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Palavra
Atravessamento
Trabalho de Conclusão de Curso
Artes visuais — Habilitação Artes Gráficas
Escola de Belas Artes — UFMG
Belo Horizonte 2021
Luíza Marcolino
Orientadora: Elisa Campos
Apresentação [1]
expiração sopro
Luz: transparência
e atravessamento
Ser transparente é permitir a passagem da luz.
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Permitimos assim que tudo exista por uma segunda, uma terceira, uma
quarta vez. Um re-existir que é prova da eterna resistência à rigidez.
[caderno de notas, 2018]
Como onda, a luz inunda o espaço, sendo esse movimento vai além do estímulo visual e reves-
capaz de comunicar a respeito dos mate- te-se de poesia. São exemplos de pequenos eventos
riais que encontra através de fenômenos poéticos a luz que escapa por uma fresta, que emerge
tais como a sua fragmentação, a sua sub- difusa de uma janela, que, sendo projetada sobre uma
tração, reflexão, transformação e redire- parede, cobre um corpo no meio do caminho, que é
cionamento. Para um espectador atento, engolida ou refletida pelo mar no fim do dia.
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Entre os diversos formatos de superfícies, o círculo é um
dos mais interessantes. A luz irradiada por uma lâmpada ou
por uma fogueira descreve um círculo, mas essa também é
a forma que o ser humano desenha quando gira em torno
de si mesmo, a forma dos abraços e das cirandas, o rastro
que é deixado pelos ponteiros de um relógio.
A homogeneidade e continuidade dos círculos pode prote-
ger tanto quanto ameaçar, mas é humanamente inevitável. [16]
O ser humano se faz sempre cercado, seja física ou virtual-
mente, refletindo essa que parece ser a sua condição natu-
ral desde o ventre da mãe.
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Tapume I (2019) : este livro de artista parte
de cerca de 80 desenhos de bonecos feitos
individualmente a mão, vetorizados e impressos
sobre papel semitransparente. O centro é sempre
ocupado por um dos bonecos enquanto os demais
estão posicionados à sua volta em quantidades
que variam de uma página para outra. Devido à
sobreposição das páginas, a aparência e nitidez do
desenho criado oscila entre um círculo pontilhado
e uma massa amorfa que se aproxima ou distancia
do centro. Por se tratar de um livro sanfonado, as
sobreposições e narrativas produzidas podem ser
alteradas pelo leitor.
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A luz evidencia o que é desconhecido e, por isso, protege o ser humano. A própria luz,
entretanto, também se evidencia como sendo finita na presença das sombras. A luz seduz,
informa, engana e arma o ser humano. A luz preenche o espaço e o transforma.
[caderno de notas, 2019]
Regina Silveira, artista em cuja trajetória o trabalho
com a sombra levou ao interesse pela luz, ao contrá-
rio do que aconteceu comigo, quando indagada sobre
essa transição, respondeu:
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Palavra: processo
e impressão
A escrita sugere um caminho incerto e, por
que não, mais tranquilo de expressão.
Assim, uma palavra ou uma frase pode permanecer
conosco por muito tempo, como se estivéssemos
aos poucos redescobrindo-a. Tendo sido deixada por
É por meio da escrita — grafada, pensada uma conversa ou uma leitura qualquer, ela ecoa em
ou dita — que muitas vezes as ideias se en- pensamento até que dela consigamos extrair a razão
caixam, ainda que temporariamente, inde- do eco, transformando-a de alguma forma e fazendo
pendentemente do nosso desejo. com que seja nossa.
Algumas são encontradas prontas, algumas são sonhos, algumas vêm
de jornais. Elas são finalizadas por uma fé cega. Não importa se eu vi na
televisão ou li no jornal, minha mente parece abraçar essa coisa até que
esteja pronta.
Ed Ruscha 8
[39]
Entre as artes gráficas, talvez seja na arte postal que Quando encontramos carros e construções bem pensadas,
a palavra revele com mais força seu poder de conec- ficamos impressionados e apreciamos de verdade o talento
tar pessoas, ainda que falantes de línguas diferentes. dos designers e arquitetos. Eu às vezes desenvolvo logotipos
Expressões dos sistemas internacionais de postagem, e poesia visual e, quando completos, sinto-me satisfeito. En-
tretanto, agora eu gostaria de pensar princípios muito mais
emblemas de movimentos populares e nomes de ar-
fundantes com os artistas: espaço, átomos e coisas assim.
tistas consagrados são exaustivamente reproduzidos Essa é a razão pela qual eu inaugurei um quadro de avisos.
ao redor do mundo e através de gerações, circulando Todas as pessoas têm o direito de discutir o começo e o fim
entre endereços de artistas em contextos diversos, do espaço. Não hesite em deixar a sua idéia sobre isso no
sendo vestígios de uma rede viva há mais de 50 anos meu quadro.
e não à toa conhecida como rede eterna. Ryosuke Cohen, 2021 13
Escrever é mais do que simplesmente depositar pa- Ferdinand de Saussure foi um dos primeiros a investigar a estru-
lavras sobre o papel ou na tela do computador, pois tura da língua e da escrita propriamente dita. Em suas aulas, dife-
engloba um testemunho. Uma palavra escrita nunca renciava significante e significado no signo linguístico14, atribuin-
detém por muito tempo o que desejava-se dela num do ao significante aquilo que ele chama de imagem acústica. A
primeiro momento: ela torna-se algo novo, algo mais, imagem acústica pode ser definida como a impressão psíquica
a depender do que será escrito depois, do que será dos sons de uma língua na mente do falante, aquilo que invoca
lido e vivido depois dela, e de quem a lerá. Em relação determinadas idéias associadas ao significado de determinadas
a uma folha ou às pastas de um computador, a escrita palavras.
sempre cria uma intervenção material e temporal.
