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Ravel Paz1
Resumo
O trabalho propõe uma aproximação entre a Odisséia e Moby Dick, sublinhando os traços épicos e míticos
do romance de Melville em sua dialética com as contradições e o desencantamento de seu tempo.
Palavras-chave: Romance e epopéia; Mito e realidade; Desencantamento do mundo.
Abstract
This paper proposes a aproximation between Odissea and Moby Dick, emphasizing the epic and mitic features
of Melville’s novel in its dialetic with contradictions and disenchantment of its time.
Keywords: romance and epopee; myth and reality; disenchantment of the world.
1
Unicamp. E-mail: ravelgp@yahoo.com.br
A despeito de sua imperfeição constitu- traz à força e os amarra aos navios, ordenando em
tiva, tantas vezes apontada pelos críticos – mas seguida que os demais embarquem logo, “para que
também, de certa forma, graças a ela –, Moby Dick nenhum, comendo loto, viesse a esquecer o re-
é sem dúvida uma obra ímpar. E a dialética de gresso” (HOMERO, 1996, p. 103). Esquecer-se do
seu impulso épico com o espírito de seu tempo retorno e das origens significa condenar-se a si
certamente ainda é capaz de nos revelar muito próprio ao esquecimento, ou mesmo perder a con-
sobre nosso próprio mundo, e quem sabe até dição humana: é o que quase ocorre com os guer-
mesmo nos comunicar um pouco daquelas “ex- reiros atraídos pelos encantos de Circe e por ela
periências válidas” que, segundo Walter Benja- transformados em porcos, também estes salvos pelo
min, constituem uma das razões de ser das au- herói (HOMERO, 1996, p. 118-122). O mesmo se
tênticas narrativas. dá no embate com a morte ou com as forças caó-
ticas da natureza, expresso em episódios como os
da passagem pelo Hades, pela ilha do Cíclope e
2. O mundo e o lar, o caos e o cosmos pelos rochedos de Cila e Caribdis: são experiênci-
as válidas em si mesmas, inclusive em seu aspecto
terrífico, mas que devem permitir o retorno do herói
Há uma ambigüidade fulcral na viagem
ao universo da ordem doméstica.
de retorno de Odisseu a Ítaca, principal assunto
Há, portanto, no âmago desse duplo im-
da Odisséia: de um lado as saudades que o herói
pulso, uma unidade entre a vida cotidiana, ou
tem do lar e de outro seu anseio por viver mais
seja, a vida em Ítaca, e a vida no mundo mais
aventuras, acumulando histórias e presentes e, ao
amplo em que se dão as aventuras. Essa unidade
mesmo tempo, vencendo as provações que lhes
é constitutiva do espírito da epopéia clássica, e
são impostas pelos deuses. Mas essa oposição,
se estabelece nos vários níveis do mundo homé-
como todas as que informam o mundo homérico,
rico, inclusive no plano da relação dos homens
deve de fato ser posta em termos de ambigüidade:
com os deuses. Não que cotidiano e aventuras se
de pólos, ou, antes, elementos que, embora sem
equivalham, mas de certa forma se complemen-
excluir a conflituosidade, convivem de forma es-
tam, assim como, num outro plano, homens e
sencialmente não-contraditória, ou seja, alheia a
deuses não são a mesma coisa, mas se relacio-
qualquer cisão nos fundamentos ideológicos e
nam a todo momento e têm diversos traços em
existenciais que os sustentam:7 Odisseu é tão ca-
comum. Assim, se por um lado Odisseu não gos-
paz de derramar lágrimas de saudades por seu “so-
tava “da lavoura e do trabalho caseiro, que sus-
lar de alto teto”, de declarar comovido que “eu cá
tentam prole magnífica”, preferindo “os barcos
não consigo ver nada mais doce que a terra da
movidos a remo, as pelejas, as lanças polidas e as
gente” quanto de contar que passou um ano intei-
flechas, coisas lôbregas que aos outros causam
ro banqueteando-se “de carne abundante e de vi-
horror” (HOMERO, 1996, p. 167), por outro não
nho suave” à mesa e compartilhando do leito de
cessa de fazer paralelos entre suas ações e de
Circe (HOMERO, 1996, p. 101).
seus homens com aqueles ou outros trabalhos
Entretanto, se não é conveniente que se
cotidianos, como quando compara sua alegria pela
retorne à casa sem ter acumulado aventuras e ex-
chegada do pôr-do-sol e, em vista disso, da hora
periências, a idéia do não-retorno é inaceitável.
