Artigo - Entrevista Com Kepler - Alexandre Medeiros

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Entrevista com

Kepler:
Do seu Nascimento à Descoberta das duas Primeiras Leis

20 Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002


Entrevista com

Do seu Nascimento à Descoberta das duas Primeiras Leis


Kepler:
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

E
ste texto segue a mesma linha de um outro artigo deste autor – Entrevista
Alexandre Medeiros
com Tycho Brahe – publicado nesta revista em outubro de 2001. O presente
Departamento de Física – Universidade
Federal Rural de Pernambuco artigo foi escrito em face da boa acolhida que os leitores da FnE deram ao
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ texto sobre o Tycho. Assim como aquele anterior, o texto atual pretende-se
uma leitura divertida de um assunto muito sério: a vida e a obra de Johannes
Kepler. Kepler é um personagem enigmático que deu uma enorme contribuição ao
desenvolvimento da Física. Suas leis do movimento planetário explodiram o dogma
do movimento circular platônico e assentaram as bases para o desenvolvimento
da gravitação newtoniana. O modo nada ortodoxo como Kepler chegou às suas
leis é ainda hoje alvo de um debate histórico entre os estudiosos. As versões têm
variado de leituras mais tradicionais do seu empreendimento, comuns nos livros
didáticos e que empobrecem as influências pitagóricas sobre o seu pensamento,
até versões exageradamente místicas, associadas aos historiadores da Astrologia,
que, na verdade, subestimam o esforço kepleriano de enquadrar os velhos mitos
em um novo padrão de racionalidade. Há, também, a polêmica sobre a sua interação
com o Tycho Brahe, descrita comumente nos livros didáticos de forma
absurdamente simplificada, como se fosse pacífica e harmoniosa, quando os
registros históricos apontam para conclusões opostas. Kepler deu, também,
contribuições de vulto no desenvolvimento da Óptica que, entretanto, nem sempre
lhes são devidamente creditadas. Contribuiu, igualmente, para lançar as bases do
estudo dos Logaritmos e do Cálculo e pode ser considerado ainda o precursor da
Cristalografia pelo seu estudo pioneiro sobre os cristais de gelo.
Diante de tão rico personagem, a tarefa de construir um relato de sua vida e
obra impõe-se como um enorme desafio, mais ainda quando se pretende comunicá-
lo de forma leve e pretensamente divertida, mas onde não se sacrifique o rigor das
informações históricas veiculadas. Diante desse dilema, recorremos a várias fontes.
A mais acessível ao grande público é o livro Os Sonâmbulos, do Arthur Koestler.
Consultamos também várias outras obras, principalmente os clássicos de Max
Caspar, Olga Baulmgardt, Edward Rosen e Owen Gingerich. Acima de tudo, foi
possível consultar as reedições das obras do próprio Kepler – coletadas e reunidas
independentemente por Caspar, Baumgardt e Rosen. Felizmente, para nós, Kepler
é um dos cientistas sobre o qual se tem preservado um grande número de textos
e correspondências originais. As inúmeras cartas escritas por Kepler equivalem,
em termos modernos, a verdadeiros artigos científicos, tal a precisão de detalhes
nelas contidos. Deste modo, tentamos construir um relato que pudesse parecer
divertido mas que não fugisse da precisão histórica possível em um simples artigo
com uma narrativa tão heterodoxa. No intuito de tornar essa narrativa divertida,
fizemos uma entrevista fictícia imaginando o nosso
personagem histórico cercado por colegas professores
de Física, no cenário do nosso sítio em Aldeia. O texto
expõe vários pontos sérios e complexos como a inter-
pretação do modo como Kepler chegou às suas leis,
Este artigo apresenta uma bem humorada
entrecortados por outros mais leves e divertidos como,
conversa entre Kepler e um grupo de profes- por exemplo, a polêmica envolvendo Tycho, Ursus e o
sores em descanso tranqüilo no sítio de um próprio Kepler. Apesar da forma propositadamente
deles, à beira de um pacote de amendoim. Em- irreverente segundo a qual a conversa desenvolve-se,
basado por diversos estudos acadêmicos, este
texto também pode ser utilizado como uma
os relatos históricos, mesmo aqueles mais divertidos,
representação teatral para se discutir aspectos como o acima citado envolvendo Ursus, estão apoiados
históricos da astronomia. em obras de inegável valor acadêmico. Kepler jovem, em Praga.

