromete-se com a construção de uma escola pública
que privilegia a história e as culturas das populações que
constituem a sociedade brasileira, seus valores, formas
de agir e sentir onde a vida cotidiana dos grupos étnicos,
raciais e culturais seja à base do conhecimento curricular.
Significa também, o firme compromisso com um projeto
de profundas transformações sociais, na luta contra toda
forma de injustiça, de opressão e de exploração econômica,
43
Cf. entrevista concedida.
44
Entrevista concedida.
156 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
humana e social. Implica, sobretudo, na reapropriação dos
saberes, do pensar e do fazer pedagógico das culturas e
histórias dos grupos oprimidos.45
Diante deste conjunto de processos políticos, culturais e sociais a Pedagogia
Multirracial e Popular elabora como seus princípios político-pedagógicos:46
1. Tem a luta contra o racismo como um princípio político
pedagógico;
2. É uma pedagogia em construção coletiva;
3. Concebe que a realidade social brasileira é multirracial;
4. Declara e denuncia a existência da raça do racismo como
construção político-social;
5. As pessoas são o centro da relação pedagógica;
6. A vida cotidiana dos grupos étnicos, raciais e culturais é
a base dos saberes curriculares e das relações pedagógicas,
valorizando a visão de mundo das várias matrizes culturais
da história do negro, desde a África até os dias atuais;
7. Explicita as contradições sociais, as relações raciais e as
desigualdades na sociedade brasileira;
8. Está centrada na pesquisa e na autoformação de
educandos e educadores;
9. Entrelaça distintos campos das ciências humanas como
antropologia, sociologia, psicologia, política, etc.;
10. Faz uma leitura crítica e contextualizada do mundo, de
nossa realidade e da Educação no Brasil e no mundo;
11. Atravessa e problematiza outras formas de intolerância,
discriminações e preconceitos como que afetam as relações
de gênero, e a livre orientação sexual, a xenofobia e o
sexismo;
12. Educação como um projeto político de transformação
das injustas estruturas sociais e como projeto pleno de
libertação humana, contra toas as formas de opressão e
exploração.
Considero que o NEN, organização negra catarinense, vislumbrou na proposta
pedagógica carioca elementos, que conduzisse sua prática educativa, alicerçada por
um desejo desde seu nascimento de transformação social. Como pude demonstrar
sua trajetória histórica é alimentada por um processo eminentemente coletivo, sem
deixar de considerar diferentes formulações que circulam o tecido social. Porém,
é evidente que para chegar a formulação de sua proposta pedagógica orientou-se
pelos seus próprios processos de intervenções políticas, sociais e educacionais, como
uma organização do Movimento Negro ao sul do país.
45
PASSOS, Joana Célia dos. Discutindo as relações raciais na estrutura escolar e construindo uma
pedagogia multirracial e popular. In: NEN. Multiculturalismo e a pedagogia multirracial e popular.
Florianópolis/NEN, nº 8, 2002, p. 30 (Série Pensamento Negro em Educação).
46
Em 2002, no citado caderno da série Pensamento Negro em Educação, número 8, se sistematiza os
princípios iniciais da pedagogia, constituindo-se de 13 pontos, que se diferenciam um pouco desta
formulação divulgada no Encontro Nacional Negros e Educação.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 157
Desta forma, evidenciei inúmeros elementos de formação, formulação, concepção
e construção que leva esta organização a adjetivar seu projeto político educacional
como Pedagogia Multirracial e Popular, buscando ir além daqueles elementos
advindos da pedagogia Multirracial carioca. Em Florianópolis, tal pedagogia também
é circunstanciada pelo combate ao racismo, entendido como elemento dinâmico
da dimensão social, prática que perpassa pelas estruturas individuais, grupos e
categorias nos mais diversos espaços.
Nesta análise pude compreender que a Pedagogia Multirracial e Popular se
estrutura como um projeto político de sociedade, tendo como base o associativismo
e o espírito comunitário construído no processo histórico da população negra.
Desta forma, em suas elaborações pedagógicas o popular toma esta dimensão de
construção dos primeiros processos engendrados pelas experiências vividas desta
população.
Considerações Finais
Cada uma das proposições analisadas vai enfrentar, em seu tempo e espaço
diferenciados, singulares desafios. Como proposições de uma pedagogia do
Movimento Negro, elas vão servir para de um lado exigir um trabalho de refinamento
e ampliação de cada um de seus significados, por outro como instrumento teórico-
metodológico apresentado aos sistemas de ensino no diálogo e no desenvolvimento
de ações voltadas, por exemplo, para a implementação da lei 10639, em vários
municípios no estado e do país.
Pude no decorrer destes trajetos históricos analisar que, estes diferentes processos,
ajudam em discutir os limites do próprio sistema educacional, pois ele por sua
dinâmica própria tem dificuldades em absorver outras proposições, que não aquelas
hegemônicas, e advindas do movimento social como um todo. Por diferentes
caminhos, diferentes referenciais teóricos, políticos e sociais, o papel de cada
pedagogia têm sido problematizar os sistemas, quando discute raça, gênero e demais
processos identitários e culturais provocados pela sociedade civil. Neste sentido, tais
pedagogias se comprometem com a reconstituição das diferentes identidades como
um projeto político alternativo ao caráter excludente destes sistemas.
158 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
O presente trabalho é um aprofundamento, The present work is a deeper approaching, started
iniciado no mestrado em Educação, sobre o in our Education MsC thesis, about thinking and
pensar e fazer pedagógico de entidades do doing educational entities of the Black Movement
Movimento Negro (MN) no Brasil, que nomearam (BM) in Brazil, which appointed as teaching
como pedagogia os modelos que norteiam seus models that guide its educational projects for
projetos de educação para o Brasil. Este tema Brazil. This theme shows up in that relevant
mostra-se relevante na medida em que almejo crave overcome the knowledge society and
superar o desconhecimento na sociedade e na the history of education educational proposals
história da Educação de propostas pedagógicas developed by the Black Movement. Investigates
desenvolvidas pelo Movimento Negro. Investiga- the Interethnic Education in Salvador, the Multi-
se a Pedagogia Interétnica, em Salvador, a Ethnic Education, developed in Rio de Janeiro,
Pedagogia Multirracial, desenvolvida no Rio de by José Maria Lopes da Silva and a group of
Janeiro, por Maria José Lopes da Silva e um grupo educators, in the 80s of the twentieth century. As
de educadores, na década de 80, do século XX. well as its deployment in the XXI century, in the
Como também seu desdobramento, no século preparation of Pedagogy and Multiracial People
XXI, na elaboração da Pedagogia Multirracial in the state of Santa Catarina, the Center for
e Popular, no estado de Santa Catarina, pelo Black Studies, the entity’s BM headquarters. The
Núcleo de Estudos Negros (NEN), entidade do research has a social and historical theoretical-
MN da capital. A pesquisa tem como referencial methodological perspective, considering the
teórico-metodológico uma perspectiva sócio subject, its origins and social relationships,
histórica, considerando os sujeitos, suas origens they settled in their life trajectories activist and
e as relações sociais, que se estabeleceram em intellectual. This historical overview will be
suas trajetórias de vida militante e intelectual. combined with the use of oral history theme,
Esta visão histórica será combinada com o uso as the possibility of deepening the meanings
da História Oral temática, como possibilidade de of the cultural and political members of this
aprofundar os significados do universo cultural e movement and its impact on educational policies
político dos integrantes deste movimento e seus in Brazil. Through this proposed systematization
reflexos nas políticas educacionais no Brasil. of pedagogies developed by MN, seek help in
Mediante a esta proposta de sistematização das advancing the debate on race relations, culture
pedagogias desenvolvidas pelo MN, procuro and history of the black population, which occur
contribuir no avanço do debate sobre as relações within the contemporary Brazilian Education and
raciais, a cultura e história da população negra, continue to produce more of the exclusion and
que se verificam no âmbito da Educação brasileira inequalities varied forms.
contemporânea e que continuam a produzir Keywords: Black Movement; Negro and
exclusão e desigualdades das mais variadas Education; Interethnic Pedagogy; Multiracial
formas. Pedagogy; Race Relations.
Palavras Chave: Movimento Negro; Negro e
Educação; Pedagogia Interétnica; Pedagogia
Multirracial; Relações Raciais.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 159
A CATEDRAL DE SÃO SALVADOR DE ANGOLA:
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE UM LUGAR MÍTICO
Patrício Batsîkama1
Álvaro Campelo2
Introdução
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 161
práticas sociais que lhe estão associadas, bem como as narrativas que as interpretam,
configuram um mundo simbólico, no qual os atores sociais investem cognitivamente,
conformando as experiências e as emoções que delas decorrem5.
Assim, a memória deste lugar vive-se da crença e do desejo, fazendo com que
o grupo social se aproprie do lugar, inserindo-o na sua própria história coletiva
(mítica e real). É desta forma que a memória do lugar confere segurança ao grupo6.
Se durante muito tempo a questão da memória coletiva, levantada por Maurice
Halbwachs (1990) e da sua relação com a história foi depreciada, o mesmo não
acontece atualmente7.
Como perguntas de partida temos: qual será a origem da catedral de São Salvador,
e por que é que a memória local a associa a uma proveniência divina? Para a primeira
questão teremos de pesquisar o que nos dizem os documentos históricos; já para
a segunda, a tradição local deverá informar-nos sobre esta percepção das ruínas.
Há, de fato, uma história sobre estas ruínas e este lugar. E é essa história que se
conjuga com os outros sentidos comunicados, pois, tratando-se de ruínas de uma
catedral/ igreja/ templo, onde se invoca o divino, não é estranho que esse divino, o
maravilhoso e todos os mistérios que lhes possam estar associados, façam parte da
tradição local. A primeira aproximação que fizemos partiu do conhecimento dos
sentidos misteriosos dados pelas comunidades a este lugar. Só depois a pesquisa
histórica procurou contextualizá-los. Confrontou-se, assim, a “tradição oral”
(recolhida por Patrício Batsîkama, um dos autores desse artigo) com os “documentos
escritos”, esperando esclarecer as questões levantadas. Para isso, propuseram-se os
seguintes objetivos: (1) buscar a história da evangelização da antiga capital do reino
do Kôngo e as memórias dessa experiência; (2) compreender o comportamento
coletivo das populações na apropriação desse “lugar”, não só em relação às ruínas
da catedral, mas e, sobretudo, à integração e operacionalidade delas no restante
espaço envolvente, seja ao nível das narrativas do extraordinário, seja nas vivências
do quotidiano; (3) saber por que, nos conflitos armados de 1961, quando a União
das Populações da Angola (adiante UPA) vandalizou várias aldeias nos arredores,
a catedral e as pessoas que nela se refugiaram foram salvas. E se os “rebeldes da
UPA” são responsabilizados de profanar o lugar, então porque o seu líder, Holden
Roberto – que terá autorizado a profanação –, é enterrado justamente ao lado de
Kûlumbîmbi?8
Tradição Oral: Descrição e Tipificação
Vamo-nos basear em três tradições orais (representativas) que explicam a origem
das ruínas de São Salvador, em Mbânza Kôngo. Importa salientar que essas recolhas
foram feitas em língua local – kikôngo – mas contentaremos em expor apenas da
versão portuguesa. Apresentamos, em seguida, as versões existentes:
5
CAMPELO, Álvaro. “Espaço, construção do mundo e suas representações”. In: BETTENCOURT,
A. & ALVES, L. (eds.). Dos montes, das pedras e das águas: formas de interacção com o espaço
natural da pré-história à actualidade. Braga: Universidade do Minho, 2010, p. 193 e p. 204.
6
Cf. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990 [1950].
7
Cf. BURKE, Peter. “História como memória social”. In: __________. Variedades da História
Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 67-89; LE GOFF, Jacques. “Memória”. In:
__________. História e Memória. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994, p. 423-483.
8
Kûlumbîmbi quer dizer o que restou dos ancestrais. Trata-se das ruínas de uma igreja do século XVI
em Mbânz’a Kôngo.
162 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
a) Versão 1
Os Nsaku reclamavam a terra vermelha que pertencia
aos Ñzînga. Ambos grupos eram ‘povos irmãos’, mas a
divergência criou inimizade e afastamento [sentimental]
entre eles. Dessa sua fragilidade, surgem os povos Yaka que,
por falta de água, acabaram por ter abrigo dos Nsaku…
Da colusão [dos Nsaku e Yaka], os Nzînga serão vencidos,
maltratados e reduzidos à escravatura… Surgiram epidemias
e inúmeras dificuldades. Os três grupos celebraram na
noite de nsona de mbângala9 a sua união inquebrável.
Ao amanhecer no dia seguinte, kulumbîmbi apareceu… e
simbolizava os mpûngi za bakulu.10
b) Versão 2
Antigamente existia uma floresta chamada nkûmb’a
Wungûdi. Viviam nkuyu e ntêbo. Os padres que vieram
explorar foram interditados pelas populações locais.
Insistiram, e começaram por desflorestar a zona. Todos
eles morreram, e tornaram-se ntêbo. Para vingarem-se,
amaldiçoaram as populações locais com diversas doenças
sem cura [doença de Deus]… daí que todas as populações
reuniram-se e decidiram queimar a floresta e seus espíritos.
Depois das chamas [que duraram todo dia] a terra mudou
para cor avermelhada e estava erguido Kulumbîmbi,
símbolo da união.11
c) Versão 3
Na floresta de Nkûmbimbi wa Ngûndu que ocupava todo
planalto que é hoje Mbanza Kôngo, existia um sítio específico
onde se celebravam cultos dos ancestrais: Nsânda. Ao lado,
nas noites, o fogo aceso que se chamava kisîku kya balûndu
afugentava as populações. Dois grupos de Mankunku ma
Kôngo e Mayaka ma Kôngo montaram seu exército e
marcharam toda noite. A luta durou até amanhecer [no dia
dos ancestrais], de modo que todos eles queimados no fogo
tornaram-se pedras onde apenas podiam entrar as famílias
do grupo Mazînga ma Kôngo.12
Vamos estabelecer um quadro de comparação das três versões:
9
Nsona é nome de dia na cosmogonia kôngo e equivale ao Domingo (Dia do Senhor). Os grupos
em questão são hoje simbolizados pelas três grandes pedras, colocadas ao lado da catedral. Nkuyi
e ntebo são espíritos malvados, ao contrário de ñkîsi e ñsîmbi, que são benfeitores.
10
Simão Lufyâwulwîsu, abril 2011.
11
Soba Katendi, abril 2011.
12
Armando Voza, abril, 2011.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 163
Versão 1: Versão 2: Soba Versão 3: Armando
Lufyawulwisu Katêndi Voza
Antagonismo entre Nsaku Nkûmb’a Wungudi era Nkumbimbi wa Ngûndu:
A
e Ñzînga floresta lugar de culto
Intervenção dos Yaka/ Padres desflorestam e Kisîku kya balûndu
B
Guerreiros morrem afugentam o povo
População local contra
Colusão: Yaka e Nsaku Mankûnnku e Mayaka:
os padres católicos/ C
contra Ñzînga Exército
portugueses
Calamidades: doenças de
Calamidades: epidemias Destruição pós-guerra D
Deus
Depois do entendimento
Das chamas, surgem as
(união): surge Chamas na floresta:
ruínas: lar dos Mazînga E
Kulumbîmbi/ Mpûngi za aparição de Kûlumbîmbi
ma Kôngo
Kôngo
164 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
kikôngo.
A linha C estrutura a colusão entre Yaka e Nsaku contra Ñzînga (versão 1), ou a
constituição do Exército pelos Kôngo da linhagem Mankûnku e Mayaka ma Kôngo
(versão 3). Pode-se considerar aqui três aspectos: (i) Yaka, de que se fala aqui, seriam
os Jagas que destruiram o reino do Kôngo, no final do século XVI; (ii) a primeira
versão junta Yaka e os Nsaku contra os Ñzînga. Das nossas leituras, notamos uma
aproximação da Tradição Oral aos documentos escritos: o monarca kôngo Ñzîng’a
Mpûdi (Dom Bernardo I), que reinou entre 1561-1567, era da linhagem Mazînga
ma Kôngo, e a tradição confunde os dois outros reis que sucederam a este: Mpûd’a
Ñzînga Dom Henrique (1567-1568) e Mpûdi’a Ñzînga Dom Álvaro I (1568-1578).
São da mesma linhagem: Mazînga ma Kôngo; (iii) Dom Álvaro I Mpùdi’a Ñzînga,
que expulsou os Yaka/ Jaga com ajuda do capitão Francisco de Gouveia. Pode-se
compreender internamente com as expressões Mankûnku e Mayaka. Mankûnku
é lembrado pela Tradição Oral como um instrumento jurídico da colusão com
os portugueses na época. Além de ser uma linhagem variante de Nsaku, parece
personificar Francisco Gouveia.
A linha D identifica as calamidades como: (i) doenças de Deus. Entre os Kôngo –
Kimpianga Mahaniah consagrou um estudo sobre isso17 –, quando a doença não é
identificada, alega-se que é “doença de Deus”18. A seu turno, os padres irão atribuir
as calamidades no reino do Kôngo como causa do desrespeito a Deus. Daí nasce o
paralelismo entre a ideologia kôngo, na compreensão das “doenças de Deus”, com
a ideologia católica, que atribui o desastre à causa divina; (ii) as raras populações
que ainda ficaram nas periferias da capital, por falta de acesso à água, à comida e à
segurança, enfrentarão enormes problemas, entre eles, as epidemias. Curiosamente,
Ngûndu pode significar a “cova da Mãe ancestral” como também a “vala comum
onde se enterra cadáveres”. O topônimo “Ngûndu” designa, também, uma “terra
que não pode ser habitada”, “cemitério” e, por analogia, “floresta/ fonte dos seres
sobrenaturais”. A versão 3 menciona uma destruição pós-guerra, o que, se por
um lado, parece retratar os Jagas e outros, por outro pode ser considerada como
memória dessa época19.
A linha E, finalmente, apresenta-nos alguns aspectos: (i) Kulumbîmbi é tido
como “Mpûngi za Bakulu” ou “Instrumentos da Paz dos Ancestrais”. O que, de fato,
significaria isto? A informante Ernestine Bumputu advoga que “Mpûngi za Bakûlu”
seria a mesma coisa que “Mpângu za Bakulu”. Essa opinião é semanticamente
falsa, pois a primeira quer dizer “Tranquilidade dos Ancestrais” e a segunda seria
“Constituições que deixaram os Ancestrais”. Talvez a autora nos queira dizer que
ambos os termos (com significações discrepantes) designam a mesma coisa, ou
tenham um denominador comum (ancestrais). Religiosamente (política e religião
estando concomitantes), o cumprimento dos “Mpângu za Bakûlu” implica a
17
MAHANIAH, Kimpianga. La maladie et la guérrison en milieu kôngo: essai sur Kimfumu, Kinganga,
Kingunza et Kitobe. Kinshasa: Saint Paul, 1982.
18
Na tradição antropológica temos o exemplo dos Azande, estudados por Evans-Pritchard, que não
tendo explicação para a doença, invocavam como causa a bruxaria. Cf EVANS-PRITCHARD,
Edward Evan. Witchcraft, oracles and magic among the Azande. Oxford: Oxford University Press,
1976 [1937].
19
KABWITA, Kabolo Iko. Le royaume kongo et la mission catholique, 1750-1838: du déclin à
l’extinction. Paris: Karthala, 2004, p. 40-53.
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Tranquilidade, mas não dos Ancestrais. Parece que Mpûngi za Bakulu que designa
especificamente “cova dos ancestrais” passa para um outro nível de interpretação,
que vai do sentido literal, para o metafórico/ simbólico, onde “repousam em paz,
os reis antigos que tombaram na busca da Paz no reino do Kôngo”, tal como se
verifica no terreno em Mbânza Kôngo; (ii) Kûlumbîmbi surge depois das chamas na
floresta. Essa memória parece antiga e recente, simultaneamente, por causa de: (a)
floresta Nkûmb’a Wûngûdi precedeu a chegada dos europeus em Mbânza Kôngo, e
aqui Ngûndu seria o “conjunto dos reis da linhagem Mazînga ma Kôngo”20; (b) “as
chamas na floresta” parece recente, podendo ser traduzida por destruição, que já
adiantamos atrás (o que é confirmada pelas fontes escritas), como também, pode
ser a mistura entre “chamas” dos séculos XVI, XVII e XVIII em Mbânza Kôngo e
a “floresta que germinou depois do século XVIII, no local onde estão as ruínas da
antiga catedral de São Salvador”21; (iii) “depois das chamas, surgem as ruínas: lar dos
Mazînga ma Kôngo”. Ultrapassada a questão de identificação dessas “chamas…”,
o que significaria “lar dos Mazînga”? No local, a expressão é sinônimo de Ngûndu,
que já abordamos anteriormente. Jean Cuvelier registou, em 1934, um texto ligado
à linhagem “Ñkânga’ Mvêmba”, que se diz Mazînga também. Nesse texto, as ruínas
pós-guerra são tidas como “lar dos Mazînga”. Se nos permitir cruzar fontes escritas e
orais, veremos que pode se tratar de um episódio do filho de Afonso I, chamado Dom
Pedro I Ñkâng’a Mvêmba, que sucedeu seu pai, em 1542. Depois de ser derrotado
– ou seja “depois das chamas…” – refugiou-se na igreja, a mesma que será feita
Catedral de São Salvador (como veremos a seguir). Posto na igreja, Dom Pedro I
Ñkâng’a Mvêmba terá salvado a sua vida em 1543, somente porque nessa época
as populações consideravam o local como “Ngûndu”, a ‘cova dos reis ancestrais’
onde os restos mortais do seu avô Ñzîng’a Nkuwu (primeiro rei cristão) repousavam,
e ‘Igreja como local santo’, para esse povo evangelizado (ou sob evangelização).
Algumas questões encontram possibilidades da resposta: (a) sacralidade do lugar/
Kûlumbîmbi –parte das razões político-religiosas, quer dos Kôngo pagãos, quer dos
Kôngo evangelizados, justificaria as “tradições orais” a respeito dessas ruínas; (b)
“lugar dos Mazînga ma Kôngo” confunde-se com a sepultura de “Ñzîng’a Nkuwu” que
terá sido enterrado no ‘Ngûndu’ (floresta que alberga as ruínas) e com o refúgio do
seu neto, Ñkâng’a Mvêmba (que era também da linhagem Ñzînga), na mesma igreja.
Os hagiônimos que identificam a Catedral de São Salvador, nomeadamente
“Mpûngi za Bakulu”, “Ngûndu” e “Kûlumbîmbi”, correlacionam-se semanticamente
– pela memória que trazem do passado – para considerar sagradas essas ruínas até
nossos dias. A seguir, iremos consultar algumas escritas da época para construirmos
uma ideia geral sobre o ensino na catedral de São Salvador.
Catedral de São Salvador: Escritas e Iconografias
Testemunhos Escritos
No dia 19 de Dezembro de 1490, três navios – sob comando
de Gonçalves de Sousa – embarcavam missionários (padres
seculares, franciscanos e dominicanos), soldados aguerridos,
pedreiros e carpinteiros… a caminho ao reino do Kôngo.
20
CUVELIER, Jean. Nkutama mvila za makânda mu nsi’a kôngo. Matadi: Tumba, 1934, p. 39.
21
KABWITA, Le royaume kongo..., foto #18.
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Com a evangelização que começa no Soyo em Abril de
1491… inicia-se a edificação da igreja de Mbânza Kôngo
que acaba em Julho de 1491.22
Sabe-se, a partir da mesma fonte, que “Dom Afonso Mvêmb’a Ñzînga fez
construir os locais onde se instalou a Escola para quatrocentos estudantes”23. Mais
tarde, o monarca kôngo “ordenou construir um muro alto, armado de picos, para
evitar qualquer invasão”24.
Kôngo dya Ngûnga (país de sinos) foi o nome que Mbânza Kôngo recebeu por
causa das igrejas construídas entre 1491 e 152625. Vamos parafrasear:
A primeira edificada sob ordem de João I, parece ter
conhecido o mesmo destino que a primeira tentativa de
evangelização: caiu tão cedo em ruínas. Uma outra – talvez
aquele da Santa Cruz – foi construída antes de 1517, data
em que Dom Afonso Iº a menciona. A igreja principal, São
Salvador, que deu seu nome à Mbânza Kôngo no fim do
século XVI terá sido erigida entre 1517 e 152626. Enfim, em
1526, o rei ordenou a construção de Nossa-Senhora-das-
Vitórias, conhecida pelo povo sob título de Ambila, ‘aquela
das fosses’27, porque encontrava-se situada na vizinhança
da floresta sagrada onde repousam os reis desaparecidos…
Um documento de 1595 deixa entender que existiam a esta
data seis igrejas para aproximadamente dez mil lares.28
22
BALANDIER, Georges. La vie quotidienne au royaume de Kongo. Paris: Hachettes, 2009 [1965],
p. 35.
23
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 44.
24
CUVELIER, Jean. L’ancien royaume de Congo. Bruxelles: Desclée, 1946, p. 124.
25
AMARAL, I, “Mbanza Kongo, cidade do Congo, ou São Salvador: Contribuições para o
conhecimento geográfico de uma aglomeração urbana africana ao sul do Equador, nos séculos XVI
e XVII”. In: ORTA, Garcia de (org.). Série de Geografia, 12, Lisboa, p. 02-40, 1996, p. 32.
26
CUVELIER, L’ancien royaume..., nota 57, r. 326.
27
Trata-se aqui de ‘Ngûndu’ (Fonte materna) ou de “Mpûngi za Bakulu’ (Repouso dos ancestrais, que
é matriarcal) que reza a Tradição oral.
28
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 50.
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Fig. 1 – Ruínas da Catedral de São Salvador, Mbânza Kôngo, Província angolana do Zaire, Angola.
Foto: Patrício Batsîkama, s.d.
168 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
contrário; (ii) o fato que os Mayâka ma Kôngo invadiu a Mbâzi’a Kôngo e destruir
também a Madîmba. A versão 3 sintetiza-o, dizendo que “kisiku kya balûndu”
afugentavam as populações. Ora, serão os Nsaku a derrotar os Mayaka e, mais
tarde, a se juntarem a eles, para restabelecer a tranquilidade no país. De acordo
com a cosmogonia kôngo, Mbâzi’a Kôngo pertencia aos Mazînga, razão pela qual
Mankunku (Nsaku) e Mayaka serão vinculados contra os Mazînga. Isto significa que
as obras dos padres, os seus “kisiku kya balûndu”, foram vencidas e destruídas,
entre as quais as antigas igrejas, e principalmente a catedral de São Salvador. Ora,
as ruínas de Kûlumbîmbi – que, na verdade, são as da catedral – passam a ser “obra
de Deus”, ngûndu.
Parece, aqui, estarmos a assistir a uma descolonização da memória local. A
obra dos padres é queimada, as populações confrontaram-se mortalmente… até
surgir essa “obra de Deus” que, desta vez, transmite uma mensagem: união! A
véspera da consciencialização das populações kôngo com Aleixo, Nicolau e Álvaro
Mbuta30, coincide – como veremos a seguir – com a desflorestação31 do local onde
se encontram as ruínas de Kûlumbîmbi. Curiosamente, foram encontradas três
pedras da mítica união dos Kôngo. Talvez seja por isso que os Kôngo interpretam
sua unidade como forma de resistir à colonização portuguesa no reino do Kôngo.
Pois, não poderia ser a cidade europeia porque só a cidade-aldeia descolonizadora
se pronuncia sobre isso: ngûndu-madîmba.
Resumo da História das Igrejas de Mbânza Kôngo: 1491-1885
Em 1506, morreu o primeiro rei cristão João I, Ñzîng’a Nkûwu, sendo sucedido
por seu filho, Dom Afonso, Mvêmb’a Ñzînga, cuja sucessão foi reprovada pelos
constitucionalistas kôngo mas, graças à força aliada dos portugueses, ele alcançou o
trono. É na sua época que a Igreja será instalada na sua capital, doravante dividida
em duas cidades: (i) cidade-aldeia, com os tradicionalistas em Madîmba; (ii) cidade
europeizada, com os modernistas em Mbâzi’a Kôngo. Dom Afonso morre em 1542.
Nkâng’a Mvêmba, Dom Pedro I – tido como filho de Afonso I – irá sucedê-lo em
1543, mas também será contestado, como tinha sido o pai. Vencido pelos seus
rivais, em 1545, ele irá se refugiar na igreja São Salvador, escapando da morte32.
30
WHEELER, Douglas & PELISSIER, René. História de Angola. Lisboa: Tinta-da-China, 2010, p.
138-142.
31
Na interiorização das populações locais, a “desflorestação” pode significar: (a) profanação ao
domínio de Deus (ngûndu); (b) instauração de nova ordem: conflitos entre o natural/Deus, e o
artificial/ Homem; (c) institucionalização da amizade: malûmbu (entre os vivos e os mortos).
32
CUVELIER, Jean & JADIN, Louis. L’ancien Congo d’après les arcchives romaines (1518-1540).
Bruxelles: IRCB, 1953, p. 19.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 169
Fig. 2 – Portugueses fazendo reverência ao rei do Congo.
Gravura de Johan e Theodore de Bry, ilustração do livro Índias Orientais, de 1597.
National Maritime Museum, Greenwich, UK.
Em 1545-1547, reina uma guerra civil que assola a capital e Dom Diogo I (o novo
rei) estabelece um tempo de tranquilidade, que irá durar até 1561. Na verdade, era
um “tradicionalista” que, por razões políticas e econômicas, aceitava cinicamente
o cristianismo. Ele personalizava a ambiguidade entre os “tradicionalistas”, que
nessa época serão tidos como os verdadeiros cidadãos, e os “modernistas”, que
eram assimilados aos “amigos dos estrangeiros”. Ambicionava uma diplomacia
direta com o Vaticano, sem ter Portugal como intermediário, no que não teve êxito
e, descontente com isto, expulsa todos os europeus, salvo alguns padres (no final
de 1555 e início de 1556). Em novembro de 1561, Dom Diogo I morre de forma
trágica, e subirá ao trono Afonso II, um modernista que será mais tarde morto pela
insurreição dos tradicionalistas contra os “estrangeiros” e aliados Kôngo.
