Você está na página 1de 9
PREFACIO Nao convém ver a realidade tal como e1i so. (Paul Eluard) Basta falarmos de um objeto para nos acredi- larmos objetives. Mas, por nossa primeira escolha, © objeto nos designa mais do que o designamos, e © que julgamos nossos pensamentos fundamentais sio amitide confidéncias sobre a juventude de nosso espirito. As vezes nos manavilhamos diante de um objeto eleito; acumulamos as hipéteses e os devaneios; formamos assim convicgGes que tém a aparéncia de um saber. Mas a fonte inicial € impura: a evidéncia primeira ndo é uma verdade fundamental. De fato, a objetividade cientifica 56 é possivel se inicialmente rompemos com © objeto imediato, se recusamos « sedugio da primeira es- colha, se detemos ¢ refutamos os pensamentos que nascem da primeira observaglo, Toda objeti- vidade, devidamente verificada, desmente o pri- 2 A PSIGANALISE BO FOGO meiro contito com o objeto. Ela deve, em primei- ctimologia, pois o verbo, feito para cantar e secu- mente coincide com o pensamento. Longe se, 0 pensamento objetivo deve iro- nizir. Sem essa vigikineia malévola, nao assumire- mos jamais uma atitude verdacdeiramente objetiva. Quando se trite de estudar os homens, semelhan- tes, irmios, a simpati a base do método, Mas diante dlesse mundo inerte que nao vive nossa vida, que niio sofre nenhuma de nossas penas e nao exaltt nenhuma de nossas alcgrias, devemos deter todas as expansées, devemos escarnecer de nossi pessou. Os cixos dit poesia e da ciéncia sido a principio inversos. Tudo 0 que a filosofia pode esperar € tornar a poesia ¢ a ciéncia complemen- tares, uni-las como dois contririos bem-feitos. E preciso, portinto, opor 20 espirito poético expan- sivo o espirilo cientifico taciturne, para o qual a antipatia prévia ¢ uma sauddvel precaugao. Vamos estudar um problema em que a atitu- de objectiva jamais pade se izir, em que a se- dugao primeira é tio definitiva que deforma in- clusive os espiritos mais retos e os conduz sem- pre a0 uprisco poético onde os devaneios substi- tuem © pensamento, onde os poemus ocultam os teoremas. E 0 problema psicolégico colocado por nossas convicgSes sobre o fogo, Problema que nos parece tao circtamente psicolégico, que nio hesitamos em falar de uma psicanilise do fogo. PREFACIO 3 Desse problema, realmente primorclial, colo- cado a alma ingénua pelos fendmenos do fogo, a ciéncia contemporanea afastou-se quase comple- tamente. Os livros de Quimica, com o passar do tempo, viram os capitulos sobre o fogo tornarem- se cada vez mais curtos. E sio numerosos os livros modernos dessa disciplina nos quais buscariamos em vdo um estudo sobre o fogo e sobre a chama. O fogo ndo € mais um objeto cientifico. O fogo, objeto imediato relevante, objeto que se impde a uma escolha primitiva suplantando amplamente outros fendmenos, nao abre mais nenhuma pers- pectiva a um estudo cientifico, Parece-nos, entio, instrutivo, do ponto de vista psicolégica, acompia- nhar a inflagdo clesse valor fenomenoldgico € per- ceber de que modo um problema, que oprimiu durante séculos a pesquisa cientifica, viu-se de re- pente dividido ou despojado sem ter sido jamais resolvido. Quando perguntamos a pessoas cultas, cientistas inclusive, como fiz diversas vezes, “O que é 0 fogo?", recebemos respostas vagas ou tautolégicas que repetem inconscientemente as teorias filosGficas mais antigas e mais quimér A razio disso é que a questio foi colocada numa zona objetiva impura, em que se misturam as in- tuigGes pessoais e as experiéncias cientificas. Mostraremos, precisamente, que as intuigdes cdo fogo — talvez mais que qualquer outra — perma- necem presus