GOOD (2020), AFFLITO (2020): intervenções feitas com fita
adesiva e lápis de cor que exploram o espaço criado pela língua
entre o som e o significado das palavras a partir da perspectiva
da imagem.
[41] Saussure foi insistente em tratar a língua como sistema coletivo, comunica-
tivo e individualmente fixado. Entretanto, desde muito antes de Saussure e
ainda hoje, as artes gráficas dedicam-se à plasticidade das palavras através
da escrita. Poderia essa plasticidade ser extendida para as imagens acústi-
cas? Com o desejo de provocar no leitor um ligeiro desencontro entre ima-
gem, significante e significado, comecei a investigar a escrita de palavras e
letras distorcidas, baseada na idéia de que a escrita alfabética é um proces-
so sinestésico (na medida em que o que se registra no papel é um código
sonoro associado a uma idéia e traduzido em sinais gráficos, em oposição,
por exemplo, aos ideogramas chineses)15.
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2020, 3h16
Durante os últimos meses, eu evitei ser produtiva. Fiz isso porque, para produzir, eu precisaria esquecer meus
projetos anteriores e deixar minhas raízes crescerem entre as tábuas dos poucos metros quadrados suspensos,
cercados por paredes pintadas de branco, onde, alternativamente, durante esses meses, eu me escondi. Preferi
ler José Saramago, com quem aprendi sobre o medo daquilo que não podemos evitar16, do que enfrentar esse
mesmo medo. Lendo também descobri palavras ariscas — algumas das quais eu escrevo agora.
Uma palavra tem sido mais importante para mim do que as outras: casa. Recentemente, decidi morar na casa
do meu namorado e, embora eu nunca tenha desejado o casamento, desde que me mudei sem casar, sinto que
estou perdendo algo. Sinto que estou me casando e ele não está — e isso incomoda um pouco. No instante em
que decidi não me casar, por puro reflexo, um dilema nasceu daquilo que antes era puro desejo de morar com
ele. Uma parte de mim estranhou a decisão, como se não tivesse sido minha; outra parte de mim, censura esse
estranhamento, como se ele não fosse meu.
Talvez por isso eu tenha pensado na arte da contradição — uma arte que é recusa do que é estático; que é autên-
tica, apesar de e por conta de ser inconstante; que é indeterminada. Sobre ela, eu não sei muito. Sei mais sobre
a arte da autodeterminação, que não condiz com o que eu preciso para sobreviver hoje, embora se pareça mais
com o que eu sempre fiz de fato.
Em 2020, entendi que numa pandemia é preciso se contradizer: abrir mão da rua e fugir de casa ao mesmo tem-
po — coisa relativamente fácil no mundo moderno. Aceitei que estar em quarentena significa dançar com movi-
mentos curtos, desejando o calor, o som e a poeira lá de fora. Geralmente, eu evito pensar sobre essa dança, mas
hoje lembrei há quanto tempo não sinto o meu corpo cansado. Hoje, eu chorei por saber que tenho deixado meu
corpo se desfazer, carinhosamente. E, diante da tela que me conecta com tudo o que não é meu, senti-me um
sonho de outra pessoa.
Luz Palavra Atravessamento
Devido à pandemia e ao esvaziamento dos Alguns anos atrás, o sentido da substituição foi con-
espaços públicos, as janelas dos aparta- trário: à medida que as janelas se elevaram em prédios
mentos e casas substituíram as grades de cada vez mais altos, as grades ocuparam a rua. Isso
Belo Horizonte. Isto é, assim como as gra- porque, apesar de se parecerem muito, grades são di-
des de antes, as janelas de hoje permitem ferentes de janelas. A última convida o fora, o outro, o
o atravessamento — visual, sonoro, mate- longe (às vezes) para dentro, enquanto a primeira in-
rial —, mapeando os espaços particulares e terrompe, delimita. Uma janela é manipulável e dinâ-
privados na cidade. mica; uma grade é fixa, estática. Quem olha por uma
janela com frequência faz uma pergunta a si mesmo;
quem olha para uma grade encontra uma afirmação.
