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Da ordem mítica ao “caos enfeitiçado”: o homem e o mundo na Odisséia de Homero e em Moby Dick, de Herman Melville

DA ORDEM MÍTICA AO “CAOS ENFEITIÇADO”:


O HOMEM E O MUNDO NA ODISSÉIA DE HOMERO E EM
MOBY DICK, DE HERMAN MELVILLE

From mitic order to “chaos bewitched”:


the man and the world in Odissea by Homero and in
Moby Dick by Herman Melville

Ravel Paz1

Resumo
O trabalho propõe uma aproximação entre a Odisséia e Moby Dick, sublinhando os traços épicos e míticos
do romance de Melville em sua dialética com as contradições e o desencantamento de seu tempo.
Palavras-chave: Romance e epopéia; Mito e realidade; Desencantamento do mundo.

Abstract
This paper proposes a aproximation between Odissea and Moby Dick, emphasizing the epic and mitic features
of Melville’s novel in its dialetic with contradictions and disenchantment of its time.
Keywords: romance and epopee; myth and reality; disenchantment of the world.

1
Unicamp. E-mail: ravelgp@yahoo.com.br

Revista de Filosofia, Curitiba, v. 15 n.17, p. 29-41, jul./dez. 2003. 29


Ravel Paz

1. Introdução pre mal compreendidas desse romance, como suas


descrições minuciosas e sua profusão de citações
Aproximar um romance moderno como e “discussões” científicas, históricas, filosóficas e
Moby Dick, considerado a obra-prima do escritor artísticas sobre tudo o que se relaciona às baleias
norte-americano Herman Melville, de uma epopéia e aos navios baleeiros. Mais do que simplesmente
clássica como a Odisséia de Homero é um tipo de conferir verossimilhança à narrativa,5 essas passa-
exercício comparativo que pede alguns esclareci- gens parecem ter em vista justamente aquela cele-
mentos. Antes de mais nada, convém indicar que bração do universo narrado, característica das nar-
vínculos podem unir duas obras de origens tão rativas épicas. Aquilo que em Homero se constitui
distantes no tempo e no espaço.2 Esses vínculos, pela incorporação de episódios míticos e lendári-
ou pelo menos os que dizem respeito a nossos os legados pela tradição, no romance de Melville
objetivos, naturalmente relacionam-se à própria se realiza pela incorporação do conhecimento en-
natureza da epopéia, ou seja, ao fato de Moby Dick ciclopédico. Algo assim também está relacionado
ser um romance que contém características que a sua assimilação dos mais variados estilos discur-
podem ser consideradas épicas, como o impulso sivos e gêneros literários.6 Nesse sentido, Moby
aventureiro, aliado a um certo espírito belicoso, e Dick é também, de certa forma, uma celebração
a celebração das glórias do universo narrado, sem monumental da arte, da ciência e dos mitos, ainda
falar em suas proporções monumentais.3 Ao mes- que uma celebração problemática – mas também
mo tempo, esses elementos – inclusive o último problematizadora, pois não raro se voltando con-
deles, pois há no livro de Melville algo de um tra o objeto de seu canto, quer seja “polemizando”
monumento ruinoso – são aqui marcados por con- com ele ou pela apropriação irônica –, erigida na
tradições alheias ao poema homérico, de modo solidão e clamando contra o silêncio do mundo.
que também é preciso, já de saída, assinalar pelo Finalmente, é o próprio Melville quem re-
menos alguns pontos que distinguem essas obras. laciona, em mais de um momento e de modo privi-
Afinal, Moby Dick é um romance escrito num con- legiado, essa atividade que lhe forneceu o motivo
texto de crescente desencantamento e que expri- de seu canto – a caça à baleia – ao universo mítico
me, consciente ou inconscientemente, esse pro- da Antiguidade Grega. Vale a pena reproduzir uma
cesso, ligando-se – ainda que de modo algum con- dessas passagens – justamente a que abre um capí-
formando-se – àquele prosaísmo da vida moderna tulo intitulado “A honra e a glória de apanhar ba-
que Hegel já assinalava. Ele não está de modo leia” –, não só porque ela constitui uma das mais
algum, por exemplo, imune a uma noção que belas do romance como porque deixa entrever,
Lukács apontou, justamente em oposição à epo- desde já, algo da complexa natureza de seu epos:
péia, como um dos dados constitutivos do roman-
ce moderno: a temporalidade.4 E como toda nar- O valente Perseu, um dos filhos de Júpiter,
rativa moderna que aspira a um autêntico espírito foi o mais antigo baleeiro; e diga-se, para hon-
ra eterna de nossa profissão, que a primeira
épico, pela própria natureza irrealizável dessa as-
baleia atacada por nossa fraternidade não foi
piração Moby Dick está também atravessada por morta por nenhum egoístico. Foram estes os
um sentimento trágico da vida. Além disso, a “or- dias cavalheirescos de nossa atividade, quan-
dem mítica” a que ela mais diretamente se reporta, do empunhávamos armas apenas para socor-
com cujos valores se defronta e a partir da qual rer os aflitos e não para encher as almotolias
constrói sua simbologia, não é a da mitologia gre- dos homens. Todos conhecem a bela história
ga, e sim a da judaico-cristã. Isso, como veremos, de Perseu e Andrômeda; de como a encanta-
é determinante, já que noções como as de Mal e dora Andrômeda, filha de um rei, foi presa a
Absoluto atravessam toda a obra – mas também se um rochedo no litoral e de como, quando o
atravessam mutuamente e são atravessadas por Leviatã estava a arrebatá-la, Perseu, o prínci-
outros elementos em seu interior. pe dos baleeiros, avançou intrépido e arpoou
No entanto, nada disso impede que Moby o monstro, libertando a moça, com a qual se
casou. Foi uma rara façanha artística, raramen-
Dick se nutra, pelo menos parcialmente, de algo a
te levada a cabo pelos melhores arpoadores
que se pode denominar um autêntico impulso atuais, ainda mais que o Leviatã foi morto no
épico. Um impulso ao qual talvez estejam direta- primeiro arremesso. (MELVILLE, 1972, p. 433)
mente ligadas algumas peculiaridades quase sem-