a uma pesada tara, Levam a convic- cOes imediatas num problema que sé precisi de experiéncia e medidas 4 A PSIGANALISI! DO FOGO Num livro ja antigo’, tentamos descrever, a propésito dos fendmenos calorificos, um eixo bem determinado da objetivagio cientifica., Mos- tramos de que modo a geometria ¢ a algebra ce- deram pouco a pouco suas formas e seus princi- pios para canalizar a experiéncia numa via cienti- fica. E, agora, o ¢ixo inverso — nao mais o da objetivagao, mas o da subjetividade — que gosta- riamos de explorar para dar um exemplo das du- plas perspectivas que se poderiam atribuir a to- dos os problemas colocados pelo conhecimento de uma realidade particular, mesmo bem definida. Se temos razdo a propésito cla real implicagdo do sujeito e do objeto, caberia distinguir mais nitida- mente o homem pensativo ¢ o pensador, sem es- perar, toclavia, que essa distingao seja completa. Em todo caso, ¢ o homem pensativo que quere- mos estudar aqui, o homem pensativo junto a la-” reira, na solidio, quando o fogo é brilhante, como uma consciéncia da solidio, Teremos, en- tao, miltiplas ocasiGes de mostrar os perigos, para uma consciéncia cientifica, das impressoes primitivas, das aclesGes simpaticas, dos cdevancios indolentes. Poderemos facilmente observar o ob- servador, a fim de identificar bem os principios dé sa observacdo valorizada, ou, melhor dizendo, dessa observagio hipnotizada que é sempre a ob- servacdo do fogo. Enfim, esse estado de leve hip- notismo, cuja constdncia surpreendemos, é muito propicio a desencadear a investigagado. psicanaliti- ca, Basta um entardecer de inverno, 0 vento uo PREFAGIO 5 redor da casa, um fogo claro, para que uma alma dolorosa fale, ao mesmo tempo, de suas lembran- Gas € de suas penas: C'est a voix basse qu'on enchante Sous la cendre d'hiver Ce corur, pareil au feu couvert, Qui se consume et chante" Toulet Il Mas se nosso livro ¢ ici] quando o tomamos linha por linha, parece-nos verdadeiramente im- possivel fazer dele um conjunto bem ordenado. Um plano dos erros humanos é um empreendi- mento irrealizivel. Em particular, uma tare! como a nossa recusa o plano histérico. Com efei- to, as condi¢des antigas do devaneio nao sao eli- adas pela formagao cientifica contemporinea. © prdéprio cientista, quando abandona seu traba- Iho, retorna as valorizagSes primitivas. Seria inti portanto, descrever, na linha de uma histéria, um pensamento que niio cessa de contradizer os en- sinamentos da histéria cientifica. Ao contrario, de- dicaremos uma parte de nossos esforgos it mos- trar que o devaneio nio cessa de retomar os te- =F uma voz baixa que se encanta / Sob a cinza do inverno / © conigio, fogo encoherto, / Que se consonte ¢ Cinta, 6 A PSICANALISE DO FOGO mals primitives, ndo cessa de trabalhar como uma alma primitiva, a despeito do pensamento elabo- rido, contra a prépria instrugio das experiéncias cientificas, Também nao nos situaremos num perioco remoto, onde nos seria demasiado facil deserever a idolatria clo fogo. O que nos parece interessan- te é apenius constatar a secreta permanéncia des- sa idolatria. Por isso, quanto mais préximo de nés o documento que utilizarmos, tanto mais for- ga terd para demonstrar nossa tese. Na histor! esse documento permanente, vestigio de uma re- sisténcia 4 evolugiio psicoldgica, que persegui- mos: o homem velho na criangu, a crianga no ho- mem velho, o alquimista sob o engenheiro. Mas como, para nés, o passaclo é ignorfincia, como o devaneio é impoténcia, eis nosso objetivo: curar o espirito de suas felicidaces, arranca-lo do narci- sismo que a evidéncia primeira proporciona, dar- Ihe outras