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O que é poesia?

Num jogo de sombra

pollyanna furtado
e luz, entre o verbo e o sonho, com
Elefantes em isopor azul a autora nos
leva por um mergulho no abismo
dos sentidos, explorando os secretos
recantos das palavras para criar uma
A FERA
obra densa, cujas camadas vão se
revelando a cada nova leitura.
Um tigre pisa macio sobre o poente.
Entre o real e o metafísico, entre o
Rasga o solo ígneo com garras de opalina.
Um chão de transparências puras sagrado e o mundano, entre o onírico

elefantes em isopor azul


abre-se dentro dos seus olhos. e o simbólico, Pollyanna Furtado
constrói um universo poético muito
Eu me reconheci, ao longe, particular, com cenas em desalinho
distinta e sem paisagem.
em meio a memórias nubladas,
Vi aquele monstro de sinuosidades
silêncios ruidosos e sóis noturnos
com a beleza rara das coisas eternas.
foto: Raphael Alves

– e desde a estranheza do título


somos também acompanhados pelas
mais diversas quimeras em forma
de animal: o tigre que pisa macio
pollyanna furtado (1981) é Pollyanna Furtado
sobre o poente, a raposa da fábula
paranaense radicada no Amazonas.
Professora de Língua Portuguesa e de Esopo, o gato se esticando no
Literatura na rede pública de ensino e
Mestra em Letras – Estudos Literários
elefantes em sofá, até encontrarmos, no meio de
pela Universidade Federal do Amazonas.
Publicou os livros de poemas Fractais e isopor azul um labirinto de mistérios, a resposta
em forma de verso: “A poesia é uma
À margem da luz (edição independente,
2007), Simetria do caos (7Letras, 2011), serpente / que agarro pela cauda. / Se
Rosa de sombra (independente/digital,
2013) e À sombra do iluminado (7Letras,
vou pela cabeça, / ela me dá o bote.”
2017), finalista do prêmio Jabuti 2018.

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elefantes em isopor azul
pollyanna furtado

Elefantes em isopor azul


© 2019 Pollyanna Furtado

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Produção Editorial
Alice Garambone
Isadora Travassos
João Saboya
Julia Roveri
Rodrigo Fontoura
Sofia Vaz

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj

f988e

Furtado, Pollyanna
Elefantes em isopor azul / Pollyanna Furtado. - 1. ed. - Rio de Janeiro :
7 Letras, 2019.

isbn 978-85-421-0777-7

1. Poesia brasileira. I. Título.

cdd: 869.1
19-56698
cdu: 82-1(81)

Vanessa Mafra Xavier Salgado - Bibliotecária - crb-7/6644

2019
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580, sobreloja 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
sumário

Ao entardecer 9
Preter10
Dona mística 11
Pão eterno 12
Os nomes do além 13
Laborum meta 14
Sobre dualidades 15
Náufraga16
Não dualismo 17
Ter nome 18
Morada transitória  19
Antítese20
O gato por fora 21
Noturno22
Visões24
Intramuro25
Lago onírico 26
Eremita27
Para não esquecer 28
Solitude29
Demônio do meio-dia 30
Estrela agonizante 31
Minha servidão 33
Solilóquio com a morte 34
Oráculos  36
Sétimo céu 37
Lições de pascal 38
Falsa resistência  39
O imperador 40
Enamorados41
Morada antiga 42
Retiro das samaritanas 43
Lua minguante 44
A fera 45
O enforcado 46
Roda da fortuna 47
O que é poesia? 48
Moral da história 49
Boneca russa 50
Porções de metafísica 51
Vidente em novembro 52
Sagrado53
Minotauro55
Pena leve56
Impasses sentimentais 57
posfácio – Tenório Telles59
ao entardecer

Memória:
diluída tintura
de retrato ao relento.

Ruínas no fim do dia,


morada de espectros,
que diáfanos, fulguram
ante o sol que agoniza.

Agitações de véus,
sombras esguias
dançam às paredes do recinto.

O chão, em palidez de pó,


elide o espaço e o tempo
na jornada da ilusão.

9
preter

Eu procurei o além
nas coisas mais terrenas.

Por ora,
uns olhos maduros,
envolta em seus tormentos.

Nas ondulações do lago,


vislumbro meus enganos,
entre nomes,
em carnação direta
com a vastidão divina.

Vasculho os vestígios
de um tempo incerto
vivido talvez
em outras vidas.