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A Entrevista com Kepler deu para perceber que ele não tinha lá freqüentemente de mau humor. Ela
uma grande afinidade com o Kepler. coletava ervas e fazia poções que acre-
Era véspera de ano novo e os ami-
Kepler: Eu vou ter mesmo de fa- ditava terem poderes mágicos. Isso
gos haviam vindo nos visitar em nos-
lar nesse assunto, só não gostaria de terminou por lhe trazer sérios pro-
so sítio em Aldeia, junto de Recife.
falar daquele velho ranzinza e egoísta blemas quando eu já era adulto. Ela
Comentavam a entrevista com o
logo agora. Eu li a entrevista dele na foi acusada de bruxaria e quase foi
Tycho Brahe que havia saído na Física
FnE e não gostei. Ele falou mal de mim queimada na fogueira, como era o
na Escola. Era uma reunião de profes-
e o editor da revista deixou. Vou re- costume da época. Aliás, mamãe ha-
sores de Física. Lá estavam o Jomar,
querer meu direito de resposta. via sido criada por uma tia que foi
Rogério, Galamba, Pedro Loureiro,
Alexandre: Calma Kepler, nós realmente queimada na fogueira
Maria Amélia, Nairon e claro a Cleide
estamos aqui justamente para entre- como bruxa. Eu deixei tudo registrado
e eu. Havia também o Carriço, um
vistá-lo, mas veja se modera a sua lin- nos horóscopos da família, uma es-
convidado especial lá de Natal, que
guagem para que a entrevista possa pécie, também, de memória.
trabalha com magnetismo e também
sair na íntegra. Amélia: Cruz credo, arreda ca-
queria conversar sobre o assunto,
Kepler: Vá lá! Prefiro contar co- peta! Já estou ficando com medo desse
além de cobrar a realização da entre-
mo tudo começou. Eu nasci em 1571 cara, gente. Acho que vou embora
vista com o Kepler. Rogério reforçou
em Weil Der Stadt, uma cidadezinha enquanto não escurece. E além de falar
a cobrança do Carriço, sugerindo que
perto de Leonberg, no Sacro Império todas essas coisas, o bicho já morreu.
aproveitássemos a oportunidade e
Romano-Germânico. Ela fica, hoje, no Kepler: Pois é, aquilo tudo me
entrevistássemos Kepler, seu grande
sul da Alemanha, perto de Stuttgart marcou muito mesmo. Sempre fui
ídolo na história da Física, sem demo-
e da França. Eu nasci de uma família um cara sofrido. Nasci uma criança
ra. Então eu entrei na história.
aparentemente importante, mas só prematura, de sete meses, e doente. A
Alexandre: Só tem um problema:
aparentemente. minha gestação teve exatos 224 dias,
como vamos fazer a entrevista sem o
Rogério: Como assim? 9 horas e 53 minutos. Ainda bebezi-
Fernando de Niterói? Ele é que sabe
Kepler: Bem, meu avô paterno, nho contraí varíola e quase fui para a
como conversar com esses caras que
Sebald Kepler, havia sido prefeito, terra dos pés juntos antes do tempo.
já se foram há bastante tempo.
burgo-mestre para ser mais preciso, A varíola atacou a minha vista e fiquei
Rogério: Lembre-se que ele só
de Weil Der Stadt. Ele era um artesão enxergando mal pelo resto da vida.
ficou inspirado depois de tomar aquele
respeitado. Meu avô por parte de mãe, Isso me impediu de ter vindo a ser um
copo de cerveja em Natal. Poderíamos
Melchior Guldenmann, também ha- astrônomo observacional, como foi o
tentar com outra pessoa.
via sido prefeito de Eltingen, uma vila Tycho Brahe. Como sempre fui apai-
Carriço: Eu me ofereço para to- próxima de Weil Der Stadt. xonado pelos astros, compensei essa
mar o copo de cerveja. Jomar: Quer dizer que você já minha deficiência física dedicando-me
Risos!!! nasceu com a caminha pronta? Era a interpretar as observações de outros.
Amélia: E então Kepler, podemos da elite, da classe dominante... Fui, acima de tudo, um teórico que
conversar? Kepler: Engano seu, meu caro, tentou encontrar uma ordem no caos
Carriço: Cadê o Kepler? deixe-me continuar. Apesar do meu das observações de outros astrô-
Rogério: Não deu certo! Tem algo avô paterno haver sido prefeito de nomos. Vi com os olhos poderosos da
faltando! Weil der Stadt, a fortuna da minha matemática.
Cleide: Vai ver que foi o amen- família estava em franco declínio na Pedro: Estou calado até agora, só
doim. O Fernando estava comendo época em que eu nasci. Além disso, o ouvindo você falar e notei que de vez
amendoim que o Jafelice havia com- ambiente familiar não era dos me- em quando você fala umas coisas
prado quando surgiu o Tycho Brahe. lhores. Minha avó paterna era uma esquisitas. Agora, mesmo, referiu-se
Carriço: Eu tenho aqui um resto mulher insaciável, esperta e uma à sua gestação no útero de sua mãe
de amendoins lá da praia de Ponta grande criadora de problemas. Além de um modo que nunca havia visto
Negra. Vamos experimentar. disso, era invejosa, violenta, odiava as ninguém falar antes. Desculpe, mas
Amélia: E então? Vamos logo! pessoas facilmente e guardava rancor. estou começando a achar que você
Carriço: Calma, devagar, hoje es- Todos os seus filhos herdaram algo não regula muito bem. Dá para tentar
tou todo dolorido. Aliás, sempre fui daquele seu caráter pouco admirável. explicar essas coisas um pouco me-
um cara muito doente, desde que nas- Meu pai, por exemplo, era um ho- lhor?
ci em Weil Der Stadt em 1571. mem rude, cheio de vícios, inflexível Kepler: Meus amigos, a minha
Rogério: Deu certo! A mágica é o e imoral. Um aventureiro e um autên- forma de falar, que lhes parece estra-
amendoim da praia de Ponta Negra, tico criador de casos, que ganhava a nha, é decorrente das minhas crenças
não a cerveja. Olha o Kepler falando vida precariamente como soldado astrológicas. Sempre fui místico e
conosco. mercenário, lutando para quem lhe desde cedo dediquei-me a fazer horós-
Pedro: Eu queria logo perguntar pagasse mais. A mamãe também não copos. Isso tem, claro, um funda-
ao Kepler sobre o que ele achava do era lá nenhuma flor. Era, também, mento astrológico. Para a Astrologia,
Tycho Brahe. Pela entrevista do Tycho uma criadora de problemas, que vivia o destino dos homens está traçado nos

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céus e pode ser seguido pela observa- tivo. Muito pelo contrário! Eu tentei paternos. Em 1576 meus pais mu-
ção cuidadosa do movimento dos as- enquadrar as minhas próprias convic- daram-se para a vizinha Leonberg e
tros que ocupavam posições de ções místicas em um padrão de racio- eu fui com eles. Aos oito anos, em
destaque no preciso momento do nalidade matemática. Isso muitos não 1579, entrei para a Escola em Leon-
nascimento de uma pessoa. Por isso, percebem ou não compreendem e berg para aprender Latim e Alemão.
registrei de forma tão precisa a minha criam, então, a maior celeuma. Uns Não fui um aluno notável; demorei
gestação, para saber o momento exato me caricaturam como um astrólogo duas vezes mais tempo na Escola de
em que vim ao mundo e dessa forma e outros como um adversário da Latim do que o normal, que seria dois
poder estudar de modo mais preciso Astrologia. anos. Em 1584, entrei na Escola do
o meu próprio destino. Alexandre: Ok! Prossiga, por fa- Monastério (o seminário menor) em
Alexandre: Isso tudo me deixa vor. Adelberg. Lá comecei a me revelar
bastante intrigado. Não acredito em Kepler: Como disse, eu nasci como um estudante bastante talen-
Astrologia e não quero, portanto, fa- prematuramente e sempre fui um ca- toso. Em 1586, aos quinze anos, fui
zer apologia da mesma, mas tenho ra fraco e doente a vida inteira. Já estudar em Maulbronn, em uma
uma posição de respeito pelos que nasci com miopia e visão múltipla. Escola preparatória para a Universi-
acreditam no que quer que queiram. Galamba: Quer dizer que você via dade de Tuebingen.
Sei que você esteve sempre envolvido fantasmas? Cleide: E como foram seus dias na
com a Astrologia. Já li, porém, e isso Kepler: Mais ou menos. E, além Escola?
é muitas vezes posto em destaque nos disso, eu sempre tive problemas de Kepler: Minhas lembranças são as
livros mais conservadores, que você estômago e de vesícula. Sem falar que piores possíveis. Certamente, tive até
também criticou bastante a Astrolo- sofria de hemorróidas e tinha o corpo a sorte de entrar para a Escola em um
gia, chegando até a zombar da mes- freqüentemente coberto por furún- período em que o ensino estava sen-
ma. Sei, também, que você foi muito culos e erupções. do muito valorizado pela Reforma
influenciado pelas suas concepções Amélia: Galamba, dá licença. Tro- Protestante. Os protestantes incenti-
místicas para ter chegado às suas for- ca de lugar comigo, não quero ficar vavam a educação básica para que as
mulações astronômicas. Seu próprio junto do Kepler. pessoas pudessem ler corretamente e
modelo de Universo com esferas cir- Pedro: Você não era hipocon- interpretar a Bíblia. Os duques de
cunscritas em poliedros regulares e dríaco? Wurttemberg haviam criado na mi-
aquela coisa da música celestial, da Kepler: De fato, vários biógrafos nha região, nessa perspectiva protes-
harmonia do cosmos como uma sin- meus têm assinalado essa sua opinião. tante, um sistema de ensino muito
fonia, são testemunhas dessa influên- Confesso que quando vivo pensei eficiente, tradicionalmente falando. A
cia mística, pitagórica ou neo-platô- sempre ser muito doente mesmo, mas idéia era a de recrutar as melhores
nica, como queira. Queria entender é possível que muitas vezes a coisa mentes para o nascente clero protes-
como essas coisas se encaixavam no tivesse mesmo um fundamento psi- tante. Para tal, um sistema de bolsas
seu pensamento. Para mim, soa um cossomático. Mas deixe-me continuar de estudo havia sido criado para
tanto esquisito em alguns momentos meu papo. Meus pais eram muito crianças promissoras, do sexo mas-
você falar em termos astrológicos e pobres e por isso, de início, fui criado culino, de famílias pobres. E apesar
em outros desancar a Astrologia. Co- pelos meus avós. de eu ser uma criança doente e fraca,
mo é essa coisa? O que há de verdade Jomar: Isso está parecendo a his- eu era muito inteligente, precoce-
nisso tudo? tória do Tycho que foi criado pelo tio mente brilhante mesmo.
Kepler: Bem, eu fui mudando dele. Será que não ser criado pelos pró- Galamba: Puxa, que modéstia!
minha atitude perante a Astrologia prios pais influencia no fato das pes- Kepler: Aquilo me garantiu, entre-
com o decorrer da minha vida. Sempre soas virem a se tornar astrônomos? tanto, um sucesso apenas relativo.
fui e continuei sendo místico, mas Kepler: Acho que não, mas às ve- Minhas notas eram as mais altas, mas
apesar disso, entrei, realmente, em zes a gente fica mesmo a ver estrelas eu era sempre alvo de zombarias.
choque com a Astrologia em diversos (risos). De toda forma, prefiro não Apesar do sucesso nas notas, tive uma
momentos. Não é que não acreditasse fazer essa comparação com a história vivência escolar miserável.
nos seus princípios fundamentais, na- do Tycho. Ele era um cara sadio e que Cleide: Conte isso melhor.
quela coisa de que a posição dos astros foi criado por um tio rico, riquíssimo. Kepler: Eu me sentia solitário e in-
determinava os destinos dos homens, Eu era uma criança doente e fui, de feliz. Minha inteligência apenas con-
mas no sentido de que as bases astro- início, criado por avós falidos. tribuía para irritar os meus colegas,
nômicas da Astrologia, seus funda- Galamba: Está certo que a sua his- despertando-lhes a inveja. Eles,
mentos observacionais, eram dignos tória tem uns tantos infortúnios, mas freqüentemente, batiam em mim. Eu
do riso. Certamente eu sempre fui você é meio chorão, heim cara? Desse não tinha como reagir, pois era mes-
místico, eu acreditava piamente na- jeito a gente não anda nessa sua mo fraco e doente. Era um autêntico
quelas idéias pitagóricas, mas eu não história. saco de pancadas, um bobo da corte,
fui místico no sentido de adotar exclu- Kepler: Pois bem, dos 3 aos 5 anos um nerd, como vocês dizem atual-
sivamente um pensamento especula- de idade, eu morei com os meus avós mente. Eu mesmo me considerava um