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Repetidas vezes, Regina Silveira fez uso da luz para escrever pala-
vras. Em Glossário (2010), ela interferiu com vinil azul na parede
envidraçada do Espaço Cultural Hospital Raimundo Vasconcelos,
recortando e subtraindo do vinil a palavra luz escrita diversas
vezes com tipos variados. O interior do prédio adquiriu então
uma atmosfera única, sobretudo nas horas do dia em que a luz
do sol invadia a sala em linhas e formas iluminadas. Nesse inte-
rior, enxergava-se a palavra zul — com as letras Z e L refletidas —
escrita no vidro e na projeção desse vidro no chão, enquanto, do
lado de fora, lia-se sempre a palavra luz.
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2020, 20h03
Tenho andado com a cabeça nas nuvens atravessadas pelos urubus do centro de Belo Horizonte. Ontem, eu vi um
pousar no topo de um dos prédios mais altos e ficamos nos encarando não sei por quanto tempo. Quando ele
voou, procurei com alguma ansiedade o chão, onde encontrei meus pés descalços — será um incômodo prazeroso
voltar a usar sapatos. Os nós se acumulam na garganta desde que o medo da rua se enraizou em mim e começo
a sentir-me deslocada apesar dos calos que sumiram. Em casa, vivemos a ilusão do chamado distanciamento so-
cial. Ilusão não por conta do que a internet nos possibilita, mas pelas pessoas que vejo passarem nos ônibus abar-
rotados e aquelas que sei que estão atrás das paredes e vidros desses prédios que me cercam, apesar de nunca
aparecerem nas janelas. Tenho olhado bastante para esses prédios. Tenho procurado as janelas do meu próprio
apartamento. Acho que, desde muito antes, vivemos o que eu chamaria de distanciamento comunicacional.
Para mim, a comunicação sempre foi um terreno lamacento, cheio de fósseis e mistérios. Já me disseram que eu
escuto só o que quero e talvez estejam certos. E talvez até seja por isso que eu gasto tanto tempo anotando e re-
cuperando as palavras do meu caderno. Tudo o que eu escuto, eu preciso processar. Tudo o que me dizem, tudo
o que eu falo, penso, escrevo. Escrever é uma estratégia que roubei da escola, uma promessa de que esse tudo
talvez volte à tona um dia, numa hora mais propícia para a escuta, ainda que eu o esqueça.
Quantas vezes é preciso repetir uma palavra até que se conheça ela profundamente? Quantas vezes é preciso evi-
tá-la para que ela morra? Algumas palavras são mais fortes do que as outras — não porque dizem muito, mas
porque não dizem quase nada — desse nada que também é tudo. Já faz tempo que carrego comigo algumas pa-
lavras assim e sofro sabendo que, quando escrevo qualquer uma delas, produzo tantos sentidos quantas forem
as pessoas que me leiam. Por exemplo, fato. Fato era uma palavra simples, quase boba, quando eu mesma a es-
crevi pela primeira vez. Hoje, fato talvez seja a palavra mais importante e mais múltipla de todas; a palavra que
eu mais temo — bem longe de achar que o ponto de vista precede o fato, diria que é o fato que cria o ponto de
vista24, seja lá qual fato for. Assim como as lembranças, as palavras mudam — mudam de pessoa para pessoa, de
ano para ano — sem nunca deixarem de ser verdadeiras. Barthes diria simplesmente que não há verdade objetiva
ou subjetiva, apenas verdades lúdicas25. A verdade é que Barthes escrevia como o viciado no jogo da comunicação
que ele era, mas, para mim, a ansiedade toda vem exatamente desse espaço entre o que eu escrevo e essas ou-
tras idéias, outras imagens, outras significações, imprevisíveis; inacessíveis como meus vizinhos.
[51]
Quem ocupa o interior das outras janelas e varandas que vemos de nossas casas — lugares onde, raramente, nosso olhar encon-
tra o de outro? Essas presenças-fantasmas podem ser entendidas como comunidade?
A noção de que as palavras escritas na janela eram
lidas por outras pessoas trouxe para mim, que as es-
crevia, a sensação de estar no cerne delas, o que in-
tensificou-se quando instalei na sala duas lâmpadas
que alternavam automaticamente entre sete cores
disponíveis, diferenciando, agora de modo afirmativo,
os espaços interior e exterior.
Durante a noite, minha janela passou a destoar das ja-
nelas de outros apartamentos, da iluminação pública,
do farol dos carros, e as palavras adquiriram visibilida-
de no cenário urbano. Ao mesmo tempo, minha sala
passou a ser afetada pelas cores da lâmpada, além
da luz e da sombra vindas do exterior. O resultado foi
uma maior consciência da sobreposição de uma ex-
periência pública — embora inacessível para mim — e
a minha experiência particular — inacessível para qual-
quer outro.
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As quatro folhas da janela determinaram o tamanho das pala-
vras possíveis. Ao longo das semanas seguintes, selecionei entre
elas para escrever aquelas que produziram em mim algum tipo
de inquietação. Outras surgiram, entretanto, em meio ao próprio
processo de escrita. Depois de ‘erro’, vieram ‘medo’ e ‘fome’, pa-
lavras que foram seguidas por ‘arma’, ‘arte’, ‘amor’, ‘casa’, ‘fato’ e
‘some’.
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