A necessidade do consenso levou Bernardo I Ñzîng’a Mvêmba ao trono, que
morre em 1567. Seu sucessor, Henrique I, reinará alguns meses apenas, morrendo
em 1568. Álvaro I Lukeni lwa Mvêmba, que lhe sucede, reinará durante quase
vinte anos, dispondo de uma diplomacia forte como plataforma de estabilidade. É
durante o seu tempo que os guerreiros Yaka, os famosos Jagas, irão invadir Mbânza
Kôngo33. Nesse período da invasão jaga, várias igrejas foram arruinadas, tal como
se pode ler em Pigafetta. A de São Salvador será reconstruída e elevada ao estatuto
de catedral, em 1596, e vários padres forão enviados para essa cidade. O rei Álvaro
I enviará Dom Antonio Manuel (Nsaku Ne Vunda), como seu embaixador junto do
Papa, que depois da sua captura pelos piratas portugueses e espanhóis – chegará
doente a Roma, morrendo no dia seguinte.
Da morte de Álvaro I, sucedeu Álvaro II, mas, entre 1613 e 1641, os monarcas
kôngo são “fabricados” pelos modernistas ou tradicionalistas: uns são demasiado
jovens (Dom Garcia I, 1624-1626) para a situação do reino; outros são de fato
crianças (Dom Álvaro IV, 1631-1636). Nessa época, há presença de holandeses,
33
VANSINA, Jan. “More on the Invasions of Kongo and Angola by the Jaga and the Lunda”. The
Journal of African History, vol. 7, n. 3, 1966, p.421-429.
170 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
franceses e outros europeus, que se interessam pelo comércio com Kôngo. Os
holandeses chegaram a guerrear com os portugueses, na tentativa de expulsá-los
do Kôngo (e Angola), logo no fim desse período.
Dom António I, Vit’a Nkânga, será coroado rei em 1661, depois de muitos
monarcas assassinados. Por sinal, ele é um tradicionalista, cuja candidatura os
padres europeus não aconselhavam, chegando alguns a orquestrar contra a mesma.
Tudo isso porque ele intencionava expulsar do seu reino todos os europeus, tal
como o fez Dom Diogo I, conforme mencionado anteriormente. Dom Antonio I
convocou todos Kôngo do país a lutar contra a opressão portuguesa. Todo Kôngo
foi sensibilizado porque pensava assim terminar com a colonização portuguesa. A
luta entre os modernistas e os tradicionalistas, favorece vitoriosamente os primeiros,
na grande batalha de Ambwîla. Mas são as consequências que nos interessam: (i) os
tradicionalistas, que saem da sua “cidade-aldeia”, irão pilhar a “cidade europeizada”,
destruindo igrejas. Umas desapareceram, sobrevivendo a Catedral de São Salvador,
que tinha os “seus murros ainda de pé”34; (ii) a cidade europeizada “transformou-
se numa floresta… não habitada… e abandonada aos animais selvagens”35. Nem
tradicionalistas nem modernistas pretendiam lá viver jamais; (iii) o país contará,
doravante, com três capitais: (a) de Mbânza Kôngo, que ainda permanecia no
imaginário de todos; (b) abriu-se uma capital, Kibângu; (c) uma terceira capital
estava instalada em Kôngo dya Lêmba. O Papa chegou a reconhecer a capital de
Kôngo dya Lêmba. Com as duas outras capitais, Mbânza-Kôngo ficou sem povoação.
O “corpo religioso” e “corpo diplomático” saíram, então, de São Salvador, para a
capital reconhecida por bula papal.
No princípio do século XVIII, surge um movimento “antonista” liderado por
Chimpa Vita (1700-1702). Dos seus objetivos, conseguimos sintetizar os seguintes:
(i) criar plataforma de negociação entre os tradicionalistas e os modernistas; (ii)
mobilizar as populações a reconhecer Mbânza Kôngo como capital e destituir os dois
reis; (iii) preparar novas eleições. Infelizmente, em 1706, a líder deste movimento foi
capturada pelos padres e queimada viva36. Os poucos habitantes que já ocupavam
Mbânza Kôngo fugiram e se distanciar da “cidade europeizada”.
A sua repovoação foi entre 1842-1884, e depois da Conferência de Berlim
(1885). Nessa altura, Mbânza-Kôngo era uma parte de Angola, colônia portuguesa,
e sua povoação obedeceu a uma política colonial portuguesa de povoar as cidades.
Primeiro, porque lá se encontravam algumas infraestruturas a serem aproveitadas
e, segundo, porque se construíam outras novas.
Durante essa época, as velhas cidades perdidas foram descobertas, inclusive
os muros chamados Kulumbîmbi. A sua descoberta criou: (i) felicidade, porque
existia apenas na oralidade com hesitações de localização, de modo a convergir as
versões existentes; (ii) lembrança da união entre as populações, o que incentivou a
povoação das próprias populações; (iii) responsabilidade acrescida da administração
colonial em conservar a memória local. Mas tudo indica que a memória coletiva
34
CUVELIER, Jean. Relations sur le Congo de Père Laurent de Lucques (1700 -1717). Bruxelles:
Institut Royal du Congo Belge, 1953, p. 57-62
35
BALANDIER, La vie quotidienne..., p. 67.
36
BATSÎKAMA, Raphaël. Voici les Jagas ou l’Histoire d’un peuple parricide bien malgré lui, Office
National des Recherches et du Développement, Kinshasa. Kinshasa: Office National de Recherches
e Devellopement, 1999 [1971], p. 30-31.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 171
tem dificuldades em separar as duas cidades, porque ambas cidades pré-existem
no comportamento psicossocial como “um todo”, assim como, quando os Kôngo
evocam sua origem comum (Kôngo dya Ntôtila ou Kôngo dya Ngûnga ou ainda
Ñkûmb’a Wungûdi…), reconhecem a pluralidade como base da sua união. Esta é
atribuída a uma Mãe ancestral, Ngûndu ou Mazînga.
O Nacionalismo Kôngo e a Catedral de São Salvador
O príncipe kôngo Dom Aleixo recebeu educação portuguesa e, em 1841, orientou
o chefe Dembo (chefe Nambwa Ngôngo, na atual província do Bengo) a se revoltar
contra a imposição portuguesa, porque só podia obedecer às ordens oriundas de
São Salvador. Ele foi preso, em 1842, e libertado em 1856. Mas em 1845, o viajante
alemão Georg Tams, que o visitou, informa-nos que Aleixo ter-lhe-á dito que “as
autoridades portuguesas não tinham o direito de o manter prisioneiro” porque ele
“identificava-se com o Reino do Congo, e não com a Angola portuguesa”37. A ideia
nacionalista kôngo aqui é simples: o reino do Kôngo é um reino amigo de Portugal
e não uma colônia como o foi Angola.
Dom Nicolau, filho do rei Henriques II, do reino do Kôngo, foi educado em Lisboa
e em Luanda, e recorreu às técnicas ocidentais para manifestar o seu nacionalismo
kôngo. Ele solicitava a independência do seu reino numa carta publicada no Jornal
do Comércio, no dia 1º de dezembro de 1859, e chamava à união do seu povo:
makukwa matatu malâmb’e Kôngo. Ele ganhara uma grande notoriedade, de
maneira que o Brasil já lhe disponibilizava suporte diplomático: exílio político. Mas,
A história de Nicolau terminou de um modo trágico, pois,
ao tentar embarcar num navio britânico em Quisembo, a
norte de Ambriz, foi morto por um ajuntamento de africanos
que o consideravam um farsante pró-europeu, um traidor
ocidentalizado à independência tradicional dos africanos a
norte de Luanda.38
Consequência: entre 1860-1870, a colonização portuguesa enfraqueceu no
espaço angolano que pertencia ao antigo reino do Kôngo39.
Ora, é justamente nesse período que Kulumbîmbi reaparece, desconhecida de
duas gerações, na execução de plano urbanístico agregado ao relançamento da
colonização portuguesa na região. Apenas a memória coletiva mencionava a catedral,
mas – como já vimos – com uma larga deformação informativa. Será por isso que
nas versões citadas, kûlumbîmbi aparece como símbolo da união. Essa ideia da
união é a compilação da velha tradição oral sobre (i) Nkûmb’a Wungûdi, (ii) Kôngo
dya Ñtôtila e (iii) Kôngo dya Ngûnga. Com o neo-nacionalismo kôngo nos finais
do século XIX, é compreensível que a velha tradição oral se tornasse como ícone
da união. Os fatos históricos aumentavam a credibilidade: (i) foram encontradas
três pedras da união kôngo, makukwa matatu…; (ii) foram encontradas tumbas
37
WHEELER & PELISSIER, História de Angola, p. 139.
38
WHEELER & PELISSIER, História de Angola, p. 140.
39
“A última guarnição portuguesa foi retirada da capital do Congo em 1870 e, só depois de 1884.
Os portugueses voltaram a ter algum controlo efetivo sobre a região”. WHEELER & PELISSIER,
História de Angola, p. 141.
172 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
dos antigos reis, cuja interpretação local agregava a ideia da união; (iii) o Ngûndu,
que é local da Mãe ancestral, invocava a “união nacional”. Mais tarde, em 1885, a
administração colonial afirma-se de novo.
Entre 1913-1914, o católico Álvaro Mbûta lidera a insurreição que irá envolver
muita gente e muitos territórios, pretendendo alcançar dois objetivos: (i) destituir Dom
Manuel Kiditu do trono Kôngo, que mantinha graças ao auxílio dos portugueses, ou
exonerar os técnicos administrativos portugueses na coroa kôngo, a fim de substituí-
los pelos Kôngo; (ii) responsabilizar o entronado quanto à defesa dos trabalhadores
kôngo que foram entregues aos trabalhos forçados com pouco rendimento.
A época que se seguiu foi a da concorrência das tendências políticas kôngo que
divergiam às associações políticas NGWIZAKO, NTO-BAKO e UPNA. A primeira
defendia a monarquia; a segunda sustentava uma independência exclusivista dos
territórios kôngo de Angola e não Angola na íntegra; e a última, que defendia ideias
republicanas, converteu-se em UPA. Nos três partidos políticos, o lugar da catedral
de São Salvador, vulgo Kûlumbîmbi, foi utilizado inicialmente como ferramenta
unificadora das populações. E, como já tentamos ver anteriormente, foi um penhor
potente na mobilização do povo durante a execução das ideias independentistas.
Depois do declínio do Kôngo até 1885
Em 1665, depois da derrota do Vit’a Ñkânga (Dom Antonio I), Mbânza Kôngo
foi desocupada, tal como relatado anteriormente. Vamos lembrar alguns aspectos
que achamos importantes para compreensão da perda das influências políticas/
religiosas na região e o novo rosto que a cidade irá ter: (i) a transferência da cidade
episcopal de São Salvador para Luanda favoreceu alguma da caducidade para a
primeira, o que permite a sua ascensão à sacralidade da catedral de São Salvador/
ngûndu (passível de mistificação dentro dos valores culturais locais); a segunda
cidade, emergindo, exerce, comparativamente a Mbânza Kôngo, uma força de
influências para que a primeira desapareça, quer em termos de referência religiosa
na região, quer como uma potência econômica e política; (ii) desde então, Mbânza
Kôngo passava a significar a derrota. Isto é, a origem de todos os Kôngo (Mbânza
Kôngo), que outrora era o sustento da união das populações, ilustrava doravante
uma “conquista” (colônia). Mais tarde, a derrota de São Salvador pelos Mayaka,
que se traduz pela vitória dos tradicionalistas sobre os modernistas, confundir-se-á
com o sentido de “São Salvador como colônia portuguesa”. E Ngûndu, que passava
a significar o vitorioso, traduziu-se por Kûlumbîmbi; eis a razão pela qual as ruínas
são obras dos ancestrais Kôngo ou, sobretudo, obra de Nzâmbi (nome que se atribui
ao Deus católico).
No século XVIII, existe um grande silêncio sobre essa catedral de São Salvador.
Podemos buscar três motivos: (i) o reino do Kôngo está dividido, e todos têm
horrores da capital, quer por causa dos sangrentos Jagas, quer por causa de vários
assassinatos dos monarcas kôngo: “Nsi yifwîdi” (país morreu), cantará o povo; (ii)
o reconhecimento papal de mais uma capital criou a ansiedade de viver numa
outra capital e causará o despovoamento de Mbânza Kôngo, do que os padres
reclamavam constantemente; (iii) a derrota do movimento antonista de Chimpa Vita
se traduz pela derrota de povoar mais uma vez a cidade-capital do Kôngo. Isso tudo
fez com que o século XIX seja, logo no início, um período de esforços – por parte
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 173
dos portugueses – na redefinição das políticas coloniais: colonização demográfica40.
Simultaneamente, nascia o nacionalismo kôngo.
Com a colonização de Angola – oficialmente desde 1885 – desenha-se outro
mapa da sociedade kôngo: (i) Mbânza Kôngo fica na colônia portuguesa; (ii) uma
parte que reclama ser fundadora desse Mbânza Kôngo vive no Congo belga e outra
na colônia francesa. Os movimentos sincretistas kimbanguismo e mpadismo, que
irão suceder, criaram – já no início do século XX – outro axi mundi (centro) além
de Mbânza Kôngo. É nessa época que se começa uma profanação passiva das
ruínas Kûlumbîmbi sem haver força institucional ou costumeira para impedir. Um
dos testemunhos pode ser as primeiras fotografias das ruínas, que indicavam um
Kûlumbîmbi muito alargado, ruínas da igreja, outros recintos arruinados. Ora, hoje
em dia, sobram apenas alguns muros da igreja. Ainda assim, há uma versão, segundo
a qual, os “terroristas” da UPA terão saqueado (incendiado) as ruínas, em 196141.
40
BENDER, Gerald J. Angola sob o domínio português: mito e realidade. Luanda: Nzila, 2008, p.
369-374; WHEELER & PELISSIER, História de Angola, p. 139-142.
41
MATEUS, Álvaro & MATEUS, Dalila. Angola 1961. Lisboa: Texto Editores, 2011, p. 117-153.
Verificamos junto dos arquivos da PIDE os ficheiros ligados a essa questão e notamos que, fala-se
de um vandalismo total.
174 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
ele não era da linhagem dos reis.42 Esta justificação é, em parte, verdadeira:
apenas os Ñzînga poderiam reinar. No entanto, alguns reis ali enterrados não
eram da linhagem de Ñzînga, mas de outras (incluída a de Holden Roberto).
II) Segundo, pela dimensão histórica angolana, Holden Roberto é um gigante.
Mas, localmente, as instituições costumeiras responsabilizam a UPA pela
vandalização de Kûlumbîmbi. Quase todas nossas fontes (ligadas às instituições)
expressam “nostalgia” das “tropas da UPA” que expulsaram o colono. E a religião
católica? Aliás, os Tokoistas, foram, no período de 1962-1964, interditados a
aderir à UPA, no quinto preceito. O próprio Holden Roberto terá dito: “o meu
partido assemelha-se à igreja Toko. Entra aquele que quizera (sic)”.43
A igreja católica, outrora assimilada à colonização portuguesa e cuja catedral
já era ícone, parece aqui significar duas coisas, se partimos da “reação tokoista”:
(i) cristianismo; (ii) pátria. Não se esquecerá que a efectivação da revolta de 15 de
Março de 1965 tinha, na sua maioria, militantes tokoistas. Ora, para o tokoismo, a
UPA era contra o cristianismo e inimiga da pátria.
Em 15 de Março de 1961, os comandos da UPA massacraram várias famílias
portuguesas, Umbûndu, e mesmo os Kôngo que não aderiram à causa. Assim
começou a “luta armada pela Libertação Nacional de Angola”. Kûlumbîmbi não foi
poupado, ainda que estivesse em ruínas, de acordo com alguns depoimentos. Há
depoimentos também que advogam o contrário: todos aqueles que se refugiaram
na igreja salvaram suas vidas, porque não foram [não podiam ser] atacados.
O quase silêncio dos acontecimentos é de cunho político. Os arquivos da
Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) sobre a UPA, a este respeito,
contêm informações gerais, e quase silenciosas. Contudo, nessas versões, há várias
incorreções que nos vão permitir compreender o que terá acontecido: (i) os “rebeldes
da UPA” obedecem, antes da operação, aos rituais atribuídos ao tokoismo. Ainda
que haja a probabilidade de que os rituais pertençam à liturgia tokoista, curioso
é que não são “chefes espirituais tokoistas” que operam nesse campo. Quer dizer,
pode haver uma imitação (e, por sinal, muito mal feita) dos rituais tokoistas para
fins políticos. Os resultados que, num primeiro instante, levaram Holden Roberto,
em Nova Iorque, a negar a autoria das atrocidades, não poderiam agradar a
Simão Toko (tão popular na época). Resultado: os cartões de membro proibiam
os Tokoistas a aderir à UPA; (ii) as zonas de onde são oriundos os “rebeldes da
UPA” são mapeadas como de influência tokoista. A PIDE, tendo consciência dessa
realidade, trabalha com a Defesa Nacional portuguesa, a fim de prever as eventuais
atrocidades. Resultado: estabelece o mapa onde há concentrações tokoistas. Mas
um fator que não é considerado são as incompatibilidades: o tokoismo deparar-se-á
com o protestantismo batista e o catolicismo romano na zona do norte. No mapa de
ataque que publica Álvaro e Dalila Mateus44, notamos o seguinte: na província do
42
O avô materno de Holden Roberto (oriundo de São Tomé) foi comprado por um conselheiro junto
da corte real kôngo. Depois da morte do conselheiro, o avô de Holden Roberto foi chamado a
ocupar as funções do defunto. Daí, associou-se sempre a ascendência de Holden Roberto à realeza
kôngo.
43
Citado por Matumona, Vice-presidente da ALLIAZO/PDA, publicado no Courier d’Afrique, n. 24,
3 mar. 1965. Consultamos a tradução nos arquivos da PIDE. “… quizera” é no original.
44
MATEUS & MATEUS, Angola 1961, p. 122.
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Zaire, apenas uma zona poderia ser tokoista e, na província de Uíge, todas zonas
são tokoistas, mas aderem à ALLIAZO/PD, que é uma organização quase adversária
da UPA. Nessas condições, os “rebeldes da UPA” só poderiam ter influências muito
limitadas em relação ao tokoismo; (iii) etc.
É verdade que os “rebeldes da UPA” são angolanos, vivendo nas regiões
fortemente influenciadas pelo tokoismo. A sua operação de 15 de março de 1965
terá facilitado o vandalismo das ruínas de uma ou de outra forma: nem todos eram
de origem populacional (étnica) Kôngo, ou daquela região da antiga catedral de
São Salvador, para respeitar a memória de Kûlumbîmbi. Ainda que assim não fosse,
depois dos terrores nessa zona, Kûlumbîmbi já não era o mesmo. Consultamos três
fotografias do informante Myêzi Álvaro: (i) a primeira é uma cópia de 29 de Setembro
de 1938, que lhe foi oferecido como prêmio de escolaridade por um missionário
batista. A catedral está dentro de uma pseudofloresta; (ii) a segunda é cópia de um
jornal “Kôngo dieto” e data de 1960 (não figura o mês), onde as ruínas ainda têm
as estruturas de outros compartimentos anexos à estrutura da Igreja; (iii) a última,
sem data alguma, apresenta a catedral, tal como se apresenta hoje.
Importa salientar que Myêzi Álvaro fazia parte do NTO-BAKO e seu primo era
conselheiro do NGWIZAKO, o que talvez poderá esclarecer a sua versão sobre a UPA
que, na verdade, não é singular. Há, provavelmente, aqui a ambivalência política
da UPA com NTO-BAKO e NGWIZAKO… e procriará (de certa forma) a versão de
Myêzi Álvaro, natural de Mbânza Kôngo.
Uma última versão, que reza que as partes da estrutura do edifício de Kûlumbîmbi
fotografadas no fim do século XIX, que já não figuram nas imagens atuais, foram
suprimidas pelo governo (“Luyâlu”), quando se fez vedação para proteger as ruínas.
Duas perguntas: (i) Luyâlu é tradução de autoridades governamentais: será governo
provincial ou governo central, ou ainda o governo colonial, a que se refere aqui?;
(ii) a vedação? Será para proteger as ruínas da constante profanação ou eventual
vandalismo? Ainda que o governo provincial cumpra com as orientações do governo
central, não encontramos placas que classificam as ruínas como património nacional
(ainda que assim sejam). Uns pensam que seria uma iniciativa do governo local que,
para proteger as ruínas, que já significavam quase nada para as novas gerações,
preferiu vedar e colocar polícia a vigiar sobre Kûlumbîmbi. Outros partilham outra
opinião, segundo a qual, a administração colonial classificou as ruínas, depois
da sua “descoberta”, nos finais do século XIX, de maneira que as orientações
definidas naquela altura só começaram a ser executadas recentemente, em 2007,
na Mesa Redonda Internacional sobre Desenterrar Mbânza Kôngo. Foi uma medida
inteligente porque, até nos nossos dias, ainda se acredita que o fato de uma pessoa
possuir um bocado das pedras dessas ruínas no seu próprio domicílio, expulsaria os
espíritos maus. Muita gente vem das repúblicas vizinhas, como peregrinos (para os
religiosos e políticos), em busca de bênção. Ora, se tal “crença” existe há mais de
um século, é provável que se justifique, ao longo deste período, algum “vandalismo
passivo/inconsciente”, como uma das inúmeras causas que terá contribuído para
o desaparecimento de outros compartimentos da antiga catedral de São Salvador.
Essa última versão indica as possibilidades das ruínas serem vandalizadas
consciente ou inconscientemente (ou ainda passivamente) pelas novas gerações
que – se afastando das instituições costumeiras e da memória coletiva – são passíveis
176 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
de profaná-las. Só que o “mito” sobre Kûlumbîmbi ainda vigora nas repúblicas
fronteiriças setentrionais (Congo Brazaville e Congo Kinshasa) e influencia de
maneira incalculável as realidades sociais destas comunidades. Neste sentido, isto
pode diminuir a ideia segundo a qual tão-somente a UPA seria responsável pelo
vandalismo. Também se insere aqui a ideia de que há um vandalismo inconsciente
– mesmo para as populações locais, como autoras – em buscar pedrinhas da antiga
catedral como proteção contra os espíritos maus. Finalmente, será impróprio apontar
o tokoismo como principal impulsionador desta prática. O que parece se desenhar
aqui é: o vandalismo ativo e inativo de Kûlumbîmbi pode ser sustentado pela
memória coletiva que se tem sobre as ruínas. Para evitar a sua total desaparição –
enquanto não existir um projeto da restauração, talvez – o “luyalu” (provavelmente
o governo local) tomará medidas para vigiar dia e noite as ruínas.
Como Se Criou a “Tradição Oral” Sobre Kulumbîmbi
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 177
que invadiram e incendiaram a capital do reino do Kôngo; (ii) das resistências dos
monarcas kôngo, principalmente o Dom António, Vit’a Ñkânga; (iii) da forma que
foi queimada a profetisa Chima Vita. Essas histórias resumem-se em Kûlumbîmbi,
o que restou dos ancestrais.
Na segunda fase, a ideia da Igreja Santa Maria, que será mais tarde feita São
Salvador, elevada a catedral, no fim do século XVI, ainda é lembrada pelo poder
econômico e político que, normalmente, se associa ao tráfico negreiro. Curiosamente,
onde está erigida essa magna igreja elevada a catedral era um local de cultos aos
ancestrais, para os Kôngo, antes da instalação portuguesa. Isto é, a igreja (nzo’a
wukîsi) se confunde com ngûndu, cemitério da Mãe ancestral. Serão os príncipes
kôngo – com nacionalismo kôngo – que, no final do século XIX, darão início a isso.
Essas duas fases levaram as populações locais a considerar as ruínas da catedral
de São Salvador como uma obra divina. A explicação parece simples: os Kôngo
católicos/ protestantes (letrados ou não) consideram essas ruínas como misteriosas
por estarem no cemitério pagão, anticristão. Esse aspecto permite desconfiar de
que se trataria da antiga catedral de São Salvador. Curiosamente, o termo nzo’a
wukisi, que serviu para designar – pela primeira vez – essa mesma igreja, tem hoje
um sentido pejorativo: casa dos feitiços. Desta feita, é descartada para a memória
local a possibilidade de as ruínas serem a antiga igreja católica. Daí, Ngûndu, que
é – também – designativo do local, prevalece. Ora, ngûndu constitui o mito pagão
da origem do mundo. A memória coletiva será então balizada: Kûlumbîmbi terá
uma origem divina porque ninguém o construiu.
Considerações Finais
45
Cf. MANGA-AKOA, François. L’Afrique. Histoire d’une longue errance? Paris: Les Éditions
L’Harmattan. 2007.
178 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
Na cidade de Mbânza Kôngo atual, localizada na In the city of actual Mbânza Kôngo, Angolan
província angolana do Zaire, encontramos algumas Province of Zaire, we find some ruins locally
ruínas localmente chamadas “Kulumbimbi” (quer called “Kûlumbîmbi” (“what remains from the
dizer, “o que restou dos ancestrais”). Essas ruínas Ancestors”). These ruins structure the local
constituem, por um lado, a memória local: “Deus memory: “God created them”, People saying. In
que criou essas ruínas”, dizem as populações. the other hand, there are historical documents
Por outro, há documentos históricos que fazem mentioning it, thereof, as Cathedral since sixteenth
menção dessa catedral desde século XVI, embora century. Pictures from nineteenth century show
as imagens (gravuras) irão surgir no século XIX. the ruins. We are interesting in reconstructing the
Interessa-nos reconstruir os limites da memória parameters of memory and of historiography, as
e da historiografia dessas ruínas e compreender well, of these ruins and find out the dynamics of
o processo formador/ transformador dos fatos them in actuality. Kôngo nationalism born on
em memória, na atualidade. O nacionalismo some local dominated by a memory stereotyped
kongo que nasce num espaço dominado por by some Rhizomatic Angolanity of UPA, which
essa memória estereotipou uma angolanidade prevails until today in the political organization of
rizomática da UPA que prevalece ainda hoje FNLA. This Angolanity defends the local identities
na organização política denominada FNLA. É in national identity (Angolan). And, although
uma angolanidade que defende as identidades some positions are exclusivists/ authenticists, its
locais como modeladoras da identidade nacional fundamental intention consists in integrating the
(angolana). E, ainda que algumas posturas Global with some peculiar identity. This article
seja exclusivistas/ autenticistas, a sua intenção seeks to localize the origin of this process.
fundamental é integrar na globalidade com algum Keywords: Rhizomatic Angolanity; Mbânza-
peculiaridade identitária. Este artigo procurar Kôngo; Memory.
situar a origem disso tudo.
Palavras Chave: Angolanidade Rizomática;
Mbânza-Kôngo; Memória.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 179
REFLEXÕES SOBRE UM PROJETO DE PESQUISA EM
HISTÓRIA COMPARADA:
HAGIOGRAFIA, SOCIEDADE E PODER NA
PENÍNSULA IBÉRICA MEDIEVAL1
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva2
Leila Rodrigues da Silva3
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 183
fortalecimento institucional de monastérios e bispados que os tinham como patronos.
As hagiografias medievais não exibem unidade quanto à forma, organização
ou processo de composição. Alguns textos possuem caráter institucional, como as
bulas e os processos de canonização, ou particulares, como sermões, cartas, etc.
Nos primeiros séculos da Idade Média, o latim, a língua dos cultos e da Igreja, foi
utilizado para a redação dessas obras. A partir do fim do século XII, as hagiografias
começaram também a ser traduzidas ou escritas nas línguas vernáculas, passando
a alcançar um público mais amplo.
Estes textos foram elaborados majoritariamente por eclesiásticos, tanto clérigos
como religiosos, atores sociais comprometidos com a instituição eclesiástica e
inseridos em redes de poder. Logo, a produção dos referidos materiais não busca
somente estimular a veneração aos considerados santos, mas também expressar
traços textuais e culturais característicos dos momentos de sua produção e evidenciar
facetas das relações de poder das sociedades em que se inserem. Desta forma, ainda
que tratem do mesmo santo, tais obras apresentam diferenças quanto à forma e ao
conteúdo.
No estudo das hagiografias, portanto, há que considerar que estes escritos
interagem com um conjunto diverso de elementos, tais como as tradições que lhe
são anteriores; os padrões de comportamento que os eclesiásticos desejavam impor
ao conjunto de fiéis; os interesses diversos, as crenças e os valores dos grupos que
os patrocinaram e/ ou produziram; o grau de saber e as escolhas dos redatores; o
público que se desejava atingir; as motivações para a sua redação, as relações de
poder instituídas no momento de redação, etc. Por outro lado, estamos cientes que
tais textos foram difundidos em constante diálogo com a sua recepção, ganhando
novos sentidos ao serem transmitidos. Desta forma, nossa análise recusa a idéia de
que os textos são reflexos diretos da organização social e procura atentar para os
múltiplos elementos que lhes constituem e dão sentido.
Nesta pesquisa, dedicamo-nos ao estudo comparativo, sincrônico e diacrônico,
de quatro textos hagiográficos produzidos na Península Ibérica, em períodos e
conjunturas distintas do medievo, a saber, no reino visigodo e no reino de Castela:
Vita Sancti Fructuosi, Vita Sancti Aemiliani, Vita Dominici Siliensis e a Vida de San
Millán de la Cogolla.
A Vita Sancti Fructuosi (VSF) foi escrita em fins do século VII, por autor anônimo.
Dividida em vinte capítulos, a obra centra-se na figura de Frutuoso, em especial,
no seu empenho em desenvolver a atividade monástica, por meio da fundação de
cenóbios. Frutuoso viveu entre os anos de 610 e 665, tendo sido consagrado bispo
de Dume e, pouco depois, de Braga, em 6566.
A VSF distingue-se por um estilo simples e quase sempre direto, ou seja, o
hagiógrafo faz um relato narrativo, sem a utilização de muitos recursos retóricos.
A existência e a análise de textos contemporâneos – como a Regula monachorum,
escrita pelo próprio Frutuoso –, que atestam detalhes da sua vida, permitem-nos
identificar na VSF lacunas e imprecisões, mas favorece, também, a certeza de que
a obra mantém referências cuja historicidade não deve ser negada. A versão que
6
DÍAZ Y DÍAZ, M. C. “Notas para una cronologia de Frutuoso de Braga”. Bracara Augusta, Braga,
v. 21, 1968, p. 222.
184 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
utilizamos na presente pesquisa foi produzida pelo reconhecido filólogo, especialista
em estudo de textos clássicos e medievais, Diaz y Diaz, e publicada em 1974.
Vários manuscritos da VSF foram preservados, sendo o mais antigo o “T”,
concluído em 902 e identificado, como a maioria deles, com a compilação
hagiográfica realizada, no século VII, por Valério de Bierzo. Entre os séculos X-XIII,
foram produzidos pelo menos mais sete cópias, dentre as quais a “E” e a “e”, que
foram produzidas no mosteiro de San Millán de la Cogolla7.