Persigo a sombra,
a raiz de uma flor líquida.
Peixes plácidos
de um aquário imenso.

10
dona mística

Quem é a dama antiga


do vasto território das brumas?

Essa dama é ruína e drama


no templo insólito do tempo.

Paisagem e presença
de ausentes.

Avidez sem fúria


de olhos que espraiam muros
ante os portais do mistério.

Mulher de carne, pudores


e pó... é feita de cal
e eterna como ossos.

11
pão eterno

Se este pão fosse de nuvens,


seria o céu um trigal de lumes?

12
os nomes do além

Além de mim
tem nome de ninguém
se chama terra
se chama pó

Além de mim
tem nome de mundos
se chama outro
se chama vidas

Além de mim
tem nome de nuvens
se chama sonhos
se chama adeus.

Além de mim
tem nome de luz
se chama amor
se chama Deus.

13
laborum meta

As pás pesam sobre ombros


e a terra placentária
abraça o corpo em desalinho.

14
sobre dualidades

Nas ruínas da vila antiga


encontro uns olhos perdidos
sob o teto calvo,
de espaçadas vigas.

Prisão na liberdade;
princípio no ocaso.

Só carcaça
em rebuliço de abutres.
Aves
na prisão das costelas.
Formas vagas,
me ressinto
das almas aladas.

meus recintos de portas derruídas.

E o tesouro?
O que é este ouro velho
enterrado na parte turva
do corpo?

15
náufraga

Náufraga em mares íntimos,


agarro-me aos vestígios da fragata.
Debatendo-me sob a pele de animal
desvalido das forças instintivas.

O mundo vibra
como se eu assistisse assombrada
aos dramas de uma vida.

16
não dualismo

Era a lua de sangue


ou um sol de gelo
que, assombrada, via
da varanda dos desvarios?

Era a lua de sangue


ou um sol de gelo
que pairava perene
na liquidez dos sonhos?

Era a Lua de sangue


e o Sol de gelo
que ardiam infinitos
num país fora do tempo.

17
ter nome

Adivinho, no teu rosto,


um milagre
que teu nome, tantas vezes,
profanou.

Ter nome é bênção


e perdição.
Antes o tivera com recato.
Por ora,
ostentação.

Mais do que nomes,


trago faces
na sombra de um ser
em desalinho.

Aparições dobram
os tecidos da realidade
de onde emergem peixes
que estremecem
a pele verde de um lago.

18
morada transitória

As ruínas desta casa me dilaceram.


O abandono abre portas para o não sentido.
E a deterioração nas paredes, nas mobílias,
revela-me uma dor inconcebível.

19
antítese

Espaçados grãos na sola dos sapatos.


Da terra, tenho chão e sepultura.

20
o gato por fora

Ruído estranho!
– Um salto no abismo!
Aos sobressaltos,
recolhi os sentidos fora da carne
e, em delícias de alívio:
foi só um assombro.

A janela fechada,
o gato, ao deleite,
se esticando no sofá.
eu abismada
com a desgraça
de ter um espírito.

21
noturno

Talvez tenha me esquecido


dos últimos elementos.
Aos descaminhos,
na correnteza em fúria.

Em soberania,
me projeto nos espaços
conheço pessoas,
me coloco entre elas,
mas, com frequência,
me despeço de mim.

Eu me contemplo noutras faces.


Não sou a pessoa indicada
para avaliar meus eventos.

Tudo o que quero


é um lugar ameno,
uma voz de chuva,
um olhar entoando murmúrios.

Tento recuperar o que se foi.


Em vão. Não volta.

Procuro mergulhar
nas águas da noite:
anjo guardando o sono
de uma criança antiga.

22
Sou aquela irmã, a mais calada;
uma mulher ardente, em fúria,
e mãe prodigiosa, sem rebentos.

Quando desperta,
criança contemplativa,
com o coração aberto
e pleno de sol.

23
visões

O sol bate à janela


e eu não ouço.
O toque do acalento
acende as primitivas horas.

E depois, a parede da sala


dissimula um ocre efêmero,
fruto tardio em galhos secos.

Ecos de aves, na distância,


maculam o branco do recinto.
Presentes, fugidios
no espaço de ausentes.

24
intramuro

Vi o vermelho aterrador
nos olhos anônimos da multidão.
Em casa, vi apenas uma dor cinza
entre molduras sofisticadas,
como se a minha vida fosse quadros
de uma galeria.

Luzes, sombras, cores e escrituras.