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A despeito de sua imperfeição constitu- traz à força e os amarra aos navios, ordenando em
tiva, tantas vezes apontada pelos críticos – mas seguida que os demais embarquem logo, “para que
também, de certa forma, graças a ela –, Moby Dick nenhum, comendo loto, viesse a esquecer o re-
é sem dúvida uma obra ímpar. E a dialética de gresso” (HOMERO, 1996, p. 103). Esquecer-se do
seu impulso épico com o espírito de seu tempo retorno e das origens significa condenar-se a si
certamente ainda é capaz de nos revelar muito próprio ao esquecimento, ou mesmo perder a con-
sobre nosso próprio mundo, e quem sabe até dição humana: é o que quase ocorre com os guer-
mesmo nos comunicar um pouco daquelas “ex- reiros atraídos pelos encantos de Circe e por ela
periências válidas” que, segundo Walter Benja- transformados em porcos, também estes salvos pelo
min, constituem uma das razões de ser das au- herói (HOMERO, 1996, p. 118-122). O mesmo se
tênticas narrativas. dá no embate com a morte ou com as forças caó-
ticas da natureza, expresso em episódios como os
da passagem pelo Hades, pela ilha do Cíclope e
2. O mundo e o lar, o caos e o cosmos pelos rochedos de Cila e Caribdis: são experiênci-
as válidas em si mesmas, inclusive em seu aspecto
terrífico, mas que devem permitir o retorno do herói
Há uma ambigüidade fulcral na viagem
ao universo da ordem doméstica.
de retorno de Odisseu a Ítaca, principal assunto
Há, portanto, no âmago desse duplo im-
da Odisséia: de um lado as saudades que o herói
pulso, uma unidade entre a vida cotidiana, ou
tem do lar e de outro seu anseio por viver mais
seja, a vida em Ítaca, e a vida no mundo mais
aventuras, acumulando histórias e presentes e, ao
amplo em que se dão as aventuras. Essa unidade
mesmo tempo, vencendo as provações que lhes
é constitutiva do espírito da epopéia clássica, e
são impostas pelos deuses. Mas essa oposição,
se estabelece nos vários níveis do mundo homé-
como todas as que informam o mundo homérico,
rico, inclusive no plano da relação dos homens
deve de fato ser posta em termos de ambigüidade:
com os deuses. Não que cotidiano e aventuras se
de pólos, ou, antes, elementos que, embora sem
equivalham, mas de certa forma se complemen-
excluir a conflituosidade, convivem de forma es-
tam, assim como, num outro plano, homens e
sencialmente não-contraditória, ou seja, alheia a
deuses não são a mesma coisa, mas se relacio-
qualquer cisão nos fundamentos ideológicos e
nam a todo momento e têm diversos traços em
existenciais que os sustentam:7 Odisseu é tão ca-
comum. Assim, se por um lado Odisseu não gos-
paz de derramar lágrimas de saudades por seu “so-
tava “da lavoura e do trabalho caseiro, que sus-
lar de alto teto”, de declarar comovido que “eu cá
tentam prole magnífica”, preferindo “os barcos
não consigo ver nada mais doce que a terra da
movidos a remo, as pelejas, as lanças polidas e as
gente” quanto de contar que passou um ano intei-
flechas, coisas lôbregas que aos outros causam
ro banqueteando-se “de carne abundante e de vi-
horror” (HOMERO, 1996, p. 167), por outro não
nho suave” à mesa e compartilhando do leito de
cessa de fazer paralelos entre suas ações e de
Circe (HOMERO, 1996, p. 101).
seus homens com aqueles ou outros trabalhos
Entretanto, se não é conveniente que se
cotidianos, como quando compara sua alegria pela
retorne à casa sem ter acumulado aventuras e ex-
chegada do pôr-do-sol e, em vista disso, da hora
periências, a idéia do não-retorno é inaceitável.
de seu retorno a Ítaca sob a escolta dos feácios,
Diversos episódios, como o das sereias, dos lotó-
com a alegria do lavrador diante do “declínio da
fagos e o da própria Circe dão uma demonstração
luz do sol, que traz a hora da ceia” depois “que a
clara disso. Assim, quando passa pela ilha das se-
junta de bois cor de vinho puxou a ajustada char-
reias, Odisseu não se priva de se deleitar com seu
rua o dia inteiro no alqueire” (idem, 152-153). No
canto, mas toma todas as precauções necessárias,
mundo homérico, as ações humanas se refletem
recomendadas por Circe, para que tanto ele quan-
mutuamente (o que não significa que anulem sua
to seus guerreiros estejam a salvo de seu poder
diversidade): cada ato comunica seu sentido ple-
encantatório (HOMERO, 1996, p. 144-145). Quan-
no, sua dignidade humana, à totalidade da vida;
do, depois de provar do fruto do loto, alguns guer-
e é essa dignidade que é celebrada no mito, no
reiros já não querem “trazer notícias nem regres-
qual a própria ordem cósmica instituída pela so-
sar, mas sim ficar ali com os lotófogos, sustentan-
berania dos deuses olímpicos e os atos destes
do-se de loto, sem pensar no regresso”, o herói os

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tornam-se espelhos da realidade humana (o que mata Eupites, líder dos itacenses em busca de vin-
não significa que se reduzam a ela). gança pelo massacre dos pretendentes, pouco an-
Daí a Odisséia, embora constituindo prin- tes levado a cabo por Odisseu. Em seguida, este e
cipalmente o relato das aventuras de um único seu filho, Telêmaco, lançam-se à batalha, enquan-
homem, ser um canto coletivo: as glórias e pro- to Atena tenta contê-la. O herói, no entanto, reúne
vações do herói são também glórias e provações suas forças e, com um “brado terrível”, arremete
dos aqueus. E daí sua aventura se revestir, nota- “como uma águia de alto vôo” contra seus adver-
damente no final, de um sentido a que, com o sários. Mas então o próprio Zeus intervém para
perdão do anacronismo, 8 se pode denominar evitar “uma guerra funesta para ambos os lados” e
político. O retorno de Odisseu não está relacio- a batalha é definitivamente suspensa, selando-se
nado apenas à necessidade de matar suas sauda- “um juramento de paz para o futuro” entre os con-
des, mas, sobretudo, à de restaurar a ordem em tendores (HOMERO, 1996, p. 288-289.). Assim, os
Ítaca; e isso implica não só em expulsar os “arro- gestos de Laertes, Odisseu e Telêmaco celebram a
gantes pretendentes” à mão de Penélope de sua vitória da tradição e asseguram sua continuidade
própria casa como também em restituir o respei- entre as gerações; o desafio de Odisseu ao apelo
to às tradições em toda a ilha. A imagem mais de Atena reafirma a restituição de sua autoridade
clara do desprezo que ameaça envolver essas tra- na ilha; quanto à intervenção de Zeus, longe de
dições é o debate, travado na Assembléia convo- constituir um índice negativo para o herói – prova
cada por Telêmaco para expulsar os intrusos da disso é sua alegria após a advertência divina –,
casa de seu pai, entre “o bravo ancião Haliterses, sinaliza que seu objetivo já foi cumprido e a or-
(...), que sobrepujava os coevos na ciência dos dem plenamente restaurada, e que, portanto, não
augúrios e emissão de vaticínios” e o pretenden- é preciso ir mais longe.
te Eurímaco. Interpretando a luta e a morte de Nada disso, porém, teria sido possível sem
duas águias nos céus de Ítaca, o ancião vaticina o que Odisseu tivesse mais uma vez conquistado o
retorno de Odisseu e a destruição dos preten- reconhecimento por sua bravura em suas aventu-
dentes, tentando convencê-los a deixar o lar do ras. E, ao final da epopéia, o herói aguarda ainda
herói. Haliterses é, porém, rechaçado por Eurí- novas aventuras, mas também um novo retorno,
maco, que se diz mais capaz de interpretar os para, num dia indeterminado, morrer e ser sepul-
augúrios e lhe faz uma outra “predição”: tado em sua ilha após eternizar seu nome, e o de
seu povo, entre os homens e os deuses.
se tu, apesar de teu velho e abundante saber,
excitares este mocinho à cólera com teus con-
selhos, em nada poderá fazer a estes homens, 3. O “Pequod”: uma viagem sem volta
e a ti, velho, aplicaremos uma multa que te
doerá na alma pagar e duro será teu sofri-
mento (HOMERO, 1996, p. 23.). Diversas passagens de Moby Dick podem
fornecer contrapontos quase exatos aos temas e
Pouco depois, sob as exortações de ou- ao espírito da Odisséia. É claro que não reside aí
tro pretendente, a Assembléia se dissolve. É esta qualquer intencionalidade de Melville nesse senti-
situação, em que jovens ambiciosos e inexperien- do, pois, a despeito dele obviamente conhecer
tes pretendem sobrepujar quase pela força os si- Homero e realmente buscar fazer de seu romance
nais divinos e a sabedoria dos anciões, e, portan- uma espécie de epopéia, esses contrapontos, que
to, em que a unidade mítico-política do mundo naturalmente pressupõem pontos de contato, di-
está ameaçada de se romper, que terá fim com o zem respeito menos a semelhanças ou diferenças
retorno de Odisseu. Há no final da Odisséia uma de episódios e personagens do que a identidades
espécie de ritual de gestos paradigmáticos, que conflituosas de raízes mais profundas. Ainda que
parecem refletir a imagem dos vários níveis em seja inevitável comparar o capitão Acab9 a Odis-
que aquela unidade é reafirmada ou restaurada. O seu, e seja por meio dessa comparação que, de
primeiro desses gestos é o do pai de Odisseu, o fato, as diferenças que queremos assinalar fiquem
velho Laertes, que, revigorado em suas energias mais nítidas, não é absolutamente no plano da
perdidas na ausência do filho e com a devida ins- composição dos personagens que residem tais ra-
piração divina de Atena, arremessa a lança que ízes. Elas nascem da própria relação do “impulso