A Vita Sancti Aemiliani (VSA) foi escrita em torno de 640, por Bráulio, bispo de
Saragoça. Dividida em trinta e duas partes - um prefácio e trinta e um capítulos -, a
obra circulou durante a Idade Média acompanhada de uma carta do autor dirigida
a seu irmão, Frominiano, a pedido de quem produzira o escrito a ser lido durante
a missa. O texto descreve a trajetória de Emiliano, homem santo, que teria vivido
entre os anos de 473 e 574.
Bráulio, que viveu entre 590 e 651, foi identificado em sua época, entre outras
razões, por sua erudição e dedicação à instituição eclesiástica. Tais aspectos norteiam
a redação da VSA, assim como o conjunto da sua obra8. Utilizando-se de vários
recursos literários, Bráulio produz um relato que poderíamos caracterizar como
dividido em dois blocos. No primeiro deles, constituído pela carta de apresentação e
pelo prefácio, o autor adota uma linguagem rebuscada. Tal característica, entretanto,
não se mantém por todo o escrito. Atento ao contexto à sua volta, indica uma de
suas preocupações quanto à divulgação do material: “Por tanto, dicté, como pude, y
escribí en lenguaje sencillo y claro, como conviene a tales asuntos” (VSA, prólogo).
Desse modo, estabelece seu compromisso com uma linguagem mais simples e
clara que marcará o segundo bloco, constituído em sua maior parte pela exposição
dos milagres de Emiliano. Utilizamos, no projeto ora comentado, a edição latina
preparada por Vázquez de Praga, de 1943,9 e a espanhola de Toribio Minguella,
de 197610.
Esta obra foi preservada em nove manuscritos produzidos entre os séculos X
e XIII: “A”; “B”; “C”; “E”; “F”; “H”; “P”, e “L”11. O primeiro deles, o “A”, procede
originariamente do mosteiro de San Millán e remonta ao século X, enquanto que o
segundo apenas teria sido produzido no século XII12.
A Vita Dominici Siliensis (VDci) teve a sua redação iniciada no século XI por um
monge do mosteiro de Silos13, identificado pelos pesquisadores como Grimaldo,
religioso de origem franca que teria chegado à comunidade silense devido à influência
7
ANÔNIMO. La vida de San Fructuoso de Braga. Traducción y edición crítica de Manuel Díaz y
Díaz. Braga: s.r., 1974, p. 32-63.
8
Dentre as obras atribuídas a Bráulio e preservadas, além da VSA, destacam-se um conjunto de
trinta e duas cartas e um documento conhecido como “Praenotatio”, espécie de catálogo dos textos
de Isidoro de Sevilha. LYNCH, C. H.; GALINDO, P. San Braulio obispo de Zaragoza (631 - 651):
su vida y sus obras. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1950, p. 231-254.
9
BRAULIONIS, Sancti Caesaraugustani episcopi. Vita S. Emiliani. Edição crítica de Luis Vazquez de
Parga. Madrid: Instituto Jeronimo Zurita, 1943.
10
BRAULIO DE ZARAGOZA. “Vida y milagros de San Millán”. Traducción por Toribio Minguella.
In: B. OLARTE, Juan (org.). San Millán de la Cogolla. Madrid: Librería Editorial Augustinus, 1976,
p.11-40.
11
BRAULIONIS, Vita S. Emiliani, p. XX.
12
LYNCH & GALINDO, San Braulio…, p. 259-264.
13
Nesta primeira etapa de redação foram compostos o livro I e o II até o capítulo 39.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 185
de Cluny no monacato beneditino na Península Ibérica. Durante o século XII, esta
obra foi alvo de ampliações de pelo menos dois autores anônimos14. Como destaca
Válcarcel, este núcleo original “tendía a recoger, a medida que el tiempo y la tradición
avanzaban, toda la creación literária em latín que el monastério iba produciendo
sobre el santo”15.
Esta vita apresenta Domingo, que viveu entre 1000 e 1073 e se destacou pelo
trabalho de reforma material e espiritual desenvolvido na comunidade de Silos
na época em que ali foi abade. Este texto foi escrito em latim e, na versão atual,
encontra-se dividido em três livros: no primeiro narra episódios referentes à trajetória
do santo, aos milagres que teria realizado em vida, à sua morte, sepultamento e
elevação ao altar da igreja abacial. No segundo e no terceiro, os hagiógrafos se
dedicaram somente aos milagres atribuídos ao Santo após a sua morte.
Sabemos que o núcleo inicial da VDci foi redigido a pedido do abade Fortunio,
que substituiu Domingo à frente da comunidade de Silos, como parte das iniciativas
voltadas ao reconhecimento da santidade do antigo abade, transformado em patrono
da comunidade justamente naquele período. O texto foi escrito em prosa e visava
como público alvo, sobretudo, aos próprios monges da comunidade silense. Ele
foi transmitido por dois manuscritos medievais: o “S”, Códice n. 12 da Biblioteca
de Silos, provavelmente de início do século XIV, e o “R”, n. 5 da Real Academia
Española, datado do século XV. A versão que utilizamos neste projeto é a edição
crítica e bilíngue (latim/ espanhol) preparada por Vitalino Valcárcel e publicada em
198216.
A Vida de San Millán de la Cogolla (VSM), tal como a VSA, já apresentada,
dedica-se a narrar a trajetória de São Emiliano. Foi redigida pelo clérigo secular
Gonzalo de Berceo, por volta de 1230. Esta obra foi composta em castelhano, em
estrofes de quatro versos alexandrinos e a partir de fontes escritas, certamente a
pedido da comunidade monástica de San Millán de la Cogolla, um dos maiores
e mais ricos mosteiros ibéricos medievais, mediante pagamento. Além da Vita de
Bráulio de Zaragoza, principal fonte das estrofes 1 a 361, foram utilizadas, dentre
outras, o Privilegio de Fernán Gonzalez, os Annales Compostelani, o Cronicon de
Cardeña, o Cronicon de Burgos, as crônicas Silense e Najerense, a Translatio Sancti
Emiliani, o Cantar de Roncesvales, a Crónica de Alfonso III e o Liber Miracolum
Sancti Emilianae.
O poema divide-se em três livros. O primeiro apresenta a biografia do santo. O
segundo, os feitos milagrosos realizados em vida e sua gloriosa morte. O terceiro,
os milagres pós-morte, dentre os quais se destaca o que teria ocorrido no século
X, quando, junto a Santiago, lutara ao lado dos reis cristãos contra os mouros na
batalha de Simancas. Neste texto, Emiliano é considerado patrono de Castela e
fundador do mosteiro de San Millán de la Cogolla. Esta obra foi transmitida por
cópias do século XVIII: “O”, que contém as estrofes 1 a 205 e pertence ao acervo
da Biblioteca Nacional de Madrid, “M”, com as estrofes 206 a 489, e acha-se no
14
Quando foram acrescentados capítulos ao livro II e foi escrito o III.
15
VALCARCEL, Vitalino. La Vita Dominici Siliensis de Grimaldo. Estudio, Edición Crítica y
Traducción. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 1982, p. 54.
16
VALCARCEL, La Vita Dominici...
186 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Arquivo dos Beneditinos de Valladolid17; “I”, que está no Mosteiro de Santo Domingo
de Silos; “L”, do Arquivo de Valladolid. Utilizamos em nossa análise a edição crítica
deste poema elaborada por Brian Dutton18.
Em sintonia com as atuais tendências historiográficas internacionais, este
projeto vincula-se ao interesse acadêmico pelos estudos hagiográficos que pode ser
constatado pela quantidade de trabalhos que são produzidos e publicados sobre a
questão a cada ano, como os periódicos especializados, como a Analecta Bollandiana,
Hagiologia e Hagiographica; a edição crítica de fontes; a organização de associações
científicas, com sede em diversos países e que reúnem pesquisadores de todo o
mundo, como a Arbeitskreis für Hagiographiesche Fragan, a Associazione Italiana
per lo Estudio della Santitá, dei Culti e dell' Agiografia, o Hagiologia: Atelier Belge
d’Etudes sur la Santeté e a Hagiography Society; a manutenção, por universidades
e centros de pesquisa de diferentes países que mantém homepages sobre o tema19,
bem como de listas de discussão acadêmica20; a organização de congressos que
reúnem especialistas para apresentar e discutir suas conclusões de pesquisa a partir
da investigação de documentos hagiográficos, como o que foi realizado em Lyon,
França, em outubro de 2010, sobre o tema Normes et hagiographie au Moyen Âge.
Apesar dos avanços no campo dos estudos sobre a hagiografia, ainda há muitas
temáticas e questões a explorar, principalmente no que se refere aos textos produzidos
na Península Ibérica. São ainda poucos os trabalhos que se dedicam a estudar,
na perspectiva histórica comparada, sobretudo diacrônica, as obras hagiográficas
produzidas naquela região. Considerando a ausência de materiais que, de forma
sistemática, analisem e comparem a produção hagiográfica no âmbito da Península
Ibérica, buscamos uma abordagem voltada aos elementos textuais, às proposições
comprometidas com a indicação de padrões de conduta e às relações de poder de
naturezas variadas21, evidenciadas na escrita hagiográfica produzida, primeiramente,
no reino visigodo e, posteriormente, no reino de Castela.
No desenvolvimento deste projeto, dialogamos com a historiografia já produzida
sobre hagiografia medieval22, em especial a ibérica, buscando problematizar as
abordagens tradicionais e construir novas perspectivas de análise. Objetivamos, ao
estudar cada hagiografia selecionada em particular, identificar e analisar os seus
elementos textuais. No segundo momento, à luz do contexto de produção de cada
obra, buscamos verificar aspectos concernentes à indicação de normas de conduta
para clérigos, religiosos e laicos e às relações de poder eventualmente expressas em
tais obras.
No tocante à comparação, destacamos duas etapas. Na primeira confrontamos as
17
“O” e “M” que, de fato, são partes do mesmo texto copiado por Diego Mecalaeta.
18
GONZALO DE BERCEO. Obras completas. 2. ed. Estudo e edição crítica por Brian Dutton.
Londres: Tamesis Books, 1984. v. 1: La vida de San Millán de la Cogolla.
19
Consultar, por exemplo: <http://www.doaks.org/research/byzantine/projects/hagiography_
database/>; <http://www.unioviedo.es/CEHC/>; e <http://www.the-orb.net/encyclop/religion/
hagiography/hagindex.html>.
20
Como, por exemplo, a lista <medieval-religion@mailbase.ac.uk> e a brasileira <santidade-
poder@yahoogrupos.com.br>.
21
Tais como as relações de poder derivadas do gênero, do status religioso, da hierarquia eclesiástica,
do exercício do poder monárquico, etc.
22
Como algumas das obras citadas neste artigo.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 187
hagiografias do mesmo período e, depois, as visigóticas face às castelhanas, a fim de
identificar e analisar aspectos textuais que evidenciam permanências e rupturas na
escrita hagiográfica. Também identificamos e analisamos elementos de confluência
e de divergência concernentes à imposição de comportamentos modelares para
clérigos, religiosos e laicos e às relações de poder relacionadas às suas produções.
Para realizarmos esta comparação, seguimos a proposta do historiador Jürgen
Kocka, presente no artigo Comparison and beyond23. De acordo com o autor,
“comparar em História significa discutir dois ou mais fenômenos históricos
sistematicamente a respeito de suas singularidades e diferenças de modo a se alcançar
determinados objetivos intelectuais”24. Esta definição coaduna-se perfeitamente
com os propósitos do projeto, visto que elege os fenômenos históricos como
objetos a serem comparados, diferentemente da História Comparada Clássica, que
só vislumbra a possibilidade de comparação entre sociedades contemporâneas e
vizinhas.
A comparação de fenômenos, e não de sociedades, permite diminuir a escala
de observação e analisar aspectos particulares. Tais objetivos podem ser alcançados
justamente devido aos propósitos heurísticos, descritivos, analíticos e paradigmáticos.
Heurísticos, porque “permite identificar questões e problemas que se poderiam de
outro modo perder, negligenciar ou apenas não inventariar”25. Descritivos, pois “a
comparação histórica ajuda a esclarecer os perfis de casos singulares”26. Analítico,
porque “pode exercer o papel de um experimento indireto, facilitando o testar
hipóteses”, já que propicia o levantamento de questões e hipóteses sobre a relação
entre os fenômenos27. Paradigmático, pois, ao contrapormos hagiografias visigóticas
e castelhanas, é possível verificar o distanciamento entre elas28. Ou seja, a partir da
comparação identificamos e analisamos aspectos que, possivelmente, não ficariam
evidenciados em uma análise isolada destes textos.
Desta forma, pautados na abordagem comparativa de Kocka e dialogando com
a literatura comparada29, realizamos um trabalho de comparação das hagiografias,
identificando, como já destacado, diferenças formais em sua organização textual
e referências que apontam para a elaboração de normas para toda a sociedade,
bem como que se relacionam às relações de poder instituídas em cada contexto de
produção. Vale sublinhar, mais uma vez, que se trata de um exercício de comparação
que combina a análise sincrônica e a diacrônica. Ou seja, não visamos somente
contrapor as hagiografias selecionadas ao seu contexto imediato de produção, mas
também discutir que traços textuais, padrões de conduta e relações de poder que
particularizam as hagiografias produzidas no reino visigodo e em Castela.
Foi esta preocupação com a sincronia e a diacronia que nos fez selecionar as
hagiografias já apresentadas. A escolha das hagiografias visigóticas, a VSA e a VSF,
decorre do fato de terem sido produzidas em ambientes eclesiásticos distintos. Ainda
23
Transcrevemos aqui a tradução do texto de Kocka realizada por Maria Elisa da Cunha Bustamante.
24
KOCKA, Jürgen. “Comparison and beyond”. History and Theory, Middletown, n. 42, 2003, p. 39.
25
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 40.
26
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 40.
27
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 40.
28
KOCKA, “Comparison and beyond”, p. 41.
29
Sobre as novas perspectivas de literatura comparada ver: CIORANESCU, Alexandre. Principios de
Literatura Comparada. Santa Cruz de Tenerife: Idea, 2006.
188 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
que o autor da VSF não seja conhecido, esta obra foi escrita em um espaço monástico.
Já a VSA, trata de um eremita que foi ordenado sacerdote e foi redigida por um bispo.
Ou seja, mais vinculada ao universo clerical. A opção pela VDS justifica-se pelo fato
de apresentar um santo contemporâneo e, portanto, sem qualquer vinculação com
o passado visigótico, visto que seu autor foi o primeiro a construir uma memória
sobre santo Domingo30. A eleição da VSM justifica-se na medida em que retoma um
personagem já consagrado como santo há séculos, Emiliano. Assim, em uma análise
qualitativa, contamos com uma espécie de variável de controle31. Ou seja, o fato
de um mesmo santo ter sido tratado por hagiografias de épocas distintas favorece a
avaliação das transformações formais e de conteúdo pelas quais os textos passaram.
Das hagiografias visigóticas às castelhanas, elementos foram introduzidos, alterados,
suprimidos, mais ou menos valorizados; ou seja, o recurso adotado certamente nos
proporciona melhores condições de análise. A seguir, apresentamos algumas das
nossas principais conclusões de pesquisa32.
Aqui não é demais lembrar que a conjuntura na qual a VSF e a VSA foram escritas
demandava das autoridades clericais atenção à cristianização. A conversão dos
monarcas visigodos em fins do século anterior fornecera à Igreja local instrumentos
materiais para a expansão da fé, mas muito havia ainda que ser feito. Nesse contexto
pós-conversão, as autoridades religiosas locais buscaram ampliar o raio de atuação
e penetração do cristianismo junto aos habitantes do reino, concomitantemente ao
reforço da instituição eclesiástica, com amplo investimento na realização de concílios,
qualificação dos quadros internos, reforço da disciplina, uniformização da liturgia,
fortalecimento da atividade monástica, entre outras atividades.
Frutuoso, o santo hagiografado pelo autor anônimo da VSF, nasceu na região do
Bierzo, em torno de 610, e sua família integrava a nobreza. Sua formação intelectual,
atestada especialmente pelas referências em seus escritos33 ao texto bíblico, às obras
de Cassiano e de Jerônimo, entre outros autores, é compatível com a que se atribui
de um modo geral aos integrantes do episcopado hispânico.
Além da interação com os aspectos que caracterizaram a conjuntura após a
30
Segundo Borbolla, há uma notícia, encontrada por Úria Maqua, sobre uma possível vida de Santo
Domingo redigida em prosa por um monge de Ripoll, Armengol Rogerio, que teria passado uma
temporada em Silos. Esta obra seria anterior a VDci. Esta é a única referência a esta possível
hagiografia. Cf. GARCÍA DE LA BORBOLLA, A. “Santo Domingo de Silos, el santo de la frontera.
La imagen de la santidad a partir de las fuentes hagiográficas castellano-leonesas del siglo XIII”.
Anuario de Estudios Medievales, Madrid, v. 31, n. 1, 2001, p. 128, nota 5.
31
A variável de controle é aquela que, como o nome indica, é controlada pelo pesquisador. Este
elemento permite observar, através da comparação, como se dá a passagem de um fenômeno a
outro. Em nosso caso, a variável de controle reside no fato de que duas das obras em análise tratam
do mesmo santo. Este aspecto serve de controle ou parâmetro para avaliar o grau de transformação
formal e de conteúdo entre as hagiografias visigóticas e castelhanas.
32
Vale destacar que parte das conclusões aqui apresentadas já foram alvo de trabalhos apresentados
em eventos acadêmicos e/ ou publicados em forma de artigos, capítulos de livros ou textos
completos em anais. As referências completas de tais textos podem ser encontradas em nossos CV
Lattes.
33
Frutuoso escreveu dois textos para a comunidade monástica: Regula Monachorum e Regula
Communis. FRUTUOSO. “Regula Monachorum”. “Regula Communis”. In: REGLAS Monasticas
de España Visigoda. Los tres libros de las “Sententias”. Edición de Julio Campos y Ismael Roca.
Madrid: BAC, 1971, p.137-162; FRUTUOSO. “Regula Communis”. In: REGLAS Monasticas..., p.
172-208.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 189
conversão, a trajetória de Frutuoso também esteve marcada pela instabilidade política
resultante de conflitos entre as facções dirigentes do reino. Considerando que membros
do seu grupo nobiliárquico foram vítimas dos confiscos de propriedades realizados
pelo monarca Chindasvinto (642-653), sua elevação ao episcopado bracarense,
no X Concílio de Toledo (656)34, pode ter resultado de ações implementadas por
Recesvinto (653-672). Este rei, visando ampliar as suas bases de poder, buscou
compensar segmentos da nobreza prejudicados durante o governo do seu pai35. É
possível, pois, que a indicação de Frutuoso ao bispado fizesse parte dos acordos
realizados entre monarquia e segmentos da nobreza, que Recesvinto tentava atrair
como aliados36.
O percurso de Frutuoso compreendeu a participação em concílios, a liderança
de um movimento político que buscava reivindicar junto a Recesvinto a devolução
de propriedades confiscadas37 e uma ativa correspondência com outros bispos38.
Apesar da sua atuação em frentes diferenciadas, as atividades que desenvolveu
relacionadas à fundação de mosteiros e à organização da vida monástica foram,
sem dúvida, as que garantiram sua fama na posteridade39.
Dos vinte capítulos que compõem a VSF, apenas sete (5; 9-13, e 17) não se
dedicam explicitamente a demonstrar a atividade monástica de Frutuoso, em especial
a sua capacidade de fundar mosteiros nas mais inacessíveis regiões. A maior parte
dos milagres presentes na obra realiza-se, inclusive, para garantir que a sua vocação
de organizador da vida monástica seja preservada (VSF 3; 7; 13, e 14). Devemos
lembrar, no entanto, que o hagiógrafo não deixou de salientar sua simpatia pelo
eremitismo. O santo é associado explicitamente à vida solitária em, pelo menos,
três situações ao longo do texto (VSF 4; 8-9). De qualquer modo, tal simpatia não
o torna refratário às orientações da hierarquia eclesiástica, já que, como sabemos,
tornou-se bispo.
Os milagres presentes na VSF, assim como suas virtudes, identificam Frutuoso
como um mediador entre os homens e a divindade, como é próprio dos santos, mas
reservam-lhe lugar destacado no que diz respeito à atividade monástica. Em um
contexto de expansão do cristianismo e de fortalecimento da igreja local, o hagiógrafo
valorizou a trajetória frutuosiana pela disposição em multiplicar os cenóbios existentes
na região e por representar um modelo a ser seguido pelos monges: “(...) com seu
exemplo (...) iluminou a Hispânia inteira e por meio das congregações de monges nas
34
CONCILIOS Visigóticos e Hispano-Romanos. Edición de Jose Vives. Madrid: CSIC. Instituto
Enrique Florez, 1963, p. 308-324.
35
GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989, p. 166-169.
36
Outro indício de que a conjuntura de instabilidade política de algum modo interferiu no percurso
de Frutuoso diz respeito ao grande influxo de monges às casas monásticas organizadas na Galiza,
sob sua orientação. Muitos buscaram nos mosteiros proteção, ou seja, segurança diante das
dificuldades políticas e econômicas. Segundo a Vita Fructuosi, alguns duques do exército teriam,
inclusive, solicitando ao rei que atuasse no sentido de evitar que tantos jovens ingressassem nos
mosteiros. ANÔNIMO La vida de San Fructuoso de Braga… op. cit., p. 105-107.
37
LÓPEZ QUIROGA, Jorge. Actividad Monástica y acción política en Fructuoso de Braga. Hispania
Sacra, Madrid, n.109, p. 7-22, 2002, p. 18.
38
BRAULIO. Epistolario. Introducción, edición crítica y traducción Luis Riesco Terrero. Sevilla:
Catolica Española, 1975, p. 163-183.
39
Compludo foi a primeira das casas monásticas fundadas por Frutuoso. A esta se seguiu
aproximadamente uma dúzia. Cf. FLÓREZ MANJARIN, Francisco. Compludo: primer monasterio
de San Fructuoso. Bracara Augusta, Braga, v.22, fasc. 52-54, p. 03-10, 1968, p. 3.
190 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
diversas regiões alimentou grupos de perfeitos discípulos à imagem e à semelhança
de seu puro coração (...)” (VSF, capítulo 16).
Bráulio, autor da VSA, era integrante da aristocracia assentada no norte do
reino visigodo. Suas origens sociais lhe garantiram formação escolar dentro dos
padrões clássicos, acessível, no período, apenas à elite. Ao se dedicar a destacar os
feitos de Emiliano, buscava, primeiramente, atender o pleito de seu irmão, o abade
Frominiano, com o qual compartilhava as motivações para a redação de um texto
hagiográfico. O escritor, portanto, colocou sua erudição a serviço de um projeto
com o qual estivera particularmente envolvido, pois o local onde Emiliano havia
vivido estava compreendido na área de influência política e religiosa da família de
Bráulio. A promoção do seu culto potencialmente garantiria a canalização das muitas
vantagens que daí pudessem decorrer.
Além dos interesses associados à sua família, também se sobressai como motivação
para redação de sua obra a preocupação com o fortalecimento da igreja visigoda,
ao qual se vinculava a ampliação e manutenção dos fiéis, ou seja, a expansão do
cristianismo, tal qual o hagiógrafo de Frutuoso. Emiliano era, provavelmente, uma
figura popular na região, mas que vivera a maior parte da sua vida como eremita,
à margem da instituição eclesiástica. Ainda que não hostilizasse as autoridades
religiosas, buscou viver fora da hierarquia clerical enquanto pode, ou seja, até,
após nomeação do bispo local, ocupar por curto período cargo eclesiástico. Assim,
a divulgação da imagem de um homem santo popular, cujas ações e modo de
vida estivessem em harmonia com as diretrizes da igreja visigoda poderia não só
estimular os cristãos a viverem em retidão, como, certamente, contribuiria àquele
fortalecimento.
Ainda acerca do objetivo da obra, Bráulio anuncia, no prólogo, uma das funções
da narrativa hagiográfica: a apresentação de um modelo de comportamento a ser
seguido ou um modo de vida a servir como estímulo à prática da fé cristã: “(...)
referem-se aqui alguns feitos que todos devemos imitar (...)”40.
Dos trinta e dois capítulos da obra, dez dedicam-se a considerações gerais sobre
a vida de Emiliano (VSA, Prólogo; 1-6; 20; 22 e 27), nos quais se destacam o perfil
eremítico do santo, a obediência à autoridade episcopal e sua experiência cenobítica.
Vinte e dois estão voltados à descrição de seus milagres, incluindo os realizados após
sua morte (VSA, 7-19; 21-22; 24-26 e 30-31). Verifica-se, pois, a preocupação de
Bráulio não apenas em fornecer, como assinalado anteriormente, referências para a
conduta dos cristãos, mas, em consonância com tal intuito, propagar a imagem de
um santo pródigo em milagres, que, embora propenso ao auto-isolamento, atuava
segundo as orientações da instituição eclesiástica.
A VSA, produzida para ser lida na missa do santo, dirigia-se a religiosos e laicos.
Acreditamos, pois, que o texto cumpria com suas funções ao sublinhar a importância
da hierarquia e da disciplina para os primeiros; ao fornecer provas, por meio da
descrição dos muitos milagres, da verdadeira fé aos segundos, e ao garantir a todos
um modelo de comportamento em consonância com os valores cristãos.
Gonzalo de Berceo, que se dedicou a escrever uma nova vida sobre Emiliano,
diferentemente de Bráulio, não era membro da elite sacerdotal ou da aristocracia.
40
VSA, Prólogo.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 191
Compunha o clero paroquial do povoado de Berceo, uma localidade sem grande
importância econômica, religiosa ou política, que fora recentemente incorporada
definitivamente ao reino de Castela. Provavelmente obteve sua formação intelectual
em uma escola urbana, talvez na recém-organizada Universidade de Palência, mas
isto não significa que era membro de uma família nobre ou rica. Neste período de
reorganização da disciplina eclesiástica sob a direção de Roma, os clérigos foram
estimulados a estudar, inclusive com a concessão de bolsas de estudos, para se
prepararem para a cura animarum.
A versão berceana da vida de Emiliano foi composta em um momento em que
a cristianização da península já fora consolidada há séculos e outros problemas se
colocavam para a Igreja romana e local: o perigo da heresia, o crescimento da piedade
leiga, a intervenção dos leigos nas questões eclesiásticas, a presença muçulmana
no sul da Hispânica, etc. Diferentemente da de Bráulio, a narrativa berceana sobre
Emiliano não tinha como alvos a cristianização do seu público, o prestígio de sua
família ou o fortalecimento da Igreja, mas foi norteada pelo objetivo de apresentar
um eclesiástico exemplar, cujo comportamento seguia as normativas do Concílio
Lateranense IV. Esta assembleia, que reuniu representantes de toda a cristandade
romana em 1215, sob a direção do papa Inocêncio III, visava, dentre outros objetivos,
normatizar o comportamento dos clérigos e religiosos.
Como Gonzalo de Berceo também possuía laços estreitos com a comunidade
monástica emilianense, pois ali fora educado e era pároco de um povoado próximo
a tal cenóbio, sua motivação imediata ao redigir a VSM pode ter sido fazer frente à
crise que assolava a comunidade no período. Neste momento foram constantes os
litígios da abadia contra os episcopados calagurritano e burgalês pela jurisdição sobre
templos e terras. Com os novos ideais de vida apostólica e a inserção dos mendicantes
na região, as doações ao emilianense decresceram. Com a expansão das escolas
urbanas, episcopais ou Estudos Gerais, o mosteiro perdeu sua hegemonia como
centro intelectual. Com a consolidação das peregrinações a Santiago de Compostela,
a despeito de abrigar o túmulo do patrono de Castela, Emiliano, o cenóbio já não
atraía o mesmo número de peregrinos. Com a urbanização da região em ritmo
crescente, expansão do comércio e manufatura, a comunidade foi paulatinamente
substituída no papel de organizador da produção. Os próprios vassalos se negavam
a pagar os tributos devidos.
Esta crise repercutiu no seio da comunidade, levando a um distanciamento
entre o abade e os monges e a dissensões entre os membros do grupo41. Assim,
era importante motivar os religiosos, reavivando a memória sobre o santo patrono,
apresentando-o como um cristão ideal e com traços de cavaleiro42. Também se fazia
urgente atrair peregrinos e ofertas e relembrar aos vassalos de suas obrigações com
o mosteiro. Estes dados podem explicar as opções formais do autor, que produziu
um texto em versos ritmados e em castelhano, que, certamente, objetivava alcançar
um público heterogêneo.
41
GARCÍA TURZA, Javier. San Millán de la Cogolla en los umbrales de la crisis: 1200-1300. In:
GIL-DÍEZ USANDIZAGA Ignacio (Coord.). Los monasterios de San Millán de la Cogolla. Jornadas
de arte y patrimonio regional, 6, San Millán de la Cogolla, 6, 7 e 8 de novembro de 1998. Actas...
Logroño: Instituto de Estudios Riojanos - Gobierno de La Rioja, 2000. p. 27-46, p. 31.
42
Um milagre introduzido na VSM é o da aparição milagrosa de Emiliano, ao lado de Tiago, na
batalha de Simancas.
192 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
A VDci, como já assinalado, foi constituída em etapas, entre o fim do século XI
até fim do XII, acompanhando o desenvolvimento da memória de santo Domingo,
relacionada a um cenóbio que pouco a pouco se configurava como um dos mais
ricos da região de Burgos. O então Mosteiro de São Sebastião de Silos, segundo
a tradição, foi fundado por Recaredo, por volta de 593. Contudo, os primeiros
documentos preservados vinculados a este cenóbio datam do século X. Apesar de
atestarem algumas poucas doações, tais documentos indicam que há um intervalo
de quase 100 anos, entre 979 e 1067, sem novos ingressos. Eles só são retomados
nos últimos anos do abaciado de Domingo, quando se iniciou a expansão do
patrimônio da abadia43.
As ofertas foram incrementadas, sobretudo, sob o governo do sucessor de
Domingo, Fortunio44. Assim, é possível relacionar a redação VDci às estratégias
levadas a cabo por Fortunio para ampliar e consolidar o papel da abadia de Silos
frente aos leigos e aos eclesiásticos castelhanos. Neste sentido, em 1076 realizou
a trasladação dos restos mortais de Domingo para a igreja do mosteiro, com a
participação do bispo de Burgos, Jimeno, e, em 1088, a igreja abacial foi consagrada
ao santo, com a presença do arcebispo de Toledo, Bernardo; o legado papal Ricardo;
os bispos de Burgos e de Roda, dentre outros45.