A Mulher e a Morte, em Schiele.
A carne na vibração das espessuras.
Os vértices do espaço intramuro.

Na parede quase nua,


uma mulher perdura
no azul das tempestades.

25
lago onírico

Escamas dentadas
aspereza incisiva
de serra mordente
Se tocasse o torso
de jacarés no lago
teria o toque
da imprudência
sobre rudeza viva
o tremblor da pele
turvar toda a vista
numa embriaguez
mística.

26
eremita

Tenho a natureza nômade,


vago por pensamentos vacilantes:
caminho vastos territórios.
meus passos marcam idas e vindas.
Sigo às margens dos rios da vida.

27
para não se esquecer

era uma vez...


alguém que não se esqueceu que a vida é pó.
A morte, a única certeza.
Alguém que atravessou a ponte
e alcançou a outra margem.
Vida: mais o que se vive,
menos o que se sonha.
Os sonhos: visão de horizonte.
Horizonte: menos o ponto onde se chega;
mais o sentido que nos move.
Mais do que o destino, a chegada;
vale o caminho, a paisagem, a partida.

28
solitude

A sombra súbita e sonora


liberta o sol, fim de tarde.
E cobre o céu insone
na noite silenciosa.

29
demônio do meio-dia

Triste tarde de maio.


A noite rompe a cidade
com seu punhal escuro.
Agonizo a morte lenta.

Triste tarde de maio.


O dia termina retomando
a aquela mesma melodia.
Agonizo a morte lenta.

Triste tarde de maio.


A noite deita sua espessura
sobre ruas e seus rumores de aço.
Agonizo a morte lenta.

Triste tarde de maio.


A dor ainda é amarga
com esta sinfonia nos confins.
Agonizo a morte lenta.

30
estrela agonizante

Arde um sol avaro


na noite dos seus dias
e no coração da vida
queima a chama fria.

Agoniza uma estrela cinza


plasmada de amor e de morte.
Tento abrandar, em vão,
a dor que traz em vida.

Ainda que a estação seja de flores


e as águas revivam as cores,
os tons que agasalham-me os sentidos
são cinzas de evanescência.

Os passos, na longa estrada,


pesam o aço arcaico
da melancolia.

E o caminhar contínuo
não anula a inutilidade
de quem foi condenado
à pena de Sísifo.
E vê a pedra rolar morro abaixo,
para depois subir
e recomeçar sempre.

31
O Sol, em declínio,
brilha há bilhões de anos.

Mas não muito distante,


uma estrela agoniza
sob o negror de um sol avesso.

O astro ofuscado pela própria luz


não sabe daquela estrela.
Não sabe e nem vê
a estrela que agoniza.

32
minha servidão

Te sirvo em devoção,
criatura perante o Criador.
Senhor de muitos nomes,
mas sem contornos,
ainda que camuflado
em inúmeras faces.

Luz difusa produz sombra


no reino dos efêmeros.

33
solilóquio com a morte

i
Ah! Um dia me sentei naquela pedra enorme
e esperei a morte para ter com ela
palavras maduras:
uma prosa das profundezas.

meu coração, em apuros,


ouviu a voz de cristal partido
É a Morte, disse comigo,
Quero falar contigo
e caminhar pelas tardes
segurando sua mão austera.

Morte minha, de onde vens?


Te espero desde menina.
Só agora que tu vens?!

A Morte muda
não responde,
fria é sua presença.

Tenho te buscado há tanto tempo,


somente agora sei:
estás comigo desde o nascimento.

34
ii
Te encontro dentro de uma fruta partida
que não se come
porque amarga e corrompida.
No vermelho oblongo
de carne esquecida.

Te encontro num sonho ruim


dentro da noite líquida,
da sombra úmida do pântano
de uma antiga angústia,
sempre revivida.

Te encontro às vezes nos olhos do amado


que encaro de repente
distraída.

Tu estás no negro vítreo das pupilas,


porque oculta dentro da vida
e me arrancas suspiros
como amante devotado.

Te encontro no vértice das horas,


nos dias e na sucessão de eventos,
nos limites e no ouro das conquistas,
num sol antes do declínio,
se entregando à noite espessa.

35
oráculos

Um idioma escuro
entre mudas paredes.
Um idioma puro
cifrado em seus códices.

Lapidar sobre o meu chão


teu grito
em vão
sem profundeza.
Uns desvãos
sem nobreza.

Entre corpos jamais preenchidos,


cindidos em nossa carne de aflições.
Desencontros,
tocaias de seres e nomes.