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cara repulsivo, feio. Eu me via como Rogério: Mas você chegou a se ainda que meio na surdina. Maestlin
um cão com medo de água. Deixei isso tornar um pastor luterano? nascera em 1550, logo após a morte
por escrito em minhas memórias, co- Kepler: Não, por duas razões prin- do Copérnico. Ele foi um dos primei-
mo sabem. Eu sentia que ninguém cipais e interligadas: a recusa em ros astrônomos a aderir àquelas
poderia gostar mesmo de mim. aderir à Fórmula da Concórdia e a mi- idéias. Ele foi da geração do Tycho
Sentia-me um estranho no ninho, um nha convicção copernicana. Embora Brahe, mas diferentemente do Tycho,
patinho feio, um ET. a minha família fosse luterana e eu, ele aderiu ao copernicanismo. Para
Galamba: Quer parar com essa conseqüentemente, tivesse aderido à evitar polêmicas, ele ensinava aos alu-
lamentação, seja homem, cara! Confissão de Augsburgo de 1530, eu me nos da graduação em Tuebingen as
Kepler: Pois é, o Galamba parece recusara a aderir à Fórmula da Con- teorias do Ptolomeu e apenas aos mais
com os meus colegas. córdia de 1577. adiantados as teorias do Copérnico.
Cleide: É Galamba, não tem gra- Pedro: Confissão de que? Que Fór- Ao tomar contato com as idéias do
ça, para com isso! mula da Concórdia é essa? Copérnico eu me tornei logo um co-
Jomar: Eu acho que o Galamba Kepler: São coisas da Reforma Pro- pernicano por razões físicas, ou mes-
tem razão, professora, o cara é muito testante iniciada por Lutero. Em 1530 mo metafísicas se vocês preferirem
chorão, mesmo. E, além disso, gosta- Melanchton redigiu uma espécie de assim.
ria que ele fosse sincero e nos contasse formulário, denominado Confissão de Jomar: Como assim?
se só havia uma vítima nessa história Augsburgo. A Confissão continha 28 Kepler: Eu era místico, um pita-
toda… artigos que sintetizavam a profissão górico que aceitava aquela idéia do
Kepler: Bem, apesar de fraco e do- de fé luterana. Assinar a Confissão sig- Filolau, antigo filósofo grego, do fogo
ente eu era um tipo meio provocador. nificava aderir formalmente à fé lute- central do Universo. As idéias do
Admito que criava alguns casos. Nos rana. Eu já havia assinado a minha Copérnico casaram, quase que instan-
meus escritos de memórias chego a adesão à Confissão, mas recusei-me a taneamente, com as minhas concep-
admitir ter sido várias vezes desleal e assinar a minha adesão à Fórmula da ções mais fundamentais sobre o Uni-
até mesmo invejoso. E eu sei que era Concórdia, que me parecia muito radi- verso.
muito competitivo mesmo, mas que cal. Rogério: E como foi sua vida na
era mais talentoso, isso era inques- Nairon: O que era essa Fórmula Universidade?
tionável. E eu às vezes tentava de- da Concórdia? Kepler: Eu lia muito, muito mes-
monstrar isso, tornar esse fato Kepler: Era um documento oficial mo. Passei nos exames e obtive o meu
público e evidente. posterior do luteranismo, bem mais grau de Mestre em 1591. Poderia ensi-
Pedro: Então está explicado, com- radical, surgido em 1577, que sinte- nar, mas não seria mais ministro de
panheiro! Parece que você era mesmo tizava os conteúdos, as regras e os Deus, apenas um seu seguidor incom-
um chato, como disse o Tycho. padrões de acordo com os quais to- preendido pelos meus contemporâ-
Kepler: Pode ser que sim, mas dos os dogmas deveriam ser julgados neos, uma ovelha desgarrada.
apesar disso, desses momentos de dis- e todas as controvérsias do ensino de- Galamba: Que cara dramático!
túrbios emocionais, eu não procurava veriam ser decididas e explicadas de Kepler: Drama coisa nenhuma, eu
contato com outros colegas, eu era um modo cristão. Como vocês sabem, cometi em Tuebingen a ousadia de
bastante introvertido. Desse modo, Lutero havia condenado a doutrina de defender o sistema copernicano em
descontente com a minha realidade Copérnico e, assim sendo, ela havia um debate público. Aquilo sepultou
material, voltei-me para o mundo das sido rejeitada pelos cânones da Fórmu- também minhas chances de obter um
idéias e encontrei na religião, na mi- la da Concórdia. Eu, que já me tornara lugar para lecionar na Universidade.
nha fé, uma tábua de salvação. um copernicano convicto, recusei-me, Lembrem-se que o próprio Martinho
Minhas convicções religiosas eram então, a aderir à Fórmula. Lutero havia condenado as idéias de
tudo para mim. Elas eram o meu úni- Pedro: E aí o caldo entornou... Copérnico e citado as Sagradas Escri-
co modo de escapar de todas aquelas Kepler: Quase! Não cheguei a ser turas para provar que ele estava er-
agruras terrenas. E assim fui estudar expulso da Universidade, mas as mi- rado.
na Escola preparatória e depois na nhas chances de tornar-me pastor lu- Rogério: O livro do Leo Huber-
própria Universidade de Tuebingen. terano desapareceram. Eu fui excluído man, A História da Riqueza do Homem,
Procurei lá as coisas do pensamento, do recebimento dos sacramentos. Pas- menciona esse episódio sobre o Lutero
as coisas do céu. sei a ser visto com desconfiança pelos e o Copérnico.
Alexandre: Fica claro, então, o que luteranos. Para eles eu era um meio Pedro: E o que você fez ao concluir
você foi estudar lá. luterano, não um luterano convicto. sua graduação?
Kepler: Pois é! Em 1589 entrei para Amélia: Mas como é mesmo que Kepler: Continuei estudando em
a Universidade Protestante de Tuebin- o Copérnico entrou nessa história? Tuebingen, como vocês diriam atual-
gen para estudar Teologia, Filosofia, Kepler: Bem, em Tuebingen eu fui mente, como um estudante de pós-
Matemática e Astronomia. Eu dese- aluno do grande astrônomo Michael graduação. Fiquei lá com uma bolsa
java ser um pastor luterano. Para isso, Maestlin, que foi um dos primeiros a do ducado de Wuerttemberg até 1594,
estudei bastante Teologia e li muito. defender o sistema de Copérnico, ano em que fui aceito para ensinar

