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pollyanna furtado
e luz, entre o verbo e o sonho, com
Elefantes em isopor azul a autora nos
leva por um mergulho no abismo
dos sentidos, explorando os secretos
recantos das palavras para criar uma
A FERA
obra densa, cujas camadas vão se
revelando a cada nova leitura.
Um tigre pisa macio sobre o poente.
Entre o real e o metafísico, entre o
Rasga o solo ígneo com garras de opalina.
Um chão de transparências puras sagrado e o mundano, entre o onírico
Produção Editorial
Alice Garambone
Isadora Travassos
João Saboya
Julia Roveri
Rodrigo Fontoura
Sofia Vaz
f988e
Furtado, Pollyanna
Elefantes em isopor azul / Pollyanna Furtado. - 1. ed. - Rio de Janeiro :
7 Letras, 2019.
isbn 978-85-421-0777-7
cdd: 869.1
19-56698
cdu: 82-1(81)
2019
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
sumário
Ao entardecer 9
Preter10
Dona mística 11
Pão eterno 12
Os nomes do além 13
Laborum meta 14
Sobre dualidades 15
Náufraga16
Não dualismo 17
Ter nome 18
Morada transitória 19
Antítese20
O gato por fora 21
Noturno22
Visões24
Intramuro25
Lago onírico 26
Eremita27
Para não esquecer 28
Solitude29
Demônio do meio-dia 30
Estrela agonizante 31
Minha servidão 33
Solilóquio com a morte 34
Oráculos 36
Sétimo céu 37
Lições de pascal 38
Falsa resistência 39
O imperador 40
Enamorados41
Morada antiga 42
Retiro das samaritanas 43
Lua minguante 44
A fera 45
O enforcado 46
Roda da fortuna 47
O que é poesia? 48
Moral da história 49
Boneca russa 50
Porções de metafísica 51
Vidente em novembro 52
Sagrado53
Minotauro55
Pena leve56
Impasses sentimentais 57
posfácio – Tenório Telles59
ao entardecer
Memória:
diluída tintura
de retrato ao relento.
Agitações de véus,
sombras esguias
dançam às paredes do recinto.
9
preter
Eu procurei o além
nas coisas mais terrenas.
Por ora,
uns olhos maduros,
envolta em seus tormentos.
Vasculho os vestígios
de um tempo incerto
vivido talvez
em outras vidas.
Persigo a sombra,
a raiz de uma flor líquida.
Peixes plácidos
de um aquário imenso.
10
dona mística
Paisagem e presença
de ausentes.
11
pão eterno
12
os nomes do além
Além de mim
tem nome de ninguém
se chama terra
se chama pó
Além de mim
tem nome de mundos
se chama outro
se chama vidas
Além de mim
tem nome de nuvens
se chama sonhos
se chama adeus.
Além de mim
tem nome de luz
se chama amor
se chama Deus.
13
laborum meta
14
sobre dualidades
Prisão na liberdade;
princípio no ocaso.
Só carcaça
em rebuliço de abutres.
Aves
na prisão das costelas.
Formas vagas,
me ressinto
das almas aladas.
E o tesouro?
O que é este ouro velho
enterrado na parte turva
do corpo?
15
náufraga
O mundo vibra
como se eu assistisse assombrada
aos dramas de uma vida.
16
não dualismo
17
ter nome
Aparições dobram
os tecidos da realidade
de onde emergem peixes
que estremecem
a pele verde de um lago.
18
morada transitória
19
antítese
20
o gato por fora
Ruído estranho!
– Um salto no abismo!
Aos sobressaltos,
recolhi os sentidos fora da carne
e, em delícias de alívio:
foi só um assombro.
A janela fechada,
o gato, ao deleite,
se esticando no sofá.
eu abismada
com a desgraça
de ter um espírito.
21
noturno
Em soberania,
me projeto nos espaços
conheço pessoas,
me coloco entre elas,
mas, com frequência,
me despeço de mim.
Procuro mergulhar
nas águas da noite:
anjo guardando o sono
de uma criança antiga.
22
Sou aquela irmã, a mais calada;
uma mulher ardente, em fúria,
e mãe prodigiosa, sem rebentos.
Quando desperta,
criança contemplativa,
com o coração aberto
e pleno de sol.
23
visões
24
intramuro
Vi o vermelho aterrador
nos olhos anônimos da multidão.
Em casa, vi apenas uma dor cinza
entre molduras sofisticadas,
como se a minha vida fosse quadros
de uma galeria.
25
lago onírico
Escamas dentadas
aspereza incisiva
de serra mordente
Se tocasse o torso
de jacarés no lago
teria o toque
da imprudência
sobre rudeza viva
o tremblor da pele
turvar toda a vista
numa embriaguez
mística.
26
eremita
27
para não se esquecer
28
solitude
29
demônio do meio-dia
30
estrela agonizante
E o caminhar contínuo
não anula a inutilidade
de quem foi condenado
à pena de Sísifo.
E vê a pedra rolar morro abaixo,
para depois subir
e recomeçar sempre.
31
O Sol, em declínio,
brilha há bilhões de anos.
32
minha servidão
Te sirvo em devoção,
criatura perante o Criador.