A redação da VDci também pode estar relacionada à conquista castelhana de
La Rioja, ocorrida em 107646. Como sublinha Embid-Wamba, “hace muy difícil
no relacionar esta canonización castellana de Domingo de Silos con la campaña
propagandística que necessariamente había de hacer contrapeso al predicamento
que en el Alto Ebro gozaba la figura de San Millán”47.
Como anteriormente indicado, Millán, ou Emiliano, já tinha um culto consolidado
na região desde o século VII, quando Bráulio escreveu sua Vita. Ele era patrono do
mais importante cenóbio riojano, o já citado San Millán de La Cogolla. Domingo,
antes de ser abade de Silos, fora prior do mosteiro emilianense. Assim, não é de
se estranhar que a VDci articule a trajetória de santidade do abade ao do eremita.
Assim, no livro I, 4, 50, lemos: “el bienaventurado Domingo entrando en el santo
monasterio de San Millán, imitó a este com uma total entrega espiritual y corporal,
lo que llegó a alcanzar, según testifican hoy hechos maravillosos y bien conocidos,
mediante fuerte y admirable constancia”.
Se, porém, aceitarmos a hipótese de Díaz e Díaz, de que as estreitas relações de
irmandade entre os dois mosteiros se iniciaram no século XI48, é possível afirmar
que a VDci não tenha sido produzida para ser um contraponto à memória do santo
visigodo. Ao contrário: o objetivo da VDci seria, por meio da associação entre
43
PÉREZ-EMBID WAMBA, Javier. Hagiología y sociedad en la España Medieval: Castilla y León
(Siglos XI-XIII). Huelva: Universidad de Huelva, 2002, p. 81.
44
WILLIAMS, John. Meyer Schapiro in Silos: Pursuing an Iconography of Style. The Art Bulletin,
Nova Yorque, v. 85, n. 3, pp. 442-468, 2003, p. 454.
45
GARCÍA DE LA BORBOLLA, Ângeles. Santo Domingo de Silos en el siglo XIII: un santo, una
abadia y un rey. Studia Silensia, n. 25, p. 449-464, 2003, p. 449.
46
Esta conquista não foi definitiva, já que La Rioja ficou submetida, de 1109 a 1135, a Aragão,
novamente a Castela de 1135 a 1162, a Navarra de 1162 a 1176 e, definitivamente a Castela, após
1176.
47
PÉREZ-EMBID WAMBA, op. cit., p. 88.
48
DÍAZ Y DÍAZ, M. C. Libros y librerías en La Rioja altomedieval. 2 ed. Logroño: Instituto de Estudios
Riojanos, 1991, 266.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 193
Domingo e Emiliano, fortalecer a comunidade silense, ainda em consolidação como
grande centro religioso e econômico.
Finalizando, sublinhamos que desde a ampliação da noção de fonte histórica
propagada pela Escola dos Annales, os textos hagiográficos têm sido empregados
para o estudo de diferentes objetos, que vão muito além dos aspectos religioso e
teológico. Assim, por meio da análise de tais materiais, é possível discutir, como
realizamos com o desenvolvimento da pesquisa aqui apresentada, diversos aspectos
das relações de poder na Igreja, tais como: o uso político da memória dos santos;
os conflitos de interesses no seio das lideranças eclesiásticas; a difusão de modelos
de comportamento por meio, por exemplo, do controle e fixação, por escrito, da
fama de homens considerados excepcionais e da propagação de normativas sociais.
RESUMO ABSTRACT
Desde fins de 2008 coordenamos o projeto Since 2008 we coordinate a collective project
coletivo intitulado Hagiografia, sociedade e poder: named Hagiography, society and power: a
um estudo comparado da produção visigótica e comparative study of the visigothic and medieval
castelhana medieval. Esta investigação foi proposta castilian production. This was proposed by
visando à articulação de duas pesquisas coletivas an articulation of two researches in progress,
em curso, intituladas O processo de organização titled The process of church organization and
eclesiástica e a normalização da sociedade nos the standardization of society in the Sueve and
reinos suevo e visigodo: perspectivas analítica Visigothic Kingdoms: analytical and comparative
e comparativa e Hagiografia e História: um perspectives and Hagiography and History: a
estudo comparativo da santidade. No presente comparative study of holiness. In this paper we
texto, apresentamos as linhas gerais do trabalho present a resume of this research, which has as
desenvolvido, que tem como principais objetivos main goals the deepen in the study of medieval
o aprofundamento do estudo das hagiografias hagiography in a comparison perspective and the
medievais ibéricas em perspectiva comparada e a consolidation of the Medieval Studies Program of
consolidação do Programa de Estudos Medievais UFRJ as a center of the study of hagiography, of
da UFRJ como um núcleo voltado para os estudos the standardization of society, and of the power
sobre a hagiografia, a normatização da sociedade relations in the Middle Ages, as for the training of
e as relações de poder na Idade Média, e para a new researchers.
formação de novos pesquisadores. Keywords: Comparative History; Middle Ages;
Palavras Chave: História Comparada; Idade Hagiography.
Média; Hagiografia.
194 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
O TRIUNFO DA QUARESMA:
PRÁTICAS ROMANIZADORAS NA FREGUESIA DE
NOSSA SENHORA D’AJUDA
Magno Francisco de Jesus Santos1
Introdução
1
Mestre em Educação, especialista em Ciências da Religião e graduado em História pela
Universidade Federal de Sergipe. Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense
sob a orientação da Profa Dra. Martha Abreu. Professor da Faculdade José Augusto Vieira e das
redes municipais de ensino de Laranjeiras e Itaporanga d’Ajuda, Sergipe. Email: <magnohistoria@
gmail.com>.
2
FLEXOR, Maria Helena Occhi. “Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto”. In: II Congresso
Internacional Barroco. Porto: Universidade do Porto, 2001, p. 521-534.
3
SALES, Tatiana Silva. As falanges da boa imprensa: o jornal ‘A Cruzada’ em Sergipe, 1918 a 1969.
Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2006.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 195
foi o das procissões quaresmeiras. Ao que indica, o intelectual itaporanguense era
um aficionado pelos cortejos solenes da Paixão de Cristo e, principalmente, pelas
tradições do povo católico sergipano.
Os registros desse intelectual propiciam a abertura de uma fissura sobre o passado
da religiosidade de Sergipe. Suas anotações cuidadosas e detalhadas permitem ao
pesquisador problematizar os aspectos concernentes às celebrações católicas nos
primeiros decênios do século XX em uma cidade de pequeno porte e sem grande
projeção no cenário religioso do estado. Itaporanga d’Ajuda não possuía grandes
romarias ou festividades que atraíssem muitos devotos de outros municípios, mas,
mesmo assim, se tornou foco dos registros do cronista.
Todavia, era uma cidade que aparentava seguir os pressupostos determinados
pela Diocese de Aracaju, com a regulamentação das expressões de religiosidade,
especialmente as festas. Nesse sentido, uma simples procissão paroquial assumia
uma proporção de destaque, se tornava alvo de registro que reforçava os elementos
de piedade cristã e, principalmente, as normativas devocionais que estavam sendo
impregnadas entre os populares, pois “o povo é frequentemente o objeto da reforma”4.
Nesse artigo o foco central é a procissão do encontro na cidade de Itaporanga
d’Ajuda. Trata-se da tentativa de compreender a relação entre tradição e modernidade
expressa na estética barroca na religiosidade católica. Os discursos constituídos sobre
a solenidade explicitam as duas perspectivas, aparentemente dicotômicas, mas que
no alvorecer do século XX eram apresentadas como elementos distintivos do bom
cristão. Nesse sentido, o bispado sergipano se preocupava em exercer um maior
controle sobre as práticas de religiosidade que se destacavam em Sergipe. As romarias
e as procissões de cunho penitencial foram alvo especial de atenção, pois eram os
eventos católicos nos quais as práticas do catolicismo popular se apresentavam
com maior vigor, quase sempre marcadas pelas demonstrações públicas de piedade
e de sofrimento. Por esse motivo, tais solenidades se tornaram alvo das ações
romanizadoras da Diocese de Aracaju. Em Itaporanga, o olhar perscrutador do clero
buscava evidenciar o desaparecimento das velhas práticas de desobriga, que foram
tão comuns até o início do século XX em procissões e santas missões.
A pesquisa foi desenvolvida a partir da análise dos textos concernentes à temática,
com enfoque para as notícias divulgadas na imprensa sergipana entre 1890 e 1950.
Além disso, a pesquisa teve como fulcro documental os registros de memorialistas da
cidade, como Gilberto Amado5 e Antônio Conde Dias. No caso dos estudos sobre
festas e religiosidades, a configuração de espacialidades com enfoque para as redes
de sociabilidades se tornam imprescindíveis, pois se torna uma forma de propiciar
o entendimento da pluralidade de cosmovisões e das tessituras que engendram o
contexto social.
No caso de Itaporanga d’Ajuda, pode-se perceber que a procissão do encontro
4
HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do popular”. In: SOVIK, Liv (org.). Da diáspora:
identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003, p. 248.
5
Gilberto de Lima Azevedo Souza ferreira Amado de Faria foi um político, ensaísta, memorialista e
diplomata sergipano. Nasceu na cidade Estância no dia 7 de maio de 1887. Era o mais velho entre
os 14 filhos que o casal Melchisedech e Ana Amado tiveram. Ainda nos seus primeiros anos foi
morar em Itaporanga, onde realizou seus estudos primários. Também estudou farmácia na Bahia e
diplomou-se em Direito pela Faculdade de Recife. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e
faleceu no Rio de Janeiro no dia 27 de agosto de 1969.
196 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
se tornou alvo das atenções eclesiásticas na redefinição das práticas sócio-religiosas.
Nesse sentido, elementos aparentemente irrelevantes nos discursos sobre a referida
procissão se tornam imprescindíveis no entendimento da dimensão do processo
ultramontano na Diocese de Sergipe, pois revela nuances de um catolicismo
combatente das práticas tidas como pagãs e da astúcia de constituir uma religiosidade
sob os moldes europeus.
Na Trilha dos Pecadores: As Santas Missões Capuchinhas
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 197
da praça, não bastava. Armaram-se latadas nos dois lados.
Carradas de madeira, de caibros e de estacas chegavam
dos engenhos. De cumeeiras de casas velhas abandonadas
arrancaram-se ripas ainda prestadias. Carapinas e
marceneiros deram do seu novo serviço. Organizaram-se
turmas. Todos queriam trabalhar.6
Como é possível perceber, a vila metamorfoseou-se. Ruas e praças eram
ornamentadas para receber os frades capuchinhos e a multidão de romeiros que
costumeiramente os acompanhavam. O espaço urbano foi redefinido para adequar-
se as novas sociabilidades que estavam prestes a ocorrer. O que era profano deveria
se tornar diferente, pois a localidade viveria dias de penitência, de piedade e de
sofrimento. Para ver-se livre dos pecados, homens se organizaram na armação de
palanques, cobrindo a praça, criando um espaço onde deveria ocorrer a remissão
dos pecados. Essas ornamentações das praças em que se localizavam as igrejas
visitadas pelos frades eram comuns na época. Para Pecorari, “a participação do povo
era devera maciça (...). muitos vinham de fora e até de longe, improvisavam abrigos
ou ‘latadas’ para passar a noite e assim não perder um dia sequer”7.
Um ponto importante a ser observado é o fato de a Santa Missão ter ocorrido
em momento oportuno: período de guerra. Em pleno fim de século, marcado pelas
incertezas da vida, os capuchinhos pregavam sobre o inferno e as ações do demônio.
A guerra que grassava vidas não era um mal distante. A historiografia sobre Canudos
é unânime em revelar o elevado contingente de sergipanos que migraram para a
comunidade fundada por Conselheiro.8 Familiares ouviam boatos sobre a guerra e
certamente não era difícil de associar os dramas de seus parentes a um látego divino
pelas ações do demônio. Os homens se matavam no sertão, enquanto os seguidores
de Cristo rezavam pelas almas de todos.
Castigo, desgraça e salvação foram ideias difundidas pelos capuchinhos. Os
pecados da humanidade eram apresentados ao público como os causadores das
dores que martirizavam a todos. Em 1891, ano da passagem dos missionários pelo
vale do Vaza-barris, ainda tinha outro atrativo para a retórica dos castigos celestes
dos frades menores: a grande seca. Não foi o acaso que fez com que Gilberto Amado
iniciasse sua assertiva sobre a Santa Missão rememorando da Guerra de Canudos
e da seca. Dois males que assolavam os sergipanos e que se tornaram alvo das
prédicas dos frades.
Nas palavras dos pregadores, tais males se proliferaram pela terra como sinal do
desgosto divino em relação aos pecados da humanidade. A fama da crueldade dos
sermões e do rigor na punição dos pecadores já tinha se proliferado por Sergipe.
6
AMADO, Gilberto. História da minha infância. Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira; Ed. UFS, 1999,
p. 147.
7
PECORARI, Francesco. “As missões populares dos capuchinhos nos sertões baianos nos fins do
século XIX”. Cadernos UFS História, São Cristóvão, vol. 4, n. 5, 2003, p. 57
8
SILVA, Alberto Garcia da. “Médicos Militares Sergipanos em Canudos”. Revista do IHGSE,
Aracaju, n. 38, 2009, p. 191-202; SÁ, Antônio Fernando de Araújo. Filigranas da Memória:
História e Memória das comemorações dos centenários de Canudos (1993-1997). Tese (Doutorado
em História), Universidade de Brasília. Brasília, 2006; SILVA, José Calasans Brandão da. Antônio
Conselheiro em Sergipe e os sergipanos em Canudos. Monografia (Graduação em História).
Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 1993.
198 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Todos conheciam a descrições do inferno que os capuchinhos pintavam no púlpito.
Eram essas conversas que amedrontavam os moradores das localidades a serem
visitadas. Assim, ocorria o processo de “desmoralização dos pobres e de reeducação
dos pobres”, pois “o povo é freqüentemente objeto de reforma”9.
Em Itaporanga não foi diferente. Com os primeiros boatos da chegada dos
capuchinhos os moradores vistos como “desviantes” se preocupavam, andavam
com cautela. Os excluídos da história e da sociedade católica local eram vistos com
desconfiança e ignorados por seus conterrâneos. Isso ocorreu principalmente com
prostitutas, homossexuais e ateus. Todos eles estariam na mira da Santa Missão e dos
escândalos que os frades menores poderiam fazer usando-os como bodes expiatórios
das mazelas sociais. Segundo Amado, o cotidiano da vila foi completamente alterado:
A cidade foi tomada de misticismo. Já antes da chegada dos
frades as mulheres e as moças começaram a pôr xale preto
na cabeça. Flor e fita não botavam mais no cabelo. Às duas
feiras que precederam a Santa Missão, as mulheres-damas
já não vieram. Embalde procurei-as com os olhos, como
sempre fazia disfarçadamente quando elas passavam em fila
com as esteiras debaixo do braço, charuto na boca, cravos
bocaris nos penteados.10
Seguir os caminhos do Cristo incumbia ir além das tradicionais práticas católicas.
Os capuchinhos disseminavam o terror pelo interior sergipano. Propagavam o
inferno que estaria solto no mundo. Apontavam nas comunidades os agentes
de satã. A chegada dos religiosos em uma localidade significava o fim das ações
pecaminosas, ou pelo menos uma pausa. Foi o caso descrito pelo memorialista. Na
ótica do escritor estanciano, a alegria cedia espaço para o universo circunspecto. Até
mesmos as vestimentas foram ressignificadas, tornando-se mais sóbrias e cordatas.
As campestres flores dos cabelos cederam lugar aos escuros e comportados xales.
As prostitutas desapareceram e foram substituídas por mulheres que rezavam por
clemência divina.
É interessante perceber a estratégia que o autor utilizou para se referi às prostitutas
da época. O mesmo recorreu ao jargão popular da região para caracterizar tais
mulheres, dizendo que as mesmas transportavam esteiras embaixo do braço. Ainda
hoje em localidades do interior sergipano essa é uma expressão usual do linguajar
popular para se referi a mulheres que possuem vida sexualmente promíscua. Seriam
as “putas de esteiras”, que transportariam embaixo do braço as esteiras para a
realização de atividades amorosas. Isso evidencia um aspecto relevante da obra de
Gilberto Amado, que é o diálogo entre a erudição e o popular.
É evidente que essa característica não foi exclusiva do autor, pois desde a Semana
de Arte Moderna de 1922 os escritores recorrentemente se utilizavam do popular.
Assim, nesse modelo de escrita, o narrador, que aqui se conjuga ao autor, busca no
relato uma reconstituição de um fato passado que lhe queima na memória e que
solicita uma relembrança que é também reelaboração de uma vivência. Tratava-se
9
HALL, “ Notas sobre...”, p. 248.
10
AMADO, História de minha infância, p. 147.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 199
de “uma literatura que exprimisse a sociedade”11.
A sociedade que Gilberto Amado expressa um momento importante da
religiosidade católica de Sergipe. No período entre o final do século XIX e descerrar
do século XX a Igreja Católica em Sergipe passava por um processo de renovação,
com a romanização dos rituais e práticas devocionais. A presença dos missionários
capuchinhos nas cidades, vilas e povoados do interior sergipano não era fruto do
acaso, mas uma ação pensada que visava utilizar a experiência de frades menores
italianos na renovação da religiosidade local. Assim, desde meados dos oitocentos
“a Igreja Católica, aqui representada pela Ordem Capuchinha além de realizar a
sua função espiritual também auxiliava o Estado na manutenção da ordem e na
construção da nação”12.
A presença dos capuchinhos na vila de Itaporanga é reveladora. Ao enviar os
missionários, a Arquidiocese da Bahia indica que as expressões de religiosidades da
população local não estavam de acordo com os preceitos cristãos, ou pelo menos,
deveriam ser observados pelo olhar atento dos frades menores. Nesse sentido, a
escrita de Amado nos brinda com o desfile de personagens reais, de moradores
anônimos da vila que dificilmente seriam reconhecidos se não fossem os registros
do memorialista.
Esses personagens, usados para caracterizar o popular, as crendices e as
superstições da localidade em que passou a maior parte de sua infância expressam
aspectos que extrapolam o exótico e os artifícios da linguagem literária. As mudanças
bruscas de comportamento são sinais do controle exercido pela Igreja e do prestígio
da mesma na sociedade sergipana de fim de século. Além disso, essas mudanças
de comportamento são indícios do processo de reconstrução das cosmovisões, da
ineficácia do clero em exercer a vigilância permanente sobre os fieis. Se no tempo
sagrado era preciso mudar o comportamento radicalmente, era porque no tempo
cotidiano a conduta da população não era condizente com a proposta clerical. Nesse
caso, a necessidade de reforma das camadas populares era reforçada pelo alto clero,
pois a Arquidiocese da Bahia passou a ser veemente na vigilância da religiosidade
popular dos sergipanos. Para os populares sergipanos, cabia encontrar as estratégias
de resistir, de persuadir os capuchinhos, evidenciando o duplo movimento de conter
e resistir.
Desse modo, Gilberto Amado proporcionou um desfile dos personagens anônimos
da História nas páginas em que narra a Santa Missão. Na tentativa de cunhar sua
obra com aspecto de veracidade, o autor buscou rechear suas memórias pessoais
com ações e dizeres dos populares que viveram em Itaporanga nos idos dos
oitocentos. Amado também demonstra que sua assertiva evidencia a confluência
de memórias, a simbiose do que viveu com o que ouviu dizer, ou seja, o encontro
de memórias pessoais com os registros coletivos. O livro não remete apenas àquilo
que foi testemunhado pelo memorialista, como evidencia a assertiva seguinte:
Ouvi dizerem que Maria Jeroma, de todas (mulheres-
dama) a mais impressionante, pelo ar desafrontado e pela
11
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 125.
12
CUNHA, Tatiane Oliveira da. “‘Bom cristão, bom cidadão’: contribuição capuchinha no processo
civilizatório em Sergipe (1840-1889)”. Cadernos UFS História, São Cristóvão, vol. 1, n. 11, 2010,
p. 127-145.
200 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
pintura da cara, ganhara o sertão. Zé Bolachinha deixou
de beber. Elias já não apregoava na venda suas briagueses.
Cazuza de Lino, o mentiroso da vila, andava dizendo que
não mentia mais, comprara um terço com bentinhos que
mostrava de porta em porta. Pombinho remexendo-se, com
a voz de mulher, parava junto as donas de casa e dizia,
benzendo-se: “Agora é tempo da gente se arrepender, meu
Deus!” Mariana não mais esperava os homens à porta da
malhada.13
Na assertiva de Amado o medo pairou sobre a vila ribeirinha. Os anônimos
alteraram seu cotidiano diante da possibilidade de receber os missionários
capuchinhos. Os moradores apontados como pecadores buscavam apresentar-se de
forma diferente, evidenciando o arrependimento e busca pela salvação. Foi nesse
contexto que os objetos de salvação se tornaram alvo dos moradores e dinamizou
o comércio local. Ao que tudo indica nos últimos anos do século XIX, a localidade
se transformou em ponto de convergência de romeiros e de penitentes em busca
da clemência divina. Os frades romanizadores atraíam devotos que geralmente
não eram assistidos pelo clero. Em Itaporanga, a população que vivia distante, nos
limites da Freguesia Nossa Senhora d’Ajuda deslocou-se para assistir às celebrações.
Na ótica do memorialista, a vila havia se transformado, pois “eu via pela primeira
vez em Itaporanga famílias inteiras de engenho. A nossa casa encheu-se. Meu pai
preparou acomodações em outras para receber hóspedes. Foram armadas redes nos
corredores, as camas não davam”.
É notório na historiografia sergipana as dificuldades que o clero oitocentista tinha
para atender a sociedade de suas respectivas paróquias14. Muitas vezes passavam
quase um ano sem que a população das localidades mais distantes presenciasse
a celebração da Eucaristia. Por conta dessa situação de precariedade, momentos
como os das Santas Missões eram propícios para o deslocamento dos fieis. Não só
isso. Era ocasião também que instigava o imaginário barroco da população rural
sergipana que executava as práticas penitenciais. Seguindo passos firmes pelas
estradas de piçarras os penitentes cantavam sobre os pecados e o tempo sagrado
“Pecador, agora é tempo de pesar e de temor: Serve a Deus, despreza o mundo, já
não sejas pecador! Neste tempo sacrossanto o pecado faz horror: Contemplando
a cruz de Cristo, já não sejas pecador!”. O convite para abandonar as coisas do
mundo e buscar o perdão divino não era apenas uma estratégia retórica dos
benditos populares. Como já foi visto os moradores da vila de Itaporanga tentaram
encarnar o ideal de penitência. Abandonava-se o que era compreendido como
pecado. Mortificava-se o corpo. Saudavam-se as dores. Da parte alta da vila descia
a multidão carregando pedras na cabeça, penitenciando e cantando: “Piedade,
Senhor, Tende peiedade, É de nóis, pecadô... [sic]”15.
Cenas que eram comuns no período da Semana Santa se proliferavam pelas
ruas da vila. Cruzes, pedras nas cabeças, penitentes ajoelhados e silêncio faziam
parte dos enredos das presenças dos missionários capuchinhos. O memorialista
13
AMADO, História da minha infância, p. 147-148.
14
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial I (1820-1840). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
15
AMADO, História da minha infância, p. 148.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 201
não chegou a mencionar a participação da Irmandade Nossa Senhora d’Ajuda nas
ações da Santa Missão, evidenciando que os atores penitentes eram os segmentos
populares dos arredores da vila. A referida irmandade16, “em que estavam os homens
brancos e pardos de ambos os sexos onde se escolherão os de mais posses”17, ou
seja, era composta pela elite açucareira do Vaza-barris e provavelmente deve ter
agido apenas nas questões de logística para abrigar os missionários e nas reformas
da Igreja Matriz e do seu adro.
Um ponto relevante a ser observado é concernente às práticas romanizadoras dos
frades capuchinhos em Itaporanga. Pelo que foi exposto na descrição de Gilberto
Amado, fica evidente que os frades tentavam combater os “males” que afastavam os
fieis dos caminhos da Igreja. O caminho da conversão proposto pelos missionários
era a penitência. Eles estimulavam os romeiros a realizarem práticas de sacrifícios
para purgar os pecados cometidos. Muitas dessas práticas carregavam um aspecto
místico, de forte apelo popular e visibilidade semelhante à estética barroca. Nas
prédicas dos capuchinhos não havia espaço para a devoção cordata, mas sim para
dramaticidade e exposição pública. O autoflagelo seria uma forma que os fieis
deveriam usar para evitar o látego divino. Em Itaporanga,
Velhos, moços, ricos, pobres, todos carregavam pedras.
Eu e outros meninos menores também pusemos pedras
na cabeça. Os carolas, as beatas, exageravam. Jejuns
rigorosíssimos. Crises nervosas. Maria Saturnina virou a
boca, apareceu de beiço torcido. Era uma moça possuída do
Capeta, dava ataques como ninguém. Berrava, sacudia-se
toda e ficava depois estatelada horas e horas. Os ateus da
vila, Tomasinho e Manuelzinho da esquina, não caçoavam
mais de religião. Não encontravam, aliás, quem os quisesse
ouvir; eram olhados com medo, fugiam deles. Uma comissão
foi visitar Tomasinho e exortá-lo a se confessar. Falava-se
baixo, num burburinho, num zunzum. Nas calçadas, não
estralavam os tamancos como dantes. Tudo se abafou.18
Um mundo sufocado pela presença dos frades alemães. Moda e festas
praticamente despareceram nos dias de Santa Missão. A alegria cedia lugar a
penitencia e resignação. Nascia a festa da fé. Outro ponto a ser observado é que
no imaginário popular a chegada dos missionários representava a instauração do
tempo sacro. A mortificação do corpo é um dos sinais dessa crença. “Tal como o
espaço, o Tempo também não é para o homem religioso, nem homogêneo, nem
contínuo”19. Na cosmovisão desses moradores de Sergipe do final dos oitocentos, o
tempo sagrado significava a abertura das portas do além. As celebrações de
16
GOMES, Sérgio. O Preço da Fé: análise do termo de compromisso da Irmandade Nossa Senhora
d’Ajuda (agosto de 1840). Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe.
São Cristóvão, 2006.
17
Arquivo Público do Estado de Sergipe. Termo de Compromisso da Irmandade Nossa Senhora
d’Ajuda. Acervo Particular de Epifânio Dória. Pac. 29, doc. 03, 1840.
18
AMADO, História da minha infância, p. 148.
19
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
p. 64.
202 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
penitência propiciavam a libertação de suas almas, mas também abria espaço para
as tentações, para a ação do mal, inclusive do demônio. Não é coincidência que foi
relatado a desfiguração de uma jovem possuída pelo capeta. Assim como a Semana
Santa, o tempo sacrossanto de Santas Missões era tempo de lutar contra as ações
dos agentes do inferno.
Para evitar as tentações do demônio, a população procurou realizar ações que
contribuíssem com os missionários. Um exemplo disso foi Aleixo que era:
Preto fofo e inchado, carregador de lenha, que tinha os pés
em bola e andava como um elefante, não tinha amásia com
quem casar, e nem beber podia mais. Andava a perguntar o
que devia fazer na Santa Missão; entregaram-lhe carretos.
Assim purgava qualquer pecado que tivesse.20
Mais uma vez aparece uma figura popular. O autor expõe o misticismo da vila
onde passou grande parte de sua infância, mas não menciona as crenças pertinentes
a elite local. Ou seria o caso da elite está envolvida em tais práticas? Certamente não.
Amado deixa claro que os nomes citados se referem aos moradores dos segmentos
populares. A elite açucareira aparece anônima, contribuindo na organização
das celebrações. É claro que em alguns momentos ele evidencia que as práticas
penitenciais eram comuns a todos os grupos da localidade, mas usa como exemplo
as camadas populares, ou seja, o povo “que constantemente ameaçava eclodir”. O
período entre os séculos XIX e XX foi marcado pelas mudanças das classes populares,
ou como afirma Hall, ocorreu a “reconstituição do próprio terreno da luta política”21.
Ao se referir à Santa Missão dos capuchinhos em Itaporanga, dois aspectos
sobressaltam na escrita de Gilberto Amado: a penitência dos romeiros e a ênfase
dos sermões dos frades sobre as mulheres e o pecado. A partir da confluência desses
olhares torna-se possível reconstituir os cenários elaborados para a solenidade em
uma cidade que se apresentava como católica e tradicional. Além disso, permite
entender o imaginário religioso em que a mulher estava associada ao universo do
pecado, portadora das tentações do mundo. O primeiro aspecto de destaque é a
penitência:
A multidão se reunia de tarde. As manhãs, até a hora do
almoço, eram ocupadas pelos frades em receber confissões
e donativos. À hora da penitência todos se dirigiam para o
ponto marcado. Aí os frades chegavam, com a enorme cruz
negra na frente. Organizava-se o préstito na plangência da
ladainha tirada pelos frades e entoada pela multidão. Depois,
esta, tomada de frenesi, começava a clamar “Piedade,
Senhor...”. Gente se ajoelhava na estrada, metia a cabeça
na areia, soluçava alto.22
Frenesi. Essa palavra não aparece de forma inocente no texto de Amado. Ela
exclama o desespero dos devotos que estavam presentes na Praça da Matriz, na
20
AMADO, História da minha infância, p. 149.
21
HALL, “ Notas sobre a desconstrução...”, p. 250.
22
AMADO, História da minha infância, p. 149.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 203
margem esquerda do Vaza-barris. Nas palavras do memorialista, a vila passava por
uma histeria coletiva e destacava os gritos, o desespero e a clemência. A cruz usada
na Santa Missão e que tanto impacto causava no romeiro era a mesma que abria
as procissões da Semana Santa e a procissão do Encontro. Era o mesmo madeiro
que abria o cortejo com o Cristo sofredor e o outro com os caçadores de pecadores.
Fora das horas de pregação encontrava-se gente nos cantos,
ajoelhada, batendo os beiços, com os olhos no céu. Voltando
uma noite com o meu pai de uma casa longe, ouvimos
sair do portal da igreja um ruído de prece angustiada.
Aproximamo-nos. Eram duas velhinhas acocoradas no
batente, que cantarolavam, ou antes, gemiam, lobregamente:
“Eram dez horas, Da cruz pendente, Nosso Senhor, Deus
onipotente”. A toada toda ficava no ar – ente... ente... As
velhinhas, debaixo dos xales, encolhiam-se no ar que o
vento arrepiava.23
O que teria despertado a vontade dessas duas velhinhas a permanecer noite
adentro entoando cânticos de penitência? Não temos provas que levem a uma
resposta definitiva, todavia existem pistas no próprio testemunho do memorialista.