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épico” que imprime força à narrativa com o solo 1972, p. 13). Quanto ao mar, e à água de um modo
do mundo narrado. Aliás, a palavra “solo”, aqui, já geral, Ismael lhes dedica as próximas páginas, pro-
nos remete ao centro da questão. Pois é justamen- curando comprovar a grandeza de seu mistério,
te de uma oposição entre o mar e a terra que se numa extensa argumentação que termina assim:
nutre aquele impulso, como testemunham as pri-
meiras palavras do narrador-personagem (não pro- Por que os antigos persas consideravam sa-
priamente protagonista, mas também pouco mais grado o mar? Por que lhe atribuíam os gregos
do que um mero observador) Ismael: um deus especial, o próprio irmão de Jove?
Por certo tudo isso não deixa de ter sentido.
Chamai-me Ismael. Faz alguns anos – não E ainda é mais profundo o sentido daquela
importa quantos, precisamente –, tendo na história de Narciso, que, por não poder pegar
bolsa escasso ou nenhum dinheiro e nada que a imagem, atormentadora e suave, que ele
particularmente me interessasse em terra, via na fonte, mergulhou nela e afogou-se. Mas
achei que devia velejar um pouco e ver a parte essa imagem, nós mesmos a vemos em todos
aquosa do mundo. É um hábito que eu te- os rios e oceanos. É a imagem do inagarrável
nho, para acabar com o esplim (spleen) e re- fantasma da vida; e esta é a chave de tudo
gular a circulação. Sempre que começo a fi- (MELVILLE, 1972, p. 27.).
car austero; sempre que é um novembro
úmido e chuvoso em minha alma; sempre que Dessa concessão ao mar de um sentido
dou comigo a parar involuntariamente diante singularíssimo, por vezes mesmo metafísico, é que
de empresas funerárias e a cerrar fila em cada nascerá a peculiaridade da “celebração épica” de
enterro que encontro; e especialmente sem- Moby Dick, uma celebração fundada justamente
pre que minha hipocondria adquire tal domí- na demarcação de um espaço de exceção, na rei-
nio sobre mim que é preciso um sólido prin- vindicação de uma espécie de privilégio. Assim,
cípio moral para impedir-me de sair delibera- por exemplo, o narrador reserva um capítulo in-
damente para a rua e metodicamente surrar teiro, intitulado “O advogado”, para comprovar a
as pessoas – então acho que está na hora de
dignidade da atividade baleeira; mais do que rea-
ir para o mar o mais depressa possível (MEL-
VILLE, 1972, p. 25.).
lizar tal objetivo, porém, ele culmina por investir
essa atividade de um sentido quase absoluto, ven-
Como se vê, o mundo de origem, o mun- do-a não apenas como algo grandioso, mas como
do social, das convenções, e o espaço das aventu- uma espécie de sucedâneo privilegiado da vida:
ras estabelecem aqui uma relação radicalmente
Não há dignidade na profissão de baleeiro? A
diferente da que se dava na Odisséia, uma relação
dignidade de nossa ocupação o próprio céu a
que não pode mais ser compreendida em termos atesta. (...) Conheço um homem que, em toda
de ambigüidade, e sim de contradição. O “mundo a vida, apanhou trezentos e cinqüenta baleias.
terrestre” é descrito como um território estagnado, Considero esse homem mais digno de honras
cujos habitantes vivem uma espécie de morte em do que aquele grande capitão da antiguidade
vida; e o fato de um pouco adiante Ismael dizer que se vangloriava de ter tomado o mesmo
que “Quase todos os homens (...), qualquer que número de cidades fortificadas.
seja a sua classe, uma vez ou outra compartilham Quanto a mim, se por alguma contingência,
comigo quase que os mesmos sentimentos para ainda tiver algo de excelente escondido em
com o oceano” não atenua em nada essa situação: meu íntimo; se existe alguma reputação neste
antes a agrava, na medida em que universaliza o pequeno, mas altamente silencioso mundo, à
mal-estar. Imagem ainda mais evidente desse mal- qual, não imerecidamente, eu possa aspirar;
(...) atribuo toda a honra e toda glória disso à
estar é aquela contida na figura do “sub-sub-bibli-
atividade baleeira: pois num navio baleeiro tive
otecário” que fornecera ao narrador as citações as minhas Universidades de Yale e Harvard.
dispostas no início do livro, personagem que, ape- (MELVILLE, 1972, p. 146-147; à exceção da
sar de “diligente, cavalador e laborioso”, é defini- primeira frase, os demais grifos sãos nossos.)
do como um ser pertencente “àquela tribo incurá-
vel e pálida que vinho algum deste mundo jamais E se Ismael reserva elogios à cidade, ou
aquecerá e para a qual mesmo o branco xerez melhor, ao porto e aos homens de Nantucket, é
seria excessivamente rosado e forte” (MELVILLE,