Senhor de muitos nomes,
mas sem contornos,
ainda que camuflado
em inúmeras faces.
33
solilóquio com a morte
i
Ah! Um dia me sentei naquela pedra enorme
e esperei a morte para ter com ela
palavras maduras:
uma prosa das profundezas.
A Morte muda
não responde,
fria é sua presença.
34
ii
Te encontro dentro de uma fruta partida
que não se come
porque amarga e corrompida.
No vermelho oblongo
de carne esquecida.
35
oráculos
Um idioma escuro
entre mudas paredes.
Um idioma puro
cifrado em seus códices.
36
sétimo céu
No adro branco,
o vasto onde passeias contido.
minha sombra
percorre aleias sem voltear
as flores da paisagem.
No jardim, roseiras rudes
à sombra dos salgueiros.
Entre as passadas
terra e granito,
gramas crescidas.
Entre jazigos,
eu, em seda azul,
túmida, ungida,
celebro o instante raro
de nossas vidas.
37
lições de pascal
38
falsa resistência
Altaneiro e suspenso,
o Angelim ferro é cadáver
no centro do laranjal.
39
o imperador
40
enamorados
41
morada antiga
Real e sonho:
construções íntimas
no âmago da matéria perecível.
E nada me é pertencido
nessa luta eterna
de vencidos.
42
retiro das samaritanas
43
lua minguante
44
a fera
eu me reconheci, ao longe,
distinta e sem paisagem.
Vi aquele monstro de sinuosidades
com a beleza rara das coisas eternas.
45
o enforcado
Te amo porque és
pleno em solidão
e espanto.
Te amo porque és
o meu avesso.
Te contemplo,
sólido e mudo.
46
roda da fortuna
No entanto,
pés na estrada,
rumo dos ventos,
no sentido em que me fiz predestinada.
47
o que é poesia?
48
moral da história
49
boneca russa
De verbo e sonho,
crio um mundo novo
e entro nele para não morrer.
50
porções de metafísica
51
vidente em novembro
52
sagrado
Desenho um dirigível,
no século de céus antigos;
desenho você e sua voz
toda feita de sentidos.
A senhora soberana,
de múltiplos gestos e nomes,
se acovarda perante si própria
quando reconhece no espelho
a face do desespero.
53
A flor de lótus nasce na lama
e a Beleza, no embate dos sentidos.
Assim, escrevo em sigilo
e me perco nos meus enganos.
54
minotauro
55
pena leve
56
impasses sentimentais
57
Posfácio
59
Dickinson [“Ante o ainda mais profundo sítio / A polar solidão /
Da alma que a si se admite – / Infinito finito”.], ao mesmo tempo
em que é possível escutar, no pulsar de seus versos, ecos da voz
mística de Adélia Prado: “A luz arcaica, / a que antes de tudo / no
coração da treva preexistia, / é a iminente aurora / que do topo
do mundo / o galo anuncia”. A leitura do poema “Os nomes do
além” evidencia esses vínculos, nuances e vibrações que reverbe-
ram na tessitura poética da autora deste livro:
Além de MIM
tem nome de ninguém
se chama terra
se chama pó
[...]
Além de MIM
tem nome de luz
se chama amor
se chama Deus.
60
Outro aspecto a destacar nesta obra é a linguagem que
reveste os poemas: os versos são tecidos de forma meticulosa e
com densidade enunciativa. O texto “Laborum meta” é exem-
plar nesse cariz, pela contenção linguística e força semântica:
“As pás pesam sobre ombros / e a terra placentária / abraça o
corpo em desalinho”. Alusivo à inscrição no pórtico do cemité-
rio São João Batista, em Manaus, o poema é uma reflexão sobre
o sentido e a finitude da vida, em que a morte é a fronteira
demarcadora entre o ser e o não ser – e a cova, “a terra placen-
tária”, recebe “o corpo” solitário para sua viagem definitiva ou
sua dissolução, encerrando-se os trabalhos.
Pollyanna Furtado elabora uma poética que se define por
uma tonalidade meditativa que busca no sagrado o sentido e a
referência para seu Ser ábsono, que transfigura poeticamente
sua porfia com o real e prefigura em si mesmo a centralidade de
seu estar-no-mundo [expresso em maiúsculas: “MIM”, “ME”].
Esse sujeito poético sabe-se só e, por isso, único responsável
pelo seu destino. Elevar-se sobre as contingências é a condição
para resistir às vagas destrutivas da sorte adversa. E quem sabe
encontrar um porto seguro – o “Sagrado”, lugar seguro para
uma alma inquieta e enamorada: “Assim, escrevo em sigilo /
e me perco nos meus enganos. // Descubro um lugar seguro
/ onde você pode habitar / onde pode ME habitar. / MINHA
alma, sua morada”. Seríamos o santuário dessa presença amo-
rosa do divino – encontro e, quem sabe, redenção: Ser?
Tenório Telles
Escritor, mestre em literatura e crítica literária pela PUC/SP e autor de
A derrota do mito, Canção da esperança & outros poemas e Viver
61
primeira edição impressa
na gráfica eskenazi
para viveiros de castro editora
em outubro de 2019.