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RESISTIR, RE-SIGNIFICAR E RE-CRIAR ESCRAVIDÃO E A RE-

INVENÇÃO DA ÁFRICA NO BRASIL – SÉCULOS XVI E XVII.1

Aurelino José Ferreira Filho.2

Introdução.

A formação da cultura afro-brasileira realizou-se em constante


dialogo étnico, cultural, lingüístico e religioso com alguns povos
negro-africanos no contexto da escravidão brasileira. Os Cabindas do
Congo, os Bemguelas de Angola, os Macuas e Angicos de
Moçambique, os Minas da Costa da guiné, os Jejes do Daomé (atual
Benin), os Haussas da Nigéria, os Iorubas dos Reinos de Oió e Keto.
(SILVA, 2006). Povos que marcaram a presença da África negra em
quase todas as dimensões da nossa cultura, na religião, na música,
na dança, entre outras.

Em terras brasileiras criaram diferentes formas de adaptação


e resistências que resultaram na criação de um mundo afro-brasileiro
a partir da re-significação e re-criação dos valores, da cultura e da
religiosidade negro-africana.

Reconstituir suas identidades no contexto de escravidão ao


qual tinham sido vítimas desde a África era um processo difícil, senão
impossível, uma vez que tudo era feito para apagar sua identidade,
sua religiosidade e sua memória, com o objetivo de impedir qualquer
possibilidade de resistências que colocasse em risco o sistema

1
Versão modificada deste artigo foi publicada, pelo mesmo autor, nos Anais do I
Simpósio Internacional: Política, Gestão e Educação e IV Simpósio de Educação do Triângulo
Mineiro. Universidade Federal de Uberlândia – Ituiutaba - MG, 2008.
2
Professor do Curso de História da Universidade Federal de Uberlândia UFU – Campus
Pontal.
escravista transatlântico. Assim, antes de ser vendido para o tráfico
transatlântico, um africano capturado podia passar anos ainda na
África, sendo vendido ou trocado por diversas vezes já na condição
de escravo. Tendo que se adaptar a situações de violência e
diversidade culturais e lingüísticas inóspitas, forçado a sobreviver
com diversos grupos e etnias diferentes ao seu, por vezes compostos
por rivais étnicos ou tribais.

Sendo conhecido entre nós o caso de Ajayi, que, capturado na


sua aldeia por outro grupo étnico, islamizado, em um processo de
guerras internas, foi separado do seu grupo, da sua família e, só após
muitos meses sendo vendido para traficantes de escravos de
diferentes regiões, ainda na África, foi levado, também na condição
de escravo, para a Inglaterra. (VERGER, 1992).

Verger (2002) divide o tráfico dos escravos em direção ao


Brasil, principalmente à Bahia em quatro grandes períodos:

1º. Ciclo da Guiné durante a segunda metade do século XVI;

2º. Ciclo de Angola e do Congo no século XVII;

3º. Ciclo da costa da Mina, durante os três primeiros quartos


do século XVIII;

4º. Ciclo da Baía de Benin entre 1770 e 1850.

Usualmente dividem-se os povos vindos da África negra para o


Brasil em dois grandes grupos lingüístico-culturais: Sudaneses e
Bantos. Mesmo sendo esta uma divisão genérica que compreende
vários povos de etnias, culturas e línguas diferentes, que não
explicam, portanto, a diversidade e a complexidade histórica,
religiosa e cultural dos povos negro-africanos em sua totalidade, é
proveitoso toma-la como referência.

Por volta de 1862 o filólogo Willelm Bleek propôs o termo


bantu para designar um grupo de aproximadamente 300 a 600 –
conforme o critério adotado - línguas aparentadas e faladas na região
centro-sul da África. (SILVA, 2006). A denominação bantu origina-se
de ntu precedido pelo prefixo plural ba e significa pessoas. A raiz da
palavra pode ser encontrada em várias línguas do grupo, ligeiramente
mudada.

As etnias do grupo lingüístico-cultural Banto, como o termo


passou a ser pronunciado no Brasil, vieram de regiões africanas como
Angola (bemguelas, ovibundos e ambudos), Congo (cabindas) e
Moçambique (macuas e angicos), vindo para a região litorânea, Minas
Gerais e Goiás, entre os séculos XVI e XIX, transplantando as línguas
quimbundo, quicongo e umbundo. ( SILVA, 2006).

O outro grupo, os Sudaneses, teria chegado ao Brasil entre os


séculos XVII e XIX, vieram em muito maior número. A chegada dos
daomeanos, chamados jejes no Brasil , fez-se durante os dois
últimos períodos do tráfico escravista. A vinda dos nagô-iorubás -
também sudaneses - corresponde principalmente ao último ciclo.
(VERGER, 2002). Sendo que foram estes povos que mais
contribuíram para a formação da cultura afro-brasileira.