de seu retorno a Ítaca sob a escolta dos feácios,
Diversos episódios, como o das sereias, dos lotó-
com a alegria do lavrador diante do “declínio da
fagos e o da própria Circe dão uma demonstração
luz do sol, que traz a hora da ceia” depois “que a
clara disso. Assim, quando passa pela ilha das se-
junta de bois cor de vinho puxou a ajustada char-
reias, Odisseu não se priva de se deleitar com seu
rua o dia inteiro no alqueire” (idem, 152-153). No
canto, mas toma todas as precauções necessárias,
mundo homérico, as ações humanas se refletem
recomendadas por Circe, para que tanto ele quan-
mutuamente (o que não significa que anulem sua
to seus guerreiros estejam a salvo de seu poder
diversidade): cada ato comunica seu sentido ple-
encantatório (HOMERO, 1996, p. 144-145). Quan-
no, sua dignidade humana, à totalidade da vida;
do, depois de provar do fruto do loto, alguns guer-
e é essa dignidade que é celebrada no mito, no
reiros já não querem “trazer notícias nem regres-
qual a própria ordem cósmica instituída pela so-
sar, mas sim ficar ali com os lotófogos, sustentan-
berania dos deuses olímpicos e os atos destes
do-se de loto, sem pensar no regresso”, o herói os
tornam-se espelhos da realidade humana (o que mata Eupites, líder dos itacenses em busca de vin-
não significa que se reduzam a ela). gança pelo massacre dos pretendentes, pouco an-
Daí a Odisséia, embora constituindo prin- tes levado a cabo por Odisseu. Em seguida, este e
cipalmente o relato das aventuras de um único seu filho, Telêmaco, lançam-se à batalha, enquan-
homem, ser um canto coletivo: as glórias e pro- to Atena tenta contê-la. O herói, no entanto, reúne
vações do herói são também glórias e provações suas forças e, com um “brado terrível”, arremete
dos aqueus. E daí sua aventura se revestir, nota- “como uma águia de alto vôo” contra seus adver-
damente no final, de um sentido a que, com o sários. Mas então o próprio Zeus intervém para
perdão do anacronismo, 8 se pode denominar evitar “uma guerra funesta para ambos os lados” e
político. O retorno de Odisseu não está relacio- a batalha é definitivamente suspensa, selando-se
nado apenas à necessidade de matar suas sauda- “um juramento de paz para o futuro” entre os con-
des, mas, sobretudo, à de restaurar a ordem em tendores (HOMERO, 1996, p. 288-289.). Assim, os
Ítaca; e isso implica não só em expulsar os “arro- gestos de Laertes, Odisseu e Telêmaco celebram a
gantes pretendentes” à mão de Penélope de sua vitória da tradição e asseguram sua continuidade
própria casa como também em restituir o respei- entre as gerações; o desafio de Odisseu ao apelo
to às tradições em toda a ilha. A imagem mais de Atena reafirma a restituição de sua autoridade
clara do desprezo que ameaça envolver essas tra- na ilha; quanto à intervenção de Zeus, longe de
dições é o debate, travado na Assembléia convo- constituir um índice negativo para o herói – prova
cada por Telêmaco para expulsar os intrusos da disso é sua alegria após a advertência divina –,
casa de seu pai, entre “o bravo ancião Haliterses, sinaliza que seu objetivo já foi cumprido e a or-
(...), que sobrepujava os coevos na ciência dos dem plenamente restaurada, e que, portanto, não
augúrios e emissão de vaticínios” e o pretenden- é preciso ir mais longe.
te Eurímaco. Interpretando a luta e a morte de Nada disso, porém, teria sido possível sem
duas águias nos céus de Ítaca, o ancião vaticina o que Odisseu tivesse mais uma vez conquistado o
retorno de Odisseu e a destruição dos preten- reconhecimento por sua bravura em suas aventu-
dentes, tentando convencê-los a deixar o lar do ras. E, ao final da epopéia, o herói aguarda ainda
herói. Haliterses é, porém, rechaçado por Eurí- novas aventuras, mas também um novo retorno,
maco, que se diz mais capaz de interpretar os para, num dia indeterminado, morrer e ser sepul-
augúrios e lhe faz uma outra “predição”: tado em sua ilha após eternizar seu nome, e o de
seu povo, entre os homens e os deuses.
se tu, apesar de teu velho e abundante saber,
excitares este mocinho à cólera com teus con-
selhos, em nada poderá fazer a estes homens, 3. O “Pequod”: uma viagem sem volta
e a ti, velho, aplicaremos uma multa que te
doerá na alma pagar e duro será teu sofri-
mento (HOMERO, 1996, p. 23.). Diversas passagens de Moby Dick podem
fornecer contrapontos quase exatos aos temas e
Pouco depois, sob as exortações de ou- ao espírito da Odisséia. É claro que não reside aí
tro pretendente, a Assembléia se dissolve. É esta qualquer intencionalidade de Melville nesse senti-
situação, em que jovens ambiciosos e inexperien- do, pois, a despeito dele obviamente conhecer
tes pretendem sobrepujar quase pela força os si- Homero e realmente buscar fazer de seu romance
nais divinos e a sabedoria dos anciões, e, portan- uma espécie de epopéia, esses contrapontos, que
to, em que a unidade mítico-política do mundo naturalmente pressupõem pontos de contato, di-
está ameaçada de se romper, que terá fim com o zem respeito menos a semelhanças ou diferenças
retorno de Odisseu. Há no final da Odisséia uma de episódios e personagens do que a identidades
espécie de ritual de gestos paradigmáticos, que conflituosas de raízes mais profundas. Ainda que
parecem refletir a imagem dos vários níveis em seja inevitável comparar o capitão Acab9 a Odis-
que aquela unidade é reafirmada ou restaurada. O seu, e seja por meio dessa comparação que, de
primeiro desses gestos é o do pai de Odisseu, o fato, as diferenças que queremos assinalar fiquem
velho Laertes, que, revigorado em suas energias mais nítidas, não é absolutamente no plano da
perdidas na ausência do filho e com a devida ins- composição dos personagens que residem tais ra-
piração divina de Atena, arremessa a lança que ízes. Elas nascem da própria relação do “impulso
épico” que imprime força à narrativa com o solo 1972, p. 13). Quanto ao mar, e à água de um modo
do mundo narrado. Aliás, a palavra “solo”, aqui, já geral, Ismael lhes dedica as próximas páginas, pro-
nos remete ao centro da questão. Pois é justamen- curando comprovar a grandeza de seu mistério,
te de uma oposição entre o mar e a terra que se numa extensa argumentação que termina assim:
nutre aquele impulso, como testemunham as pri-
meiras palavras do narrador-personagem (não pro- Por que os antigos persas consideravam sa-
priamente protagonista, mas também pouco mais grado o mar? Por que lhe atribuíam os gregos
do que um mero observador) Ismael: um deus especial, o próprio irmão de Jove?