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tão somente porque este se trata de um lugar que, rói de Homero zela por seus companheiros e pro-
segundo uma anedota contada com indisfarçável cura conduzi-los consigo para casa, Acab leva a
orgulho, o mar “fecha, cinge, cerca, envolve e ilha todos, e não inconscientemente, para uma viagem
tão completamente, que em suas próprias cadei- sem volta. E ainda que os caprichos (mas não ob-
ras e mesas poderão encontrar-se de vez em quan- sessões) de Odisseu sejam responsáveis – princi-
do pequenos mariscos grudados”, um lugar cujos palmente no episódio do Cíclope – pela morte de
homens “residem e se amotinam no mar (...). Lá pelo menos alguns guerreiros, tampouco aí o equi-
está sua atividade, que um dilúvio de Noé não líbrio se rompe: não só Odisseu se redime, na
interromperia, embora submergisse os milhões de medida em que “excogitava a melhor maneira
habitantes da China” (MELVILLE, 1972, p. 92-94; possível de salvar meus camaradas e a mim pró-
grifo do autor). prio da morte”, como os sobreviventes prosseguem
Tudo isso é bastante estranho ao univer- a viagem “de coração pesaroso, mas contentes de
so da epopéia grega. Afinal, para Odisseu não há escapar à morte, embora com a perda de compa-
nenhum problema se “os gostos não são iguais” nheiros queridos” (HOMERO, 1996, p. 110). É,
(HOMERO, 1996, p. 167): ainda que suas glórias sobretudo essa possibilidade sempre renovada de
sejam maiores que as de quaisquer itacenses, elas se reinstaurar um equilíbrio, ora de um, ora de
são extensivas a todos eles; e o mar, a despeito de outro lado, que está definitivamente excluída de
todos os seus mistérios e desafios, é como que um Moby Dick: aqui a lei predominante não é a das
prolongamento da vida cotidiana, enquanto para compensações, mas das oposições inconciliáveis.
Ismael as glórias nele conquistadas e a vida do Talvez a viagem de Telêmaco em busca
“silencioso mundo” cotidiano estão fundamental- do pai constitua o exemplo mais esclarecedor do
mente dissociadas. No entanto, já vimos que a “cha- sentido da experiência no poema de Homero. Trata-
ve” de Ismael é uma chave partida, pois tampouco se de uma viagem aparentemente infrutífera, na
ela pode deixar de refletir a cisão entre a existên- medida em que Telêmaco não chega sequer a obter
cia e seus fundamentos existenciais, que ele mes- notícias concretas de Odisseu. No entanto, sua
mo reconhece na vida moderna. Como deixa en- breve aventura é bem sucedida no sentido de que,
trever a relação estabelecida com o mito de Narci- através dela, ele acumula honras e presentes, e,
so, também o mar está ligado, em Moby Dick, a sobretudo, começa desde já a glorificar seu nome.
uma pulsão de morte; e mesmo refletida nele, a Para Acab, porém, não importam honras, riquezas
vida continua sendo fantasmagórica, “inagarrável”. nem o apreço dos homens, mas tão somente al-
Daí que, mesmo em alto mar, aquele cançar seu objetivo. Ainda que o arrebatem sau-
“solo” não se desvaneça, e é dessa indissociabili- dades do lar distante – afinal, ele acabara de se
dade que nascem as tensões fundamentais de Moby casar e ter um filho, quando foi mutilado pela ba-
Dick, e com elas a condição trágica de seu verda- leia –, jamais isso seria suficiente para demovê-lo
deiro protagonista: o velho capitão Acab. É possí- desse objetivo. Em uma determinada passagem,
vel ver Acab quase como uma antítese dos heróis transcorrida num dia cuja beleza o comove, o ca-
homéricos. Imagem da misantropia e do desprezo pitão resume suas desventuras para o imediato Star-
pelo mundo, a ponto de não travar conhecimento buck: fala no “isolamento murado, de cidade forti-
com os próprios marinheiros uma única vez antes ficada” que tem sido sua vida, e também sobre a
da partida do navio, o comandante do “Pequod” é “juvenil esposa”, que deixara como a “uma viúva
movido exclusivamente por um desejo obsessivo: com o marido vivo” para se dedicar, com “loucu-
matar Moby Dick, o grande cachalote branco que ra, frenesi, o sangue a ferver e a testa a fumegar”,
lhe decepara uma perna. Tal “obsessão monoma- à caça de Moby Dick, terminando, num acesso de
níaca” é, evidentemente, diametralmente oposta comoção, por pedir ao imediato que se poupe do
ao espírito da Odisséia. É certo que o herói de enfrentamento com a baleia; ao que este lhe res-
Homero leva sua vingança contra os pretendentes ponde:
até o fim, mas nem por isso se apressa em consu-
má-la, nem deixa de participar dos banquetes de –– Oh, meu capitão, meu capitão, nobre alma!
seus inimigos, agüentando “de coração paciente grande e velho coração, apesar de tudo! por
os projéteis e insultos em seu próprio solar” (HO- que tem qualquer homem de dar caça a esse
MERO, 1996, p. 280). Além disso, enquanto o he- odiado peixe? Vem comigo! Fujamos destas

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águas mortais! vamos para casa! Mulher e filho, paz de extrair delas algum aprendizado –, nem os
também Starbuck os possui, mulher e filho de sentidos mais profundos que Melville buscou im-
sua juventude fraternal, sorória, companheira primir a sua obra nem aqueles que talvez escapem
de folguedos, exatamente como os teus, senhor, a sua própria intenção podem ser desvelados sem
são a mulher e o filho de tua velhice amante, antes nos determos sobre aquele elemento que
ardente, paternal! Embora! vamos embora! Dei-
constitui o núcleo simbólico do romance: a pró-
xa-me alterar a rota agora mesmo! Que anima-
dos, que alegres, ó meu capitão, haveríamos de
pria Moby Dick.
rodar em nosso caminho para ver a velha Nan-
tucket de novo! Acho, senhor, que há certos
dias suaves e azuis como este em Nantucket! 4. Moby Dick e o “caos enfeitiçado”
(MELVILLE, 1972, p. 631-632.).
De todas as interpretações passíveis de
Acab, porém, não pode atender ao apelo serem extraídas desse “personagem” formidável
de seu companheiro; num gesto de impotência, que é Moby Dick, sem dúvida a mais simplista é
agitando-se “como uma árvore frutífera seca”, ele aquela, familiar às apostilas didáticas,10 que o vê
se lamenta: como a encarnação do Mal. Não que tal leitura
seja totalmente desprovida de fundamento: afinal,
–– Que é, que coisa indizível, inescrutável, ela corresponde à visão que o próprio Acab tem
sobrenatural; que falacioso, oculto senhor e da baleia. Como explica Ismael, o capitão “trans-
amo, e cruel, desumano imperador dispõe de feriu delirantemente” para ela a idéia daquela “im-
mim (...)? Sou eu, ó Deus, ou quem é que
palpável malignidade que sempre existiu”: “todo
ergue este braço? Pelo céu, homem, somos
girados e regirados neste mundo, como aquele
o mal, para o doido Acab, personificava-se visivel-
cabrestante, e o Destino é a alavanca... (MEL- mente e podia praticamente ser atingido em Moby
VILLE, 1972, p. 631-632.). Dick” (MELVILLE, 1972, p. 228-229). Mas, como
enfatiza o próprio narrador, isso constitui somente
Passagens como essas revelam o quanto “o que o cachalote branco representava para Acab”,
a “epopéia” de Melville é atravessada por um sen- e não para ele próprio e também, portanto, na
tido trágico. Na verdade, Acab não chega a ser totalidade da obra, já que o que está em jogo não
portador de um “espírito aventureiro”. Tal espírito é apenas a visão de Acab (MELVILLE, 1972, p. 233).
é encarnado, sobretudo pelo próprio narrador, Is- Os sentidos que Ismael atribui a Moby Dick são
mael, além do selvagem Quiqueg. O paradoxo, muito mais complexos, e não há dúvida de que
no entanto, consiste justamente no fato de que sem eles as dimensões mais profundas da tragici-
somente Acab tem magnitude suficiente para alçar dade de Acab não podem ser compreendidas.
a relação dos homens com o universo a que Mel- A “interpretação” do narrador gira prin-
ville quer dar forma a uma grandiosidade épica – cipalmente em torno de uma característica da
uma grandiosidade, portanto, que só pode ser si- baleia que lhe desperta um “vago, inominável
multânea e paradoxalmente trágica. Embora seja horror”: sua brancura, à qual ele dedica um capí-
Ismael, mais do que o próprio Acab, quem enxer- tulo inteiro. Ao longo desse capítulo, Ismael pro-
gue uma cisão irreconciliável entre o homem e o cura expor os paradoxos que ele vê associados à
mundo, ele não mergulha nela plenamente, pois cor branca. Apesar de ser símbolo e expressão
em nada seu espírito aventureiro o predispõe a privilegiada da beleza, da alegria, de tudo que “é
isso: antes, lhe serve de alívio, como se reconhece doce, e honroso, e sublime”, e da própria “pure-
no parágrafo inicial da narrativa; e, afinal, confor- za e da força divinas”, do “próprio véu da Deida-
me atesta outro trecho já citado, o jovem mari- de Cristã”, Ismael nos alerta que “esconde-se algo
nheiro ainda aspira a “alguma reputação neste de enganador na mais secreta idéia dessa cor, a
pequeno, mas altamente silencioso mundo”. qual traz mais pânico à alma do que a vermelhi-
Mas se Acab, ele próprio cindido no cor- dão que assusta no sangue”. Mas em que consis-
po e na alma, é o único capaz de mergulhar nas te essa natureza terrivelmente enganadora, conti-
profundezas das contradições desse mundo, en- da “na mais secreta idéia dessa cor”? É a interro-
quanto Ismael é, sobretudo, o “aedo” dessas con- gação a que o próprio narrador tenta responder
tradições – mas também, quem sabe, aquele ca- ao final do capítulo:

Revista de Filosofia, Curitiba, v. 15 n.17, p. 29-41, jul./dez. 2003. 35


Ravel Paz

Será porque por sua indefinição ele [o “bran- as cores” –, símbolo tanto do “universo paralisa-
cor”] representa os vazios e imensidades sem do” quanto do “próprio véu da Deidade Cristã”.
coração do universo, e assim nos apunhala Ao mesmo tempo, a visão de Acab não pode ser
por trás com o pensamento da aniquilação, simplesmente descartada dessa equação, onde, no
quando contemplamos os brancos abismos fim das contas, parecem conviver elementos apa-
da Via-Láctea? Ou será porque, no fundo, o
rentemente díspares e inconciliáveis. De um lado,
branco não é bem uma cor, mas a ausência
visível da cor, e ao mesmo tempo a suma de
aqueles de fundo teológico ou ligados a uma me-
todas as cores; será por isso que há uma bran- tafísica da presença: o Destino, a Divindade e
cura muda e cheia de sentido numa paisa- mesmo, a despeito de sua carga negativa, o Mal;
gem nevosa – um descolorido, onicolor ateís- de outro, um niilismo absoluto, ligado a um pro-
mo ante o qual recuamos? E quando conside- cesso de desencantamento radical e que acaba
ramos aquela outra teoria dos filósofos da na- configurando uma espécie de “metafísica da au-
tureza, segundo a qual todas as outras cores sência”. Elementos inconciliáveis, mas estranha-
terrenas – toda decoração imponente ou en- mente intercambiáveis, surgindo-nos como que
cantadora –, os doces tons dos céus e flores- embaralhados. Nossa hipótese, porém, é que uma
tas crepusculares; sim, e o dourado veludo unidade dialética subjaz a esse “embaralhamen-
das borboletas e as faces de borboleta das to”: uma dialética cuja síntese é sempre incomple-
mocinhas, tudo isso não passa de sutis ilu-
ta e cujos termos de fato permanecem inconciliá-
sões, não inerentes, na verdade, às substânci-
as, mas apenas impostas de fora, de modo tal
veis, mas que nem por isso deixam de constituir
que toda a natureza deificada se pinta como uma unidade, certamente contraditória, mas não
a prostituta, cujas seduções recobrem apenas incoerente. Mas em que se constituiria ela, afinal?
o ossuário interior (...) – ao ponderarmos tudo Uma primorosa passagem localizada logo
isso, o universo paralisado estende-se à nos- no terceiro capítulo do romance – quando Ismael,
sa frente como um leproso (...). De todas es- chegando a Nantucket à procura de trabalho num
sas coisas o cachalote albino era o símbolo. baleeiro, aloja-se numa certa “Estalagem da Ba-
Admirais-vos pois da furiosa caçada? (MELVI- leia” – talvez possa nos indicar o caminho para a
LLE, 1972, p. 243.). resposta. Nessa sua espécie de “primeira descida”
ao mundo da caça à baleia, Ismael se depara, qua-
Como se vê, aqui a simbologia de Moby se imediatamente, com
Dick vai além daqueles termos definidos pela visão
de Acab. Agora ela exprime o próprio paradoxo da um vasto quadro a óleo, tão cabalmente sujo
existência, o medo da aniquilação absoluta, da dis- de fumaça e em todos os aspectos tão desfi-
solução do Ser no Nada, no “ossuário interior” re- gurado, que, considerando-se a insuficiência
coberto pelas cores ilusórias da existência. Nesse das luzes cruzadas sob as quais era visto, ape-
sentido, a busca de Acab não remete apenas ao nas por meio de um estudo diligente e de
embate com o Mal, mas toca no niilismo absoluto. uma série de sistemáticas inspeções, bem
Afinal, mesmo o reino de Lúcifer não significa a como de cuidadosas perguntas aos vizinhos,
aniquilação total. É somente num contexto de crise se poderia de algum modo atinar com o seu
sentido. Tão inexplicável amontoado de es-
de uma visão de mundo onde as forças ordenado-
curos e sombreados quase nos fazia pensar, à
ras da existência sobrepõem-se de forma absoluta primeira vista, que algum pintor, ambicioso e
às caóticas – e não mais convivem com elas numa jovem, no tempo das bruxas da Nova Ingla-
incessante dialética –, ou seja, a visão de mundo da terra, havia tentado representar o caos enfei-
teologia cristã, que esse movimento pode ser com- tiçado. Mas, à força de muita e severa con-
preendido. Ameaçada de ser deposta de sua sobe- templação e de repetidas ponderações, e es-
rania absoluta, a ordem divina deixa entrever por pecialmente abrindo a janelinha do vestíbu-
trás de si não apenas o caos ou o Mal, que, despro- lo, chegava-se por fim à conclusão de que tal
vidos da essencialidade que lhes conferia essa mes- idéia, embora extravagante, podia não ser de
ma ordem, agora confinam com o Nada. todo descabida (MELVILLE, 1972, p. 35-36.).
Mas a brancura da baleia é síntese, simul-
taneamente, do Nada e do Absoluto – “a ausência “O caos enfeitiçado”:11 por mais gratuita
visível da cor, e ao mesmo tempo a suma de todas que essa expressão possa parecer, ela se insere
num episódio cuja dimensão simbólica está muito

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Da ordem mítica ao “caos enfeitiçado”: o homem e o mundo na Odisséia de Homero e em Moby Dick, de Herman Melville

bem assinalada. Quanto ao tom humorístico do 5. O Absoluto e a vida: entre o olhar de