A forte predominância dos Iorubas, sua cultura e sua religião


no Brasil - principalmente seus deuses (orixás) - pode ser explicada
principalmente pela vinda recente e maciça deste povo, uma vez que,
desde o século XIV, na África, os iorubas estavam em plena expansão
de seus reinos, estendendo sua influência a todos os povos do litoral
africano e alcançando o interior do Sudão. Por volta deste mesmo
século, o ôni (lider religioso) de Ifé, capital religiosa dos povos
iorubanos e um dos reinos deste povo, colonizavam o Beni, onde
florescia a arte do Bronze. A religião, a organização política e os
costumes sociais dos iorubanos davam o modelo a toda uma vasta
região na África.

Os reinos iorubanos, assim como outros povos, formavam


cidades-estados, sendo cada cidade politicamente autônoma e cada
uma governada por seu obá (rei).
Em fins do século XVII o povo ioruba estava dividido em seis
reinos: o de Keto ou Ala-Keto, o mais poderoso de todos, o de Ijexá e
o de Egbá, Oxobó e Oió e Ibadan, estendendo seu domínio até o
reino de Daomé, atual Benin, além das províncias de Abeokutá,
Lagos, Ijebu e Ondô. ( SILVA, 2006).

Embora a sua economia fosse baseada na agricultura, caça e


pesca, a população iorubana habitava as cidades, sendo Ifé, a
principal cidade sagrada e considerada o berço da civilização iorubá.
Destas cidades duas ocupam papel especial na memória da cultura
religiosa que se reproduziu no Brasil: Oió, a cidade de Xangô e
Queto, cidade de Oxossi.

No Brasil, os ioriubás se fizeram presentes, principalmente,


através da sua religiosidade, os seus Deuses foram re-significados -
inicialmente na Bahia - no candomblé. Mas nem todo o panteão
Iorubano migrou para as terras brasileiras na mente e na alma de
seu povo. Vieram aqueles que tinham sentido no contexto da
violência da escravidão a qual os africanos aqui estavam submetidos,
possibilitando resistências e re-significações.

I. Resistências, re-significação, re-criação e a


reinvenção da África no Brasil.

Se a sociedade, a cultura e a religião cristã, em grande parte,


puderam ser reproduzidas no Brasil colonial, a reprodução pura e
simples das sociedades, culturas e religiosidade oriundas dos povos
negro-africanos que para cá vieram era impossível. Mesmo
desconsiderando a condição de violência e dominação imposta pela
escravidão, o processo escravista - já na África - destruiu-lhes a
comunidade, sua organização política e social e modos de vida
familiares originais, impedindo, em terras brasileiras, a subsistência
de estruturas sociais próprias. Ao escravo não era permitido trazer
seus pertences, amigos ou famílias, o que trouxe: sua cultura e sua
religiosidade, estavam enraizadas na sua alma. (VERGER, 2002)

O trabalho nas grandes lavouras, já no Brasil, possibilitou, de


várias e diferentes formas, a perpetuação de seus valores negro-
africanos. Valores que eram renovados constantemente pelo tráfico
transatlântico, possibilitando - apesar de todas as dificuldades
impostas pelo sistema - permanente contato entre os antigos
escravos e os recém chegados, em cujas fileiras vinham até
sacerdotes reis e rainhas. (VERGER, 2OO2).

Verger também nos revelou o caso de Ná Agotiné, muito


provavelmente uma rainha africana vendida como escrava para o
tráfico transatlântico por seu filho, o rei Guezo, em um processo de
disputa pelo trono. Ná Agotiné teria fundado, ainda segundo, Verger,
a casa de Tambor de Mina em São Luis do Maranhão, onde se cultua
os Deuses Vodus.

Também a escrava Iyanassô, uma das fundadoras do terreiro


Engenho Velho, na Bahia, no início do XIX, provavelmente era rainha
em sua terra, pois, ainda segundo Verger, o termo Yya fazia
referência uma dinastia de nobreza em algumas regiões da África
negra.

Inicialmente - provavelmente até o século XVII - chamou-se,


indistinta e preconceituosamente, de calundu – termo banto - às
manifestações religiosas africanas no Brasil. Assim como o termo
batuque – também banto – designava imperiosamente danças
coletivas, cantos e músicas que significavam invocação dos símbolos
e da religiosidade negro-africana. Ao som de atabaques,
comungavam em festas que renovavam a força de seus símbolos,
valores e ideais, em reuniões regulares e em datas determinadas,
fazendo “coincidir” suas festas com os dias santos da Igreja Católica.

Sendo fundamental a re-significação que fizeram dos seus


Deuses negro-africanos nos Santos Católicos, conforme a região do
Brasil, sempre partindo de elementos comuns. Assim, Xangô é re-
significado em Santa Bárbara, São Jerônimo e São Pedro na Bahia;
Em São João em Alagoas; São Jerônimo e São Miguel Arcanjo no Rio
de Janeiro; São João Batista, Santo Antonio e São Jerônimo no
Recife; Novamente São Gerônimo e São Miguel Arcanjo em Porto
Alegre. Iansã foi resignificada em Santa Barbára na Bahia, em Recife
e também em Porto Alegre. Já Oxossi, por sua vez, foi re-significado
em Arcanjo Miguel na Bahia; São Sebastião no Rio de Janeiro, São
Jorge no Recife e São Miguel e almas em Porto Alegre (BASTIDE,
1973) Só para citar aluns casos.