Não era usual que mulheres usassem o espaço público no decorrer da noite, quanto
menos realizando práticas penitenciais. Isso era comum entre os homens. Entretanto,
nos sermões dos frades capuchinhos em Itaporanga havia um alvo espacial: as
mulheres, apresentadas muitas vezes como as agentes de satã, disseminadoras do
pecado sobre a terra. É o segundo enfoque pertinente à narrativa de Amado. Os frutos
dos pecados eram execrados nas palavras dos religiosos, como atesta a narrativa:
Gritos irrompiam desesperadamente. Durante uma das
pregações ouviu-se um ai! Muito esvaído. Voltaram-se os
rostos. Era uma moça conhecida que começou a sentir uma
coisa; sangue escorria. Muito pálida, acudiram-na. Saiu um
feto de cinco meses. Foi um dos casos que mais ouvir falar.24
Em uma descrição rica em sonoridade, o memorialista repete um dos casos que
ouvira falar. É instigante pensarmos que num texto de memórias nem tudo remete
ao individual. Gilberto Amado deixa claro que muitos dos trechos descritos tinham
por base o que ouviu de seus pais, avós e vizinhos. Desse modo, “a lembrança se
torna a sobrevivência do passado”25. Um passado herdado e perpetuado na escrita
do memorialista.
A escrita de Amado reflete uma busca de dramatização das cenas. Claro que o
texto literário possui exageros, modos próximos aos de uma caricatura, mas tudo
isso constituído a partir da leitura visual do que ocorria. Segundo Francesco Pecorari,
o grande momento das Santas Missões era o do sermão, pois:
Era o momento esperado em que o Missionário devia criar
23
AMADO, História da minha infância, p. 150.
24
AMADO, História da minha infância, p. 149.
25
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p. 53.
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o impacto, tocar os corações empedernidos, despertar a
comoção e o arrependimento. Para isso ele recorria a uma
oratória impetuosa e arrebatadora com gritos e gestos
aterradores descrevia com exagerado realismo as penas dos
condenados e ameaçava os castigos do inferno.26
Realmente as palavras dos frades parecem ter mexido com o imaginário do jovem
Gilberto ao ponto de, quando adulto, registrar como um dos fatos mais marcantes
de sua infância. A naturalidade com que os frades falavam sobre o universo da
sexualidade escandalizou o garoto e grande parte da população católica que assistiu
as pregações.
O inferno que este (D. Amando) descrevia – um poço
de labaredas, inferno gênero Pedro Botelho, com diabos
chifrudos, de chuços na mão, um satanás vermelho
baforando fumaça. – este inferno estava ali, no oco da terra,
escancarado; ninguém escapava dele se amasiado não se
casasse, se pagão se batizasse, se batizado não se crismasse,
se mulher casada deixasse de servir ao desejo do marido.
Se me lembro de tudo, ou se guardei por ter ouvido dizer
depois, o fato é que a Santa Missão deixou em Itaporanga
a impressão de que os frades eram dominados por uma
obsessão a respeito dos coitos, relações entre homem e
mulher, de coisas de cama. Os termos horripilavam. Minha
mãe já não foi a segunda pregação. Ouvi meu pai declarar
na mesa: ‘ esses frades não estão bem orientados’.27
Tudo isso representa o que podemos denominar de primeira fase do processo de
romanização do catolicismo em Sergipe. Consiste na inserção do clero estrangeiro
nas comunidades rurais em visitas que duravam cerca de quinze dias e tinham por
objetivo fortalecer os laços de piedade cristã, quase sempre voltadas para a prática
penitencial e combater o que era visto como desvios na conduta social (bebidas
alcoólicas, homossexualismo, prostituição, mentira, ateísmo, liberalismo feminino,
etc.). Era uma forma também de observar como estava ocorrendo a atuação do clero
local. Nesse sentido, o processo de romanização se efetuava por meio da vigilância
da conduta social dos paroquianos e do próprio pároco. Outro ponto importante
era a assistência religiosa para comunidades que geralmente não eram atendidas
pelo clero, em virtude da deficiência existente na Arquidiocese da Bahia em relação
ao número de padres. Sob a retórica do medo, os capuchinhos cumpriam a missão
de evitar a eclosão de conflitos como o de Canudos.
Não é de se estranhar que um dos recursos usados pelos frades capuchinhos
nessas Santas missões foi justamente o imaginário popular barroco, povoado por
santos e por demônios. O inferno era pintado nos púlpitos. Os satanases eram
apontados entre os ouvintes. Assim, “D. Amando, com o pescoço compridíssimo,
um verdadeiro falcão crocitava: ‘Mis hermanos!’ Passava um tremor. Possuídos de
uma espécie de vesânia, desciam os frades em prédicas a minúcias arrepiantes”. O
26
PECORARI, “As missões populares...”, p. 57.
27
AMADO, História da minha infância, p. 150.
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inferno estava ali, apontado entre os pobres de Itaporanga.
Na cosmovisão desses primeiros agentes da romanização, os homens eram o sinal
da degradação, do pecado, da perdição. Os males sobre a terra eram os castigos de
Deus, que sinalizavam a insatisfação com as suas criaturas. Gilberto Amado relata
suas lembranças sobre as ameaças de castigo: “Ouvi muitas vezes comentar o sermão
em que D. Amando chamou os urubus que voavam sobre a multidão para devorarem
as mulheres-damas. Na ponta dos pés, parecia querer apanhar rapinantes para virem
ali mesmo estracinhar a carniça humana”. Nesse sentido, a cultura popular era o
alvo central das ações dos barbudinhos.
Essa primeira fase perdurou até 1910, ano da criação da Diocese de Aracaju,
que teve como resultado a criação de novas paróquias, a visitação pastoral do bispo
diocesano e a constituição da imprensa28 católica que registrava os avanços da nova
fase de romanização, dessa vez mais voltada para as práticas do catolicismo.
Os Dramas da Paixão nas Margens do Vaza-Barris
28
SOUZA, Valéria Carmelita Santana. “A Cruzada” Católica: uma busca pela formação de esposas e
mães cristãs em Sergipe na primeira metade do século XX. Dissertação (Mestrado em Educação).
Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2005.
29
BARRETO, Raylane Andreza Dias Navarro. Os padres de Dom José: o Seminário Sagrado Coração
de Jesus (1913-1933). Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Sergipe. São
Cristóvão, 2004.
30
ANDRADE, Péricles. Sob o olhar diligente do pastor: a Igreja Católica em Sergipe. São Cristóvão:
Ed. UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2010.
206 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
tornaram importantes nomes da intelectualidade sergipana, com publicações de livros
e de artigos, além de serem atuantes na divulgação dos novos princípios da Igreja
no jornal A Cruzada. Um exemplo disso foi o padre José Augusto da Rocha Lima,
que difundiu as questões atinentes a Igreja Católica nos decênios iniciais do século
XX. Outro ator que se destacou na imprensa católica de Sergipe na primeira metade
do século XX foi o itaporanguense Antônio Conde Dias. Ele era o responsável pela
produção dos textos sobre as celebrações que ocorriam na diocese, assim como pela
produção de artigos que discutiam temas como família, religiosidade e educação.
Desse modo, festas de grande apelo popular na sociedade sergipana eram
descritas minuciosamente nos jornais. Foi assim que solenidades como a Procissão
dos Passos de São Cristóvão, a de Bom Jesus dos Navegantes de Aracaju e Propriá,
além de festas de padroeiros dos municípios mais relevantes foram registrados com
enfoque quase que etnográfico, constituindo uma fonte de considerável relevância
para os estudos a respeito da religiosidade católica de Sergipe em meados do século
XX.
Assim, o cronista das festas católicas de Sergipe anunciava a imponente Procissão
dos Passos na vizinha cidade de São Cristóvão: “É sempre com indisfarçável emoção
que revejo a velha cidade de Cristóvão de Barros, centro de irradiação da fé, colméia
de um passado de vida religiosa, marco imperecível de um passado de glória e de
espediendo”31. Como se pode perceber, as festividades católicas eram apresentadas
como foco irradiador da identidade sergipana. Palavras como fé, velha, glória e
passado reforçam a idéia de que as solenidades católicas deveriam estar associadas
à tradição. Todavia, expressões como tradição na concepção do clero reformador
não possuía a conotações voltadas para a religiosidade barroca e sim, a de uma
devoção marcada pela sobriedade e apelo aos sacramentos.
De sua terra natal duas solenidades se tornaram foco de suas colunas: a festa da
padroeira, Nossa Senhora d’Ajuda e a Procissão do Encontro. Até a década de 50 do
século XX essas eram os principais eventos da devoção católica na pequena cidade
cravada às margens do rio Vaza-barris. Além dessas duas festas, havia também a
procissão de Santo Antão, patrono de uma pequena capela edificada nas imediações
entre a Igreja Matriz e ladeira que lavava a periferia da cidade.
A principal festa da cidade era a da padroeira, realizada no dia da Purificação
da Virgem, dois de fevereiro. Tradicionalmente essa era a procissão que envolvia
a maior parte da população da cidade, principalmente os membros da Irmandade
Nossa Senhora d’Ajuda, que tinham como uma das obrigações estabelecidas pelo
compromisso a organização da festa32. Com o processo de romanização a festa
passou a exercer também uma conotação de direcionamento devocional por parte
do clero, tendo em vista que as novenas de preparação eram patrocinadas pelos
moradores dos povoados que seguiam em procissão até a matriz com a imagem do
padroeiro da comunidade33.
31
DIAS, Antônio Conde. “Passos em São Cristóvão”. A Cruzada, n. 511. Aracaju, 15 mar. 1947, p.
2, col. 1.
32
Arquivo Público do Estado de Sergipe. Termo de Compromisso da Irmandade Nossa Senhora
d’Ajuda, p. 2
33
SANTOS, Magno Francisco de Jesus & SANTIAGO, Márcia Maria Santos. “Padroeira: a festa de
Nossa Senhora d’Ajuda em Itaporanga. Revista Fórum identidades, ano 2, vol. 4, jul./dez. 2008, p.
153-160.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 207
Além disso, no dia da festa a procissão solene contava com a presença de mais de
dez andores apresentando ao público as imagens sacras alvo da devoção e piedade
cristã. Pode-se dizer que a festa da padroeira representa um momento insólito da
sociedade local, evocando os santos de povoados, assim como os seus moradores
para celebrarem a patrona do município. Era o símbolo maior da centralidade
devocional, como também um dos momentos em que o clero reformador tinha mais
possibilidades de observar a conduta dos fieis. A tradicional teatralidade barroca se
adequava ao novo enfoque da Igreja.
Todavia, apesar da força de atração exercida pela festa de Nossa Senhora d’Ajuda,
o momento que despertava o maior sentimento de piedade era a Quaresma. Essa
era também a ocasião em que as práticas religiosas condenadas pela nova postura
da Igreja Católica e consideradas demasiadamente próximas do paganismo se
apresentavam com maior visibilidade. Oportunamente, as celebrações da Quaresma
de Itaporanga eram descritas com minudência pela imprensa católica de Sergipe.
O que isso representaria? Seria uma estratégia de controlar as práticas devocionais
dos segmentos populares? Ou seria uma forma de evidenciar a vitória da concepção
ultramontana? Sobre essas inquietudes não temos como apresentar respostas
conclusivas. Resta-nos apenas seguir os percursos de historiadores como Natalie
Zemon Davis e Carlo Ginzburg, que evidenciaram que muitas vezes as possibilidades
são mais perspicazes do que as provas no ofício do historiador.
Provavelmente a segunda possibilidade esteja mais próxima do vivido.
Possivelmente a imprensa católica sergipana estava divulgando as celebrações
católicas de cidades do interior no intuito de reforçar o caráter normativo das mesmas
e a vitória da proposta romanizadora de celebrar os santos. Além disso, noticiar o
sucesso das ações do clero reformador poderia servir como exemplo para as demais
comunidades. Todavia, é evidente que a ordem e o sentimento de piedade das
procissões quaresmeiras que eram vangloriados na imprensa católica muitas vezes
não passavam de uma quimera.
Nesse sentido, o jornal A Cruzada apresentava o rigor do controle dos párocos
sobre as celebrações públicas como um sinal das bênçãos celestiais que se
propagavam em Sergipe. Aparentemente o estado que tinha um passado religioso
marcado pelos desvios e descontrole se tornava exemplo da difusão do sentimento
católico ultramontano. Desse modo, o referido jornal noticiava os prodígios
alcançados na Semana Santa de Itaporanga: “Notícias de Irapiranga. Viveu o povo
católico de Irapiranga, de 24 de março a 2 de abril, dias abençoados de elevação
espiritual e elevação cristã, com a celebração dos principais atos da grande semana.
O programa seguinte foi seguido a risca”34.
O texto noticioso aparentemente despretensioso, sem grande importância revela
inúmeros anseios da época em que foi publicado. Primeiramente ao delimitar de
quem estava falando. Os editores do jornal deixaram claro que estavam descrevendo
as ações da população católica de Itaporanga. Em suma, isso implica na tentativa
de demonstrar que as práticas devocionais da Quaresma eram uma tradição
do catolicismo, evocando a uma crítica silenciosa aos demais credos religiosos,
principalmente aos segmentos protestantes. Segundo, aparece a ideia da sacralidade
34
“NOTÍCIAS de Irapiranga”. A Cruzada, ano XI, n. 439. Aracaju, 08 abr. 1945, p. 3, col. 1.
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temporal da Semana Santa, com o uso de termos como “dias abençoados”,
“elevação espiritual e elevação cristã” e “grande semana”. Nesse sentido, a vitória
da romanização se dava justamente no principal momento do calendário católico.
Terceiro, se refere ao rigor exercido pelo pároco. Quando foi noticiado que o
programa foi seguido à risca, os editores não estão preocupados com os improvisos,
mas com a afirmação do clero na regulamentação das solenidades. Não era mais a
Confraria Nossa Senhora d’Ajuda que convidava o padre para celebrar procissões,35
mas o clero que convocava o povo católico a seguir as práticas condizentes com o
novo momento da Igreja, sem espaço para improvisos, sem práticas consideradas
desviantes.
Por esse ângulo, percebe-se que o triunfo da Quaresma vangloriado na imprensa
católica não representava apenas a piedade do povo, mas primordialmente a
impregnação de uma piedade comandada pelo clero e voltada para os aspectos
de sobriedade. Em outras palavras, era a vitória conclamada da romanização. É
importante frisar que as conquistas do eldorado ultramontano eram apresentadas
como uma ação voluntariosa do povo. O clero era representado como aquele que
apenas observa, rege a grande orquestra popular que busca renovar suas ações.
No ideal cruzadístico romanizador o pároco apresentava-se como o comandante de
um exército de leigos. O jornal A Cruzada ressaltou essa situação ao anunciar que:
A população católica desta cidade (Itaporanga) está
associando os seus esforços aos do Vigário local, para a
celebração de alguns atos da Semana Santa, à semelhança
dos anos anteriores. Esses atos de culto religioso, muito
contribuirão para afervorar os sentimentos de piedade do
povo.36
“Afervorar os sentimentos de piedade” foi a proposta central da ação conjunta
entre clero e paroquianos. Muito provavelmente Antônio Conde Dias, cronista
atuante no impresso católico da Diocese era um desses leigos que buscavam auxiliar
o pároco na missão de reconduzir a devoção do povo para os anseios da Igreja. As
atividades da Paróquia Nossa Senhora d’Ajuda na Semana Santa eram densas e
muitas vezes marcadas por celebrações tradicionais do catolicismo barroco brasileiro,
todavia apresentando uma roupagem própria do processo ultramontano. Podemos
perceber as inovações criadas pelo pároco com o Quadro I.
35
APES. Compromisso da Irmandade Nossa Senhora d’Ajuda de Itaporanga, p. 4.
36
“A QUARESMA. Festa de Passos em Irapiranga”. A Cruzada, ano XI, n. 438, Aracaju, 25 mar.1945,
p. 3, col. 04.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 209
QUADRO I
SOLENDIADES DA SEMANA SANTA EM ITAPORANGA37
CELEBRAÇÕES NO
DIA CELEBRAÇÕES EM 1945
SÉCULO XIX
Bênção, distribuição e procissão
Domingo de das palmas.
Procissão de Ramos
Ramos A tarde última procissão do
Senhor dos Passos.
Quarta-feira de
Ofício de Trevas Procissão dos enfermos
Trevas
Pela manhã missa cantada,
comunhão geral, procissão
interna do Santíssimo
Sacramento e desnudação dos
Abertura do Santo Sepulcro;
Quinta-feira altares;
Cerimônia do lava-pés.
Maior Durante o dia Guarda de Honra
Procissão do Fogaréu
ao Santo Sepulcro
A noite, procissão de fogaréus,
uma alegoria do Horto das
oliveiras e Hora Eucarística.
210 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
de vários pontos de Sergipe”.
A Procissão Passos é uma das celebrações mais importantes no calendário católico
sergipano e era realizada em inúmeras cidades, entre as quais sobressaíam as de
São Cristóvão, Aracaju e Laranjeiras. Em Itaporanga, a participação popular era
notória e provavelmente era a única celebração capaz de se aproximar em termos de
quantitativo de romeiros a Festa de Passos da vizinha São Cristóvão. Assim como na
velha capital sergipana, a Procissão dos Passos foi controlada nos primeiros decênios
do século XX pelos frades franciscanos, tendo em vista que a Paróquia Nossa Senhora
d’Ajuda em algumas ocasiões compartilhou o vigário com a Paróquia Nossa Senhora
da Vitória. Esses frades, que eram alemães e estavam instalados no Convento Santa
Cruz na cidade de São Cristóvão, foram responsáveis pela introdução do processo
reformador na paróquia de Itaporanga, combatendo a devoção popular e as práticas
consideradas pagãs e destoantes do catolicismo romano.
O Triunfo da Eucaristia?
38
“FESTA de Passos...”, p. 3, col. 3.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 211
Encontro sobressaía a declaração do triunfo da Quaresma, da penitência sobre o
mundanismo da estética barroca. Outro ponto a ser observado é que nem tudo
transcorria como peculiaridade de Itaporanga. O orador sacro do sermão e a
orquestra eram da cidade de São Cristóvão, ou seja, os mesmos que realizavam a
festa dos Passos. Pode-se dizer que a ação ultramontana em Sergipe não ocorreu de
forma isolada nas respectivas paróquias, mas por meio da gestão da Diocese e de
um corpo de especialistas em diferentes âmbitos. Nesse caso, o triunfo da Quaresma
em Itaporanga representava apenas a vitória de uma batalha ultramontana contra
o paganismo no seio da Igreja Católica, mas reforça também o sentimento de que
ainda havia uma guerra a ser travada.
Nesse sentido, uma simples procissão do interior sergipano abre uma fresta que
torna possível a compreensão da cultura popular, especialmente no tocante a sua
religiosidade, pois “há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por
parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente
a cultura popular”39. Assim, ao transitar entre as santas missões capuchinhas e as
procissões quaresmeiras sob a tutela dos franciscanos alemães, percebe-se a dialética
da luta cultural. Percebe-se que o processo de romanização no Brasil não se constituiu
em processo contínuo e linear, mas sim permeado de lacunas, querelas, tornando-se
portador de diferentes linguagens de acordo com os interesses a cada momento. No
caso de Itaporanga, esse processo transitou entre as santas missões capuchinhas,
com caráter fiscalizador e a reestruturação devocional com párocos estrangeiros.
Itaporanga se tornou o alvo da ação das classes dominantes no processo de
combate a cultura das classes populares e o exemplo da vitória da romanização sobre
as práticas do catolicismo barroco. Vitória da Eucaristia? Triunfo da Quaresma? Nem
tanto. A cultura popular se “define pelas relações que a colocam em uma tensão
contínua com a cultura dominante”. A devoção popular não foi derrotada, apenas
silenciada, ocultada pela imprensa católica que forjou as glórias do processo de
civilização. Enquanto os jornais católicos evidenciam o suposto controle do clero
sobre as práticas devocionais da Procissão do Encontro, ocultavam as expressões
da cultura popular que eram reproduzidas na Procissão da Soledade. As classes
populares continuavam a preocupar, a ser alvo da disciplina eclesiástica, do processo
de evangelização. Assim, ao inquirir sobre as práticas religiosas de Itaporanga,
podemos reafirmar que as culturas não são concebidas como formas de vida, mas
como formas de luta40. Desse modo, as procissões da Quaresma em Itaporanga
permaneceram com “a tendência de enfatizar as aparências, fato barroco por
excelência”41.
39
HALL, “Notas sobre a desconstrução...”, p. 255.
40
HALL, “Notas sobre a desconstrução...”, p. 257.
41
CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Semana Santa na América Portuguesa: pompa, ritos e iconografia”.
In: III Congreso Internacional del barroco Iberoamericano - território, arte, espacio y sociedad, 2003,
Sevilha. Actas Del III Congreso Internacional del Barroco Iberoamericano. Sevilha: Universidad
Pablo Olavide, 2003, p. 1200.
212 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
RESUMO ABSTRACT
A Procissão do Encontro é uma das principais The Meeting Procession is one of the main
tradições do catolicismo penitencial em traditions of Sergipe’s penitential Catholicism.
Sergipe. Nas principais cidades do estado a In the major cities of the state is the procession
procissão é realizada em diferentes épocas da held at different times of Lent, involving a
Quaresma, envolvendo um contingente de considerable number of devotees. This article
devotos considerável. Esse artigo tem como focuses on the practices in that romanizating
foco as práticas romanizadoras na referida solemnity of Itaporanga de Nossa Senhora da
solenidade em Itaporanga d’Ajuda na primeira Ajuda (Our Lady of Helpness) in the first half of
metade do século XX. Era uma celebração que the 20th century. It was a celebration that attracted
atraía romeiros que presenciavam os atos que pilgrims who frequently saw the acts that remind
rememoravam os martírios de Cristo pelas ruas the sufferings of Christ through the city streets,
da cidade, reconstituindo uma tradição com forte retracing a tradition with strong appeal of Baroque
apelo da teatralidade barroca. A pesquisa foi theatricality. The survey was developed from the
desenvolvida a partir do levantamento de fontes survey of sources concerning this topic, focusing
concernentes ao tema, privilegiando as anotações on the book notes tumble, memoirists records and
no livro de tombo, registros de memorialistas e press reports Sergipe. Accordingly, the realization
as notícias publicadas na imprensa sergipana. of the Meeting Procession in Itaporanga was not
Nesse sentido, a realização da Procissão do only the fulfillment of a religious premise, but the
Encontro em Itaporanga d’Ajuda não era apenas attempt to highlight the desire of local elites to
o cumprimento de uma premissa religiosa, mas a show to the summit of the Sergipean clergy as
tentativa de evidenciar o desejo da elite local se legitimate guardians of Catholic tradition.
mostrar para a cúpula do clero sergipano como Keywords: Sergipe; Religiosity; Romanization.
legítimos guardiões da tradição católica.
Palavras Chave: Sergipe; Religiosidade;
Romanização.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 213
QUANDO O RECIFE SONHAVA EM SER PARIS:
A MUDANÇA DE HÁBITOS DAS CLASSES
DOMINANTES DURANTE O SÉCULO XIX
Sandro Vasconcelos da Silva1
1
Mestre em História Social da Cultura Regional pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Responsável pelo Núcleo de Pesquisas José Antonio Gonsalves de Mello, do Museu da Cidade do
Recife. E-Mail: <sanohman@yahoo.com.br>.
2
Cf. HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 215
Logo, a incipiente intelectualidade, as lideranças políticas e econômicas brasileiras
deram início as tentativas de recuperação do “atraso” causado pelo período no qual
o país esteve sob o julgo de Portugal, absorvendo e praticando hábitos franceses e
ingleses. Para estes, os séculos anteriores representaram um verdadeiro isolamento
do resto do mundo, sendo assim seria inevitável a busca do tempo perdido, pois
“o Brasil como colônia, no seu longo isolamento do fluxo da cultura ocidental,
transformara-se numa espécie de ilha cercada de bugres e escravos por todos os lados.
(...) O Brasil era bárbaro!”3. Com a adoção dos novos hábitos estrangeiros, foram
novas modalidades de discursos, de comportamentos, de vestuários, etc., foram
incorporadas ao cotidiano urbano abalizando uma divisão maior entre o espaço
público e o privado, onde o primeiro destes deveria passar por um processo de
“educação” normatizando-se seus usos e comportamentos, e o segundo funcionaria
como berço para o desenvolvimento de uma sociedade “civilizada”.
Para isso foram elaborados princípios para uma ordem pública que segundo o
entendimento da época, originaria uma sociedade organizada em plena interação
com os padrões que estavam sendo importados; esses princípios foram adequados
preparando um terreno para a transição entre uma época que estava em via de
desaparecimento (permeadas de hábitos coloniais considerados agora como
“selvagens”) e outra marcada pela inovação (impulsionada pelo refinamento
dos costumes) tentando com isso, forçar essas modalidades a terem significado
dentro de novas condições4. Essas transformações começaram a surgir na cidade
do Recife ainda no alvorecer dos oitocentos, não só pela influência exercida pela
Corte estabelecida no Rio de Janeiro, mas também e principalmente pelo convívio
constante entre estrangeiros5 (ingleses e franceses, entre outros) e os comerciantes
locais, os políticos, os senhores de engenho etc., levando alguns desses componentes
das classes dominantes a se confrontarem com uma realidade sociocultural diferente
desencadeando nesse grupo uma busca pela adequação e equiparação ao novo
contexto social europeu baseado na sociedade parisiense e seus conceitos de
civilização e modernidade. Aos poucos um novo estilo de vida, baseado nas elites
cultas passou a ser aceito, pois era considerado como um elo perfeito que uniria
a estrutura oligárquica local à modernidade europeia, assumindo um aspecto
de continuidade natural, preservando o mais importante para essas pessoas: as
estruturas de poder.
No entanto, vale lembrar que essa transição desses comportamentos não se deu
de forma homogênea, rápida e ampla, e que mesmo dentro das classes dominantes
almejantes e promotoras das mudanças, havia sinais de resistência aos novos hábitos,
um exemplo de que certos aspectos da estrutura social permaneciam resistentes ao
processo de modernização da sociedade era a escravidão, uma verdadeira anomalia
dentro do entendimento de sociedade moderna naquela época. Tal entrave a uma
ampla e irrestrita aceitação dos “costumes modernos” talvez tenha a ver com o fato
3
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra, 2002, p. 24.
4
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988, p. 33.
5
A cidade se destacava no cenário econômico-político brasileiro devido às atividades econômicas
do seu porto que também incentivou o crescimento do corpo urbano de forma rápida e sem
planejamento, sobretudo a partir da década de 1830.
216 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
de que a sociedade recifense das primeiras décadas dos oitocentos apresentava um
modo barroco de ser, ou seja, embora desejante por certas mudanças, ainda estavam
fortemente ligada a valores do passado e permeada pela reserva, cultuando costumes
que eram considerados pelos estrangeiros como pitorescos, despertando nestes,
as mais diferentes impressões. A própria estrutura da cidade refletia esse aspecto
“barroco”, sendo motivo de divergências de opiniões, que ora despertava elogios
pela sua beleza natural, ora era alvo de duras críticas pela sua falta de ordenação,
como podemos observar nesses dois comentários, o primeiro da inglesa Maria
Graham, que visitou Pernambuco em 1821:
É uma localidade singular, adequada para o comércio.
Fica em diversos bancos de areia, separados por angras
de água salgada e pela foz de dois rios de água doce,
ligados por três pontes e divididos em igual número de
bairros: Recife, acertadamente chamado, onde estão as
fortificações, o arsenal e o comércio; Santo Antonio, onde
estão o palácio do Governo, e duas igrejas principais, uma
para os brancos e outra para os pretos; e Boa Vista, onde
moram os comerciantes mais ricos, ou os habitantes mais
desocupados, entre o seus jardins e onde os conventos, as
igrejas e o palácio do bispo dão um ar de importância às
habitações muito elegantes em torno deles.
(...) Ficamos assaz surpreendidos com a beleza da paisagem.
As construções são bastante largas e brancas, a terra baixa
e arenosa, salpicada de tufos verdes de vegetação e ornada
de palmeiras.6
E o segundo do francês Louis Tollenare residiu no Recife entre os anos de 1816-
1817, a percepção acerca do que via se mostrava outra:
O bairro da península, ou o Recife propriamente dito é o
mais antigo e movimentado, e também o mais mal edificado
e o menos asseado (...) A ilha de Santo Antonio, à qual
dá acesso uma ponte arruinada (...) tem ruas um pouco
mais largas do que as do Recife. Encontra-se ali uma praça
quadrada, onde estão construindo um mercado coberto (...)
Este bairro é habitado por muitos brasileiros brancos natos,
e mulatos e negros livres. (...) Quando se lança um olhar as
casas baixas de Santo Antonio e Boa Vista, vê-se mulheres
brasileiras seminuas, acocoradas ou deitadas sobre esteiras.
Estas mulheres quase nada deixam a desejar à curiosidade
libertina.7
Durante as primeiras três décadas do século XIX pouco havia sido feito no
sentido de urbanizar o Recife que sofria com diversos problemas administrativos e
6
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,
1990, p. 129-130.
7
TOLLENARE, L. F. Notas dominicais. Recife: Governo do Estado de Pernambuco/ Secretaria de
Educação e Cultura, 1978, p. 20-22.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 217
estruturais8. Sem contar que o espaço físico era muito escasso o que fazia a cidade
crescer estrangulada por entre rios, mar e pântanos. O espaço para construir era
disputado por uma crescente população geradora de uma camada pobre considerada
pelos ricos da época como “perigosa” e “problemática”, pois estes eram comumente
aliciados às fileiras dos movimentos revoltosos ao longo dos oitocentos9, e isso fazia
com que fossem considerados uma verdadeira ameaça aos planos de “civilização”.
Numa tentativa de amenizar essa situação de conflito foi estipulado um código
que determinava o uso dos espaços públicos e privados, visando manter a parcela
“perigosa” sob controle e longe do contato com as “famílias de bem”. Instituído
pela Câmara Municipal, esse conjunto de normas eram conhecidas por Posturas
que por si só não se faziam valer, era necessário para sua execução um mecanismo
de força repressora e isso ficou a cargo do corpo policial. Dentro desse universo de
proibições foram criados regulamentos para os mais variados assuntos: o horário
de permanência na rua, proibições aos batuques dos escravos, ao ajuntamento de
pessoas em tavernas, brigas entre vizinhos, uso de espaços como pontes, chafarizes,
jardins públicos, etc.
