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1 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de Pós-
Graduação em Bioética
– Brasília (DF), Brasil.
samisantanaa@gmail.com
2 Universidade de Brasília
(UnB), Programa de
Pós-Graduação em
Bioética e Programa de
Pós-Graduação em Saúde
Coletiva – Brasília (DF),
Brasil.
claudiolorenzo.unb@gmail.
com
DOI: 10.1590/0103-1104201610914 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 175-186, ABR-JUN 2016
176 ALMEIDA, S. S.; LORENZO, C. F. G.
No campo das relações internacionais cres- que torna mais complexos os processos de
ceu a compreensão de que existe um amplo elaboração de acordos, mas não é explicita-
leque de assuntos sanitários e de consequ- mente demonstrada qualquer preocupação
ências para a saúde com o desenvolvimento sobre em que medida essas relações público-
científico e tecnológico acelerado, que trans- -privadas podem funcionar como instru-
cendem as fronteiras nacionais e que reque- mento de domínio de países sobre outros ou
rem a ação mundial. (OPAS, 2008, p. 4). sobre o risco existente em se desenvolver
políticas públicas conduzidas por interes-
Já a questão dos interesses privados é ses privados. Ou seja, a nova modalidade de
tratada na mesma perspectiva acrítica e sem biopolítica, conduzida pelo mercado, da qual
recomendações específicas para a proteção falava Junges (2009), parece plenamente na-
dos interesses públicos ou conflitos de inte- turalizada e aceita.
resse envolvidos. Vale destacar o 14º enun- Pode-se compreender que documentos
ciado quando afirma: diplomáticos sejam cuidadosos e pouco en-
fáticos ao comentar modelos políticos ou
Além disso, se observou uma mostra da con- atuações governamentais de seus Estados
vergência de interesses comerciais e sani- membros, mas não se justifica uma postura
tários em 2002 e 2003 com o surto da Sín- acrítica relativa aos setores privados da
drome de Insuficiência Respiratória Severa saúde, sobretudo, considerando-se os dados
(SARS). (OPAS, 2008, p. 4). históricos que temos sobre a atuação dos
mesmos. Isso pode nos levar a compreender
Ora, uma afirmação desse caráter não é a postura da Opas, como incluída naquela
seguida por nenhum comentário sobre se terceira força do sistema mundo à qual se
essa convergência foi positiva ou negativa, referia Cox (1987), que articula, dentro das
ou quais foram os principais beneficiários, instituições, as outras duas forças principais,
ou se deve implicar atenção especial na ela- o domínio das capacidades materiais e o
boração de acordos, no sentido de proteger o domínio das ideias.
interesse público. Nem a Resolução da ONU nem o docu-
Mantém-se, portanto, a mesma perspecti- mento da Opas fazem qualquer menção
va acrítica da Resolução da ONU com relação seja ao processo histórico envolvido nas
à participação dos setores privados. Em disparidades socioeconômicas dos países,
um quadro síntese exibido pelo documento seja a determinantes de saúde. Esses
sobre as mudanças ocorridas no cenário da fatores são invariavelmente apresentados
cooperação internacional em saúde (OPAS, como realidades estanques, desprovidas
2008, p. 7), é apresentada a “proliferação de de causas.
atores transnacionais”, entre os quais, são Algo que chama especialmente a
citados “o setor corporativo de negócios” e atenção é o fato de que documentos di-
as “empresas com fins lucrativos”. Em outro rigidos a países constituídos em grande
item do mesmo quadro é afirmado o número por significativos contingentes
de povos tradicionais sejam completa-
Crescente envolvimento do setor privado no mente omissos com relação aos cuidados
desenvolvimento de políticas públicas, particu- necessários no contato com populações
larmente de agentes privados de países desen- culturalmente distintas, tanto em torno
volvidos influenciando políticas públicas nos da implementação das ações quanto dos
países em desenvolvimento. (OPAS, 2008, p. 7). conflitos etnorraciais que podem delas
derivar. O silêncio em torno da diversida-
Essa realidade é apontada como um fator de cultural e de como saberes tradicionais
necessitam ser articulados nas práticas mecanismo financeiro próprio a criar para
de saúde é típico de uma visão colonial, o efeito, por organizações internacionais e
que desvaloriza as diferenças e os saberes outros parceiros de desenvolvimento, tendo
locais e pretende imprimir o modelo do sempre em atenção o princípio da sua harmo-
centro na periferia. nização com os Planos Nacionais de Saúde de
O terceiro documento que nos propu- cada Estado membro. (CPLP, 2009, p. 12).
semos examinar, o Pecs/CPLP, apresenta
algumas posturas significativamente distin- Da mesma forma que os outros documen-
tas dos dois documentos anteriores. tos analisados, o Pecs/CPLP não aborda as
No tocante à produção científico-tecno- razões históricas das diferenças entre os
lógica, surge entre suas diretrizes orienta- países, mas ele é o único que reconhece de
doras (CPLP, 2009, p. 5) a noção de “complexo forma explícita a necessidade de enfrentar
produtivo comunitário” como caminho os determinantes sociais de saúde, inclusive
para maior acesso a insumos estratégicos, em suas diferenças de gênero, e, também, o
o que é bem diferente da tendência dos único a mencionar como prioridade as popu-
documentos anteriores de manter coope- lações vulneráveis. Entre os objetivos, está
ração triangular com países desenvolvidos definido que:
para esse fim. No mesmo sentido, o eixo
estratégico 2 cita em um de seus objetivos o Pecs deverão ter em atenção o facto de que
“o estabelecimento de práticas técnico- as assimetrias e desigualdades em saúde re-
-científicas colectivas, interactivas e in- flectem e são reflexo das desigualdades e dis-
terdisciplinares”, e o eixo estratégico 3 se criminações de base sociocultural e económi-
refere à ação conjunta de pesquisadores ca entre mulheres e homens. (CPLP, 2009, p. 4),
da CPLP “mediante geração e apropriação
de conhecimento”. Não há dúvida de que e as diretrizes orientadoras indicam
são abordagens ancoradas em perspecti- “priorizar populações de maior vulnerabili-
vas políticas e epistemológicas bastante dade” (CPLP, 2009, p. 5).