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Matemática no seminário protestante cia com a Astrologia e como conci- fazia aquilo de modo um tanto ou
em Graz, na Áustria. liava essa discordância com o fato de quanto cínico. Que fazia para defender
Cleide: E como foi a sua experiên- assim mesmo continuar a fazer ho- a sua sobrevivência, mas que despre-
cia como professor de Matemática? róscopos? Havia algo de cinismo nessa zava a Astrologia.
Kepler: Não foi das melhores, o di- sua atitude? Você fazia, na prática, Kepler: Acho que já expliquei a mi-
retor implicava comigo. E eu não era coisas com as quais, teoricamente, nha posição. Quero, além disso, assi-
um bom professor. Minha memória não estaria de acordo? nalar que fiz duas importantes pre-
era muito seletiva, eu me recordava Kepler: Não exatamente! Esse é dições que foram confirmadas com
em detalhes de muitas coisas e um ponto muito importante, que grande sucesso. Previ um inverno
esquecia de outras tantas. Isso me precisa ser compreendido com aten- muito rigoroso na Áustria e uma in-
atrapalhava e me fazia misturar ass- ção. Meu desacordo não era com o fa- vasão dos Turcos. A confirmação da-
untos e falar muito ligeiro. Certo é to da Astrologia prever o futuro, o queles fatos me trouxe bastante
que no primeiro ano o meu curso de destino dos homens marcados nos prestígio e até um aumento salarial.
Matemática teve poucos alunos e no céus. Eu sempre acreditei no destino e Pedro: Desculpe, não quero pole-
ano seguinte nenhum. na influência dos astros sobre a vida mizar com o senhor, mas prever essas
Jomar: Aí, então, você foi de- humana, fundamento maior da As- duas coisas não foi algo, assim, meio
mitido! trologia. Ocorre, porém, que a Astro- óbvio? Parece-me como prever uma
Kepler: Não, eu não fui demitido, logia baseava-se no sistema Ptolomai- seca no nordeste e uma invasão ame-
coisa nenhuma! Eu tinha uma série co. Aliás, ainda hoje é assim, sabiam? ricana em algum país do oriente.
de outras coisas para fazer. Ela ainda fala em constelações, como Kepler: Pode ser que sim, visto des-
Alexandre: Você refere-se ao dire- se as mesmas tivessem existência real se seu ângulo meio cético, mas para
tor do Seminário com um certo ran- e não, apenas, aparente. Eu não gos- mim aquilo era coisa séria. Minha
cor e sei que deixou isso registrado tava daquela imprecisão. discordância se colocava nos termos
em suas cartas, mas há registros, Pedro: Interessante! E daí? que já expliquei.
também, de que ele livrou a sua pele Kepler: Daí que, tendo me torna- Nairon: E quanto tempo você fi-
quando os seus alunos sumiram. Ele do um copernicano convicto, queria cou em Graz?
afirmou que a culpa era dos alunos reassentar as bases da Astrologia sobre Kepler: Até 1600, quando todos
mesmo, que a Matemática era uma novas concepções astronômicas. os protestantes foram intimados pelo
coisa difícil, que não era para qualquer Aquela coisa velha que havia se tor- imperador a se converterem ao cato-
um aprender. Não foi? nado a Astrologia parecia-me total- licismo ou abandonarem a cidade.
Cleide: Quer dizer que jogar a mente em desacordo com as novas Jomar: Por que isso?
culpa nos alunos por eles não apren- concepções trazidas pelo Copérnico. Kepler: Eram atitudes da Contra-
derem Matemática é coisa antiga… No fundo, eu não era um verdadeiro Reforma promovida pela Igreja
Kepler: Bem, eu sei que muitos dos opositor, mas pretendia-me, sim, um Católica, numa tentativa de conter a
meus biógrafos insinuam que eu reformador da Astrologia. Queria Reforma Protestante que se espalhava
tinha uma certa mania de persegui- criar algo baseado na reflexão mate- pela Europa. Essas decisões haviam
ção. Naquela época eu não pensava mática. Foi por isso que fiz uma crítica sido tomadas no Concílio de Trento,
assim, mas pode haver um fundo de dura que muitos não entenderam. logo após a morte de Copérnico.
verdade nisso mesmo. Mas de toda Alexandre: O que foi que você dis- Rogério: Fale um pouco mais do
forma, eu não estou só nessas esqui- se? que fez durante a sua estada em Graz.
sitices na história da Física, não é? Kepler: Eu afirmei e isso está de- Kepler: A vida lá não foi fácil.
Amélia: Com certeza! Tirando os vidamente registrado, que: uma mente Durante os seis anos que passei em
malucos e os esquisitos, não sobra acostumada à dedução matemática, Graz ensinei Aritmética, Geometria,
muita gente. quando confrontada com as bases falsas Evangelho e Retórica. Nas horas vagas
Jomar: Pensei que você tivesse si- da Astrologia, resiste por muito tempo, eu estudava Astronomia e Astrologia.
do demitido, pelo modo que falou. E tal qual uma mula obstinada, até ser Foi em Graz que me casei pela pri-
o que mais você fazia? compelida na pancada a por os seus meira vez. Lá nasceram meus dois pri-
Kepler: Eu havia sido indicado cascos naquela lama podre. meiros filhos, que morreram logo
também, como matemático do distri- Alexandre: Mas apesar dessas após o nascimento. Naquele mesmo
to, responsável pela confecção do suas críticas veementes você conti- ano do meu casamento publiquei meu
calendário. Uma das minhas obriga- nuou a fazer horóscopos! primeiro trabalho, o Mysterium
ções principais era a de fazer predições Kepler: Isso! Como disse antes, mi- Cosmographicum. O livro era uma
astrológicas, horóscopos. Apesar de nha discordância era quanto às bases defesa clara e aberta do sistema coper-
fazê-los, eu comecei, desde aquela observacionais da Astrologia. Insisto nicano. Eu não me contentei, entre-
época, a esboçar a minha contrarie- que não havia nada de cínico em tanto, em reproduzir o esquema de
dade contra os fundamentos da As- minha atitude. mundo do Copérnico; eu queria
trologia. Alexandre: Mas existem livros que mostrar ao mundo que ele fazia um
Alexandre: Qual a sua discordân- insinuam, descaradamente, que você sentido profundo, que havia uma