Os pobres, libertos e escravos viviam sob constante vigilância, eram os alvos
favoritos das proibições estipuladas pelas Posturas, ao contrário dos ricos – quase
invisíveis na documentação policial da época – pois era justamente para esses que
a cidade estava sendo modernizada com espaços de sociabilidade que oferecem
tanto diversão como desenvolvimento cultural (praças, passeios públicos, teatros,
restaurantes, cafés, clubes etc.). A organização dos espaços passava pelo crivo dos
interesses da classe burguesa10 que tentava se civilizar
A manutenção de espaços de referência que um dia
forjaram uma determinada identidade territorial, além
da potencialidade que manifesta para congregação de
interesses locais ou regionais de resistência a processos
que se pretendem homogeneizantes, pode ser também,
entretanto, uma garantia pra manter a ordem político-
econômica instituída.11
As ações de modificação da estrutura urbana começaram em fins da década de
1830 e no início da seguinte12, com a criação da Repartição das Obras Públicas
(ROP), cujos projetos começaram a ser postos em prática, chegando ao seu ápice em
8
A sujeira encontrada em logradouros públicos foi por muito tempo um dos principais problemas
da cidade; ruas e passagens sem o devido calçamento, construções irregulares e insalubres, falta de
saneamento, etc.
9
A Revolução de 1817; a Confederação do Equador (1824); a Setembrizada (1831); a Novembrada
(1831); a Abrilada (1832); a Guerra dos Cabanos (1833-1836) e posteriormente a Revolução
Praieira (1848-1850).
10
Geralmente comerciantes bem estabelecidos e/ou ascensão, produtores agrícolas, políticos,
médicos, etc.
11
HAESBAERT, Territórios alternativos, p. 86.
12
Sob a liderança de Francisco do Rego Barros que assumiu o cargo de presidente da província
de Pernambuco de 1837 a 1844. Nesse período, decidido a modernizar e higienizar a capital
pernambucana mandou buscar engenheiros franceses de renome para remodelação urbana
adequando-se aos novos padrões vigentes, incentivou as artes e as ciências, elevando o Recife ao
conceito das grandes cidades modernas da época.
218 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
meados da década de 185013. Vale lembrar que ainda eram muitos os entraves para
o desenvolvimento das obras públicas, entre eles: os já mencionados movimentos
revoltosos; cofres públicos em baixa e a falta de mão-de-obra especializada para
atender às novas demandas. Mesmo assim, uma cidade com ares modernos
começou a surgir, a princípio planejada sob o comando de Louis Léger Vauthier –
nomeado para o cargo de engenheiro chefe da R.O.P. em 1840 e posteriormente
por engenheiros do porte de José Mamede Alves Ferreira, que assumiu o mesmo
cargo na década de 1850, entre outros.
Com a R. O. P. amplos estudos e projetos foram realizados sobre as principais vias
de transporte, a salubridade, a estrutura das moradias, a implantação de iluminação
pública, abastecimento de água, obras de aterro para obtenção de espaço. Nesse
período difundiam-se rapidamente os modelos franceses, ou seja, a influência de Paris
era tão grande no cotidiano recifense que a numeração dos logradouros passou a ser
a mesma utilizada na capital francesa, como podemos observar nesse fragmento da
portaria datada de 20 de julho de 1839, na qual o Presidente da Província Francisco
do Rego Barros determinava:
(...) Todas as casas de cada rua, travessa, beco, etc. da
Cidade serão numeradas, principiando supra do Norte
para o Sul e do Leste para o Oeste, do lado direito com os
números pares, e do esquerdo com os ímpares, de modo
que fiquem os números na ordem seguinte, 1, 3, 5, 7, 9,
etc. 2, 4, 6, 8, 10, assim por diante.14
No decorrer dos oitocentos, o choque entre uma cultura normativa que tentava
se estabelecer e os antigos hábitos já consolidados geraram vários embates, onde o
resultado poderia ir desde a subjugação, da eliminação ou do fortalecimento tanto
de um como de outro, as classes mais elevadas continuava a busca pelo refinamento,
enquanto que as classes mais baixas resistiam. A principal barreira de distinção
encontrava-se no campo financeiro, pois com a chegada das ideias de progresso e
modernização, também chegaram produtos que simbolizavam esses ideais que eram
oferecidos a uma parcela restrita dessa sociedade com poder aquisitivo suficiente
para obtê-los. O consumo em excesso foi uma característica marcante desse
processo, mostrar através do mobiliário, das roupas, dos serviços que se dispunham
era um atestado que as pessoas que poderiam pagar por eles mais do que ricas,
13
A partir da década de 1840 a capital era constituída pelas Freguesias de São Frei Pedro Gonçalves,
localidade que deu origem ao Recife, porta de entrada da província, zona portuária e boemia; a de
Santo Antonio, local onde se encontrava a sede administrativa e os principais prédios públicos, igrejas
e locais de diversão; a de São José, apinhada de casas e sobrados, mal ordenada espacialmente,
local que oferecia moradia barata; e por fim a da Boa Vista, essencialmente residencial, com amplos
sítios e com farta vegetação.
14
BARROS, Francisco do Rego. Portaria decretando a numeração e sinalização dos logradouros
públicos. Recife, 20 jul. 1839. APEJE, Coleção Portarias, vol. 01, p. 100-101. A numeração das
casas seguia a mesma estipulada para a cidade de Paris em 1805, que determinava a disposição
dos números, os pares ficariam do lado direito e os ímpares do lado esquerdo, tomando como
princípio as construções que começavam a partir da ponte de Notre Dame. No caso do Recife, o
referencial partia da ponte que ligava as freguesias de São Frei Pedro Gonçalves (região do porto)
e Santo Antonio. Cf. COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos - vol. 7. Recife: FUNDARPE,
1983, p. 235-236.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 219
eram pessoas “modernas”. A aparência vai reinar absoluta ao passo os costumes
estrangeiros penetraram no cotidiano levando a classe burguesa a inserir em sua
vivência os bons costumes, conjunto de normas comportamentais que funcionavam
principalmente como barreira de admissão entre as esferas sociais, onde o desrespeito
a essas normas além de representar uma falta inaceitável, também seria passível de
uma punição representada muitas vezes pelo isolamento do convívio nos círculos
considerados como “civilizados”.
Mesmo com certa resistência aos novos comportamentos, rapidamente os modos
e modas importados foram seduzindo uma parcela da alta sociedade recifense
oitocentista que passou a atuar numa espécie de jogo, onde cada elemento movia-se
de acordo com os papéis pré-estabelecidos aos homens e as mulheres, determinando
sua atuação tanto no ambiente público como no privado, a parcela masculina caberia
o ar austero e polido e a feminina o recato e a delicadeza. A ideia aceita na época
era que, em tese, esses dois ambientes (público e privado) deveriam permanecer
separados, sendo que o homem pertencia a rua, e a mulher, a casa. Nesse ritmo
de mudanças as estruturas das moradias burguesas passaram por modificações
proporcionando um local mais seguro, higiênico e confortável, longe dos malefícios
que poderiam encontrados na rua.
Por mais que se tentasse levantar barreiras, estas, de certa forma, eram transpostas
mais comumente do que se pensava na época, um bom exemplo disso é uma maior
e mais permanente presença feminina nos locais públicos. Isso se deu a partir da
segunda metade dos oitocentos com a popularização dos passeios, das visitas, dos
bailes, das festas, e tantos outros eventos ocorridos clubes, salões e teatros. Outro
fator que contribuiu para estimular os passeios, inclusive a localidades distantes da
cidade foi a sistematização dos meios de transporte. O comércio e outros serviços
como os de entretenimento também animavam as saídas de casa, mas só em
horários e ocasiões especiais. Para o aconchego do lar eram reservadas atividades
mais reservadas, como por exemplo, jantares, encontros, saraus, etc., organizados
num ambiente muitas vezes aconchegante, rico e normatizado, preparados para
uma plateia previamente selecionada.
De um modo geral, as classes dominantes da época acreditavam que a
materialização de certos elementos considerados como essenciais para seu
desenvolvimento cultural como teatros, bibliotecas, salões de baile (e demais
espaços que estimulassem a cultura), associados aos esforços de planejamento e
normatização do espaço citadino; o acolhimento de normas sociais europeias no
intuito de normatizar as atuações dos indivíduos tanto na esfera pública como na
privada, utilizando-se do refinamento dos costumes, entre outros – levaria ao encontro
do caminho para o progresso. Mais uma vez a rua contribuiu como um importante
elemento no processo de transformação nos hábitos urbanos. Pois, era nesse espaço
que poder-se-ia encontrar e ter acesso aquilo que Adrian Forty nomeou de “objetos
de desejo”15, ou seja, artefatos que materializavam o ideal de modernidade.
Voltando às mudanças ocorridas na cidade, a partir da década de 1850, o
Recife pretendia ser uma réplica de Paris. A modernização nas formas de construir,
associada aos novos conceitos arquitetônicos se traduzia em moradias modernas
15
Sobre o surgimento de certos utensílios domésticos, decorativos, mobília, etc. Cf. FORTY, Adrian.
Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
220 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
onde se aprimoravam com isso as ideias de intimidade, pudor, higiene; em certo
nível a casa abria alguns de seus espaços antes reclusos para exibição de alguns
aspetos da privada. Seguindo o exemplo da cidade e da casa, os objetos domésticos
vão ser incorporados a essa estética de civilidade conferindo aos seus donos o
status de civilizados. No esforço para elaborar e executar um processo civilizatório,
as classes dominantes recifenses vão atribuir a imagem, a máxima importância
distintiva, ou seja, através da impressão captada pelo olhar, seja em objetos, na
forma de vestir, como se expressava ou falava, etc., era atribuída a categoria de
requintado. A burguesia recifense se esforçava para educar-se buscando, por meio
das regras da polidez, ser capaz “de revelar aos olhos estrangeiros o estado social e
político de (sua) sociedade”16. O antigo modo barroco de viver repleto de reserva,
agora era substituído pela exibição pública comedida, a sofisticação da aparência
e a normatização dos sentidos. Uma nova sociedade emergiu, transformando-se
tal qual a cidade.
A partir da segunda metade do século XIX o Recife apresentava uma melhoria
em sua estrutura17, as formas de se viver a cidade estavam se modificando o que fez
aparecer dois personagens urbanos, exemplo de comportamento cosmopolita para
época: o gamenho figura muito popular no meio masculino da época, romântico por
natureza vestia-se à última moda francesa: botins de lustro, calças justas, gravata de
gorgorão, sobrecasaca, bengala e tracelim na algibeira donde pendia um pequeno
relógio. Ficava à espreita nas esquinas ou ao pé dos muros namorando as moças
que se aventurassem nas janelas, nos bailes galanteava as moças, sempre gentil
não perdia o ensejo de ajudá-las a descer dos bondes ou de acompanhá-las ao
passeio, verdadeiro terror dos pais austeros; já seu correspondente feminino, a
gamenha, passava horas se preparando elegantemente para os bailes, seus rostos
escondidos pelos finos leques deixavam de fora apenas os olhos que lançavam
flertes e sinais de gentileza provocante. De dia jogava bisca e de noite dançava o
galope, ia ao teatro, quando estudada, lia os periódicos e tocava piano, falava e
gesticulava graciosamente, tinha apelidos como Mimi, Lili ou Zazá, e tratava os pais
por Mamá e Papá. Arrochava a cintura em corpetes para adequar os longos vestidos
pregueados de mangas bufantes, usava nos pés os borzeguins, como adornos brincos
em filigrana de ouro, lenços de seda e filó e para perfumar a elegante figura, gotas
de essência de rosas. A aparência, assim como, a educação dos sentidos ditou as
condutas sociais que tinha na linguagem da razão uma maior eficácia na imposição
das suas regras, pois:
À medida que as maneiras se refinam, tornam-se distintivas
de uma superioridade: não é por acaso que o exemplo
parece sempre vir de cima e, logo é retomado pelas camadas
médias da sociedade, desejosas de ascender socialmente.
Essa imitação é um dos grandes veículos da difusão das
boas maneiras.18
16
HAROCHE, Claudine. Da palavra ao gesto. Campinas: Papirus, 1998, p. 18.
17
Dentre as melhorias, podemos citar a sistematização da iluminação pública, passeios públicos,
teatros, sistema de transportes coletivos, etc.
18
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime: do sangue a doce vida. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 19.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 221
Um aspecto interessante a notar é como a parcela feminina vai ganhar espaço
dentro dessa nova cidade que está surgindo, resguardada as devidas proporções,
a partir da segunda metade dos oitocentos, as mulheres burguesas, passaram a ter
hábitos mais arrojados se comparados a sua geração anterior. O belo sexo – como
eram conhecidas as mulheres aristocratas - começou ter uma participação mais
ativa tanto no cotidiano como na vida cultural da nova cidade como bem observou
Antônio Pedro de Figueiredo, em sua coluna A Carteira, publicada no Diário de
Pernambuco de 12 de janeiro de 1857:
O belo sexo já vai participando dos progressos da civilização
entre nós. Que diferença a este respeito entre Pernambuco
de há vinte anos e o nosso Pernambuco!
Ainda nessa época, tão pouco remota, a recepção de
uma visita, principalmente do sexo masculino, dependia
ordinariamente do homem chefe de família, por qualquer
título que fosse. Graças à administração do Exmo. Barão
da Boa Vista, a sociabilidade foi penetrando entre nós e,
louvores a Deus, hoje já vai se estendendo a ação do belo
sexo da sua influência secular nos negócios domésticos há
uma muito legítima influência nas reuniões públicas.19
A elitização da diversão pública também foi um dos principais agentes para
a modernização dos hábitos. O espaço do teatro, por exemplo, era um dos mais
importantes locais de sociabilidade, era nas dependências do Teatro de Santa Isabel
que as famílias aristocratas encontraram o divertimento adequado: cantatas, óperas,
peças e apresentações extraordinárias. Os encontros ocorridos em seu salão principal
eram responsáveis por lançamentos de modas, flertes, encontros políticos, etc.
De uma forma mais resumida, tais encontros aconteciam nas residências,
sobretudo com o advento da sala-de-estar ou de visitas; agora os novos domicílios,
antes inacessíveis aos olhares curiosos, ambientes de reserva e descanso, ofereciam
alguns de seus cômodos para abrigar uma plateia seleta, tornando-se o local ideal
para demonstração dos novos modos. Nesse contexto nenhum outro instrumento
trouxe maior status de sofisticação aos lares do que o piano. Popularizado nesse
período, esse objeto permitia as pessoas da família, especialmente às moças,
divertimento e ao mesmo tempo, a exibição dos seus talentos como concertistas. Nas
festividades além do canto traziam-se, à baila literalmente, coreografias europeias
(reproduzidas à risca ou adaptadas), entre elas as mais refinadas como: o pas de
deux e o pas de quatre; assim como as populares caxuxa, quadrilha, valsa e galope20.
Um exemplo de como a diversão foi uma das responsáveis pela interiorização das
sociabilidades no espaço que se tornou público nas casas, observemos uma cena
19
MELLO, José Antonio Gonsalves de. Diário de Pernambuco: economia, sociedade no 2º Reinado.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 1996, p. 432-433.
20
Originários da França, tais passos de dança envolviam diferentes formações: o pas de deux, um
casal; o pas de quatre, dois casais. Já a caxuxa ou cachucha, era uma dança popular espanhola de
par solto, sapateada e acompanhada por castanholas. A quadrilha, por sua vez, também de origem
francesa, envolvia quatro ou cinco pares e um dançarino avulso que dava orientação dos passos.
A valsa, era uma dança vienense onde os pares se abraçavam firmemente e executavam rodopios.
Por fim, o galope consistia numa dança marcada por batidas dos pés e desfile pelo salão, aos pares.
222 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
descrita por Lucilo Varejão em seu livro De que morreu João Feital?, romance que
reporta alguns hábitos do final do século XIX ao comentar um baile feito em casa
de um dos personagens centrais:
Pelos cantos do salão, onde as cadeiras, agora, se arrimavam
à parede, velhotas casadouras se abanicavam com risinhos
de censura às toilletes alheias, numa algazarra de maitacas
em bando.
As raparigas, essas estacionavam quase todas no quarto que
abria para o salão, transformando neste dia, em vestiário;
algumas, com exageros de atavios, davam-se mesmo a
liberdade acenar aos derriços ocasionais, entre requebros
estudados e olhares de provocação, por trás dos leques.21
Como podemos observar as pessoas relacionadas nessa narrativa ocupavam um
espaço que antes representavam um espaço de reserva, local de maior intimidade
(o quarto) agora, diante de uma situação diversa, esse cômodo servia como espaço
de uso coletivo para aqueles que não faziam parte da família residente no local.
No campo da normatização dos sentidos, as tensões criadas através das
exigências de civilidade contribuíram para uma maior divisão do entendimento
acerca da atuação do indivíduo na esfera privada e na pública, reverberando não
só na alta cultura da época como também nas esferas mundanas, o resultado disso:
a proliferação dos manuais de conduta, livros com “regras de ouro” das relações
sociais22. Os bons modos e a etiqueta serviram como demarcadores, separando o
“selvagem” do “civilizado”. A ideia seria que ao conter os instintos brutais através
dos bons modos, o controle de si levaria ao controle do grupo, gerando assim
uma sociedade pacífica, ou seja, “os valores estéticos servem assim como fator
de equilíbrio na sociedade, reduzindo a sua violência”23. Podemos especular que
talvez essas pessoas, não simplesmente imitavam modos ou modas alheios, ao
assumir uma nova postura social, elas deveriam realmente acreditar que poderiam
desvencilhar-se da imagem selvagem e violenta adquirida em séculos anteriores.
Dentre tantos tratados de civilidade, citamos o Código do bom-tom, do padre J. I.
Roquete, publicado em 1845, onde:
Termos como polidez, civilidade, cortesia e urbanidade,
ganham as páginas da obra, introduzindo o leitor nas
novidades desses conceitos e atitudes que, segundo o autor,
constituem ‘um verdadeiro passaporte para entrar nas
casas nobres e passar por cavalheiro bem-criado, tal qual
se aprende nas salas de Paris’.24
Além de educativo, o código também era normatizador, pois recomendava o
controle absoluto de emoções e sentimentos considerados desnecessários e ainda
21
VAREJÃO, Lucilo. “De que morreu João Feital?”. In: __________. Romances recifenses. 3. ed.
Recife: Ed. do Organizador, 2006, p. 62 (grifo meu).
22
SENNET, O declínio do homem..., p. 34.
23
RIBEIRO, A etiqueta no Antigo..., p. 31.
24
ROQUETTE, J. I. Código do Bom-Tom ou Regras da civilidade e de bem viver no século XIX.
Organizado por Lília Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 21-22.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 223
regulava as propriedades de ambos os sexos. Outro manual bastante utilizado pelas
famílias abastadas recifenses na segunda metade dos oitocentos foi o periódico O
monitor das famílias, endereçado ao belo sexo, recomendando atitudes “nobres e
respeitáveis”.
Como observamos anteriormente, a aparência foi um dos principais recursos para
consolidação da ideia de civilidade, sendo assim, a moda era utilizada como uma
das principais formas de diferenciação social, pois “através dela constantemente se
resgatam critérios que distinguem as classes”25. Percebamos que nos referimos a moda
para além do vestuário, estabelecendo-se no forma de se expressar oralmente, de
andar, de gesticular. Na criação de novos costumes a moda passou a ser um elemento
decisivo, tanto que o termo “costume” poderia indicar um hábito determinante
de comportamento de um grupo social, retendo a uma estrutura, um sistema de
elementos relacionados entre si. Isso ocorre quando o desejo pela novidade, pelo
requinte, pela elegância, etc. torna-se um valor, mudando feitios e tornando-se uma
regra estável, um hábito e uma norma coletiva26.
Chamamos a atenção para o fato de que nem todos que faziam parte da classe
dominante e intelectual estavam satisfeitos com essas mudanças, por exemplo, o
conservador e sarcástico Lopes Gama, homem da religião, editor responsável do
periódico O Carapuceiro, observava cuidadosamente os hábitos da época, assim
como modas e os eventos sociais, e tecia comentários ácidos sobre eles, como
podemos observar nesse fragmento do artigo de 07 de dezembro de 1843, intitulado
“O nosso progresso”:
Por meio desses viajeiros e desses doutoraços é que as
doutrinas ímpias dos filosofantes da França pouco a pouco,
se foram importando no Brasil (...) não se conheciam
sociedades, partidas, bailes nem soirées, quadrilha só se
conheciam as de ladrões, não se sabia o que era vis-à-vis,
e passear um marmanjo com uma senhora pelo braço
seria motivo para se por em conflagração um reino inteiro.
(...) As moças eram góticas no que se mostravam versadas
era nas graças (...) raras vezes saíam de casa (...) nunca
falavam com um homem. (...) Hoje as senhoras de bom
tom dormem todo o dia e velam todas as noites nos bailes,
nas companhias, nos teatros, etc.27
E ainda prossegue, criticando o afrancesamento dos hábitos:
Nossos avós tinham certo ar, certo porte, certo caráter
que os distinguia, mas hoje o que somos nós senão uns
macacos da França? (...) As nossas sinhazinha e iaiás já não
querem ser tratadas senão por demoiselles, mademoiselles
e madames. Nos trajes, nos usos, nos modos, nas maneiras
só aprova o que é francês, de sorte que já não temos uma
25
RIBEIRO, A etiqueta no Antigo..., p. 19-20.
26
CALANCA, Daniela. História social da moda. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2008, p. 11-12.
27
Apud MELLO, José Antonio Gonsalves de (org.). O Diário de Pernambuco e a história social do
Nordeste (1840-1889). Vol. I. Recife: Diário de Pernambuco, 1975, p. 50-57.
224 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
usança, uma prática, uma coisa onde se possa dizer: isto é
próprio do Brasil.28
Aproveitemos essa deixa e como um dos habitués do baile oferecido pelo
personagem Totônio Sales no romance oitocentista Os Azevedos do Poço, de Mário
Sette. Imaginemo-nos sentados ao lado de duas senhoras para ouvi-las a respeito
da intimidade proporcionada pela modernidade:
– Isso vai num progresso. Onde já se viu, no meu tempo, uma
mocinha de braço com um rapaz, passeando, conversando,
talvez inconveniências, rindo-se um para o outro nas barbas
dos mais velhos!
– Um escândalo!... Antigamente uma donzela só ficava
sozinha com o rapaz na noite do casamento. Antes, nem
por sonhos. Agora, é ‘soarê’, é teatro, é banquete, tudo
misturado. Os namorados juntos; as casadas umas com os
maridos das outras; as viúvas, até as viúvas se derretem,
D. Porcina! Não está vendo D. Amalinha, de luto aliviado,
toda caída pelo capitão Bianor?... Viúva no nosso tempo
tirava mais o vestido preto e o chorão?.29
E por mais que se tentasse resguardar a “santidade do lar” protegendo-o de
olhos curiosos o que se passava nas alcovas e outros cômodos, às vezes, a casa se
transformava em palco de espetáculo público, como comenta Mauro Motta:
(...) o ataque histérico que se rebentava nas casas, às vezes
em série, quando alguém adoecia “gravemente” ou morria
gente da família – a saída do enterro a casa só faltava vir
abaixo, o que constituía forma de prestigiar o morto –
quando se rompiam os noivados, quando havia briga mais
violenta entre marido e mulher, ou entre pai e filha. Então
havia um desadoro no quarteirão, na rua toda.
Percebia-se o tamanho dessas tragédias ou comédias
domésticas pelos gritos que as anunciavam, convocando
curiosos para as janelas, a vizinhança e parentes para
socorrer a histérica em geral contorcendo-se no sofá da
sala-de-visita, local mais correto par ao exibicionismo.30
Percebemos que a modernização da cidade acabou por influenciar a novos
costumes, não só no espaço público como também e na esfera privada e mesmo
tendo força em alguns campos, não foi imune às críticas. A busca pela inclusão
no novo contexto social ocorreu de variadas formas e não só no sentido de mera
imitação. Pois, são múltiplos os olhares opiniões, conceitos e preconceitos sobre seus
espaços e os usuários desses espaços. Assim são definidos valores relacionados ao
que deve ser conservado e preservado e o que pode e até deve ser destruído em
nome do progresso31.
28
Apud MELLO, O Diário de Pernambuco, p. 54.
29
SETTE, Mário. Os Azevedos do Poço. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1978, p. 313-314.
30
MOTA, Mauro. Modas e modos. Recife: Ed. Raiz, 1977, p. 106-107 (grifo meu).
31
ALMEIDA, Maria das Graças de Andrade Ataíde de & LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 225
É por esse motivo que discordamos do Padre Lopes Gama e sua opinião sobre
a disposição de “macaquear” os europeus. Enxergamos para além da simples
mimetização onde a adoção dos costumes estrangeiros levou uma reinterpretação dos
desejos, um reflexo captado através de outros olhos onde os anseios que moveram
essas pessoas eram múltiplos, seus parâmetros e referenciais, díspares. De forma
bilateral, surgiram adaptações dando um novo sentido à palavra modernização e com
isso os hábitos passaram a repercutir num ajustamento de teor local, transmutando
palavras, gestos, atitudes, etc., criando de fato um novo mundo que não era nem
a França e nem o Brasil, era o Recife.
RESUMO ABSTRACT
Influenciada pelas ideias de modernidade Influenced by the ideas of modernity originated
originada em cidades cosmopolitas europeias in European cosmopolitan cities of the nineteenth
do século XIX, assim como pelas mudanças century, as well as the changes implemented in
implantadas na sociedade urbana do Rio de the urban society of Rio de Janeiro since the
Janeiro desde a chegada da Família Real, as elites arrival of the Royal Family, Recife elites sought
recifenses buscaram ao longo dos oitocentos, over the eight hundred, promote changes in both
promover modificações tanto na estrutura the urban structure and social and cultural order
urbana como social e cultural visando equipara- to equate it to the examples described above.
la aos exemplos acima descritos. Essa tentativa This attempt unleashed a taste for refinement
desencadeou um gosto pelo refinamento dos of manners, the main inspiration Paris. From
costumes, tendo como principal inspiração Paris. this premise, we observe in everyday city how
Partindo dessa premissa, observamos no cotidiano this process of ‘modernization’ took place, we
citadino como esse processo de “modernização” conducted our historical research through the
se deu, conduzimos nossa investigação histórica ideas of Richard Sennett, among others, seeking
através das idéias de Richard Sennett, entre to understand how to incorporate the experience
outros, procurando perceber como a experiência of customs “civilized” Europeans led to a cultural
de incorporação dos costumes “civilizados” hybridization. We utilize our research as a source
europeus levou a uma hibridização cultural. Para of the novels, and on the chronicles of the period
isso, utilizamos como fonte de nossa pesquisa os in which we concentrate, as well as some stories
romances, as crônicas do e sobre o período em printed in newspapers.
que nos debruçamos, bem como algumas notícias Keywords: Custom; Recife; 19th Century.
estampadas nos jornais da época.
Palavras Chave: Costumes; Recife; Século XIX.
Andrade. História (nem sempre) bem-humorada de Pernambuco (140 caricaturas do século XIX).
Recife: Bagaço, 1999, p. 98.
226 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
NAVEGANDO COM TUBARÕES:
A MÁQUINA E OS HOMENS QUE
FIZERAM O TRÁFICO
REDIKER, Marcus. O Navio Negreiro: uma história humana. Tradução de Luciano Vieira Machado.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 446 p.
1
Doutor em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
Membro do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista (UFPB / CNPq).
2
HILL, Pascoe Grenfell. Cinqüenta dias a bordo de um navio negreiro. Tradução de Marisa Murray.
Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006, p. 82.
3
LINEBAUGH, Peter & Marcus REDIKER. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus
e a história oculta do Atlântico revolucionário. Tradução de Berilo Vargas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 229
Agora Rediker dirige sua atenção ao tráfico de escravos africanos, a enorme
transferência de populações através do Atlântico que moldou o mundo contemporâneo
e forneceu um dos pilares para a ascensão do capitalismo. Sua abordagem, contudo,
é bem distinta daquela presente em estudos que se tornaram clássicos nas últimas
décadas, em especial com autores como David Eltis ou Paul Lovejoy. Rediker não se
detém sobre a cliometria do tráfico, mas usa seus conhecimentos da história marítima
e um grande uso de documentos pessoais, como cartas e diários de viagem, para
construir uma narrativa na qual os indivíduos e suas histórias de vida ocupam um
lugar de destaque.
É bem verdade que o título do livro é um tanto enganoso. Embora prometa fazer
uma história do próprio navio negreiro, a máquina sobre a qual se desenrolou o
drama da viagem forçada pelo Atlântico, a maior parte do livro é dedicada às histórias
pessoais, especialmente a do ex-escravo Olaudah Equiano, do marinheiro James
Field Stanfield, e do capitão de navios negreiros John Newton. Estes testemunhos
ajudam Rediker a mostrar o tráfico como muito mais do que uma empresa colonial,
na qual as forças do capitalismo nascente se defrontaram com a demografia africana,
mas também como uma tragédia na qual os indivíduos que trabalhavam nos barcos e
entulhavam os porões com gente aterrorizada também tinham uma vida de extremo
sofrimento, por vezes sendo mais mal tratados do que aqueles que representavam, no
fim das contas, um “investimento” muito mais valioso do que as vidas de marinheiros
que podiam ser substituídos com extrema facilidade.
O período abordado por Rediker abrange de 1700 a 1807, data do Slave Trade
Act que pôs fim ao tráfico de escravos no Império Britânico. É o período de ouro
deste comércio, no qual foram transportados dois terços de todos os africanos
trazidos à América, quarenta por cento dos quais vindos em barcos ingleses ou norte-
americanos. O autor aborda o período com base em quatro “dramas” humanos,
nos quais atuavam atores como os capitães dos navios, a multidão heterogênea que
formava as tripulações, os escravos em sua diversidade e, por fim, os abolicionistas
que deram fim ao comércio de escravos com suas descrições pungentes baseadas
nos depoimentos daqueles que participavam da empreitada.
O primeiro drama é o do relacionamento entre capitães e subordinados. Sem
tentar diminuir o sofrimento dos escravizados, Rediker mostra que as relações entre
os comandantes e as tripulações dos barcos só poderia ser caracterizada como
infernal, marcada por extrema violência e disciplina férrea. Os capitães tinham que
estar preparados para exercer seu poder (a eles confiados pelos donos dos navios)
com todos os meios possíveis, o que tornava a vida dos marinheiros tão dura quanto
a dos escravos, já que a taxa de mortalidade entre os marinheiros era semelhante à
dos próprios cativos. A análise do autor sobre esta relação particular deve bastante
ao tipo de abordagem realizada em A hidra de muitas cabeças: os marinheiros
eram unanimemente vistos como seres turbulentos e perigosos que deveriam ser
disciplinados à força, ou eliminados.