Quase sempre iludidos.

36
sétimo céu

No adro branco,
o vasto onde passeias contido.
minha sombra
percorre aleias sem voltear
as flores da paisagem.
No jardim, roseiras rudes
à sombra dos salgueiros.
Entre as passadas
terra e granito,
gramas crescidas.
Entre jazigos,
eu, em seda azul,
túmida, ungida,
celebro o instante raro
de nossas vidas.

37
lições de pascal

Entre minhas teias,


teus altares
onde estremeço
num delírio santo.
Santa em êxtase místico.
Abraço em unção
tua voz de vastidão
em meus instantes.
Teu corpo é carne,
volúpia em sigilo
Um milagre aprisionado
no infinito nada.

38
falsa resistência

Altaneiro e suspenso,
o Angelim ferro é cadáver
no centro do laranjal.

39
o imperador

Caminhas por essas trilhas silenciosas


e, na distância, te distingues de outras formas.
Teu corpo quente vibra e, segues,
resoluto, a correição das formigas.
Mas sem chegar a parte alguma.
Procuras sol e sombra,
repousas em uns barrancos verdes.
Miras, vertiginoso,
a avidez de um abismo,
espias as profundidades
com o horror de quem resiste
à contemplação do próprio espírito.

40
enamorados

Teria encontrado a palavra de ouro


no olhar que, discreto, se insinua?
Teria encontrado a chave da vida
só na mudez de olhos que diz tanto?

Que olhar, que boca, que corpo afável.


Luz que me faz padecer da razão.
Que encanto cálido
na mudez em mim
por não encontrar a voz perdida.

eu, ele, os outros,


universos em suspensão.
Entre paredes claras
nossos corpos sombrios
impregnavam o mundo
de uma chama úmida.

Quem é o dono dos meus ares?


Quem é aquele que me deu voz?
Quem é o autor dos meus pesares?
Quem é esse deus-algoz?

41
morada antiga

Por que, em memória, o passado,


mais do que retrato perdido,
é pintura de raro requinte?

Por que as cores da paisagem


vibram o verniz úmido
nos olhos da nostalgia?

Real e sonho:
construções íntimas
no âmago da matéria perecível.

Persigo em vão uma luz


em lembranças fugidias.

E nada me é pertencido
nessa luta eterna
de vencidos.

42
retiro das samaritanas

No retiro das samaritanas


os sabiás cantam às janelas
e as irmãs se levantam
ante o amanhecer.

O dia não tarda nunca


no retiro das samaritanas
onde joões-de-barro
erguem suas casas
antes do sol nascer.

A grama nem sempre enverdece


no retiro das samaritanas,
mas a noviça devotada
reza um terço demorado
antes do bom café.

43
lua minguante

Tenho medo quando a noite desce


e o meu canto não reverbera.
Tal mudez se apossou de mim;
uma escassez de espírito
escureceu-me as horas.

Fico sem saber o que fazer


com o infinito de uma alma,
sem ter voz.

44
a fera

Um tigre pisa macio sobre o poente.


Rasga o solo ígneo com garras de opalina.
Um chão de transparências puras
abre-se dentro dos seus olhos.

eu me reconheci, ao longe,
distinta e sem paisagem.
Vi aquele monstro de sinuosidades
com a beleza rara das coisas eternas.

45
o enforcado

Teu nome é chaga,


cicatriz e dor.
Como se visses poesia
nas marcas de um açoite

Teu nome é loucura.


altivez e doçura.
Como se ouvisses música
na voz do teu algoz

Te amo porque és
pleno em solidão
e espanto.

Te amo porque és
o meu avesso.

Te contemplo,
sólido e mudo.

46
roda da fortuna

Sondo os secretos recantos das palavras.


Desabo no abismo dos sentidos.
De lassidão e espanto,
me calo, despida de meus afetos.

No entanto,
pés na estrada,
rumo dos ventos,
no sentido em que me fiz predestinada.

47
o que é poesia?

A poesia é uma serpente


que agarro pela cauda.
Se vou pela cabeça,
ela me dá o bote.
A poesia, quanto chega,
arrebata.
Sua presença escassa
paralisa as horas.
O universo silencia
para que eu possa tocá-la.
Sempre exigente,
me cobra agilidade.
Se não sou diligente
me abandona, impiedosa.
Preciso me despir
para abraçá-la,
numa luta corporal,
num coito amoroso,
e retê-la
por algum instante.

48
moral da história

Quando tudo teima em não dar certo


me transformo na raposa
de uma fábula de Esopo.