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ordem divina subjacente ao mesmo. sobre essa primeira circunferência e pelos vértices do tetraedro e a esfera
Foi nesse meu primeiro livro, sob forte em seguida uma nova circunferência interna tocasse todas as suas faces,
influência neo-platônica, que desen- sobre este quadrado, era possível en- mas estivesse completamente contida
volvi aquela idéia de que as distâncias contrar uma certa regularidade. no tetraedro. O processo prosseguia
dos planetas até o Sol, no sistema Nairon: Que regularidade? com a adição de novos poliedros. E
copernicano, eram determinadas pe- Kepler: Na continuidade daquele tem mais: como existem apenas cinco
los cinco poliedros de Platão. Bastava processo, adicionando novos polígo- sólidos platônicos, haveria exatamen-
supor que a órbita de cada planeta nos regulares, pentágonos, hexágonos te seis planetas correspondentes aos
estava circunscrita sobre um sólido e etc, e as respectivas circunferências raios das seis esferas. Assim, eu espe-
inscrita em outros seguintes. circunscritas, era possível notar que rava que as distâncias planetárias ao
Jomar: Acho isso muito compli- havia uma razão fixa entre os diâme- Sol obedecessem aquele esquema,
cado. Já vi uma figura com esses só- tros daquelas circunferências. E como mantendo a mesma razão entre si que
lidos e esferas, mas confesso que não eu tinha sempre em mente as órbitas os raios das esferas do esquema geo-
entendo de onde você pode ter tirado dos planetas, pensei que, talvez, aque- métrico que acabei de mencionar. Se
aquela idéia. A minha primeira la ordem se aplicasse aos tamanhos isso se confirmasse eu teria, certa-
sensação é que... você sabe... das órbitas. Deste modo, se assim mente, achado uma bela explicação do
Galamba: Coisa de doido, aquilo fosse, os valores daquelas órbitas não porque existiam apenas seis planetas
me parece um chute. Ele quer dizer seriam aleatórios, mas guardariam e do porque as distâncias ao Sol
que parece coisa de doido e está entre si uma relação estética e harmo- assumiam aqueles valores encon-
acanhado, mas eu também achei isso niosa. Mas aquilo foi só o começo da trados. Era um modelo geométrico de
logo que vi aquela figura. Para mim idéia, como um todo. uma incontestável elegância. Alguém
aquilo é um chute. Galamba: E deu certo? duvida disso?
Kepler: Posso admitir que à pri- Kepler: Infelizmente, não muito! Pedro: Não! Parece algo realmen-
meira vista aquele meu esquema de Parecia que o plano de Deus era algo te muito belo! Mas deu certo?
órbitas inscritas em poliedros cause bem mais complicado, as razões não Kepler: Infelizmente, não tanto
essa impressão, mas se vocês presta- eram exatamente aquelas. Mas que o quanto eu desejava! Havia algumas
rem atenção no modo como aquela plano matemático divino existia, disso discrepâncias nas medidas das órbitas
coisa toda me ocorreu, verão que ela eu nunca duvidei. A razão matemá- que eu não sabia como explicar.
faz um certo sentido. tica deveria existir, mas não era aquela Galamba: Neste caso, como a
Rogério: Pois explique, por favor. encontrada com as figuras geomé- medida das órbitas não dava exata-
Estou curioso para saber de onde você tricas planas. mente o mesmo valor para a razão
tirou aquela idéia esquisita. Rogério: Eu pensava que o seu que aquele previsto pelo seu modelo,
Kepler: Lecionando Geometria em modelo era composto de sólidos como você, certamente, abandonou aquele
Graz eu me questionava sobre a havia falado antes. Agora você falou modelo esquisito dos tais sólidos,
existência de uma ordem geométrica de figuras planas, polígonos. Como é certo?
nos céus. Era uma postura, certamen- essa coisa? Kepler: Errado!
te, bastante pitagórica. Pitágoras e os Kepler: Os poliedros regulares, ou Galamba: Como assim, cara?
seus discípulos acreditavam na exis- mais precisamente, os sólidos de Pla- Quando uma concepção mostra-se er-
tência de harmonias na natureza, algo tão, foram o próximo passo da minha rada na Ciência, em descordo com as
como uma sinfonia divina. Restava investigação. Eu queria encontrar a observações, a gente não a abandona
encontrar aqueles acordes. Pois bem, simetria subjacente ao cosmos, e parte logo para outra?
eu me colocava a seguinte pergunta, entender a ordem oculta no Universo Kepler: Nem sempre meu jovem,
o meu problema de pesquisa, como copernicano. não é tão simples assim. Por que eu
dizem atualmente os entendidos em Amélia: Que bonito. E então? haveria de abandonar o meu belo mo-
metodologia da investigação: Por que Kepler: Então, seguindo a tradi- delo? As discrepâncias observadas,
o Criador fez as órbitas dos planetas do ção de Pitágoras e Platão, tentei en- principalmente aquelas existentes nos
tamanho que elas são? contrar uma certa simetria que desse dados referentes às órbitas de Mercú-
Nairon: E como a Geometria en- conta da beleza matemática do Cos- rio e de Júpiter, poderiam, muito bem,
trou nessa história? mos. Eu pensei que deveria buscar ser explicados por erros nas tabelas
Kepler: Buscando uma ordem para o Universo uma simetria tridi- de Copérnico. Tudo que eu precisava
subjacente que justificasse a escolha mensional. Sendo o Universo tridi- para confirmar minha hipótese era ter
divina daquelas distâncias planetárias, mensional eu deveria pensar em ter- acesso a dados observacionais bem
eu comecei observando certas regula- mos de esferas celestes com as órbitas mais precisos que aqueles de Copér-
ridades existentes na Geometria. planetárias em seus equadores. Racio- nico. Eu tinha a firme convicção de
Notei, por exemplo, logo de início, que cinando de modo semelhante ao caso que, com dados melhores, poderia en-
circunscrevendo uma circunferência no plano, imaginei duas esferas con- contrar a ordem implícita na organi-
em um triângulo eqüilátero e logo cêntricas com um tetraedro entre elas zação do Universo.
após circunscrevendo um quadrado de modo que a esfera externa passasse Alexandre: Foi aí, então, que você

Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002 Entrevista com Kepler 25