A violência dos capitães, portanto, era uma parte integral do processo que se
iniciava nos portos britânicos e americanos, como Bristol ou Newport, e em vários
outros portos do Atlântico, e se encerrava com a viagem de volta, nos quais os navios
retornavam aos portos de origem após despejar os sobreviventes da passagem na
América. Reunir a tripulação era uma parte importante das tarefas de um capitão, e
230 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
isto era feito geralmente com métodos de sedução. Recrutavam-se os marinheiros,
muitos de primeira viagem, nas tabernas, com fartas distribuições de rum. Nos
discursos dos agenciadores, os navios eram sempre novos e confortáveis, com boa
comida e bebida. Os destinos na África eram sempre os mais agradáveis e salubres,
e ainda havia a promessa do sexo com jovens virgens africanas. Os marinheiros
mais experientes diziam que, se as coisas fossem tão boas, não haveria dificuldade
em reunir as tripulações, mas os inexperientes costumavam engolir as promessas.
Nem sempre, porém, as coisas se resolviam com toasts de rum e descrições
melífluas. As prisões estavam atulhadas de devedores, vagabundos e toda a sorte de
gente despojada pela revolução econômica da Inglaterra do século XVIII. Para estes
não havia muita escolha: a incerteza da viagem à África parecia melhor do que a
morte na prisão ou o envio, como trabalhadores forçados, para as Américas ou para
as workhouses, destino que afetou centenas de milhares de europeus, especialmente
crianças órfãs. E havia, é claro, a perspectiva dos ganhos: um marinheiro poderia,
caso tudo corresse bem, ganhar o equivalente a US$ 4.500 atuais (o capitão poderia
ganhar US$ 100.000), o que significava bastante no século XVIII. Naturalmente este
resultado feliz somente ocorria na distante hipótese de que o marinheiro sobrevivesse
às doenças, à crueldade dos capitães e mestres, às revoltas dos escravos e às tabernas
e prostitutas dos portos de retorno.
O segundo drama desenrolava-se entre os marinheiros e os cativos. Embora
coubesse ao capitão a tarefa de zelar pelos lucros dos investidores (e o seu próprio),
eram os marinheiros que executavam o trabalho de controlar os escravos e mantê-los
vivos. Comida estragada, violências inauditas e estupros de escravas (que já eram
divididas pelos marinheiros, e capitães, na chegada ao navio negreiro) eram moedas
correntes nestas relações. Os africanos respondiam a este horror com inúmeras
formas de resistência, que iam do suicídio à recusa em se alimentar, passando
pelas revoltas e pelo assassinato de marinheiros e capitães. Alguns procuravam cair
nas boas graças dos captores, assumindo tarefas a bordo, inclusive no controle e
repressão de seus companheiros. Mulheres e crianças, que tinham maior liberdade
de movimentos, eram especialmente valorizadas para assumir tais funções, o que
também lhes permitia praticar pequenos crimes a bordo, como roubar comida e a
valiosíssima água, e mesmo organizar rebeliões.
Em boa parte do livro, Rediker se dedica a relatar as inúmeras formas pelas
quais os homens podem torturar, aterrorizar, humilhar e matar seus semelhantes.
Nas páginas de O Navio Negreiro, a passagem da África à América se parece, com
boa dose de razão, a um holocausto avant la lettre. Muito embora o autor não
deixe de apontar a miséria dos marinheiros, e o fato de que havia a necessidade
comercial de manter os escravos vivos, ninguém deixará este livro sem se convencer
da indizível violência dirigida aos cativos. Deixo ao leitor a tarefa de descobrir por si
só as crueldades descritas por Rediker. Mas não posso deixar de comentar o papel
dos tubarões no tráfico de escravos.
Os tubarões já se aglomeravam nos portos africanos, aguardando os mortos
enterrados em covas rasas nas praias, e descobertos pelas marés, ou atacando
os pequenos barcos que faziam o transporte entre as praias e os negreiros. Cair
de um barco era morte certa, o que fazia dos tubarões “o terror dos marujos”. E
mais ainda dos escravos: os capitães gostavam de ver seus navios cercados por
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 231
tubarões que seguiam os navios em busca do lixo dos navios, como vísceras e tudo
que não pudesse ser transformado em comida para os escravos, e especialmente
corpos humanos. Os tubarões, que se juntavam ás centenas em torno dos navios,
eram usados como instrumentos de terror: escravos renitentes, mulheres que se
recusavam a ser estupradas, e mesmo crianças que roubavam comida ou água
eram simplesmente jogadas aos tubarões, por vezes com requintes – nada raros –
de crueldade, como na oportunidade em que uma escrava rebelde foi amarrada
pelas axilas e jogada na água pela metade do corpo. Em poucos segundos a água
estava vermelha de sangue: metade do corpo da escrava havia sido arrancada pelos
tubarões. Para aumentar o horror, por vezes os tubarões eram caçados e abertos na
frente dos escravos: não era incomum que partes de corpos saíssem dos estômagos,
o que não deixava dúvidas quanto à falta de perspectivas de fuga.
O terceiro drama se desenrolava entre os próprios cativos. Pessoas de diferentes
origens, línguas e etnias eram jogadas em porões infectos, e quando decidiam se
manter vivos tinham que construir novas relações entre si, que muitas vezes assumiam
a forma de um “parentesco” fictício, que transformava estranhos em “irmãos” e
“irmãs”, o que garantiu a sobrevivência de muitos. Vários autores, como Richard
Price ou John Thornton, já haviam apontado a importância dos laços criados na
viagem no negreiro para a construção de uma identidade afro-americana, Mas
Rediker avança nesta reflexão ao detalhar as formas pelas quais estas novas relações
se construíam dentro das circunstâncias catastróficas encontradas a bordo. Este é,
diz Rediker, o fato mais importante a se destacar em toda a tragédia da escravidão:
“sua criatividade e capacidade de resistência os tornaram indestrutíveis, em termos
coletivos, e aí reside o capítulo mais glorioso de todo o período” (p. 16).
Por fim, Rediker se detém sobre o movimento abolicionista, quando membros
da elite britânica e norte-americana, como Thomas Clarkson, denunciaram as
iniquidades do tráfico ao público leitor. Em O Navio Negreiro aprendemos que
a percepção da tragédia da escravidão não se deveu apenas aos sentimentos
humanitários de alguns, mas à ação dos próprios envolvidos no tráfico, especialmente
os marinheiros que retornavam aos portos com histórias monstruosas e cicatrizes
emocionais e físicas. Foi a partir destes relatos que se construiu paulatinamente
a percepção de que o tráfico deveria ser extinto. Tais relatos colocaram um fim à
ideologia que afirmava que a escravidão, embora repulsiva, era uma necessidade
econômica e mesmo um bem aos “miseráveis africanos”. Histórias como a do ex-
escravo Olaudah Equiano, ou o famoso diagrama do navio Brooks – no qual os
escravos aparecem apinhados como sardinhas em lata – foram essenciais para a
transformação da mentalidade do público britânico e norte-americano.
Outro ponto importante no livro diz respeito aos próprios navios negreiros. Para
Rediker, o navio negreiro era uma das mais importantes máquinas inventadas pelos
europeus para a conquista do mundo. A partir das primeiras navegações no século
XV, os europeus usaram suas armas de fogo e barcos cada vez mais desenvolvidos
para dominar os povos da Ásia e América e para trazer os africanos que deveriam
trabalhar nas colônias. A máquina do navio era um contraponto necessário às
máquinas que movimentavam as plantations do Caribe e América do Norte. Além
disso, os navios eram fortalezas e prisões, cheios de armas e instrumentos de
contenção e tortura, o que fazia deles artefatos extremamente complexos, os quais
232 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
deveriam satisfazer a várias necessidades de defesa, transporte e manutenção (dentro
do “possível”) das vidas das mercadorias humanas. Sem dúvida, a descrição da
fabricação e das características buscadas nos negreiros é uma parte interessante do
livro de Rediker, mas a necessidade de atingir o público mais amplo faz com que os
conhecimentos de história náutica do autor sejam usados com grande parcimônia.
Seria interessante complementar a análise de Rediker com a leitura do livro de Jaime
Rodrigues, De Costa a Costa4, que traz descrições bem mais aprofundadas a este
respeito, embora, é claro, em um contexto e período diferentes.
Rediker também analisa os caminhos que traziam os escravos do interior da África
para os portos onde eram comprados pelos negreiros. Como é sabido, a escravidão
era tradicional nas sociedades africanas, mas a aparição dos europeus transformou
esta instituição em uma forma colossal de expropriação, à qual correspondia a
exploração nas plantations. Nesta máquina azeitada de exploração, os indivíduos
escravizados eram os elos fundamentais, não apenas pelos seus corpos, mas também
pelo seu trabalho na América. O rum (e, no caso do Brasil, a cachaça) era produzido
em milhares de destilarias na Inglaterra e América do Norte para servir de moeda de
troca, entre outras, nos portos exportadores de escravos na África. Era o trabalho dos
escravos que produzia novos escravos para as plantações e engenhos americanos.
Rediker aponta o papel dos europeus em incentivar as guerras africanas, ao
comerciar os meios de fazer a guerra, como cavalos e armas de fogo. Isto não o
faz, contudo, embarcar em qualquer tipo de negacionismo politicamente correto:
ao descrever as diferenças entre as várias regiões produtoras de escravos, Rediker
mostra como vários estados africanos se constituíram para o tráfico. Desta forma,
quem era escravizado era uma imposição das próprias sociedades africanas. O autor
também discute outras formas de escravização, como as condenações por feitiçaria
e os raids feitos por europeus ou africanos a seu serviço em aldeias próximas da
costa. Seguindo seu método de ilustrar os fatos com testemunhos pessoais, Rediker
apresenta vários casos em que os indivíduos eram sequestrados em suas aldeias
e levados aos portos do Atlântico, o que representa um dos pontos altos do livro.
Naturalmente, todos estes fatos já eram bastante conhecidos, mas o livro de Rediker
tem a enorme virtude de dar voz e rosto a um fenômeno que se espalha por séculos
e que afetou milhões de pessoas.
Rediker confere grande importância aos relatos de seus personagens icônicos: o
escravo Equiano, o marinheiro Stanfield e o capitão Newton. É, obviamente, uma
escolha bastante direcionada, já que os três personagens foram figuras marcantes do
movimento abolicionista. Por vezes o autor assume os riscos de uma idealização de
seus ícones, o que pode comprometer a acurácia histórica. Equiano, por exemplo,
traficou escravos durante certo período, o que é ignorado na narrativa de Rediker.
É de se lamentar, já que a história completa de Equiano – escravo, marinheiro,
traficante e abolicionista – seria justamente um caso exemplar de sobrevivência e
adaptação a uma situação dramática.
Mas este tipo de falha, em um livro claramente voltado para o público mais
amplo, não compromete suas muitas virtudes. Rediker usa uma enorme variedade
de fontes, que formam um requintado pano de fundo para suas histórias individuais.
4
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro
de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 233
Dos debates sobre o abolicionismo no Parlamento britânico aos diários de capitães
e marinheiros, dos registros portuários aos relatórios médicos, Rediker constrói sua
argumentação com base em dados bastante sólidos, o que não o impede de fazer
escolhas que privilegiam uma determinada visão sobre a história deste período.
Tanto em A Hidra de Muitas Cabeças quanto em O Navio Negreiro Rediker lança
o foco sobre os pobres e despossuídos da Europa, da América e África. A todo o
momento o autor mostra as formas como as massas turbulentas que povoavam as
margens do Atlântico influenciaram a história, seja resistindo à exploração, como
nas revoltas de escravos ou nos motins contra recrutamentos e trabalhos forçados
por miseráveis europeus, seja construindo “sociedades alternativas” ao sistema de
dominação global, como os piratas e os quilombos. Rediker aponta, neste livro atual,
que os relatos de marinheiros e, no final das contas, sua recusa em participar do
tráfico foram elementos centrais na modificação cultural e política que propiciou o
fim do tráfico no Atlântico anglófono.
Sua análise do impacto do tráfico entre as sociedades africanas é também
bastante válida. O livro mostra como o tráfico alterou as relações sociais de forma
definitiva, seja permitindo e incentivando a hierarquização e a formação de classes,
seja provocando uma cisão definitiva entre os povos africanos e suas elites, com
consequências que se fazem sentir até hoje. Não custa repetir, contudo, aquele que
talvez seja o ponto mais interessante do livro: ao mesmo tempo em que uma máquina
infernal, o navio negreiro, sugava e destruía milhões, era justamente nesta viagem
de dor que se formava uma nova consciência por parte de ibos, efiques, cassanjes,
e tantos outros que descobriam, para seu espanto, que faziam parte de uma nova
categoria, os “negros”, com tudo o que isso significava para suas histórias individuais
e para a formação das sociedades americanas.
Todas estas qualidades, aliadas à escrita atraente e ao entusiasmo com que o
autor apresenta seus personagens, faz de O Navio Negreiro uma leitura indispensável
para aqueles que querem compreender a complexidade do tráfico de escravos e
seu impacto nas sociedades americanas. É de se lamentar, contudo, a pobreza do
mercado editorial brasileiro, que já publicou dois livros de Rediker (com razão, aliás),
mas nunca publicou outros livros ainda mais importantes, como Way of Death, de
Joseph C. Miller, entre outros.
234 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
A JUDICIALIZAÇÃO DA HISTÓRIA:
TEMPO PRESENTE, DOBRADURAS
DE RACISMO E AÇÕES AFIRMATIVAS
FERREIRA, Renato (coord.). Ações Afirmativas - A Questão das Cotas: análises jurídicas de um dos
assuntos mais controvertidos da atualidade. Niterói: Impetus, 2011, 404 p.
Parece ser uma evidência entre os historiadores do século XXI (todos eles sem
exceção nascidos no século anterior) que a divisão entre o visível e o invisível
passa por profunda e quase trágica desestabilização. Bem disse o historiador das
antiguidades clássicas, François Hartog, preocupado com o que os historiadores
veem, ao disparar sem papas no francês: “o que há para ver quando se pode ver
tudo?”3.
Não deixa de ser uma ironia o fato de que o país entra num novo século, que
abre o terceiro milênio cristão, tentando resolver o mais invisibilizado dos seus
teoremas no século XX, o problema racial. Basta que citemos o primeiro parágrafo
da obra seminal do escritor negro norte-americano WEB Du Bois, em 1903, que
na sua reflexão prévia foi anunciador: “o problema do século XX é o problema da
barreira racial”4. Mas o Brasil não leu WEB Du Bois e levamos quase cem anos para
ter a sua obra traduzida para o português enquanto que a mais inconsútil novidade
historiográfica francesa chega de Paris no mesmo momento, até em lançamentos
simultâneos. O tempo presente do historiador e a simultaneidade dos tempos do
capitalismo cultural parecem não deixar nada para depois: o que ainda se pode ver
sobre a questão racial no Brasil que ainda não foi visto pela “historiografia pátria”
e pelos “intérpretes do Brasil”?
Em recente tradução para o português da História Geral da África, em oito
volumes, o autor da Introdução Geral, Joseph Ki-Zerbo, fala da “diversão alienadora”
que poderia levar à abstração das “tarefas da atualidade”. Ao ponderar que “a
história é a memória dos povos” o historiador de Burkina Faso também alertava
numa premissa que não seria estranho ao mundo jurídico: “é preciso que a verdade
histórica, matriz da consciência desalienada e autêntica, seja rigorosamente examinada
e fundada sobre provas”5. Esse foi um bom motivo para propor a resenha de um
1
Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História (UFPB). Pesquisador do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). E-Mail: <elioflores@terra.com.br>.
2
Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Professor do Centro de
Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB). Pesquisador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas
(NEABI/UFPB).
3
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica,
2011, p. 16.
4
DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999, p.
49.
5
KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In: História Geral da África. Vol. I (Metodologia e Pré-História
da África). Brasília UNESCO; São Paulo: Cortez, 2011, p. XXXIII.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 235
livro que permite ao historiador a compreensão de um evento que se tornou “vida
cotidiana” na “arena judicial”. Evento presentista, posto que em curso, o livro traz à
tona análises jurídicas de “um dos assuntos mais controvertidos da atualidade”, as
ações afirmativas e as cotas para negros e indígenas no ensino superior. Outro motivo,
não menos importante, é o evento acadêmico de maior impacto na universidade
para a “história do futuro”, a aprovação pela UFPB, das cotas raciais e sociais no
sentido de democratizar o acesso ao ensino superior no estado da Paraíba. Uma
luta dos movimentos negros e indígenas que não durou menos do que uma década,
traduzindo-se num acesso tardio às políticas públicas de ações afirmativas6.
O coordenador da obra, Renato Ferreira, advogado, especialista em direitos
humanos e relações raciais, pesquisador do LPP (Laboratório de Políticas Públicas)
da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), reuniu dezoito autores que
atuam na área jurídica e traçam reflexões sobre o direito como instrumento para
“o enfrentamento da injustiça”. Cabe a nós indagar se a historiografia teria essa
mesma determinação. Na primeira parte, as entrevistas com Carlos Roberto Siqueira
Castro (UERJ), Fábio Konder Comparato (USP) e Luís Roberto Barroso (UERJ),
explicitam a situação do tempo presente a partir das “igualdades materiais previstas”
pela Constituição de 1988 e de suas urgências como imperativo categórico, isto é,
necessidade histórica. Para os historiadores que trabalham com testemunhos, o
depoimento do jurista Fábio Konder Comparato, não deixa de ser um estímulo de
pesquisa ao que nos legou a escravidão:
Eu sou descendente do maior proprietário de escravos do
segundo reinado, o Comendador Joaquim José de Souza
Breves. Tive que entender, e só entendi isso muito tarde,
que a responsabilidade pela escravidão se transmite aos
descendentes, como a herança de um débito social. É um
débito social porque, se eu sou o que sou, hoje, é pelo fato
de eu ter herdado várias coisas, notadamente a instrução e
a educação, e isto só foi conseguido porque durante séculos
os negros sustentaram nossa economia (p. 14).
A segunda parte do livro é composta por onze artigos, abrindo-se a seção com
“Justiça Social e Justiça Histórica”, de autoria de Boaventura de Sousa Santos, cuja
reflexão resume a sua experiência na sociologia do direito7. Para ele, no Brasil, “a
injustiça social tem forte componente de injustiça histórica” que pode ser observada
na persistência do “colonialismo social”. Boaventura toca num ponto caro à
historiografia brasileira: “a ideia de democracia racial como dado, não como projeto”
(p. 34). Depois se seguem os artigos de Cláudio Pereira de Souza Neto e João Feres
Júnior, Daniel Sarmento, Flávia Piovesan, Luiz Fernando Martins da Silva, Otavio
6
Ver o dossiê “Ações Afirmativas”, organizado pelas pesquisadoras Surya Aaronovich Pombo
de Barros e Teresa Cristina Furtado Matos, publicado na revista Política & Trabalho - Revista de
Ciências Sociais (n. 33, Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da
Paraíba, out. 2010). Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/politicaetrabalho>.
7
Basta que se pense no grande projeto do autor, intitulado “Para um Novo Senso Comum: a
ciência, o direito e a política na transição paradigmática”, cujo primeiro volume aponta para, no
mundo jurídico, “a tensão entre regulação e emancipação”. Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. A
crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez Editora, 2000, p.
119-188.
236 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
Brito Lopes, Roger Raupp Rios, João Mendes Rodrigues e Carlos Eduardo Silva
Gonçalves, Tanya M. Washington, Deirdre Bowen e Jessica Erikson, Hédio Silva
Júnior e Daniel Teixeira, com atuação na área do direito no Brasil e alguns com
atuação jurídica nos Estados Unidos.
Os autores seguintes, Cláudio Pereira de Souza Neto e João Feres Júnior, discorrem
sobre os argumentos básicos que legitimam as políticas de ações afirmativas.
Esses são a reparação (histórica), a justiça social (distributiva) e a diversidade
(multiculturalismo). Aqui aparecem as temporalidades historiadoras que implicam
olhares que se entrecruzam numa mesma problemática: “Enquanto a reparação
olha mormente para o passado, e a justiça social foca a desigualdade presente, a
diversidade tem um registro temporal incerto, às vezes sugerindo a produção de um
tempo futuro quando as diferenças poderiam se expressar em todas as instâncias da
sociedade” (p. 48). Ao final se critica a “apologia indiscriminada do mérito” numa
sociedade em que as condições competitivas “são terrivelmente desiguais”.
Daniel Sarmento, ao pontuar o grau elevado de desigualdade racial no país,
chama a atenção para o historiador do tempo presente e sua pesada “estrutura do
cotidiano” numa acepção braudeliana:
Para quem tem olhos de ver, basta um giro pelos shopping
centers ou restaurantes frequentados pela elite em
qualquer centro urbano do país para constatar a exclusão
social dos negros, que, no entanto, estão muitíssimo ‘bem
representados’ em outros espaços menos m como os
presídios e favelas (p. 64).
O autor traça “breves notas históricas sobre o princípio da igualdade” para
compreender a “discriminação de fato” e a “discriminação indireta” à luz da “teoria do
impacto desproporcional”. Isso significa dizer que a adoção de políticas universalistas
não estaria simplesmente reforçando o “mito nacional da democracia racial” senão
que também desfavorecendo grupos estigmatizados e vulneráveis. Ora, a perspectiva
ideológica do sujeito histórico universal não seria uma racionalização do racismo
eurocentrado no “fardo do homem branco”? Para o autor, a diversidade racial
estaria assegurada na medida em que as instituições públicas e privadas adotassem
práticas e ações afirmativas. De forma que, “de alguma maneira o branco também
se beneficia da ação afirmativa promovida em favor do negro” (p. 86).
Para Flávia Piovesan, a historicidade da construção dos direitos humanos, permite
observar que a primeira fase (os direitos civis e políticos) teria sido “marcada pela
tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença” (p. 117). Entretanto,
as mais graves violações a esses mesmos direitos afirmados foram produzidas pela
escravidão, os campos de extermínio, as práticas sexistas, a xenofobia e tantas outras
práticas de intolerância. Para a autora, se as intolerâncias e as injustiças raciais “são
um construído histórico” seria emergencial a “adoção de medidas emancipatórias para
transformar esse legado de exclusão étnico-racial e compor uma nova realidade”. Ao
defender as ações afirmativas Flávia Piovesan também aponta para a visão do “anjo
da história” benjaminiano, tão citada pela historiografia pós-moderna, porém tão
pouco perscrutada. Mas nunca é tarde para ler Flávia Piovesan: “As ações afirmativas
devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo − no sentido de
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 237
aliviar a carga de um passado discriminatório −, mas também prospectivo − no
sentido de fomentar a transformação social, criando uma nova realidade” (p. 122).
O artigo do advogado Luiz Fernando Martins da Silva analisa o sistema legal
que anima o debate jurídico sobre “o tema ação afirmativa e seus mecanismos para
negros no Brasil”. De extrema importância é o documento jurídico do acórdão
proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro, de 10 de dezembro
de 2003, relatado pelo desembargador Cláudio de Mello Tavares, negando o
pedido de inconstitucionalidade impetrado por um candidato que se sentia lesado
pela adoção do sistema de cotas no vestibular da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro. Trata-se de um veredito que põe em delicada evidência a tese historiográfica
de que as decisões dos tribunais brasileiros primam pelo conservadorismo. Eis o seu
teor mais eloquente e categórico:
Cidadania não combina com desigualdades. República não
combina com preconceito. Democracia não combina com
discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico,
não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e
preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente
cidadão o leitor que lhe buscasse a alma, apregoando o
discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história
pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso ter sempre
presentes essas palavras. A correção das desigualdades é
possível. Por isso façamos o que está ao nosso alcance, o
que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida,
não há espaço para o arrependimento, para a acomodação,
para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber
a origem, a tudo que é novo (p. 163).
De fato, a revolução historiográfica ocorrida nas últimas décadas, especialmente
aquela da “história social da escravidão”, mas que ainda não ultrapassou o “14 de
maio”, talvez devesse se situar num tempo presente em que as demandas por ações
afirmativas e reparações históricas sejam significações materiais e simbólicas que,
de certa forma, reverberam o palco histórico de 1695: “a pressão historicamente
exercida pela comunidade negra e demais segmentos sociais excluídos” e “resultado
de um contexto caracterizado por grandes mudanças externas e internas” (p. 167).
A reflexão que o texto do Procurador Geral do Trabalho, Otavio Brito Lopes,
proporciona é uma perspectiva de também replicar elementos acadêmicos dentro do
Poder Judiciário, enquanto agenda política e ações jurídicas de uma das instituições
do sistema de justiça que tem como missão observar a situação dos/as trabalhadores/
as no Brasil, pois, o Ministério Público do Trabalho (MPT) tem a capilaridade de
atuar no campo individual, assim como nas demandas coletivas, trazendo teses que
são analisadas pelos Tribunais do Trabalho. O autor revela que no ano de 2005 o
lançamento, dentro do Ministério Público do Trabalho, do Programa de Promoção de
Igualdade de Oportunidades para Todos, é um marco fundamental para construção
de uma metodologia de trabalho do que considera a discriminação do ponto de
vista direto ou indireto, ou seja, o MPT trabalha também em cima da hipótese
constituída de um racismo à brasileira. É evidente que os conflitos no campo da
238 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
empregabilidade, de cunho discriminatório, não estão presentes nos discursos, editais
e chamadas de emprego, porém, estão arraigados nas opções dos contratantes. A
presença marcante de homens brancos no mercado de trabalho não condiz com a
realidade brasileira quando mensurados os recortes de gênero e étnico/racial, tais
análises também refletem no campo salarial e das oportunidades de promoção
funcional nas empresas privadas ou públicas, principalmente no campo dos cargos
de chefia e confiança. O autor observa o grau significativo de negação de que a
discriminação indireta reproduza as “persistentes desigualdades de raça e gênero”
(p. 201) assim como a “negação de que a discriminação poder ser evidenciada por
meios de estatísticas” (p. 209). Nesse caso, a prova estatística, ainda se mostra frágil
aos olhos dos juízes diante da complexidade das relações raciais. Algo semelhante
como medir a violência da escravidão pela quantidade de açoites que o escravizado
sofria do seu senhor. Ora, um açoite já um é indício, é história repetível.
O objeto de análise inicial do longo artigo de Roger Raupp Rios é propor uma
discussão constitucionalista sobre a eficácia jurídica do princípio da igualdade,
especificamente nas dimensões hermenêuticas principiológicas (pós-positivista) que
permita uma relação direta entre as possibilidades de incorporação dos tratados
internacionais e o ordenamento jurídico brasileiro. Tal discussão apenas é possível,
de acordo com o autor, quando mensurada a ideia de igualdade no plano material
e formal. Para tanto, tais argumentos são baseados em pesquisadores como Abdias
do Nascimento, Luís Fernando Barzotto, Robert Alexy, Marcelo Neves, Joaquim
Barbosa Gomes, entre outros que transitam no campo das análises da teoria geral
do direito, constitucionalismo, história e filosofia. Os argumentos centrais estão
baseados em algumas análises comparativas entre Brasil e Estados Unidos da
América (EUA) sob a ótica dos seguintes postulados: o direito da antidiscriminação;
o conceito jurídico de discriminação; discriminação direta e indireta, a gênese
das ações afirmativas nos EUA; o conceito e debate sobre ações afirmativas; os
argumentos favoráveis e contrários às ações afirmativas no Brasil e uma análise
sobre o princípio da igualdade a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (STF). O trabalho desenvolvido por Rios é denso, especialmente para os
iniciantes em leituras jurídicas, pois, utiliza as relações dos autores com os casos nas
esferas do STF e da Suprema Corte Norte-Americana, entrelaçando tais espaços
decisórios com elementos teóricos da perspectiva liberal do direito, proporcionando
um grande debate sobre as possibilidades de julgamentos favoráveis às teses das
ações afirmativas no âmbito brasileiro.
O artigo seguinte, de João Mendes Rodrigues e Carlos Eduardo Silva Gonçalves,
trava um debate sobre as possibilidades de diálogo dentro do sistema jurídico da
comunidade europeia denominado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
(TJCE), órgão responsável pela análise sobre a pertinência legal dos atos comunitários
em uma perspectiva regional, principalmente no âmbito do direito trabalhista e a
relação de gênero no ambiente de trabalho e acesso a cargos públicos nos Estados-
membros. Os autores demonstram que a construção da jurisprudência nesse Tribunal
é tímida, também em face do pouco avanço legislativo nos Estados. Por outro
lado é possível vislumbrar que as diretivas apontadas por esse órgão é de extrema
relevância política para grupos específicos ou indivíduos, porém, apenas o discurso
não basta para dar sustentabilidade às posições festejadas no âmbito europeu, os
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 239
próprios autores sinalizam que em casos emblemáticos o TJCE tende a ser temerário.
Vale no texto acompanhar os diversos casos citados no âmbito europeu que ainda
estão em trâmite dentro do TJCE, assim como a discussão sobre a universalidade
do princípio da igualdade.
A professora Tanya M. Washington elabora no seu artigo uma síntese sobre o
projeto de ações afirmativas nos Estados Unidos da América (EUA), sendo a crítica
inicial da autora uma análise binária (brancos e negros) na atual sociedade norte-
americana recortada por outras identidades e experiências étnicas coletivas que
vivenciam problemas econômicos, políticos e sociais de igual repercussão, como
é a situação dos asiáticos, latinos e índios. Trata-se de um texto com forte teor
historiográfico e equivocadamente discutido no Brasil que vale a pena se entender
na sua análise. A narrativa proposta pela autora nos leva desde a instituição da
escravidão (1654-1865) nos EUA o que corresponde a mais de 200 anos de
opressão e construção de códigos identitários nacionais nas quais os/as negros/as
foram/estão excluídos, entre eles o acesso à educação universitária, visto que os
números apontam um total de quatro milhões de africanos escravizados no auge
do sistema. Os anos de 1866-1877 aparecem enquanto a possibilidade de alguns
avanços da população negra, principalmente, a partir do ideal de controle central
(União) da federação americana, por exemplo, a autora aponta a existência de um
Departamento de Refugiados, Homens Libertos e Terras Abandonadas, com foco no
assentamento das famílias negras provenientes do Sul. É o período da construção
das Emendas constitucionais 13, 14 e 15, esta última previu a condição de voto
igual para cada pessoa, independente de cor, raça ou condição econômica. Por
outro lado também é o tempo de surgimento e intensificação da violência por parte
da Ku Klux Klan, que além das ações pessoais (ameaças, assassinatos e torturas),
também tinha articulações políticas em todos os setores do Estado. Os embates dessa
época levaram a um outro momento histórico turbulento entre os anos de 1876 e
1950, pois, como destaca a autora, os negros eram obrigados por lei a financiar sua
própria exclusão, as Leis Jim Crow (leis estaduais e locais nos Estados do Sul que
determinavam a segregação racial) e um montante de quase 4.000 linchamentos
públicos de negros no sul demonstravam que os grupos brancos não estavam
dispostos a perder a sua centralidade de comando nas decisões políticas e sociais
do Estado, em vários casos levados a Suprema Corte Norte-Americana, mas sem
condenações exemplares. Apenas a partir de 1954 até os anos de 1978, temos a
retomada ou construção de uma época de ativismo, a própria Suprema Corte Norte-
Americana centraliza o debate sobre educação, enquanto função mais importante do
Estado e que deve ser constituída a partir de elementos que traduzam a diversidade.