Por certo tudo isso não deixa de ter sentido.
Chamai-me Ismael. Faz alguns anos – não E ainda é mais profundo o sentido daquela
importa quantos, precisamente –, tendo na história de Narciso, que, por não poder pegar
bolsa escasso ou nenhum dinheiro e nada que a imagem, atormentadora e suave, que ele
particularmente me interessasse em terra, via na fonte, mergulhou nela e afogou-se. Mas
achei que devia velejar um pouco e ver a parte essa imagem, nós mesmos a vemos em todos
aquosa do mundo. É um hábito que eu te- os rios e oceanos. É a imagem do inagarrável
nho, para acabar com o esplim (spleen) e re- fantasma da vida; e esta é a chave de tudo
gular a circulação. Sempre que começo a fi- (MELVILLE, 1972, p. 27.).
car austero; sempre que é um novembro
úmido e chuvoso em minha alma; sempre que Dessa concessão ao mar de um sentido
dou comigo a parar involuntariamente diante singularíssimo, por vezes mesmo metafísico, é que
de empresas funerárias e a cerrar fila em cada nascerá a peculiaridade da “celebração épica” de
enterro que encontro; e especialmente sem- Moby Dick, uma celebração fundada justamente
pre que minha hipocondria adquire tal domí- na demarcação de um espaço de exceção, na rei-
nio sobre mim que é preciso um sólido prin- vindicação de uma espécie de privilégio. Assim,
cípio moral para impedir-me de sair delibera- por exemplo, o narrador reserva um capítulo in-
damente para a rua e metodicamente surrar teiro, intitulado “O advogado”, para comprovar a
as pessoas – então acho que está na hora de
dignidade da atividade baleeira; mais do que rea-
ir para o mar o mais depressa possível (MEL-
VILLE, 1972, p. 25.).
lizar tal objetivo, porém, ele culmina por investir
essa atividade de um sentido quase absoluto, ven-
Como se vê, o mundo de origem, o mun- do-a não apenas como algo grandioso, mas como
do social, das convenções, e o espaço das aventu- uma espécie de sucedâneo privilegiado da vida:
ras estabelecem aqui uma relação radicalmente
Não há dignidade na profissão de baleeiro? A
diferente da que se dava na Odisséia, uma relação
dignidade de nossa ocupação o próprio céu a
que não pode mais ser compreendida em termos atesta. (...) Conheço um homem que, em toda
de ambigüidade, e sim de contradição. O “mundo a vida, apanhou trezentos e cinqüenta baleias.
terrestre” é descrito como um território estagnado, Considero esse homem mais digno de honras
cujos habitantes vivem uma espécie de morte em do que aquele grande capitão da antiguidade
vida; e o fato de um pouco adiante Ismael dizer que se vangloriava de ter tomado o mesmo
que “Quase todos os homens (...), qualquer que número de cidades fortificadas.
seja a sua classe, uma vez ou outra compartilham Quanto a mim, se por alguma contingência,
comigo quase que os mesmos sentimentos para ainda tiver algo de excelente escondido em
com o oceano” não atenua em nada essa situação: meu íntimo; se existe alguma reputação neste
antes a agrava, na medida em que universaliza o pequeno, mas altamente silencioso mundo, à
mal-estar. Imagem ainda mais evidente desse mal- qual, não imerecidamente, eu possa aspirar;
(...) atribuo toda a honra e toda glória disso à
estar é aquela contida na figura do “sub-sub-bibli-
atividade baleeira: pois num navio baleeiro tive
otecário” que fornecera ao narrador as citações as minhas Universidades de Yale e Harvard.
dispostas no início do livro, personagem que, ape- (MELVILLE, 1972, p. 146-147; à exceção da
sar de “diligente, cavalador e laborioso”, é defini- primeira frase, os demais grifos sãos nossos.)