49
boneca russa

De verbo e sonho,
crio um mundo novo
e entro nele para não morrer.

Dentro do mundo há mundos


que guardam,
entre fortalezas e muros
de conveniência,
territórios inexplorados.

Ocultos, entre camadas secretas,


como uma matrioska.

50
porções de metafísica

Não sei o que nos cega.


Escuridão ou luz?

Não sei o que encontrarei:


trevas ou eternidade?

Não sei se vou viajar entre astros


no espaço vasto e truculento
ou se irei abraçar inerte
a mudez das rochas.

Não sei do além,


apenas degusto porções de metafísica.

Não sei o que será de mim ao depois.


Posso até imaginar destemida
que o fim será um recomeço,
o recomeço do nada sem fim.

51
vidente em novembro

Uma cigana me contou


que eu tinha um amor oculto.
As cartas lhe diziam:
Tem desafios, tem dores
tem desafetos, mas tem amores.
Aqui nesta carta...
A morte representa mudança.
É preciso se desapegar.
É preciso aprender a deixar o que deve partir.
Virão viagens, virão partidas, virão vitórias.
eu chorei e a cigana me sorriu
estendendo-me as mãos para receber
os proventos.

52
sagrado

Desenho um dirigível,
no século de céus antigos;
desenho você e sua voz
toda feita de sentidos.

Anjo de negro, ave distante


me diz, sem palavra:
“os tempos são de sombras
mas é possível sorrir”.

Imagino outros tempos


para não me afogar
no mar de angústia severa
que se alastra no corpo.

A senhora soberana,
de múltiplos gestos e nomes,
se acovarda perante si própria
quando reconhece no espelho
a face do desespero.

Busque o seu nome


e reconhecerá
o que senti depois da tarde
de uma terça-feira cinza.

Posso senti-lo em mundos paralelos,


não ouso tocá-lo neste instante.
É demasiado grande viver a vida
com seus bilhões de apelos.

53
A flor de lótus nasce na lama
e a Beleza, no embate dos sentidos.
Assim, escrevo em sigilo
e me perco nos meus enganos.

Descubro um lugar seguro


onde você pode habitar
onde pode me habitar.
minha alma, sua morada.

54
minotauro

Quem é o monstro no labirinto de Dédalo?


Mistério envolto em luxúria.
Um ser que se faz pleno sem palavras.
Quase nada sei de sua história.

Seu nome é enigma,


volúpia e solidão.
eu me debato convulsa,
entre desejos e obstinação.

Seu calor me faz tão leve.


Levito em contemplações
de gozos gozosos.

No auge, encontro o vazio dos monges;


o corpo se expande
num êxtase alucinado.

55
pena leve

A santidade não me pertence.


Por isso amo sem dolo,
mas dolorosamente.
Amor ardente
de quem sabe
do amanhã do pó,
da brevidade
de tudo que se move
entre o céu e a terra.
A dor de amar me move
com o horror
de quem se sabe mortal.
E desse amor padeço
buscando a minha cura.
Sou pecadora,
mas minha pena é leve.
Amanhã serei pó.

56
impasses sentimentais

As profundezas são vulgares,


dizes e me deixas solitária.
Por que se o ouro é banal,
lixo é luxo?
Por que se raro, o carvão;
diamantes são ruínas?
Sei que o abismo é belo,
mais belo que um botão de flor.
Sei que o animal humano é bonito,
mais bonito em sua nudez.
Sempre tiveste o que dizer,
o que não anula os meus dizeres,
os meus sentires e os meus pesares.
Tu podes ser,
ainda que eu esteja sendo.