último período, ele não deve nos enganar, mesmo Acab e o de Ismael
porque em nada desmente o já dito. De qualquer
forma, a análise de Ismael não termina aí, e logo
Se na Odisséia cada ato do herói parece se
em seguida ela nos revelará que
comunicar com seu mundo de origem, no universo
de Moby Dick a “celebração épica” das ações de
o quadro representava um navio sob um tufão
no cabo Horn, vendo-se apenas os três mas-
seus “heróis” e a totalidade da vida guardam uma
tros desguarnecidos da embarcação quase afun- distância verdadeiramente imensurável. Os termos
dada, joguete das ondas, e uma baleia exaspe- do narrador em sua “defesa” da atividade baleeira
rada, tencionando saltar por cima do barco, na são uma demonstração disso. De um lado, Ismael
realidade estava cravando-se na ponta dos três se vê diante da necessidade de legitimar tal ativida-
mastros (MELVILLE, 1972, p. 36.). de, defendendo-a do “desprezo dos homens de ter-
ra” e “da injustiça perpetrada contra nós, baleeiros”,
Como se vê pela sua extravagância, a cena ao se julgar que “não há dignidade na atividade
finalmente desvelada não nega aquela primeira baleeira”, e de outro compara a glória dessa profis-
interpretação: antes, parece realmente encontrar são a um “confronto com os terrores e maravilhas
nela sua melhor tradução. Mas em que sentido essa de Deus”, ou sustenta, por exemplo, que ela “gerou
expressão curiosa, “o caos enfeitiçado”, pode nos acontecimentos tão notáveis em si mesmos, e tão
ser útil? No sentido de que ela parece conter, em continuamente significativos, que a atividade bale-
sua estrutura semântica, a estrutura simbólica atra- eira pode ser comparada àquela mãe egípcia, que
vés da qual Melville, consciente ou inconsciente- deu à luz criaturinhas prenhes” (MELVILLE, 1972, p.
mente, buscou dar forma aos conflitos de seu ro- 144). Entre esses sentidos atribuídos à pesca à ba-
mance. Estrutura esta que, em sua relação de su- leia e aquilo que o mundo reconhece nela há, por-
bordinação do substantivo ao adjetivo, parece tra- tanto, um abismo. Entretanto, é na dimensão práti-
duzir uma “metafísica do caos”, ou seja, uma ten- ca dessa atividade que se revela mais claramente tal
tativa de investir o sentimento de uma desordem distância. Afinal, pergunta-se Ismael, como é possí-
constitutiva do mundo, o sentimento de ausência vel tanto desprezo “se temos uma frota de mais de
de qualquer lógica a reger os destinos, de qual- setecentos navios, tripulada por dezoito mil homens
quer sentido imanente ou transcendente à vida, (...) e trazendo para nossos portos um ultracom-
de uma configuração metafísica. A tentativa, em pensador produto anual de sete milhões [de dóla-
outras palavras, de fixar a imagem simbólica de res]?” (MELVILLE, 1972, p. 143.).
algo que possa presidir à desordem do universo e A resposta só pode ser que o sentido da
que não seja simplesmente uma nova ordem. Para caça à baleia se reduziu, para os outros homens,
Acab, essa imagem não é outra senão Moby Dick, quando muito ao seu aspecto utilitário, num con-
símbolo simultâneo do Nada e do Absoluto, da texto em que a utilidade e o sentido “humano” da
morte aniquiladora e do “fantasma inagarrável da práxis, sua dignidade intrínseca, encontram-se dis-
vida” – mas sempre envolto pela idéia da maligni- sociados. Essa dissociação entre vida prática e moral
dade, assim como o dilaceramento existencial de é explícita, por exemplo, na caracterização de um
Acab está envolto pela idéia de Destino.12 É como dos sócios-proprietários do “Pequod”, o religioso
se Melville tentasse assimilar o desencantamento e sovina capitão Bildad:
de seu tempo aos esquemas teológicos que esse
mesmo processo punha em xeque: sem dúvida, Embora recusasse, por escrúpulos de consci-
algo ideológica e “filosoficamente” problemático, ência, tomar armas contra os invasores de ter-
mas também, pelo menos nesse caso particular, ra, ele próprio invadira descompassadamen-
de inegável força artística. te o Atlântico e o Pacífico; e, embora inimigo
De qualquer forma, ainda aqui é o mito que jurado do derramamento de sangue humano,
vertera, com seu casaco justo, barris e barris
espelha o homem, e não o contrário, de modo que se
do sangue de Leviatã. Como, no entardecer
quisermos completar esse quadro devemos agora re- contemplativo de seus dias, o piedoso Bildad
tornar tanto aos tripulantes do “Pequod” quanto àquele conciliava na lembrança essas coisas, não o
solo, do qual em nenhum instante, até sua destruição sei; mas isso não parecia preocupá-lo muito,
final, o baleeiro se desprendeu totalmente.

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Ravel Paz

e provavelmente fazia tempo que chegara à Essa fantasmagoria, aliás, Acab terminará
sábia conclusão de que a religião de um ho- por impor à tripulação do navio:
mem é uma coisa, e a vida prática muito dife-
rente. Este mundo paga dividendos(MELVIL- Nesse intervalo prenunciador, também toda
LE, 1972, p. 106.). graça, postiça ou natural, despaareceu. Stubb
não mais se esforçou por despertar um sorri-
Também aqui é inevitável a comparação so; Starbuck não mais se esforçou por repri-
com a epopéia homérica, onde as glórias dos he- mir algum. Alegria e tristeza, esperança e te-
róis recebiam sua justa recompensa tanto na apro- mor pareciam reduzir-se igualmente ao mais
vação dos deuses quanto nas riquezas ofertadas fino pó e triturar-se, naquelas circunstâncias,
pelos homens. Note-se ainda que, no fim das con- no gral abarrotado da alma de aço de Acab.
tas, a contradição afeta o discurso do próprio nar- Como autômatos, moviam-se mudamente pelo
rador. convés, sempre conscientes de que o olhar
despótico do velho estava sobre eles. (MEL-
No entanto, é óbvio que essa condição
VILLE, 1972, p. 622).
problemática não é privilégio dos caçadores de
baleia. Afinal, a mesma perda do sentido intrínse-
Também esses homens parecem mortos-
co a sua práxis, guardadas as devidas glórias e
vivos, cerrando fila para seus próprios enterros.
proporções, também marca aquele “pobre-diabo
Assim, por trás do universo aparentemente
de sub-sub-sub bibliotecário, diligente, cavalador
fechado do “Pequod”, há todo um contexto social
e laborioso”, a quem Ismael faz a seguinte exorta-
e histórico, onde qualquer unidade entre o ho-
ção: “Desisti, sub-subs! Pois quanto maiores sejam
mem e o mundo parece ausente, onde todos os
os vosso esforços para agradar ao mundo, tanto
valores parecem volúveis, inconsistentes, e a idéia
mais ficareis para sempre sem agradecimento!”
de que uma ordem transcendente possa estar por
(MELVILLE, 1972, p. 13.). E não é esta, de um cer-
trás deles, a guiar os desígnios humanos, torna-se
to modo, a condição do próprio Melville, que cla-
cada vez menos plausível. São as contradições
ma pelo reconhecimento de um “silencioso mun-
desse contexto de desencanto e desencantamento
do” onde as narrativas, a experiência, o heroísmo
a que Melville tentou dar forma artística numa
e a cultura perdem progressivamente o valor? Ali-
metafísica peculiar: a metafísica de um “caos en-
ás, o silêncio e aquela “queda de cotação” da ex-
feitiçado”. O que distingue Acab dos demais habi-
periência mais tarde apontada por Benjamin são
tantes desse mundo é que o velho capitão não só
características que ligam todos os níveis desse
não se dispôs a suportar sua indiferença como,
mundo. Eles estão presentes, por exemplo, no gru-
sobretudo, desistiu de clamar pelo seu reconheci-
po de velhos pescadores aos quais Ismael se jun-
mento, voltando-se para o delírio do Absoluto, em
tara na Estalagem da Baleia, na esperança de “ou-
busca do “inagarrável fantasma da vida”. Mas ao
vir boas histórias sobre pesca de baleia”, mas que,
fazer do Absoluto seu único alvo, Acab se privou
para sua surpresa, conservaram-se em “profundo
dos últimos vínculos que o ligavam à vida. Por
silêncio”; ou no cerrado mutismo em que se dão
isso, tudo aquilo que na epopéia constitui prova
as refeições dos oficiais no camarote de Acab (MEL-
de apreço pela vida e pelas ações humanas é radi-
VILLE, 1972, p. 57; 188-189). E se aquele universo
calmente excluído de seus atos. Um exemplo dra-
esboçado por Ismael no início do livro parecia ha-
mático é o encontro do “Pequod” com o baleeiro
bitado por mortos-vivos, não é diferente a situa-
“Raquel”, cujo capitão assistira o bote do filho ser
ção do capitão do “Pequod”:
arrastado por Moby Dick no dia anterior. Logo de
início, o narrador – que, capítulos antes, havia
E, se tivésseis observado o rosto de Acab na-
quela noite, pensaríeis que também nele duas
descrito um “gam”, ou seja, um “encontro social
coisas estavam-se guerreando. Ao passo que de dois (ou mais) navios baleeiros” – sublinha que,
sua perna viva provocava vivas ressonâncias embora conhecidos, “nenhuma saudação foi tro-
no convés, cada passo de sua perna morta cada” entre os velhos pescadores (MELVILLE, 1972,
soava como uma pancada em caixão de de- p. 296). E quando o capitão do “Raquel” implora
funto. O velho caminhava sobre vida e morte ao do “Pequod” que o ajude a encontrar o filho e
(MELVILLE, 1972, p. 287.). os demais marujos desaparecidos, Acab mantém-
se “como uma bigorna, que recebe todos os gol-