do como um ser pertencente “àquela tribo incurá-
vel e pálida que vinho algum deste mundo jamais E se Ismael reserva elogios à cidade, ou
aquecerá e para a qual mesmo o branco xerez melhor, ao porto e aos homens de Nantucket, é
seria excessivamente rosado e forte” (MELVILLE,
tão somente porque este se trata de um lugar que, rói de Homero zela por seus companheiros e pro-
segundo uma anedota contada com indisfarçável cura conduzi-los consigo para casa, Acab leva a
orgulho, o mar “fecha, cinge, cerca, envolve e ilha todos, e não inconscientemente, para uma viagem
tão completamente, que em suas próprias cadei- sem volta. E ainda que os caprichos (mas não ob-
ras e mesas poderão encontrar-se de vez em quan- sessões) de Odisseu sejam responsáveis – princi-
do pequenos mariscos grudados”, um lugar cujos palmente no episódio do Cíclope – pela morte de
homens “residem e se amotinam no mar (...). Lá pelo menos alguns guerreiros, tampouco aí o equi-
está sua atividade, que um dilúvio de Noé não líbrio se rompe: não só Odisseu se redime, na
interromperia, embora submergisse os milhões de medida em que “excogitava a melhor maneira
habitantes da China” (MELVILLE, 1972, p. 92-94; possível de salvar meus camaradas e a mim pró-
grifo do autor). prio da morte”, como os sobreviventes prosseguem
Tudo isso é bastante estranho ao univer- a viagem “de coração pesaroso, mas contentes de
so da epopéia grega. Afinal, para Odisseu não há escapar à morte, embora com a perda de compa-
nenhum problema se “os gostos não são iguais” nheiros queridos” (HOMERO, 1996, p. 110). É,
(HOMERO, 1996, p. 167): ainda que suas glórias sobretudo essa possibilidade sempre renovada de
sejam maiores que as de quaisquer itacenses, elas se reinstaurar um equilíbrio, ora de um, ora de
são extensivas a todos eles; e o mar, a despeito de outro lado, que está definitivamente excluída de
todos os seus mistérios e desafios, é como que um Moby Dick: aqui a lei predominante não é a das
prolongamento da vida cotidiana, enquanto para compensações, mas das oposições inconciliáveis.
Ismael as glórias nele conquistadas e a vida do Talvez a viagem de Telêmaco em busca
“silencioso mundo” cotidiano estão fundamental- do pai constitua o exemplo mais esclarecedor do
mente dissociadas. No entanto, já vimos que a “cha- sentido da experiência no poema de Homero. Trata-
ve” de Ismael é uma chave partida, pois tampouco se de uma viagem aparentemente infrutífera, na
ela pode deixar de refletir a cisão entre a existên- medida em que Telêmaco não chega sequer a obter
cia e seus fundamentos existenciais, que ele mes- notícias concretas de Odisseu. No entanto, sua
mo reconhece na vida moderna. Como deixa en- breve aventura é bem sucedida no sentido de que,
trever a relação estabelecida com o mito de Narci- através dela, ele acumula honras e presentes, e,
so, também o mar está ligado, em Moby Dick, a sobretudo, começa desde já a glorificar seu nome.
uma pulsão de morte; e mesmo refletida nele, a Para Acab, porém, não importam honras, riquezas
vida continua sendo fantasmagórica, “inagarrável”. nem o apreço dos homens, mas tão somente al-
Daí que, mesmo em alto mar, aquele cançar seu objetivo. Ainda que o arrebatem sau-
“solo” não se desvaneça, e é dessa indissociabili- dades do lar distante – afinal, ele acabara de se
dade que nascem as tensões fundamentais de Moby casar e ter um filho, quando foi mutilado pela ba-
Dick, e com elas a condição trágica de seu verda- leia –, jamais isso seria suficiente para demovê-lo
deiro protagonista: o velho capitão Acab. É possí- desse objetivo. Em uma determinada passagem,
vel ver Acab quase como uma antítese dos heróis transcorrida num dia cuja beleza o comove, o ca-
homéricos. Imagem da misantropia e do desprezo pitão resume suas desventuras para o imediato Star-
pelo mundo, a ponto de não travar conhecimento buck: fala no “isolamento murado, de cidade forti-
com os próprios marinheiros uma única vez antes ficada” que tem sido sua vida, e também sobre a
da partida do navio, o comandante do “Pequod” é “juvenil esposa”, que deixara como a “uma viúva
movido exclusivamente por um desejo obsessivo: com o marido vivo” para se dedicar, com “loucu-
matar Moby Dick, o grande cachalote branco que ra, frenesi, o sangue a ferver e a testa a fumegar”,
lhe decepara uma perna. Tal “obsessão monoma- à caça de Moby Dick, terminando, num acesso de
níaca” é, evidentemente, diametralmente oposta comoção, por pedir ao imediato que se poupe do
ao espírito da Odisséia. É certo que o herói de enfrentamento com a baleia; ao que este lhe res-
Homero leva sua vingança contra os pretendentes ponde:
até o fim, mas nem por isso se apressa em consu-
má-la, nem deixa de participar dos banquetes de –– Oh, meu capitão, meu capitão, nobre alma!