57
Posfácio

Sujeito de sua história e exposto às contingências da exis-


tência, o poeta é um marujo lançado no grande mar da histó-
ria – instigado pelos ventos, pelos riscos da travessia incerta e
pela tensão subjetiva imposta pela necessidade de sobreviver
às adversidades. A sua condição, como ser presente no mundo,
é de um eu, como nos lembra o filósofo Martin Heidegger, que
“estar-lançado” no palco de seu existir e que vive a dramática
experiência de se perceber vivo, ser em construção, capaz de,
por meio do embate com as circunstâncias de sua historicidade
e relação com os demais seres humanos, afirmar sua autentici-
dade, sua presença viva e esclarecida no tabuleiro da vida.
O discurso lírico de Pollyanna Furtado traz as marcas
dessa subjetividade tensionada por um estar-no-mundo que
se reveste de uma consciência afligida pela dúvida, pelo ques-
tionamento e reflexão sobre a presença e o sentido do próprio
existir. Essa percepção evidencia a inquietude de um eu lírico
que, embora tenha consciência de seu processo existencial,
convive com a precariedade das coisas e com as projeções de
uma subjetividade em desacordo com o mundo. O poema “Ao
entardecer” é evocativo do deslocamento da perspectiva desse
eu que já não se satisfaz com os limites do real – retratado
como um teatro de ilusões: “Memória; / diluída tintura / de
retrato ao relento. // Ruínas no fim do dia, / morada de espec-
tros, que diáfanos, fulguram / ante o sol que agoniza”.
A atmosfera e o tom da lírica de Pollyanna ecoam ressonân-
cias reflexivas que a aproximam da poética meditativa de Emily

59
Dickinson [“Ante o ainda mais profundo sítio / A polar solidão /
Da alma que a si se admite – / Infinito finito”.], ao mesmo tempo
em que é possível escutar, no pulsar de seus versos, ecos da voz
mística de Adélia Prado: “A luz arcaica, / a que antes de tudo / no
coração da treva preexistia, / é a iminente aurora / que do topo
do mundo / o galo anuncia”. A leitura do poema “Os nomes do
além” evidencia esses vínculos, nuances e vibrações que reverbe-
ram na tessitura poética da autora deste livro:
Além de MIM
tem nome de ninguém
se chama terra
se chama pó
[...]

Além de MIM
tem nome de luz
se chama amor
se chama Deus.

Elefantes em isopor azul é um livro dissonante, em que o


eu lírico enuncia seu inconformismo com a inconstância e
superficialidade do mundo, “terra” e “pó”, em contraponto com
a dimensão da existência prefigurada na “luz”, no “amor” – e
que “se chama Deus”. Essas contrafaces subjetivas possuem um
traço ontológico – concebidas como contingências do sujeito
poético premido entre as circunstâncias da realidade, dissoluta
e ilusória, e da transcendência, imune à corrosão do tempo e da
matéria. Esses aspectos evocam os temas recorrentes na lírica da
escritora: o tempo, a efemeridade da vida, o desconsolo existen-
cial, a busca de sentido e a transcendência como possibilidade de
reencontro e redenção, como se depreende da leitura do poema
“Morada transitória”: “As ruínas desta casa me dilaceram. / O
abandono abre portas para o não sentido. / E a deterioração nas
paredes, nas mobílias, / revela-me uma dor inconcebível”.

60
Outro aspecto a destacar nesta obra é a linguagem que
reveste os poemas: os versos são tecidos de forma meticulosa e
com densidade enunciativa. O texto “Laborum meta” é exem-
plar nesse cariz, pela contenção linguística e força semântica:
“As pás pesam sobre ombros / e a terra placentária / abraça o
corpo em desalinho”. Alusivo à inscrição no pórtico do cemité-
rio São João Batista, em Manaus, o poema é uma reflexão sobre
o sentido e a finitude da vida, em que a morte é a fronteira
demarcadora entre o ser e o não ser – e a cova, “a terra placen-
tária”, recebe “o corpo” solitário para sua viagem definitiva ou
sua dissolução, encerrando-se os trabalhos.
Pollyanna Furtado elabora uma poética que se define por
uma tonalidade meditativa que busca no sagrado o sentido e a
referência para seu Ser ábsono, que transfigura poeticamente
sua porfia com o real e prefigura em si mesmo a centralidade de
seu estar-no-mundo [expresso em maiúsculas: “MIM”, “ME”].
Esse sujeito poético sabe-se só e, por isso, único responsável
pelo seu destino. Elevar-se sobre as contingências é a condição
para resistir às vagas destrutivas da sorte adversa. E quem sabe
encontrar um porto seguro – o “Sagrado”, lugar seguro para
uma alma inquieta e enamorada: “Assim, escrevo em sigilo /
e me perco nos meus enganos. // Descubro um lugar seguro
/ onde você pode habitar / onde pode ME habitar. / MINHA
alma, sua morada”. Seríamos o santuário dessa presença amo-
rosa do divino – encontro e, quem sabe, redenção: Ser?

Tenório Telles
Escritor, mestre em literatura e crítica literária pela PUC/SP e autor de
A derrota do mito, Canção da esperança & outros poemas e Viver

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primeira edição impressa
na gráfica eskenazi
para viveiros de castro editora
em outubro de 2019.

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