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Da ordem mítica ao “caos enfeitiçado”: o homem e o mundo na Odisséia de Homero e em Moby Dick, de Herman Melville

pes sem o mínimo tremor” (MELVILLE, 1972, p. o dinamismo e a multiplicidade da vida que o olhar
616-618). Desnecessário sublinhar o contraste com de Ismael se dirige. Aquela vida intensa e feroz no
as cerimônias de acolhimento na Odisséia quan- interior do “Pequod” lhe fornece matéria para um
do, por exemplo, Telêmaco viaja em busca do pai. dos mais curiosos capítulos de Moby Dick, aquele
No universo de Moby Dick, a práxis não em que um verdadeiro carnaval se celebra no na-
une, mas aparta os homens. E apartado da vida, ten- vio sob o ritmo do pandeiro do pequeno Semen-
do como único horizonte um Absoluto que se con- te-de-Maçã (personagem, aliás, mais tarde reduzi-
funde com a aniquilação, Acab não poderia ter outro do a um sinistro vulto de Acab). Nesse capítulo,13
destino senão o completo e definitivo silenciamento: o narrador cede lugar a marujos das nacionalida-
des mais díspares – uma tripulação, como ele dirá
O arpão foi atirado; a baleia ferida voou para mais adiante, “constituída principalmente de mes-
frente; com velocidade ignescente a arpoeira tiços renegados, de párias e canibais” (MELVILLE,
correu pela ranhura; correu emaranhada. Acab 1972, p. 232) –, tentando conferir particularidade
inclinou-se para desembaraçá-la; conseguiu- cultural a seus discursos. Por mais caricatural que
o; mas a volta que voava apanhou-o pelo seja o resultado, ele não elide o fato de que Moby
pescoço, e, calado como os mudos turcos
Dick é também uma espécie de epopéia dialógica,
estrangulam sua vítima, foi arremessado do
bote, antes que a equipagem percebesse que
onde o narrador, ao longo de todo o livro, dá voz
ele se tinha ido. Logo a seguir o pesado laço a dezenas de “guerreiros” que participam dela.
da extremidade final da arpoeira voou da tina São esses “canibais”, esses “nobres selva-
completamente vazia, derrubou um remeiro, gens” (MELVILLE, 1972, p. 191) – os arpoadores
e atingindo o mar desapareceu em suas pro- do “Pequod” –, que rompem com o obsessivo si-
fundezas (MELVILLE, 1972, p. 666.). lêncio das refeições no camarote de Acab, comen-
do “como lordes”, mastigando “o alimento com
Mas se a morte silenciosa de Acab e o tanto gosto, que isso proclamava que estavam à
naufrágio do “Pequod” são as últimas cenas do mesa” (MELVILLE, 1972, p. 190). E é justamente, e
drama de Moby Dick, não o são de sua epopéia. um tanto paradoxalmente, um desses canibais o
Ismael, aquele que, como o servo de Jó, escapou personagem que mais se aproxima, em espírito,
para contar a história, nos lembra que o olhar de de Odisseu em todo o romance de Melville: o ar-
Acab não é o único a incindir sobre esse mar tu- poador e empalhador de cabeças Quiqueg, com
multuoso. Este é um olhar que reduz tudo a si quem Ismael partilha sua cama na Estalagem da
mesmo e a suas próprias obsessões – o que o pró- Baleia e de quem se faz, à maneira de Aquiles e
prio Acab reconhece, por exemplo em sua “inter- Pátroclo na Ilíada, “amigo íntimo”. Somente Qui-
pretação” da gravura de um dobrão de ouro que queg, do alto de sua inocência pagã, alia o espíri-
ele mesmo pregara no mastro do navio como re- to aventureiro, o heroísmo, a nobreza ingênua e o
compensa para o marinheiro que primeiro avistas- vigor físico de um herói homérico.
se Moby Dick: É com Quiqueg que aquele “descentra-
mento” espiritual a que tampouco Ismael está imu-
“Há sempre algo de egoístico nos cumes e ne pode tomar, para este, um sentido positivo, as-
torres, e em todas as outras coisas imponen- sumindo a forma de possibilidade de compreen-
tes e altaneiras; vêde aqui: três píncaros tão são do outro. É claro que a configuração dessa
soberbos como Lúcifer. A firme torre é Acab; alteridade não é propriamente uma aula de antro-
o vulcão é Acab; a ave corajosa, intrépida e pologia: pelo contrário, Quiqueg é marcadamente
triunfante é Acab, também ela é Acab; todos
ideologizado; no entanto, há sem dúvida – ainda
são Acab...” (MELVILLE, 1972, p. 510.).
mais em plena metade do século XIX – uma nova
disposição face ao outro contida num episódio
Se o “valente Perseu”, aquele “primeiro
como aquele em que Ismael aceita participar do
baleeiro”, não era “nenhum egoístico”, Acab é a
culto e oferecer pequenas “hecatombes” ao deus
própria imagem do egocentrismo.
Yojo (MELVILLE, 1972, p. 82); ou, mais ainda, na-
No entanto, ao olhar de Acab contrapõe-
quele em que o selvagem narra duas histórias que
se o do próprio narrador, que, não obstante mui-
mostram o quão relativas são as noções de ridícu-
tas vezes se confunda com o primeiro, certamente
lo em cada cultura (MELVILLE, 1972, p. 88-89).
alarga-se para muito além dele. É sobretudo para