Marte, Júpiter e Sa- tra da Ciência. Foi então que o
turno. Veja, que eu Feyrabend entrou em cena e ironica-
retirei dois deles: o mente ressaltou que essa crítica era
Sol e a Lua e colo- sempre assimétrica, que os cientistas
quei a Terra como costumam tratar as suas próprias
um planeta. Para teorias como se elas fossem um
mim, o Sol era o cãozinho de estimação enquanto tra-
centro de tudo e a tam as teorias dos outros como se fos-
Terra um simples sem animais ferozes (risos). Pois bem,
planeta. Já a Lua eu foi mais ou menos com esse espírito
não a considerava feyrabendiano que eu olhei para as
como um planeta. minhas idéias e para as do Copérnico.
Cheguei até a intro- Amélia: Estou entendendo. Bem
duzir uma nova pa- que a minha avó já dizia, Mateus,
lavra para descrevê- Mateus, primeiro os teus.
la: satélite. Mas essa Cleide: E como o Tycho entrou no
denominação eu só seu caminho?
passei a usar após Kepler: Bem, em 1598 todos os
haver tomado co- protestantes foram forçados a aderi-
nhecimento das rem ao catolicismo ou saírem de Graz.
observações feitas Jomar: Você tinha dito antes que
por Galileu do pla- isso tinha sido em 1600.
neta Júpiter. Isso, Kepler: Não, a perseguição co-
portanto, foi lá por meçou logo em 1598, mas eu só vim
1611. Eu chego lá. a sair em 1600. Em 1598 o seminário
Modelo kepleriano de sólidos platônicos para o universo Amélia: Quer protestante onde eu ensinava foi
apresentado no Mysterium Cosmographicum. dizer que você, ape- fechado pelo jovem arquiduque Fer-
sar de copernicano, dinando de Habsburgo. Ele queria eli-
pensou nos dados coletados pelo botou a culpa da falha do seu modelo minar a heresia luterana das suas pro-
Tycho Brahe... nas tabelas do Copérnico? víncias. Eu pude ficar, pois meu
Kepler: Certamente! O Tycho era Kepler: Isso! E qual é o cientista trabalho de fazer horóscopos era bem
um grande observador, o maior de que bota logo a culpa dos desacordos aceito. Entretanto, no ano seguinte a
todos. Os seus dados tornaram-se observacionais na sua própria teoria? situação piorou e diante da obrigação
uma obsessão para mim. Quem é que gosta de atirar no próprio de ter de me converter ao catolicismo
Jomar: Deixe-me voltar um pé? O mais comum é atirar no pé dos ou sair de Graz, me vi compelido a ir
pouco no que você disse antes. Você outros. Certamente, todos nós preci- trabalhar em outro lugar.
falou várias vezes que um dos en- samos ser críticos, mas é mais fácil Rogério: Foi aí que você pensou
cantos dessa sua teoria dos tais sólidos criticar as idéias dos outros (risos). Eu em ir para Praga, trabalhar com o
platônicos residia no fato de também era copernicano no tocante à concep- Tycho?
servir para justificar a existência de ção de mundo heliocêntrica do Copér- Kepler: Para ser sincero, não! Eu
apenas seis planetas. Mas isso está nico, mas achava suas tabelas muito ainda tentei voltar para Tuebingen,
errado, são nove, não? imprecisas. Recentemente, bem depois mas os luteranos de lá não me viam
Kepler: Na minha época eram de morto, claro, li algumas coisas do com bons olhos pelo fato de eu ser
apenas seis, incluindo a Terra entre Paul Feyrabend e acho que a sua visão um copernicano declarado. Foi então,
eles, já que eu era um copernicano. sobre o papel da crítica na Ciência pode nesse momento particularmente di-
Eram Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, dar conta da minha atitude. fícil da minha vida, que surgiu o
Júpiter e Saturno. A descoberta dos Amélia: Como assim? O que tem convite do Tycho para ir trabalhar
outros veio bem depois da minha o Feyrabend com isso? com ele. Naquela época nos corres-
morte, coisas dos séculos XIX e XX. Kepler: Estou me referindo àquele pondíamos há dois anos.
Jomar: Ahhh…! debate famoso, ocorrido em Londres Jomar: Quer dizer que, no fun-
Rogério: Eu havia lido, não me no final dos 1960 sobre a obra do do, o Tycho agiu como seu amigo con-
lembro onde, que os antigos acredi- Thomas Kuhn. O Kuhn foi criticado vidando-o nesse momento difícil. E
tavam na existência de sete planetas. pelo Popper e pelos seus seguidores por parece que você não foi muito grato
Você, agora, falou em seis. Como é não valorizar o papel da crítica no de- com ele.
isso? senvolvimento da Ciência. O Popper Kepler: O Tycho não agiu como
Kepler: Você está certo. Os antigos, disse, textualmente, que o cientista meu amigo coisa nenhuma! Foi um
Ptolomeu entre eles, falavam em sete kuhneano era um deslavado cerebral mero jogo de interesses da parte dele.
planetas: Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, e afirmou que a crítica é a mola mes- Logo após publicar o meu Mysterium

26 Entrevista com Kepler Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002


Cosmographicum, em 1597, ficou claro humor, o meu relacionamento, diga- jado pelo Criador e que se refletisse
para os astrônomos em geral, inclu- mos… neurótico, com o Tycho. em alguma ordem geométrica subja-
sive para Tycho, que eu era um teórico Rogério: Calma Kepler. De todo cente. Sacou?
com grandes dotes matemáticos. E já modo, você impressiona com essa sua Galamba: Então nós podemos di-
naquela época, e mais ainda em 1600, convicção baseada nas suas crenças zer que como você não conhecia a Me-
o Tycho estava desesperado por não religiosas, mas será que, no fundo, cânica de Newton, por haver morrido
conseguir ajustar os seus dados você não estava também querendo antes do seu aparecimento, a sua
observacionais com aquele seu mo- apenas provar o seu modelo, ainda postura era um tanto antiquada ao
delo híbrido no qual os planetas gira- que, digamos, por razões mais no- estudar a natureza...
vam em torno da Terra e a Terra gira- bres? Kepler: Alto lá rapazinho, vê co-
va, juntamente com os demais plane- Kepler: Como assim? mo fala. Sou fraco e doente, mas não
tas, em torno do Sol. Ele era apenas Nairon: Meu caro Kepler, apesar gosto de levar desaforo para casa. E
um astrônomo de campo, sem grande de simpatizar muito com a sua pos- você vai ter que comer muito feijão
talento matemático e o seu grande tura de buscar essa tal, digamos, “or- preto com espinafre para chegar onde
ajudante, o Longomontanus, também dem implícita” no Universo coperni- cheguei, ciente? Certamente a minha
não estava à minha altura. Logo... cano, creio que o Rogério tem uma abordagem pode parecer antiquada
Rogério: Mas você também só certa razão na sua crítica. Afinal, a quando comparada à postura newto-
queria botar a mão nos dados obser- sua convicção de que deveria existir niana, mas não parece tão antiquada
vacionais do Tycho. Ele mesmo disse uma razão que justificasse as distân- quando comparada à postura da
isso na entrevista que nos concedeu e cias dos planetas ao Sol, era um mero Física Moderna.
você, de certo modo, confirmou essa pressuposto metafísico. Neste sentido, Galamba: Como assim?
versão. sua intenção não era, mesmo, muito Kepler: Veja o que a Física do sé-
Kepler: Vamos esclarecer essa coi- diferente da do Tycho. culo XX nos ensinou e compare com
sa. Há muita água embaixo da ponte. Kepler: Creio que não! Deus não a minha perspectiva clássica ou pré-
Eu deixei por escrito a minha versão. joga dados com o Universo. Aprendi clássica, como queira chamar.
O Tycho era um homem muito rico, isso muito tempo depois de morto Galamba: Eu não gosto de Física
riquíssimo. E como quase todo lendo as coisas do Einstein. Moderna, acho que ela nem deveria
homem rico, não sabe bem o que fazer Nairon: O que eu quero dizer é ser ensinada na escola. Corta esse papo
da sua fortuna. Claro, estou me refe- que olhando do ponto de vista da e vamos falar das suas teorias que,
rindo aos dados que ele possuía. Há mecânica newtoniana, não faz sentido para mim, não têm nada com a Física
uma enorme diferença de atitudes en- nenhum procurar uma razão espe- Moderna.
tre eu e o Tycho. Para começar, o cial de ser para essas distâncias entre Kepler: Pois você deveria gostar. Se
Tycho era um sujeito detestável, os planetas e o Sol, como você queria. eu estivesse vivo atualmente, gosta-
egoísta, que não queria me mostrar Elas não parecem coisas divinas, como ria de trabalhar com a Mecânica
os seus dados, apenas parte deles; pareciam para você, pois se, por exem- Quântica.
aquilo que lhe parecia conveniente. Ele plo, o sistema solar fosse perturbado Galamba: Por que?
queria me usar para que eu confir- pela proximidade de algum corpo Kepler: Veja lá: o átomo de hidro-
masse o seu modelo, enquanto eu celeste de grandes proporções, algo gênio tem apenas um elétron girando
queria apenas utilizar os seus dados como uma estrela, sei lá, as tais dis- em torno de um próton. Isso lembra
para compreender a ordem oculta do tâncias dos planetas ao Sol seriam um sistema planetário e a Mecânica
Universo, para entrar na mente do modificadas. Quântica estabelece que o elétron pode
Criador, descobrir o plano de Deus. Eu Kepler: Certo, mas eu não sabia descrever apenas certas órbitas. Há,
era um asceta, enquanto ele era um disso. A Mecânica de Newton é pos- portanto, uma certa ordem geomé-
beberrão inveterado, que como vocês terior à minha morte. É por isso que, trica, de algum modo semelhante
sabem bem morreu após uma carras- de certo modo, a mecânica newtonia- àquela que eu gostaria de haver
pana. na dessacraliza o Cosmos, ao menos encontrado para os planetas no
Alexandre: Epa! Modera essa lin- nesse sentido relacionado às razões de sistema solar.
guagem, senão o editor da revista cor- ser das distâncias entre os planetas e Rogério: Estou entendendo onde
ta a entrevista. o Sol – já que o próprio Newton via o você quer chegar. Pode ser que exista
Kepler: Modero coisa nenhuma, o espaço também de uma forma místi- uma tal ordem geométrica mais bá-
Tycho era mais do que isso! Invejoso, ca, como o sensório de Deus. É impor- sica na natureza, não mais no nível
sarcástico, perverso, beberrão... Leia tante, porém, notar que eu jamais planetário. E, realmente, uma tal or-
as minhas cartas ao Maestlin ou veja poderia ter compreendido isso que vo- dem guardaria semelhanças com a
a peça escrita recentemente pelo cê falou. A minha perspectiva teórica sua atitude, historicamente vencida,
Patrick Gabridge intitulada Reading the era outra. Para mim, o sistema solar diante do sistema solar.
Mind of God (Lendo a Mente de Deus). era a parte mais importante da criação Galamba: Já estou todo atrapa-
Acho que ainda não traduziram para e deste modo eu esperava que algo lhado com esse papo. Não gosto nada
o português. Ela descreve, com fino muito especial houvesse sido plane- desses nossos entrevistados que já

Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002 Entrevista com Kepler 27


morreram continuarem lendo as coi- certo modo, fui contra a ortodoxia já expliquei antes, era meio cegueta.
sas de outros que vieram depois deles. tanto protestante quanto dos católicos Mas, aquilo, para mim, eram as pró-
Para mim o cara morreu, acabou. a respeito da obra do Copérnico. Mas prias palavras de Deus. O Tycho que-
Deveria deixar de ser metido e ficar gostaria de assinalar que, apesar do ria guardar aquilo só para si, usar
lendo as coisas dos outros que vieram seu modo mais prudente, o Maestlin, para a sua glória pessoal, enquanto
depois. Dá para voltar o papo para a que ensinava predominantemente o eu queria compartilhar com todos os
sua época e não sair mais de lá? modelo do Ptolomeu, chegou a acres- homens de fé. Era preciso contemplar
Rogério: Calma Galamba, o Kepler centar na última edição do seu Epitome matematicamente a obra do Criador
fez apenas uma incursão por épocas Astronomiae, em 1588, um apêndice e aquilo eram as ferramentas básicas
mais recentes em termos compa- contendo breves informações sobre o necessárias.
rativos. sistema copernicano. Ele ainda viveu Cleide: Estou de acordo com o
Kepler: É, vamos voltar mesmo um bocado e pode acompanhar toda Kepler, aqueles dados eram mesmo
aos anos em Praga, começando nos a minha trajetória. Aliás, o Maestlin um patrimônio da humanidade.
1600. morreu em 1631, já aos 81 anos de Kepler: Ainda bem que alguém
Galamba: Ótimo! Você estava fa- idade, um ano após a minha morte. está de acordo comigo, já estava fi-
lando que Tycho o havia convidado A extensão de sua vida o fez contem- cando encabulado. Além disso, a mi-
por ter gostado do seu livro, o Myste- porâneo das carreiras do Tycho e da nha convivência com o Tycho e a com
rium Cosmographicum, não foi isso? minha própria. a sua família foi muito atribulada.
Kepler: Não exatamente! Eu não Jomar: Por que esse papo todo so- Todos eles me humilhavam sempre
disse que ele gostou do livro; disse que bre o Maestlin? Você não estava falan- que podiam. Ele sonegava informa-
o meu livro fê-lo perceber os meus do da sua ida para Praga, em 1600? ções e apenas me deu os dados refe-
dotes matemáticos, que poderiam ser Kepler: É que quando o Tycho me rentes à órbita de Marte por serem
úteis para ele. convidou para ir trabalhar com ele em muito desencontrados com a sua pró-
Pedro: Tendo sido o seu primeiro Praga, eu escrevi uma carta ao pria teoria. Mas aquilo, ao final, re-
livro, você não recebeu nenhuma aju- Maestlin na qual dizia, claramente, o velou-se muito frutífero para mim,
da do seu antigo mestre, o Maestlin? que pensava do Tycho. pois Marte apresentava uma das ór-
Kepler: Claro! O Maestlin ajudou- Cleide: Essa carta ainda existe? bitas, como depois pude constatar,
me tanto com sugestões ainda no Kepler: Sim! Está no livro da mais próximas de uma elipse, dentre
borrão quanto para a primeira edição Baumgardt. Essa e muitas outras das os planetas do sistema solar conhe-
do livro. Entretanto, ele adicionou na- minhas muitas cartas. cidos até então. Neste ponto, a sorte
quela primeira edição do meu livro Rogério: E o que você dizia do esteve do meu lado.
um apêndice com a quarta edição do Tycho? Pedro: Gostaria que você esclare-
Narratio Prima do Rethicus, e isso eu Galamba: Aposto que boa coisa cesse um pouco a origem dessa sua
não posso dizer que apreciei. Era um não era. divergência com o Tycho. Além disso,
texto muito primitivo, datado de Kepler: Realmente! Eu já disse an- alguns textos insinuam que vocês
1540, sobre as idéias do Copérnico. tes o espírito da coisa, mas, agora, vou eram até amigos.
Aquilo não casava bem com o propó- usar as mesmas palavras contidas na Kepler: De modo nenhum! Como
sito do meu livro, que era o de com- carta que escrevi ao Maestlin. Eu já disse, o Tycho era um indivíduo in-
preender o que estava subjacente ao escrevi em termos metafóricos o vejoso, tinha receio que eu alcançasse
esquema do Copérnico. Mas foi só na seguinte: Tycho é superlativamente rico, um maior destaque que ele. Mas eu
primeira edição, e tendo sido iniciativa mas não sabe como usar apropria- admito que cometi alguns erros que
do Maestlin, eu não tinha como damente a sua fortuna. Como acontece complicaram o nosso relacionamento.
recusar. com a maior parte dos ricos. Por isso, A culpa foi do Ursus.
Rogério: O Maestlin também pu- alguém tem que arrancar aquelas suas Jomar: Do urso? Que conversa é
blicou alguma coisa dele mesmo so- riquezas. essa, cara? Tem um urso nessa his-
bre o Copérnico, ou apenas ensinava Galamba: Você quer dizer roubar tória?
furtivamente as suas teorias? os dados do Tycho... Kepler: Alto lá mocinho, me res-
Kepler: Veja, o Maestlin era um Kepler: Eu não usaria essas pala- peite, eu falei Ursus e você ouviu mui-
homem de outra geração, havia nas- vras. Eu já expliquei antes a minha to bem. O Ursus era o Matemático
cido em 1550 e ensinava em uma Uni- verdadeira intenção. Eu queria com- Imperial antes do Tycho. Era um cara
versidade protestante em plena efer- preender a mente de Deus. irascível e violento, mas um astrôno-
vescência da Reforma. Ele tinha de ser Jomar: Mas utilizando o que não mo competente. Ele e o Tycho eram
mais contido que eu. Eu era bem mais era seu. inimigos de morte e eu entrei de bo-
afoito que ele. Kepler: Os dados não eram dele. beira no meio da briga dos dois.
Amélia: Gostei! Gosto de pessoas As posições dos astros não haviam si- Jomar: Como assim?
afoitas, que desafiam a ordem esta- do inventadas por ele. Ele, apenas, as Kepler: O Ursus havia visitado o
belecida. havia compilado rigorosamente. Eu Tycho, em Uraniborg. Tycho suspei-
Kepler: Obrigado! Pois é, eu, de não poderia ter feito aquilo, pois como tava que Ursus queria roubar os seus