Mesmo considerando que as primeiras razões que levaram os


senhores a “permitir” aos seus escravos “divertirem-se a moda de
suas nações” em seus “folguedos”, eram econômicas - pois a
mentalidade preconceituosa da época acreditava que assim
trabalhariam mais – houve, assim, como que uma seleção das danças
africanas de origem banto do tipo samba – semba em banto – côco,
batuque, jango e lundu, com o nome variando de região para região
do Brasil. E, convivendo com o improvisado altar católico, os negros
africanos podiam dançar sua religiosidade pelo fato dos senhores
acreditarem que dançavam em homenagem à Virgem ou a outros
santos católicos, quando na verdade dançavam rituais cujos sentidos
e significados escapavam aos controles dos senhores brancos.
(BASTIDE, 1973)

Evidentemente faltavam aos senhores brancos o


conhecimento dos significados, símbolos e das línguas africanas, além
de outros pequenos, mas importantes, códigos que os impediam de
exercer o controle pretendido.Isto explica, em grande parte, a
predominância das religiões afro-brasileiras nas zonas de grandes
fazendas lavouras e criação e sua pouca influência nas zonas
mineradoras do Brasil colonial.

Com a crescente importância da Igreja católica como espaço


de dominação, afirmação e sociabilidades da elite branca colonial,
escravos, negros libertos e mestiços sofreram restrições em relação á
ocupação dos espaços sociais reservados aos brancos, uma vez que,
além do direito à missa conquistado pelo batismo, estes já haviam se
apropriado e re-significado as principais festas religiosas e santos
católicos.

Entre as tentativas de segregação entre o mundo branco e o


mundo negro a Igreja católica criou as irmandades de negros, sendo
a mais antiga e conhecida a de Nossa Senhora do Rosário, 1586. Mas
se o objetivo da Igreja, assim como do poder temporal, era segregar,
dificultando inclusive o livre contato de povos de diferentes nações
negro-africanas, ao mesmo tempo tentavam canalizar a devoção afro
para santos católicos como Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. Contudo, a re-significação das irmandades de homens
pretos por parte dos escravos possibilitou com que estas se
tornassem referências de apoio mútuo e de resistências da cultura e
da religiosidade negro-africana à escravidão.

As confrarias possibilitavam assim um espaço comum para a


preservação e re-invenção das práticas originais africanas e – a
partir do século XIX – seus líderes já eram importantes pais ou
mães-de-santo, e suas reuniões geralmente terminavam nos
candomblés no cair da noite.

A coroação dos reis de Congo de Angola pode ser entendida


como outro importante exemplo de resistência e re-significação da
sociedade, da cultura e da religiosidade africanas em terras
brasileiras. Pois ao eleger simbolicamente o rei de Congo, inúmeras
vezes reconheciam-se reis verdadeiros que teriam vindo como
escravos. (SILVA, 2006).

Os primeiros terreiros na Bahia significaram um


impressionante processo de re-criação de transmissão de saberes e
da ancestralidade africana, possibilitando uma profunda relação
espiritual entre a África negra e Brasil. O primeiro – e já citado –
terreiro do Engenho Velho, foi fundado por três ex-escravas
africanas, Adetá, Iyakalá e Iyanassô, que após conquistarem a
liberdade na Bahia, volta à África, e, após algum tempo, de volta à
Bahia fundam este que foi o primeiro e principal terreiro baiano, do
qual surgiram outros, sendo o mais importante o Axé Opô Afonjá.

Não cabe no espaço deste artigo a análise das mais diversas


formas de resistências, re-significação e recriação da cultura, dos
valore e da religiosidade negro-africana no Brasil colonial escravista,
mas podemos afirmar que no processo de rupturas e tentativas de
apagamento dos valores, da cultura, da religiosidade e da
organização social africana pela condição de escravos à qual estavam
submetidos os africanos que para o Brasil vieram, o primeiro
momento foi de adaptação/aceitação e o segundo de re-significação e
re-criação. Era preciso encontrar nas rupturas daquela nascente
sociedade escravista os nichos possíveis de resistir e sobreviver.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes. Formação


do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Cia. das Letras, 2002.

BASTIDE, Roger. Estudos Afro-brasileiros. São Paulo, Editora


Perspectiva, 1973
SOUZA, Laura de Melo. O diabo e a terra de Santa Cruz. São
Paulo, Cia. das Letras, 2000.

SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança. A África antes


dos português. 3ª. Ed. , Rio de Janeiro, 2006.

VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o


Golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos. 4ª. Ed. Salvador,
Corrupio, 2002.

____________Os libertos. Sete caminhos na liberdade de


escravos na Bahia no Século XIX. Salvador, Corrupio, 1992.

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