Esse debate jurídico demorou praticamente cinquenta anos, mas houve avanços e
novas políticas no campo das ações afirmativas surgiram, assim como a consciência
racial foi ampliada com as mobilizações sociais. Também é um dos momentos da
consolidação das escolas e universidades de negros/as para negros/as. Por fim a
autora chama atenção para o risco da amnésia nos dias atuais da questão racial,
pois, desde 1974 até eleição de Barak Obama, a Suprema Corte Norte-Americana
vem analisando casos concretos de acesso às universidades sem a devida acuidade
no campo das ações afirmativas, como se o processo de integração estivesse dado
na sociedade norte-americana. Tal risco é tão presente que a autora se refere à
240 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
eleição do primeiro presidente negro nos EUA na perspectiva de que as realidades e
contradições históricas estejam superadas, e isso pode levar a retrocessos em alguns
setores, principalmente no que ela caracteriza como a importância do conhecimento
e ensino da história racial norte-americana.
Para os autores seguintes, Deirdre Bowen e Jessica Erikson, as ações afirmativas
nos Estados Unidos da América são visualizadas a partir de elementos estratégicos. As
autoras apontam inicialmente que a discussão sobre raça está superada do ponto de
vista biológico, sendo importante perceber a dimensão sociológica do uso do termo
que não são necessariamente o compartilhamento de características físicas de um
determinado grupo, mas sim, de sua experiência em coletividade que se constituem
em suas interações humanas. O termo etnia também ganha destaque na análise
inicial para construção de uma política emergencial e contextualizada para essas
demandas que chegam ao poder judiciário e que possam ser analisadas de forma
ampliada, principalmente em face dos movimentos existentes, que são contras as
ações afirmativas e, constantemente, procuram o espaço jurídico com a finalidade
de desconstruir o legado das ações afirmativas nas instituições de ensino, cargos
públicos, ascensão funcional e outros mecanismos para implementação integral da
política de ações afirmativas. As autoras ainda destacam os casos atuais estudados
na Suprema Corte Norte-Americana que vem apontando uma tendência de enxergar
os Estados Unidos como uma sociedade/Estado “pós-racial”.
A ideia central dos autores do artigo que fecha o livro, Hédio Silva Júnior e Daniel
Teixeira, é comprovar que desde a Segunda República (a lei da nacionalização do
trabalho, de 1931) até os dias atuais o Estado brasileiro vem sendo tomado por uma
avalanche de ações afirmativas em várias dimensões da vida social e política, sejam
elas no campo do Direito do Trabalho, ou das ações afirmativas de 1968, conhecidas
enquanto Lei do Boi – reserva de vagas nos cursos de ensino médio e superiores de
Agricultura e Veterinária. O Brasil vem também desde 1970 desenvolvendo parcerias
com países africanos para troca de conhecimentos no campo da tecnologia, onde
estudantes são alçados aos cursos superiores sem passar pela seleção do vestibular.
Também são reconhecidas as cotas para portadores de deficiência no setor público
e privado, para as mulheres nas candidaturas partidárias e no direito do consumidor,
onde o ônus da prova é invertido. Também são elementos do reconhecimento das
tensões em torno do princípio da igualdade previsto na nossa Constituição de 1988
que pode ser vislumbrado por uma ótica negativa e outra positiva, principalmente
no que tange ao “direito formal” versus “igualdade material”.
As considerações finais dos autores também podem ser as desta resenha, no
sentido de marcar uma historicidade profunda em meio às evidentes soberbas
(dobraduras de racismo?) que ainda se registram no tempo presente:
À guisa de conclusão, é possível afirmar que aceitar,
como fazem os opositores ao sistema de cotas, que há
desigualdades raciais históricas no Brasil, observáveis em
diversos setores da vida social, a exemplo da Universidade
Pública, e assim mesmo opor-se aos instrumentos que visam
refletir nestes âmbitos a nossa rica diversidade etnicorracial,
é condescender com a exclusão histórica do negro dos
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 241
espaços de participação e decisão em nossa sociedade,
solidificando o que se delineou, com raríssimas exceções,
na História do Brasil: o lugar do branco e o lugar do negro,
em outras palavras, a segregação de facto (p. 378).
Com efeito, não seria chegada a hora de definir, de uma vez por todas, que se
a história não se apresentar como uma ciência aplicada à cidadania, a qual outros
demônios ela servirá?
242 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
AFRICANIDADES, COTAS E QUESTÕES RACIAIS
Entrevistadores: Solange Pereira da Rocha1, Elio Chaves Flores2 e Alessandro Moura de Amorim3.
Os Entrevistadores
1
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Adjunta do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB). E-Mail: <banto20@
gmail.com>.
2 Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
Pesquisador CNPq. Pesquisador do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI/UFPB).
E-Mail: <elioflores@terra.com.br>.
3
Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. Professor da Rede Municipal de Ensino
Público de João Pessoa. E-Mail: <ale.histor@gmail.com>.
4
Graduanda em História pela Universidade Federal da Paraíba.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 245
Saeculum: Conte-nos um pouco sobre sua formação acadêmica.
Saeculum: O senhor falou de cultura popular e folclore, qual a visão sobre essas
duas manifestações? A dimensão folclórica da cultura parece não agradar muito
aos historiadores.
246 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
que a palavra não possa ser usada por outros colegas, ainda que não seja a melhor
palavra para você. Hoje em dia se fala mais em culturas populares, mas eu tive a
oportunidade de estudar com grandes folcloristas latino-americanos e europeus.
Quando eu retornei ao Brasil, depois do doutorado, fui para o Instituto Nacional
do Folclore com proposta de assumir a sua direção. Por tudo isso, os estudos sobre
folclore estão muito próximos das minhas preocupações, fiz uma grande pesquisa
no Nordeste brasileiro no que muitos estão chamando, hoje, de culturas populares8.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 247
sentidos: como situação de perigo completo e onde coisas novas podem aparecer.
Nesta perspectiva, seria possível usar o hibridismo como emergência e não como
uma maneira específica de difusão ou de um produto que surgiu de uma junção,
ou fusão no seu sentido usual, como parece ser a metáfora biológica do híbrido.
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identidade negra, ela passa a utilizar esses autores estrangeiros que aparecem como
progressistas para desmobilizar a afirmação negra no Brasil11.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 249
essas “autoridades acadêmicas internacionais” você paralisa o debate sobre as cotas
e a sua efetivação. Então, a “razão mestiça” pode ser utilizada do mesmo modo,
pode não ser o primeiro interesse de Gruzinski se colocar conservadoramente em
um debate brasileiro, mas o campo semântico manipulado politicamente no Brasil
faz com que essas teorias venham apenas reforçar aquilo de que nós procuramos
justamente nos distanciar, a saber a utilização ideológica e reacionária da teoria da
mestiçagem. O efeito ideológico é como se fosse o mundo de cabeça pra baixo.
É claro que existe uma complexidade fenotípica que implica em uma diversidade
racial, mas essa diversidade nada diz sobre a discriminação concreta sofrida pelas
pessoas não-brancas. Nossa luta, que não é por categoria analítica necessariamente,
é contra o racismo e a discriminação. Então, quando algum acadêmico estrangeiro
invoca a categoria mestiçagem, pode estar, ou involuntariamente, ou por obedecer
a lealdades políticas para quem o convidou ao Brasil, ajudando a fragilizar essa
luta local.
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É possível ver a reprodução disso entre profissionais que desconfiam do
Movimento Negro e ao mesmo tempo afirmam que as tradições culturais brasileiras
são importantíssimas nas suas origens africanas. O tempo todo é amar e odiar, eles
não podem só odiar, tem que estar sempre colocando um discurso de simpatia e de
acolhimento. O Brasil é um dos maiores países racistas do mundo, não há um dia
nos jornais que não tenha um incidente de violência racista, mas esses incidentes
concretos não necessariamente mobilizam a classe acadêmica para posicionar-se
contra o racismo. É um confronto que não pode ser direto e uma energia imensa é
usada para não permitir que o discurso antirracista seja afirmado. Na Colômbia é
igual, cada vez que vou lá e me encontro com os colegas negros é a mesma coisa,
o racismo é altíssimo e eles não podem denunciá-lo abertamente para ser ouvidos
porque a ideologia do país é a da mestiçagem. A ideologia da mestiçagem é o
álibi para que você não deixe afirmar a posição antirracista. Esta é a característica
ideologicamente mais forte do nosso racismo.
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 251
José Jorge de Carvalho: Posso falar etnograficamente como antropólogo.
Qual a etnografia que eu faço? Já faz muitos anos, são dez anos, por exemplo, que
participo da discussão das ações afirmativas. Percebo que continua sendo muito
pouco o convívio dos meus colegas brancos com o movimento negro. E então, visto
dessa maneira, é um mundo segregado. Os que se manifestam contra as cotas se
apresentam como neutros Mas se você disser que é a favor das ações afirmativas
você é chamado de ativista. Eles saem dos seus lugares acadêmicos de antropólogos,
sociólogos, historiadores, supostamente neutros, antropológicos, e continuam
dizendo que não são ativistas; mas eu não posso sair nem um segundo desse lugar
que sou acusado de ativista. Então há essa clivagem, eles assinam manifestos, vão
para os jornais, dão entrevistas, vão ao Congresso Nacional, depois vão ao Supremo
Tribunal Federal, entregam documento ao presidente do STF contra as cotas e ainda
têm coragem de dizer que são neutros, que são cientistas15. Mas exatamente por
que é que estamos encurralados? Utilizando da linguagem, da estratégia discursiva,
por que eles nos colocam em uma função defensiva? Isso nós precisamos analisar,
precisamos fazer a mesma coisa e colocá-los em posição defensiva, devolver o caráter
contraditório do discurso deles, dessa clivagem do discurso deles.
Por tudo isso, eu perguntaria o seguinte: por que o racismo brasileiro é também
um racismo acadêmico e não apenas do cotidiano? Porque os discursos sobre as
relações raciais são elaborados em grande medida na academia, através de uma
estrutura esquisofrenizante, que nega e afirma simultaneamente e, na medida em
que ela nega e afirma, produz uma eficácia para deixar tudo como está. Uma
pessoa posicionada contra o ativismo negro não é mais neutra, mas quer colocar
em você o lugar de posicionamento, de ativista negro, então você fica paralisado
discursivamente diante dessa pessoa, você tem que se fraturar internamente para
posicionar seu discurso. É como se o discurso dela se apresentasse coeso e o seu
discurso fosse externamente fraturado. A discussão do pensamento social brasileiro
é um pensamento de brancos, os negros não entram, então você se acostuma a
ficar num mundo confinado. Sendo assim, o que acontece nesses últimos anos,
que me é mais inteligível, é o sofrimento negro. A intelectualidade negra é muito
confinada, ela tem muito pouco acesso ao mundo branco, conversa muito pouco
com os brancos, sou muito amigo de intelectuais negros e evidentemente tenho
amigos brancos, percebo como pouco intelectuais negros sabem como é o mundo
dos brancos, há muito pouco acesso mutuo entre intelectuais negros e brancos, e
este é um hiato muito difícil de resolver.
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no cenário nacional, dos grandes intelectuais que o Brasil teve no século XX. Acho
Abdias fascinante desde quando eu ainda fazia trabalho de campo em Recife. O
quilombismo, como atitude, é incrível, uma ideologia maravilhosa, aquele é um dos
manifestos mais corajosos que já foi escrito no Brasil, é um dos grandes manifestos
afrocêntricos, não somente um manifesto brasileiro, mas afro-americano16. Ele foi
corajoso demais, enfrentar a Bahia, desconstruir o racismo folclorizante de Jorge
Amado (este, que é um grande autor racista, que criou um imaginário desconstituidor
e desqualificador da mulher negra, tudo um grande estereótipo). Abdias não tinha
paciência alguma com isso, não cedeu jamais a essa cobertura falsa e desonrosa.
Guerreiro Ramos é outro maravilhoso intelectual, criador e teórico, ele inventou
inclusive uma técnica psicológica ligada ao teatro, o “psicodrama”. Ele já tenha
feito isso na década de 1940, como teoria e conteúdo de como administrar, pessoal
e coletivamente, o trauma negro. Guerreiro Ramos também discutiu a “redução
sociológica”17. Os dois são extraordinários pensadores e a academia branca sempre
os silenciou.
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Então, são intelectuais que não conseguiram ser professores das universidades,
isso já não diz alguma coisa? Se eles tivessem sido absorvidos pela academia, esta
teria dado uma guinada no rumo que tomou, porque Edson Carneiro teria tido
alunos, provavelmente alunos negros que iriam continuar lá dentro, e a mesma coisa
teria acontecido com Guerreiro Ramos, Clóvis Moura e mesmo Abdias Nascimento,
que foi professor em outros países e não aqui. Como é possível toda essa exclusão?
Portanto, há uma dívida profunda das nossas universidades com a intelectualidade
negra, e sem contar outros que nem sequer estão nesse time de maiores. Não é
também muito fácil pensar a própria figura do Milton Santos, que também sofreu
isolamento na USP.
Solange: Qual seria o diferencial de Milton Santos, já que ele conseguiu inserção
acadêmica?
18
Milton Santos (1926-2001) concedeu entrevista ao Caderno Especial, Racismo Cordial: a maior
e mais completa pesquisa sobre o preconceito de cor entre os brasileiros, publicado no jornal
Folha de São Paulo, na edição de 25 de junho de 1995. A entrevista de Milton Santos consta à
página 8. O arquivo pode ser consultado em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/>. A pesquisa
foi depois publicada em livro com o mesmo título (São Paulo: Ática, 1995). A principal crítica de
Milton Santos à pesquisa era de que ela se baseava numa atitude de marketing para o jornal. A
entrevista foi republicada num livro póstumo de artigos que Milton Santos escrevia para o próprio
jornal, onde também consta o seminal “Ser Negro no Brasil Hoje”. Ver, O País Distorcido: o
Brasil, a globalização e a cidadania. Organização, apresentação e notas de Wagner Costa Ribeiro
(São Paulo: Publifolha, 2002, p. 136-140; p. 157-161). Sobre a vasta produção bibliográfica de
Milton Santos que pode interessar ao historiador, pelo menos, as seguintes obras: O Trabalho do
Geógrafo no Terceiro Mundo (São Paulo: Hucitec, 1978); Técnica, Espaço, Tempo: globalização e
meio técnico-científico-informacional (São Paulo: Hucitec, 1994); Por Uma Outra Globalização: do
pensamento único à consciência universal (Rio de Janeiro: Record, 2007).
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Saeculum: As suas pesquisas sobre religiões incluem-se nos estudos
afrobrasileiros. O senhor poderia explicar as vertentes ou as matrizes africanas?
José Jorge de Carvalho: Ah! Muito Bom! A gente pode fazer esse paralelo, até
porque nunca parei para meditar sobre esse paralelo. Interessante, é um confinamento
porque primeiro é um confinamento geográfico e social, pois as casas de santo foram
expulsas dos centros das cidades e foram para as periferias. Foram para lugares com
menos implementos de cidadania, onde não tinha rua asfaltada, não tinha esgoto,
não tinha água, não tinha nada. Assim foram confinadas, em um jogo extremamente
complexo entre presença e ausência, entre completude e carência, se você quiser. A
gente poderia chamar, talvez diferente dos intelectuais negros, de um confinamento
pleno no interior de uma insígnia de carência, sem acesso à saúde, mercado de
trabalho precário, isso é uma característica do “povo do santo”, a precariedade de
sobrevivência, quer dizer, uma subcidadania constante. Você poderia se perguntar:
pode o racismo potencializar a discriminação religiosa? Eu diria que o confinamento
dos intelectuais negros é mais dramático do que o confinamento da religião afro-
brasileira, porque os intelectuais negros estão duplamente desenraizados. Muitas
vezes eles não estão com as raízes simbólicas africanas fortes, porque nem todos
estão conectados ao candomblé, por exemplo, então estão mais soltos do ponto de
vista espiritual mais profundo, porque nem sempre também adquirem a centralidade
análoga através do mundo cristão, além de sentirem o peso do racismo geral da
sociedade. O pessoal do candomblé sofre a rejeição do racismo, mas está firme
espiritualmente, inclusive pela âncora da comunidade. Então, “povo de santo” é um
conceito que nós poderíamos utilizar como utopia, seria a resposta à mestiçagem,
em vez de falar de mestiçagem falamos de povo de santo, porque nessa condição
negros e brancos se unem de fato, na medida em que é estabelecido entre todos
um parentesco espiritual, dado pelos orixás.
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Saeculum: Qual é a possibilidade da tradição laica e não religiosa no universo
africano? Para o senhor, que é especialista em religiões comparadas, é possível pensar
num africano ou afrobrasileiro na condição de ateu ou agnóstico?
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o lançamento da proposta. Um aluno norte-americano que estava na minha casa
filmou todo o debate. Edson Cardoso também estava e isso não parou mais19. A
proposta começou simplesmente como intuição de que nós precisávamos desviar
o foco do confronto do caso de racismo, em vez de confinar o debate no interior
da Antropologia, era necessário abrir o debate na universidade e fora dela. Foi um
efeito impressionante e quem levou isso adiante foram os estudantes, porque poucos
professores se envolveram.
Saeculum: O senhor falou até agora da questão interna e qual foi o contexto
mais geral?
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 257
uma movimentação que começou em 1995.
José Jorge de Carvalho: A avaliação tem vários planos. Você pode fazer uma
avaliação técnica do rendimento dos estudantes, uma observação primeiro dos
cotistas, qual a porcentagem de evasão e rendimento, isso é um tipo de avaliação.
Sete anos depois, nós poderíamos dizer o seguinte: a metáfora da catástrofe não
se cumpriu, não é um fracasso como projeto de políticas públicas, os estudantes
não fracassaram. Então, o sistema se sustenta academicamente, isso é um nível
de avaliação. Vários estudantes estão terminando, uns vão entrar no mercado de
trabalho para desenvolver suas profissões, outros vão tentar entrar na pós-graduação,
como qualquer estudante branco. Num plano maior, é o seguinte: a UnB é outra
universidade agora, mais completa e plural. Primeiro, porque ela tem muito mais
estudantes negros, tem coletivo de estudantes negros, tem combate ao racismo
instituído, ligado à Reitoria, que promove um curso chamado “Pensamento Negro
Contemporâneo”. Tem o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros. A UnB foi a primeira
universidade federal a adotar as cotas, isso é um orgulho institucional também, que
nós somos uma universidade de avanço. Eu acho que esse ponto é muito importante
porque ele vai sustentar outro. Há uma mudança da imagem institucional, a UnB
não quer se colocar como instituição racista de forma alguma, uma instituição que
esteja na retaguarda dessa discussão; pelo contrário, isso passa a fazer parte da
visão institucional positiva, acho isso um ponto muito importante e o impacto é
grande por isso.
22
A dissertação de Roberta Fragoso Kaufmann, advogada dos Democratas contra as cotas, foi
publicada com o título, Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? (Porto Alegre: Editora
Livraria do Advogado, 2007).
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as cotas no STF. De novo a Faculdade de Direito da UnB fica na berlinda, porque
Gilmar Mendes é professor de lá e Roberta Kaufmann é sua ex-aluna. No Direito,
as posições se dividem.
Então, a Faculdade de Direito desperta muito mais para essa questão e isso vai
continuar por muito tempo, porque as ações afirmativas estão no cenário nacional
e o STF vai ter que decidir um dia se elas são ou não constitucionais. Eu penso que
vai ser difícil para o STF ser contra, decretar o fim das cotas. Muito difícil. Porque
são vínculos institucionais muito profundos, um campo complexo. O meu medo é
o seguinte: o grupo contra as cotas desenvolveu essa retórica, que eu chamo de um
discurso coeso e o nosso discurso é fraturado, eles nos encurralaram nessa discussão.
Eles dizem que as cotas puramente raciais não são legítimas. Assim, alegam que
o grupo negro brasileiro não merece uma reparação pelo racismo que sofreu. O
meu medo é que esse discurso que começou agora a diabolizar as cotas raciais
seja assimilado pelos ministros e eles coloquem condicionantes – por exemplo, que
somente os negros pobres possam ter cotas ou somente os negros que estudam em
escola pública. Eles inventaram as tais “cotas sociais”. Isso é uma derrota da nossa
luta antirracista. É um absurdo que a esta altura ainda venham dizer que o racismo
não precisa ser reparado nos seus termos de racismo. Sabemos muito bem que os
negros de classe média também são discriminados, o racismo não esta confinado
aos negros pobres.
José Jorge de Carvalho: Temos que partir sempre do real. Estudos de várias
áreas disciplinares (Pedagogia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, etc.) apontam
para uma realidade, que é o regime de racismo no Brasil. Vamos comparar. Não
é um regime conforme foi o apartheid na África do Sul, não é aquele regime de
segregação geográfico-social norte-americano. O que ele aponta? Na escola primária
a criança negra é vitima de discriminação por parte dos colegas e por parte dos
professores. Nós temos uma biblioteca de textos com exemplos empíricos, que
descrevem e analisam esse racismo escolar. A socialização da criança negra aqui
no Brasil é uma socialização racista. A socialização racista continua no secundário.
Na adolescência, as meninas negras sofrem muito mais por conta do cabelo, pela
aparência. Os meninos negros também sofrem em comparação com os brancos,
recebendo apelidos horrorosos como “tiziu”, “carvão”, destituições da autoestima.
Nesse universo racista, evidentemente que se fragiliza a autoestima e isso leva a uma
reprovação maior dos estudantes negros do que dos brancos, isso interfere na entrada
dos negros no mercado de trabalho. O Estado já reconhece isso há décadas; se o
homem branco ganhar cem reais, a mulher branca ganha oitenta, o homem negro
ganha sessenta, a mulher negra ganha quarenta. Até a questão de gênero se inverte,
onde a mulher branca ganha mais do que o homem negro. Ou seja, a comunidade
negra tem desvantagem na escola, na socialização e no mercado de trabalho.
Após tudo isso, não é possível que a questão das cotas seja uma discussão
social, quando nós sabemos que nosso racismo é estrutural, ele está na estrutura
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 259
da sociedade brasileira. Nós não estamos simplesmente afirmando uma opinião,
nós sabemos porque as pesquisas do próprio Estado já reconhecem a existência do
racismo generalizado na sociedade, conforme indicam todos os dados empíricos
oficiais. Dados do mercado de trabalho, escolaridade e saúde. As pesquisas da área
da saúde demonstram que a mulher negra recebe menos atendimento no pré-natal e
no pós-parto, inclusive recebe menos atendimento e menos anestésicos - sofre mais
dor, portanto, que a mulher branca. De repente, todo esse saber acumulado, que o
Estado reconhece como importante não vale na hora de tomar uma decisão? Essa
para mim é a questão. No momento em que avançaram as cotas para os negros houve
um bombardeio, uma reorganização dos grupos anti-cotas e inventaram as cotas
sociais. Eles criaram um termo que é uma caricatura do debate. Pessoas de extrema
direita, de partidos patronais, começam agora a falar em cotas sociais, de repente
se lembraram dos brancos pobres. Pessoas que são donos de terras e latifundiários
da pior qualidade, chefes de jagunços que mandam matar os líderes camponeses,
começaram a ficar com pena dos brancos pobres que serão discriminados pelos
negros por causa das cotas. Então nós precisamos desconstruir essa ideia.
A resposta que eu dou a isso é que nós temos que desarmar o sofisma. Exemplo:
não tem cem vagas? Digamos que de cada universidade você separa cem vagas,
digamos que você colocou vinte vagas para negros. Então ficam sobrando oitenta
vagas, não é? Quem foi que disse que o branco pobre terá que entrar nessas vagas
dos negros? Não foram os negros que geraram a pobreza dos brancos no Brasil, até
porque os negros eram também pobres no final do século XIX quando se proclamou
a República. Então, se existem brancos pobres hoje, você não pode colocar esse
passivo de justiça na conta dos negros. Na verdade, sabemos perfeitamente que
foram os brancos ricos que geraram os brancos pobres e os negros pobres. Então o
sofisma deles pode nos fazer esquecer que sobram oitenta vagas. Os brancos pobres
podem perfeitamente entrar nas vagas dos milionários; quem vive com mais de vinte
salários mínimos pode ceder sua vaga para quem ganha dois salários mínimos. Enfim,
você pode fazer o que quiser com as oitenta vagas restantes da política de cotas.
Por que são questionadas as vinte vagas dos alunos negros? Portanto, os brancos
pobres podem entrar nas vagas da classe média, nas vagas dos milionários, nas vagas
dos latifundiários, dos donos de indústrias, dos especuladores, dos banqueiros, dos
donos das redes de televisão, defina como você quiser. Confinar a discussão para
uma arena pequena (as vinte vagas) faz você esquecer que a arena é maior. É um
artifício sofisticado, porque eles ficam falando de cotas sociais, que você discriminará
os brancos pobres, ao adotar as cotas raciais. Então eles decretaram que cotas para
negros são igual à exclusão de brancos pobres, você pode imaginar?
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dito “social”, mas que é simplesmente contrário às cotas para negros. Os anti-cotas
sabem disso perfeitamente.
José Jorge de Carvalho: Eu avalio que vocês, aqui na UFPB, poderiam ser
a vanguarda, a mais recente universidade que aprovou o sistema, uma forma de
acumular experiências que as outras não tinham. É o momento em que a UFPB
pode participar desse debate e desconstruir definitivamente, rejeitar o grande sofisma
que é esse discurso sobre as cotas sociais. A UFPB pode retomar a luta que a UnB
começou, que tem que ter cotas para os negros. E se quiser colocar escola pública,
ela faz uma segunda cota para as escolas públicas; se quiser colocar baixa renda, que
faça uma terceira cota para baixa renda. Não há nada que a impeça de estabelecer
cotas para escola pública e para baixa renda, mas não precisa, para isso, eliminar as
cotas exclusivamente para os negros. Eu não conheço tanto a realidade da Paraíba,
mas meu medo é de que cotas somente para negros das escolas públicas vão ser
mais frágeis, pois uma parte dos que poderiam entrar não vai entrar, isto é, aqueles
que estudaram em escolas particulares. Isso pode dividir a comunidade negra. Vocês
foram a universidade pública que aprovou as cotas imediatamente após o debate
no STF, com isso vocês estão legitimando essa tendência do Supremo a não deixar
as cotas só para os negros. Claro que essa vai ser uma das linhas possíveis: “a
tendência é fazer cotas sociais.”, está vendo? Virou uma mania! Então, permanece
o fato de que o Brasil não consegue afirmar uma luta antirracista, como outros
países conseguiram, que após séculos de massacre dos negros, eles não merecem
nenhuma reparação. É uma derrota parcial e/ou uma vitória parcial. Assim como
parcial é a própria avaliação que eu acabo de emitir.
Saeculum: O senhor teme que as cotas sociais não combatam o racismo nem
mude a representação do país? As cotas para os estudantes negros teriam esse
potencial de mudança?
sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011. 261
Saeculum: No ano de 2006, mais de trinta instituições de ensino superior
aderiram ao sistema de cotas, porém, a partir do ano seguinte temos observado
menos ritmo de adesão. Estaria havendo desaceleração na adesão ao sistema de
cotas?
José Jorge de Carvalho: Não, o ritmo de adesão não diminuiu. Isso é um ponto
importantíssimo. Em 2006 nós tivemos uma coisa dura, que foi aquele manifesto
deles, fez muito mal à causa negra. Os jornais aproveitaram para falar mal das
cotas e os ideólogos da democracia racial aproveitaram para publicar livros com
títulos apocalípticos do tipo “Divisões Perigosas” e “Não Somos Racistas”24. E não
parou por aí, em 2008 teve outro manifesto deles, os “cientistas neutros”, contra as
cotas. O que se observa também é que no Nordeste teve menos adesão às cotas.
O racismo aqui não é tão disfarçado como em outras regiões e por isso fica mais
difícil de afirmar a questão negra. Outro problema é que a reflexão dos governantes
não leva em conta a dimensão do sofrimento da comunidade negra brasileira. E a
desigualdade racial é tão profunda que você não pode intervir no sistema sem pensar
minuciosamente no que pretende fazer, pois a desigualdade racial pode piorar com
a intervenção. Dependendo do que você fizer, a situação dos negros piora. Porque
a desigualdade racial é profunda e complexa de combater.
262 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [25]; João Pessoa, jul./ dez. 2011.
instância de manifestação do imaginário racista generalizado na nossa sociedade.
José Jorge de Carvalho: Eu acho que a elite brasileira não capitalizou ainda
nenhuma familiaridade com o mundo africano. Porque sequer a gente conseguiu
vincular as lutas das cotas, as lutas das ações afirmativas, com as lutas equivalente
dos Estados Unidos e da África do Sul25. Não vejo que estão muito conectadas ainda.
Na verdade, Nelson Mandela é uma grande referência, ninguém dúvida disso. Mas
a celebração de Mandela não fez crescer na consciência das pessoas a importância
da celebração de Abdias do Nascimento. Não creio que tenha melhorado muito nem
intensificado a grandeza da trajetória de Abdias Nascimento pelo fato das pessoas
celebrarem Mandela. Não acompanhamos a luta das cotas na África do Sul, não
sabemos como é que estão as universidades por lá. Mas não quero ser pessimista,
muitos eventos nas nossas universidades que discutem literatura africana e história
da África estão ganhando importância.
25
Sobre os debates atuais, tais como a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo (Durban,
2001), cotas para negros nas universidades e educação étnico-racial na perspectiva negra, ver o
livro organizado por Verena Alberti e Amilcar Araujo Pereira, História do Movimento Negro no
Brasil: depoimentos ao CPDOC (Rio de Janeiro: Pallas/Editora Fundação Getulio Vargas, 2007,
p. 358-439); e também, NASCIMENTO, Elisa Larkin. (Org.). Cultura em Movimento: matrizes
africanas e ativismo negro no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2008 [Coleção Sankofa, 2].
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