seus inimigos, agüentando “de coração paciente grande e velho coração, apesar de tudo! por
os projéteis e insultos em seu próprio solar” (HO- que tem qualquer homem de dar caça a esse
MERO, 1996, p. 280). Além disso, enquanto o he- odiado peixe? Vem comigo! Fujamos destas
águas mortais! vamos para casa! Mulher e filho, paz de extrair delas algum aprendizado –, nem os
também Starbuck os possui, mulher e filho de sentidos mais profundos que Melville buscou im-
sua juventude fraternal, sorória, companheira primir a sua obra nem aqueles que talvez escapem
de folguedos, exatamente como os teus, senhor, a sua própria intenção podem ser desvelados sem
são a mulher e o filho de tua velhice amante, antes nos determos sobre aquele elemento que
ardente, paternal! Embora! vamos embora! Dei-
constitui o núcleo simbólico do romance: a pró-
xa-me alterar a rota agora mesmo! Que anima-
dos, que alegres, ó meu capitão, haveríamos de
pria Moby Dick.
rodar em nosso caminho para ver a velha Nan-
tucket de novo! Acho, senhor, que há certos
dias suaves e azuis como este em Nantucket! 4. Moby Dick e o “caos enfeitiçado”
(MELVILLE, 1972, p. 631-632.).
De todas as interpretações passíveis de
Acab, porém, não pode atender ao apelo serem extraídas desse “personagem” formidável
de seu companheiro; num gesto de impotência, que é Moby Dick, sem dúvida a mais simplista é
agitando-se “como uma árvore frutífera seca”, ele aquela, familiar às apostilas didáticas,10 que o vê
se lamenta: como a encarnação do Mal. Não que tal leitura
seja totalmente desprovida de fundamento: afinal,
–– Que é, que coisa indizível, inescrutável, ela corresponde à visão que o próprio Acab tem
sobrenatural; que falacioso, oculto senhor e da baleia. Como explica Ismael, o capitão “trans-
amo, e cruel, desumano imperador dispõe de feriu delirantemente” para ela a idéia daquela “im-
mim (...)? Sou eu, ó Deus, ou quem é que
palpável malignidade que sempre existiu”: “todo
ergue este braço? Pelo céu, homem, somos
girados e regirados neste mundo, como aquele
o mal, para o doido Acab, personificava-se visivel-
cabrestante, e o Destino é a alavanca... (MEL- mente e podia praticamente ser atingido em Moby
VILLE, 1972, p. 631-632.). Dick” (MELVILLE, 1972, p. 228-229). Mas, como
enfatiza o próprio narrador, isso constitui somente
Passagens como essas revelam o quanto “o que o cachalote branco representava para Acab”,
a “epopéia” de Melville é atravessada por um sen- e não para ele próprio e também, portanto, na
tido trágico. Na verdade, Acab não chega a ser totalidade da obra, já que o que está em jogo não
portador de um “espírito aventureiro”. Tal espírito é apenas a visão de Acab (MELVILLE, 1972, p. 233).
é encarnado, sobretudo pelo próprio narrador, Is- Os sentidos que Ismael atribui a Moby Dick são
mael, além do selvagem Quiqueg. O paradoxo, muito mais complexos, e não há dúvida de que
no entanto, consiste justamente no fato de que sem eles as dimensões mais profundas da tragici-
somente Acab tem magnitude suficiente para alçar dade de Acab não podem ser compreendidas.
a relação dos homens com o universo a que Mel- A “interpretação” do narrador gira prin-
ville quer dar forma a uma grandiosidade épica – cipalmente em torno de uma característica da
uma grandiosidade, portanto, que só pode ser si- baleia que lhe desperta um “vago, inominável
multânea e paradoxalmente trágica. Embora seja horror”: sua brancura, à qual ele dedica um capí-
Ismael, mais do que o próprio Acab, quem enxer- tulo inteiro. Ao longo desse capítulo, Ismael pro-
gue uma cisão irreconciliável entre o homem e o cura expor os paradoxos que ele vê associados à
mundo, ele não mergulha nela plenamente, pois cor branca. Apesar de ser símbolo e expressão
em nada seu espírito aventureiro o predispõe a privilegiada da beleza, da alegria, de tudo que “é
isso: antes, lhe serve de alívio, como se reconhece doce, e honroso, e sublime”, e da própria “pure-
no parágrafo inicial da narrativa; e, afinal, confor- za e da força divinas”, do “próprio véu da Deida-
me atesta outro trecho já citado, o jovem mari- de Cristã”, Ismael nos alerta que “esconde-se algo
nheiro ainda aspira a “alguma reputação neste de enganador na mais secreta idéia dessa cor, a
pequeno, mas altamente silencioso mundo”. qual traz mais pânico à alma do que a vermelhi-
Mas se Acab, ele próprio cindido no cor- dão que assusta no sangue”. Mas em que consis-
po e na alma, é o único capaz de mergulhar nas te essa natureza terrivelmente enganadora, conti-
profundezas das contradições desse mundo, en- da “na mais secreta idéia dessa cor”? É a interro-
quanto Ismael é, sobretudo, o “aedo” dessas con- gação a que o próprio narrador tenta responder
tradições – mas também, quem sabe, aquele ca- ao final do capítulo:
Será porque por sua indefinição ele [o “bran- as cores” –, símbolo tanto do “universo paralisa-
cor”] representa os vazios e imensidades sem do” quanto do “próprio véu da Deidade Cristã”.