Revista de Filosofia, Curitiba, v. 15 n.17, p. 29-41, jul./dez. 2003. 39


Ravel Paz

E esta – é preciso sublinhar – é sem dúvida Notas


uma disposição que nasce do impulso épico de Moby
Dick, de sua necessidade de buscar o motivo do canto 2
Passando ao largo da chamada “questão homérica”, é mais ou
na própria imanência da vida; uma necessidade que, menos ponto pacífico que as grandes epopéias gregas – a Ilíada
não podendo ser satisfeita nos limites de um mundo e a Odisséia – tomaram formas próximas às que chegaram até
nós entre os séculos X e IX a.C., nas regiões da Eólia e da Jônia,
onde os vínculos profundos com a vida parecem ter embora reunindo materiais narrativos de outros períodos e luga-
se dissolvido, projeta-se sobre outras culturas. É ao res. Herman Melville nasceu em Nova York em 1819, e a primeira
lado de Quiqueg que Ismael, após participar do cul- edição de Moby Dick data de 1851.
to ao seu ídolo pagão, partilhar de seu cachimbo, ser 3
A edição utilizada, por exemplo, tem 668 páginas, onze delas
por ele presenteado, dormir e acordar a seu lado, ocupadas somente pelas oitenta e cinco “epígrafes”.
experimenta aquilo que Acab estava fadado a jamais 4
Cf. Lukács (s/d, p. 142).
alcançar em sua busca do Absoluto, ou seja, a sensa-
5
Como quer, por exemplo, Leon Howard, conhecido biógrafo de
ção de estar plenamente vivo: Melville, em seu artigo dedicado a Moby Dick no volume Pano-
rama do romance americano (cf. HOWARD, 1966, p. 33).
Sentíamo-nos otimamente bem e abrigados, 6
Além de um hino e um sermão protestantes (capítulo IX, “O
tanto mais que fazia muito frio lá fora; na ver-
sermão”), Moby Dick comporta capítulos “líricos”, verdadeiros
dade também fora das cobertas, porque não exemplos da prosa poética romântica, e “dramáticos”, aos quais
havia lareira no quarto. Tanto mais, eu digo, não faltam indicações cênicas e que vão desde o monólogo até a
porque em verdade, para desfrutar o calor do espécie de ópera carnavalesca que é o XL (“Meia-noite, castelo
corpo, alguma pequena parte dele deve estar de proa”). Já o capítulo XXXII (“Cetologia”), apresenta uma curi-
osa taxonomia das baleias, classificadas “em três LIVROS funda-
fria, pois não há qualidade neste mundo que
mentais (subdivididos em CAPÍTULOS)” (MELVILLE, 1972, p. 172).
não seja o que é meramente por contraste. Nada
7
existe por si mesmo (MELVILLE, 1972, p. 83.). Cf. a distinção entre ambigüidade e contradição operada por Mar-
cel Dettiene em Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica (DET-
TIENE, 1988, p. 65-72).
Essa dialética, que não é apenas do frio e
8
do calor, mas também das relações e diferenças Mas é notório o papel que a epopéia exerceu na formação e na
sustentação ideológica da pólis grega.
culturais e intersubjetivas, seria incompreensível para
9
Acab, para quem a circunferência deve ser fiel ao Adotamos aqui, muito a contragosto, mas em consonância com a
edição utilizada, a “tradução” do nome do velho capitão Ahab,
centro e somente “o semelhante cura o semelhan- que, a despeito dos motivos óbvios, parece-nos totalmente injus-
te” (MELVILLE, 1972, p. 620). Em sua desordenada tificável. Não obstante, cotejamos a referida edição, uma tradu-
esfera, ou em seu caos encantado, a vida já não se ção de Péricles Eugênio da Silva Ramos, com a edição de 1952 da
University of Chicago, parecendo-nos aquela, de um modo geral,
reduz à pulsão de morte, mas, pelo contrário, abri-
bastante fiel ao texto original.
ga-se – não, é claro, sem um sutil sacrificialismo –
10
no seio da própria morte: é graças ao caixão que Mas também parcialmente endossada por uma leitura mais aten-
ta como a de Leon Howard. (Cf. HOWARD, 1966, p. 38.)
certa vez Quiqueg, padecendo de uma febre apa-
11
rentemente fatal, mandara construir a fim de chegar No original, “chaos bewitched”.
às estrelas de seu mundo mítico, que Ismael, valen- 12
O que não significa que essa idéia possa subsumir aqueles ele-
do-se da proteção de sabe-se lá que divindade, pode mentos. Quando, por exemplo, um “sinal do Destino” surge na
sobreviver para contar sua(s) história(s): imagem dos “fogos-de-santelmo”, estes são descritos como um
“fogo pálido”, dotado de uma “luz espectral” (MELVILLE, 1772, p.
589-590), ou seja, com características que remetem à falta de
Tendo o caixão como bóia, sobrenadei quase substância. Além disso, em vários momentos predomina a idéia
um dia e uma noite, num mar suave como de de que é Acab quem conduz seu destino. Assim, quando as bús-
elegia fúnebre. Os tubarões, inofensivos, des- solas do navio são desreguladas por uma trovoada – fenômeno
natural de conotações simbólicas bem conhecidas –, o capitão
lizavam por ali como se tivessem cadeados improvisa uma outra com a ponta de aço de uma lança, e, ao
nas bocas; os selvagens falcões do mar voa- final da operação, vangloria-se junto à tripulação: “Confirmai com
vam de bicos embainhados. No segundo dia, vossos olhos se Acab não é senhor da magnetita horizontal! O sol
um veleiro aproximou-se cada vez mais, e está a leste, e a bússula jura isso!” (HOMERO, 1996, p. 605.) E
afinal me recolheu. Era o “Raquel”, que cru- tampouco a hybris que se revela no “fatal orgulho” com que o
velho pescador enuncia tais palavras pode subsumi-las: afinal,
zava fora de rota e que, retrocedendo a bus- nada indica que a potência humana que elas celebram contenha,
car seus filhos perdidos, achara apenas um necessariamente, essa hybris.
outro órfão (MELVILLE, 1972, p. 668.).
13
O já citado capítulo XL (“Meia-noite, castelo de proa”), que vai
da página 214 à 221.

40 Revista de Filosofia, Curitiba, v. 15 n.17, p. 29-41, jul./dez. 2003.


Da ordem mítica ao “caos enfeitiçado”: o homem e o mundo na Odisséia de Homero e em Moby Dick, de Herman Melville

6. Referências LUKÁCS, Georg. Teoria do Romance. Lisboa:


Editorial Presença, s/d.
DETTIENE, Marcel. Os Mestres da Verdade na MELVILLE, Herman. Moby Dick ou A baleia. São
Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. Paulo: Abril Cultural, 1972.
HOMERO. Odisséia. São Paulo: Cultrix, 1996.
HOWARD, Leon. Moby Dick. In AARON, Daniel et
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