distintas, onde os sujeitos alvos da coope- A questão da interculturalidade aparece,
ração estão bem melhor incluídos. não entre objetivos e diretrizes orientadores,
A parceria público-privada está previs- mas entre os projetos estruturantes relacio-
ta, mas tem muito menor destaque que nos nado ao eixo estratégico 7 da proteção e pro-
documentos anteriores. Aqui é afirmada, de moção da saúde. Lá encontramos:
maneira muito mais clara, a necessidade de
criar estruturas de produção internas e in- Implantação de um Programa de sensibiliza-
dependentes, como observa-se em um dos ção de curandeiros, bruxos e outros ‘médicos
objetivos do eixo estratégico 4: “reduzir a e parteiras tradicionais’ para o reconhecimen-
dependência externa de insumos para a to e derivação ao sistema de saúde de patolo-
saúde, [...] e ampliar o acesso à assistência gias específicas. (CPLP, 2009, p. 12).
farmacêutica” (CPLP, 2009, p. 10), mostrando-se
bastante distinta do foco em transferência É, portanto, o único que, pelo menos, re-
de tecnologia, presente nos documentos da conhece a existência de saberes tradicionais
ONU e da Opas. e de detentores desses saberes na cultura
O Pecs/CPLP também parece buscar al- local, bem como da necessidade de articulá-
ternativas aos fundos de investimento da -los com as ações previstas.
ONU para o financiamento de seus projetos Não obstante, a abordagem da inter-
de cooperação, tal como indicado em seu culturalidade no documento permanece
item 7.2 sobre financiamento: insuficiente para orientar cooperações
internacionais entre países nos quais existe países centrais. E isso pode ocorrer também
um contingente significativo de comunida- por meio dos acordos de Cooperação Sul-Sul
des tradicionais. Mantém-se ainda clara- em saúde.
mente a noção colonial de ‘superioridade de A análise de documentos contendo di-
saberes’, uma vez que o documento propõe retrizes para esse modelo de cooperação,
uma sensibilização ‘unidirecional’, como se sobretudo quando formulados no âmbito
não fosse importante também sensibilizar da ONU e de suas instituições regionais, de-
os profissionais da ciência convencional aos monstra que os organismos internacionais
saberes tradicionais e, como se nada houves- têm grande dificuldade em se libertar dos
se a aprender com eles. Essa postura dificul- antigos modelos de cooperação. A posse de
ta, sem dúvidas, uma construção conjunta de capacidades materiais e de ideias, incluindo
estratégias e ações de saúde. aqui os meios e fins para o desenvolvimento
Pode-se também constatar que, da mesma científico e tecnológico por meio das em-
forma que nos demais documentos, as ques- presas privadas e corporações de comér-
tões propriamente etnorraciais envolvendo cio internacional, é tomada acriticamente
as práticas derivadas da cooperação não são como parceira. Esse processo legitima uma
abordadas. pretensa superioridade dos organismos in-
ternacionais e torna difícil compreender a
heterogeneidade dos contextos socioeco-
Considerações finais nômicos e culturais, bem como as razões
históricas das disparidades de saber e poder
A criação do consenso dentro da ONU de existentes, e as responsabilidades que elas
que a saúde constitui um elemento im- implicam.
prescindível ao desenvolvimento ocorreu Por outro lado, formulações, como o Pecs/
concomitantemente a uma reconfigura- CPLP, oriundas de associações de países em
ção geopolítica, devido ao fim da guerra contextos mais independentes de organis-
fria e ao surgimento dos chamados ‘países mos internacionais, fundos de investimento
emergentes’, criando uma atmosfera fa- e empresas privadas, integrantes da ‘grande
vorável ao desenvolvimento de propostas nebulosa’ da saúde global, parecem ofere-
estruturantes para a Cooperação Sul-Sul cer melhores possibilidades em se consti-
em saúde, que pretendem oferecer alter- tuir enquanto programas estruturantes e
nativas ao antigo modelo Norte-Sul e dele emancipatórios.
distinguem-se por se encontrarem funda- Chama atenção em todos os documentos
das na noção de soberania compartilhada a falta de orientações mais adequadas para
e nos princípios de horizontalidade, con- lidar com o contexto de interculturalidade
senso e equidade. em torno da implementação das práticas de
Entretanto, existem desafios ideológicos cooperação.
e práticos para a ONU, relacionados aos di- Evidentemente, essa avaliação dos do-
versos contextos de aplicação, que tornam o cumentos normativos é insuficiente para
cumprimento desses princípios muito mais analisar como estão sendo verdadeiramente
complexo do que pode parecer no primeiro implantadas as ações de Cooperação Sul-Sul
momento. Há sempre uma tendência a fazer em saúde entre os países envolvidos, e, por-
com que os Estados se tornem meros instru- tanto, pesquisas observacionais de campo
mentos de adaptação das políticas domés- precisarão ser desenvolvidas para dar, no
ticas ao sistema mundo orquestrado pelos futuro, uma resposta a tal questão. s
Referências
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