coração do universo, e assim nos apunhala Ao mesmo tempo, a visão de Acab não pode ser
por trás com o pensamento da aniquilação, simplesmente descartada dessa equação, onde, no
quando contemplamos os brancos abismos fim das contas, parecem conviver elementos apa-
da Via-Láctea? Ou será porque, no fundo, o
rentemente díspares e inconciliáveis. De um lado,
branco não é bem uma cor, mas a ausência
visível da cor, e ao mesmo tempo a suma de
aqueles de fundo teológico ou ligados a uma me-
todas as cores; será por isso que há uma bran- tafísica da presença: o Destino, a Divindade e
cura muda e cheia de sentido numa paisa- mesmo, a despeito de sua carga negativa, o Mal;
gem nevosa – um descolorido, onicolor ateís- de outro, um niilismo absoluto, ligado a um pro-
mo ante o qual recuamos? E quando conside- cesso de desencantamento radical e que acaba
ramos aquela outra teoria dos filósofos da na- configurando uma espécie de “metafísica da au-
tureza, segundo a qual todas as outras cores sência”. Elementos inconciliáveis, mas estranha-
terrenas – toda decoração imponente ou en- mente intercambiáveis, surgindo-nos como que
cantadora –, os doces tons dos céus e flores- embaralhados. Nossa hipótese, porém, é que uma
tas crepusculares; sim, e o dourado veludo unidade dialética subjaz a esse “embaralhamen-
das borboletas e as faces de borboleta das to”: uma dialética cuja síntese é sempre incomple-
mocinhas, tudo isso não passa de sutis ilu-
ta e cujos termos de fato permanecem inconciliá-
sões, não inerentes, na verdade, às substânci-
as, mas apenas impostas de fora, de modo tal
veis, mas que nem por isso deixam de constituir
que toda a natureza deificada se pinta como uma unidade, certamente contraditória, mas não
a prostituta, cujas seduções recobrem apenas incoerente. Mas em que se constituiria ela, afinal?
o ossuário interior (...) – ao ponderarmos tudo Uma primorosa passagem localizada logo
isso, o universo paralisado estende-se à nos- no terceiro capítulo do romance – quando Ismael,
sa frente como um leproso (...). De todas es- chegando a Nantucket à procura de trabalho num
sas coisas o cachalote albino era o símbolo. baleeiro, aloja-se numa certa “Estalagem da Ba-
Admirais-vos pois da furiosa caçada? (MELVI- leia” – talvez possa nos indicar o caminho para a
LLE, 1972, p. 243.). resposta. Nessa sua espécie de “primeira descida”
ao mundo da caça à baleia, Ismael se depara, qua-
Como se vê, aqui a simbologia de Moby se imediatamente, com
Dick vai além daqueles termos definidos pela visão
de Acab. Agora ela exprime o próprio paradoxo da um vasto quadro a óleo, tão cabalmente sujo
existência, o medo da aniquilação absoluta, da dis- de fumaça e em todos os aspectos tão desfi-
solução do Ser no Nada, no “ossuário interior” re- gurado, que, considerando-se a insuficiência
coberto pelas cores ilusórias da existência. Nesse das luzes cruzadas sob as quais era visto, ape-
sentido, a busca de Acab não remete apenas ao nas por meio de um estudo diligente e de
embate com o Mal, mas toca no niilismo absoluto. uma série de sistemáticas inspeções, bem
Afinal, mesmo o reino de Lúcifer não significa a como de cuidadosas perguntas aos vizinhos,
aniquilação total. É somente num contexto de crise se poderia de algum modo atinar com o seu
sentido. Tão inexplicável amontoado de es-
de uma visão de mundo onde as forças ordenado-
curos e sombreados quase nos fazia pensar, à
ras da existência sobrepõem-se de forma absoluta primeira vista, que algum pintor, ambicioso e
às caóticas – e não mais convivem com elas numa jovem, no tempo das bruxas da Nova Ingla-
incessante dialética –, ou seja, a visão de mundo da terra, havia tentado representar o caos enfei-
teologia cristã, que esse movimento pode ser com- tiçado. Mas, à força de muita e severa con-
preendido. Ameaçada de ser deposta de sua sobe- templação e de repetidas ponderações, e es-
rania absoluta, a ordem divina deixa entrever por pecialmente abrindo a janelinha do vestíbu-
trás de si não apenas o caos ou o Mal, que, despro- lo, chegava-se por fim à conclusão de que tal
vidos da essencialidade que lhes conferia essa mes- idéia, embora extravagante, podia não ser de
ma ordem, agora confinam com o Nada. todo descabida (MELVILLE, 1972, p. 35-36.).