segurangas que nado a posse, outras forgas de convicgdo que nao o calor € o entusias- mo; ¢m suma, provas que nao seriam em absolu- to chamas! Mas dissemos o bastante para fazermos per- ceber o sentido de uma psicanilise das convic- cdes subjetivas relacionadas ao conhecimento dos fenémenos do fogo, ou, mais brevemente, de umu psicandlise do fogo. E no nivel dos argumen- tos purticulares que iremos precisar nossas teses gerais. PREFACIO f Ul Queremos, no entanto, acrescentar ainda uma observagio, que é uma adverténcia. Quando nosso leitor tiver concluido a leitura desta obra, em nada tera ampliado seus conhecimentos. Tal- vez isso nao seja inteiramente culpa nossa, mas simplesmente 0 prego a pagar pelo métocdlo esco- lhiclo. Quando nos voltamos para nés mesmos, desviamo-nos da verdade. Quando fazemos expe- riéncias imtimas, contradizemos fatalmente a ex- periéncia objetiva. Convém repetir: neste livro, em que sido feitas confidéncias, enumeramos er- ros. Nossa obra se oferece, pois, como um exem- plo dessa psicandlise especial que julgamos (til na base de todos os estudos objetivos, E uma ilustragdo das teses gerais defendidas num livro recente sobre a formagao do espirito cientifico (La Formation de lesprit scientifique). A pedago- gia do espirito cientifico ganharia em explicitar assim as sedugGes que falseiam as inclugdes, Nao seria dificil refazer para a dgua, o ar, a terra, o sal, o vinho, o sangue, 0 que esbogamos aqui pura o fogo. A bem da verdade, essas substdncias ime- diatamente valorizadas, que envolvem o estudo objetivo em temas sem generalidacle, sio menos nitidamente duplas — menos nitidamente subjeti- vas @ objetivas — que o fogo; mas contém igual- mente uma falsa marca, o falso peso dos valores ndo discutidos. Seria mais dificil, mas também mais fecundo, levar a psicu 2a bise de evi- 8 A PSICANALISE DO FOGO déncias mais refleticas, menos imediatas ¢, por- tanto, menos afetivas do que as experiéncias substancialistas. Se merecéssemos encontrar ému- los, os incentivariamos entio a estudar, do mes- mo ponto de vista de uma psicandlise do conhe- cimento objetivo, as nogdes de totalidade, de sis- tema, de elemento, de evolugio, de desenvolvi- mento... Niéio haveria dificuldude para perceber, na base de tais nogées, valorizacGes heterogéneas e indiretas, mas cujo tom efetivo é inegdvel. Em todos esses exemplos, encontrariamos, sob as teo- rias aceitas com maior ou menor fucilidade pelos cientistas ou os filésofos, convicgdes amiticle bas- tante ingénuas. Essas convicg6es siio luzes pariasi- las que turvam as legitimas claridacdles que o espi- rito deve acumular num esforgo discursivo. E pre- ciso que cada um se empenhe em destruir em si mesmo tais convicgdes nio discutidas. E preciso que cada um aprenda a escapar da rigidez dos habitos de espirito formados ao contato das expe- riéncias familiares. E preciso que cada um des- trua, mais cuidadosamente ainda que suas fob suas “filias”, suas complacéncias com as intuigdes primeiras. Em resumo, sem querer instruir 0 leitor, se- tiamos recompensados de nossos esforgos se pu- déssemos convencé-lo a praticar um exercicio no qual somos mestres: zombar de si mesmo. Ne- nhum progresso é possivel no conhecimento ob- jetivo sem essa ironia autocritica. Digamos, para terminar, que s6 fornecemos uma parcela minds- PREFACIO 9 cula dos documentos que acumulamos ao longo de interminaveis leituras dos velhos livros cientifi- cos dos séculos XVII ¢ XVIII, de sorte que esta pequena obra € apenas um esbogo. Quando se trata de escrever tolices, seria realmente muito fi- cil fazer um livro grosso.

Você também pode gostar