Mas a brancura da baleia é síntese, simul-
taneamente, do Nada e do Absoluto – “a ausência “O caos enfeitiçado”:11 por mais gratuita
visível da cor, e ao mesmo tempo a suma de todas que essa expressão possa parecer, ela se insere
num episódio cuja dimensão simbólica está muito
e provavelmente fazia tempo que chegara à Essa fantasmagoria, aliás, Acab terminará
sábia conclusão de que a religião de um ho- por impor à tripulação do navio:
mem é uma coisa, e a vida prática muito dife-
rente. Este mundo paga dividendos(MELVIL- Nesse intervalo prenunciador, também toda
LE, 1972, p. 106.). graça, postiça ou natural, despaareceu. Stubb
não mais se esforçou por despertar um sorri-
Também aqui é inevitável a comparação so; Starbuck não mais se esforçou por repri-
com a epopéia homérica, onde as glórias dos he- mir algum. Alegria e tristeza, esperança e te-
róis recebiam sua justa recompensa tanto na apro- mor pareciam reduzir-se igualmente ao mais
vação dos deuses quanto nas riquezas ofertadas fino pó e triturar-se, naquelas circunstâncias,
pelos homens. Note-se ainda que, no fim das con- no gral abarrotado da alma de aço de Acab.
tas, a contradição afeta o discurso do próprio nar- Como autômatos, moviam-se mudamente pelo
rador. convés, sempre conscientes de que o olhar
despótico do velho estava sobre eles. (MEL-
No entanto, é óbvio que essa condição
VILLE, 1972, p. 622).
problemática não é privilégio dos caçadores de
baleia. Afinal, a mesma perda do sentido intrínse-
Também esses homens parecem mortos-
co a sua práxis, guardadas as devidas glórias e
vivos, cerrando fila para seus próprios enterros.
proporções, também marca aquele “pobre-diabo
Assim, por trás do universo aparentemente
de sub-sub-sub bibliotecário, diligente, cavalador
fechado do “Pequod”, há todo um contexto social
e laborioso”, a quem Ismael faz a seguinte exorta-
e histórico, onde qualquer unidade entre o ho-
ção: “Desisti, sub-subs! Pois quanto maiores sejam
mem e o mundo parece ausente, onde todos os
os vosso esforços para agradar ao mundo, tanto
valores parecem volúveis, inconsistentes, e a idéia
mais ficareis para sempre sem agradecimento!”
de que uma ordem transcendente possa estar por
(MELVILLE, 1972, p. 13.). E não é esta, de um cer-
trás deles, a guiar os desígnios humanos, torna-se
to modo, a condição do próprio Melville, que cla-
cada vez menos plausível. São as contradições
ma pelo reconhecimento de um “silencioso mun-
desse contexto de desencanto e desencantamento
do” onde as narrativas, a experiência, o heroísmo
a que Melville tentou dar forma artística numa
e a cultura perdem progressivamente o valor? Ali-
metafísica peculiar: a metafísica de um “caos en-
ás, o silêncio e aquela “queda de cotação” da ex-
feitiçado”. O que distingue Acab dos demais habi-
periência mais tarde apontada por Benjamin são
tantes desse mundo é que o velho capitão não só
características que ligam todos os níveis desse
não se dispôs a suportar sua indiferença como,
mundo. Eles estão presentes, por exemplo, no gru-
sobretudo, desistiu de clamar pelo seu reconheci-
po de velhos pescadores aos quais Ismael se jun-
mento, voltando-se para o delírio do Absoluto, em
tara na Estalagem da Baleia, na esperança de “ou-
busca do “inagarrável fantasma da vida”. Mas ao
vir boas histórias sobre pesca de baleia”, mas que,
fazer do Absoluto seu único alvo, Acab se privou
para sua surpresa, conservaram-se em “profundo
dos últimos vínculos que o ligavam à vida. Por
silêncio”; ou no cerrado mutismo em que se dão
isso, tudo aquilo que na epopéia constitui prova
as refeições dos oficiais no camarote de Acab (MEL-
de apreço pela vida e pelas ações humanas é radi-
VILLE, 1972, p. 57; 188-189). E se aquele universo
calmente excluído de seus atos. Um exemplo dra-
esboçado por Ismael no início do livro parecia ha-
mático é o encontro do “Pequod” com o baleeiro
bitado por mortos-vivos, não é diferente a situa-
“Raquel”, cujo capitão assistira o bote do filho ser
ção do capitão do “Pequod”:
arrastado por Moby Dick no dia anterior. Logo de
início, o narrador – que, capítulos antes, havia
E, se tivésseis observado o rosto de Acab na-
quela noite, pensaríeis que também nele duas
descrito um “gam”, ou seja, um “encontro social
coisas estavam-se guerreando. Ao passo que de dois (ou mais) navios baleeiros” – sublinha que,
sua perna viva provocava vivas ressonâncias embora conhecidos, “nenhuma saudação foi tro-
no convés, cada passo de sua perna morta cada” entre os velhos pescadores (MELVILLE, 1972,
soava como uma pancada em caixão de de- p. 296). E quando o capitão do “Raquel” implora
funto. O velho caminhava sobre vida e morte ao do “Pequod” que o ajude a encontrar o filho e
(MELVILLE, 1972, p. 287.). os demais marujos desaparecidos, Acab mantém-
se “como uma bigorna, que recebe todos os gol-
pes sem o mínimo tremor” (MELVILLE, 1972, p. o dinamismo e a multiplicidade da vida que o olhar
616-618). Desnecessário sublinhar o contraste com de Ismael se dirige. Aquela vida intensa e feroz no
as cerimônias de acolhimento na Odisséia quan- interior do “Pequod” lhe fornece matéria para um
do, por exemplo, Telêmaco viaja em busca do pai. dos mais curiosos capítulos de Moby Dick, aquele
No universo de Moby Dick, a práxis não em que um verdadeiro carnaval se celebra no na-
une, mas aparta os homens. E apartado da vida, ten- vio sob o ritmo do pandeiro do pequeno Semen-
do como único horizonte um Absoluto que se con- te-de-Maçã (personagem, aliás, mais tarde reduzi-
funde com a aniquilação, Acab não poderia ter outro do a um sinistro vulto de Acab). Nesse capítulo,13
destino senão o completo e definitivo silenciamento: o narrador cede lugar a marujos das nacionalida-
des mais díspares – uma tripulação, como ele dirá
O arpão foi atirado; a baleia ferida voou para mais adiante, “constituída principalmente de mes-
frente; com velocidade ignescente a arpoeira tiços renegados, de párias e canibais” (MELVILLE,
correu pela ranhura; correu emaranhada. Acab 1972, p. 232) –, tentando conferir particularidade
inclinou-se para desembaraçá-la; conseguiu- cultural a seus discursos. Por mais caricatural que
o; mas a volta que voava apanhou-o pelo seja o resultado, ele não elide o fato de que Moby
pescoço, e, calado como os mudos turcos
Dick é também uma espécie de epopéia dialógica,
estrangulam sua vítima, foi arremessado do
bote, antes que a equipagem percebesse que
onde o narrador, ao longo de todo o livro, dá voz
ele se tinha ido. Logo a seguir o pesado laço a dezenas de “guerreiros” que participam dela.
da extremidade final da arpoeira voou da tina São esses “canibais”, esses “nobres selva-
completamente vazia, derrubou um remeiro, gens” (MELVILLE, 1972, p. 191) – os arpoadores
e atingindo o mar desapareceu em suas pro- do “Pequod” –, que rompem com o obsessivo si-
fundezas (MELVILLE, 1972, p. 666.). lêncio das refeições no camarote de Acab, comen-
do “como lordes”, mastigando “o alimento com
Mas se a morte silenciosa de Acab e o tanto gosto, que isso proclamava que estavam à
naufrágio do “Pequod” são as últimas cenas do mesa” (MELVILLE, 1972, p. 190). E é justamente, e
drama de Moby Dick, não o são de sua epopéia. um tanto paradoxalmente, um desses canibais o
Ismael, aquele que, como o servo de Jó, escapou personagem que mais se aproxima, em espírito,
para contar a história, nos lembra que o olhar de de Odisseu em todo o romance de Melville: o ar-
Acab não é o único a incindir sobre esse mar tu- poador e empalhador de cabeças Quiqueg, com
multuoso. Este é um olhar que reduz tudo a si quem Ismael partilha sua cama na Estalagem da
mesmo e a suas próprias obsessões – o que o pró- Baleia e de quem se faz, à maneira de Aquiles e
prio Acab reconhece, por exemplo em sua “inter- Pátroclo na Ilíada, “amigo íntimo”. Somente Qui-
pretação” da gravura de um dobrão de ouro que queg, do alto de sua inocência pagã, alia o espíri-
ele mesmo pregara no mastro do navio como re- to aventureiro, o heroísmo, a nobreza ingênua e o
compensa para o marinheiro que primeiro avistas- vigor físico de um herói homérico.
se Moby Dick: É com Quiqueg que aquele “descentra-
mento” espiritual a que tampouco Ismael está imu-
“Há sempre algo de egoístico nos cumes e ne pode tomar, para este, um sentido positivo, as-
torres, e em todas as outras coisas imponen- sumindo a forma de possibilidade de compreen-
tes e altaneiras; vêde aqui: três píncaros tão são do outro. É claro que a configuração dessa
soberbos como Lúcifer. A firme torre é Acab; alteridade não é propriamente uma aula de antro-
o vulcão é Acab; a ave corajosa, intrépida e pologia: pelo contrário, Quiqueg é marcadamente
triunfante é Acab, também ela é Acab; todos
ideologizado; no entanto, há sem dúvida – ainda
são Acab...” (MELVILLE, 1972, p. 510.).
mais em plena metade do século XIX – uma nova
disposição face ao outro contida num episódio
Se o “valente Perseu”, aquele “primeiro
como aquele em que Ismael aceita participar do
baleeiro”, não era “nenhum egoístico”, Acab é a
culto e oferecer pequenas “hecatombes” ao deus
própria imagem do egocentrismo.
Yojo (MELVILLE, 1972, p. 82); ou, mais ainda, na-
No entanto, ao olhar de Acab contrapõe-
quele em que o selvagem narra duas histórias que
se o do próprio narrador, que, não obstante mui-
mostram o quão relativas são as noções de ridícu-
tas vezes se confunda com o primeiro, certamente
lo em cada cultura (MELVILLE, 1972, p. 88-89).
alarga-se para muito além dele. É sobretudo para