28 Entrevista com Kepler Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002


dados, os esquemas do seu modelo fui ser seu assistente, me obrigou a Kepler: Logo em 1604, publiquei
planetário. E parece que o Ursus an- escrever um texto atacando o Ursus a Astronomia pars Optica (A Parte
dou olhando mesmo, pois Tycho e defendendo o seu próprio modelo. E Óptica da Astronomia) onde lidava
mandou um assistente seu, o An- àquela época o Ursus já havia morri- com o problema da refração atmos-
dreas, dormir no quarto com o Ursus do, mas mesmo assim o Tycho ainda férica e desenvolvia a teoria das lentes.
para vigiá-lo. O Andreas, de fato, queria detratar a sua imagem e me Isso, sem esquecer que também expli-
achou alguns papéis do Tycho entre usar para fazer aquilo. Aquilo me pa- cava o funcionamento do olho. Siste-
as coisas do Ursus e daí foi uma briga receu algo repugnante. matizei o estudo da óptica. Boa parte
feia. Amélia: Isso! E então você reagiu do que vocês ensinam da óptica geo-
Galamba (sussurrando): – A his- e disse ao Tycho que não se sujeitaria métrica ainda hoje, seguindo os seus
tória está se complicando. O Tycho àquela patifaria, não foi? livros didáticos, deve-se a mim, sa-
mandou o seu assistente dormir com Kepler: Não! O pior é que eu es- biam?
o urso? crevi mesmo. Eu me acovardei e escre- Jomar: Não sabia. Pensava que
Rogério (sussurrando): – Cala a vi aquele troço, mesmo sem gostar. você só havia se metido com a Astro-
boca, Galamba. Se o Kepler ouvir isso O panfleto chamava-se: – A Defesa de nomia.
vai terminar te dando uns tapas. E eu Tycho feita por Kepler contra Ursus. Kepler: Não! Eu fui o primeiro a
vou deixar. Pedro: Essa história é verdade explicar a formação de imagens em
Kepler: O que? mesmo? Posso contar para os meus uma câmara escura; fui, também, o
Galamba: Nada! alunos ou é conversa mole? primeiro a explicar a refração da luz
Kepler: Pois bem, logo depois o Kepler: Claro que é verdade! Ela dentro do olho; expliquei, igualmente,
Ursus publicou um modelo planetário foi registrada por vários dos meus bió- como calcular as lentes para corrigir
bem parecido com o do Tycho, que, grafos. Essa obra foi reeditada pelo a miopia e a hipermetropia; sem falar
afinal, não era nada lá muito origi- Nicholas Jardine em 1984 e está co- da explicação que dei sobre o modo
nal. Era, na verdade, uma nova versão mentada na obra do Edward Rosen de como os dois olhos eram necessários
do antigo modelo de Heraclides do 1986. Mas eu até prefiro que vocês para criarem a percepção de profun-
Ponto. Mas foi uma baixaria a con- não contem (risos). didade.
fusão armada. E eu não sabia nada Cleide: Deixando um pouco de la- Pedro: E a Astronomia? As suas
disso; só soube muito depois. Então, do essas suas disputas com o Tycho e famosas leis, como nasceram?
logo após terminar o meu Mysterium com esse tal de Ursus, como foi a sua Kepler: Bem, já em 1604 havia
Cosmographicum, em 1597, resolvi en- estada em Praga? aparecido uma estrela Nova. Em 1606
viar cartas para vários astrônomos Kepler: Bem, eu fiquei em Praga lancei um livro intitulado De Stella
falando das minhas descobertas. Eu, por doze anos. Foi uma estada longa Nova analisando aquele fenômeno.
àquela altura, ainda era um desconhe- e muito produtiva, apesar de inicial- Em 1609, escrevi Astronomia Nova,
cido buscando um lugar ao Sol. Den- mente difícil, como podem deduzir. Lá onde apareciam as duas primeiras leis
tre as cartas enviadas, mandei uma produzi as melhores obras de minha do movimento planetário.
para o Ursus, cheia de elogios ao seu vida. Após pouco menos de um ano Pedro: E a terceira lei?
talento ao mesmo tempo em que me de convivência com Tycho, ele morreu Kepler: Essa eu ainda demorei
apresentava ao mesmo. O mal edu- depois daquela bebedeira e eu, rapida- mais nove anos perseguindo.
cado nem ao menos me respondeu. mente, aproveitei a situação para me Rogério:Então conte como chegou
Entretanto, após ter me tornado fa- apossar dos seus dados. A família dele às suas leis.
moso com o meu livro, ele publicou, tencionava vendê-los, mas eu fui mais Kepler: Para começar, é interes-
sem minha autorização, aqueles elo- rápido que eles e consegui salvar sante notar que enquanto os astrô-
gios exagerados que eu havia feito à aquela imensa fortuna do conhe- nomos até então haviam adotado
sua pessoa como uma forma de insi- cimento humano. uma postura cinemática de apenas
nuar que eu estaria do seu lado na Galamba: Hum, hum... Sei... descreverem o movimento dos plane-
disputa dele com o Tycho. Kepler: O Tycho era o matemáti- tas, eu segui uma abordagem total-
Jomar: É nisso que dá ser baju- co imperial e eu apenas o seu assis- mente nova. Eu queria saber o que
lador. E logo bajulador de Ursus. E tente. Com a sua morte, em 1601, fi- causava aqueles movimentos. Deste
então, sobrou para você? quei sendo o novo matemático impe- modo, introduzi a Física nos céus,
Kepler: Isso! E eu, de bobeira, ainda rial, nomeado pelo imperador Rodolfo adotando uma abordagem dinâmica
mandei um livro meu para o Ursus II. Fiquei com o posto até 1612, quan- da situação.
pedindo que ele desse ao Tycho. do Rodolfo foi deposto. Meu salário Jomar: Quer dizer que você des-
Quando percebi a besteira que havia era bom, mas freqüente não me cobriu as suas duas primeiras leis em
feito, escrevi ao Tycho me humilhan- pagavam. Deste modo, tive de sobre- 1609, já bem depois da morte de
do, pedindo mil desculpas. Ele deu viver graças aos horóscopos que fazia Tycho?
uma de superior, disse que não se im- para os poderosos. Kepler: Não foi bem assim. Eu pu-
portava, mas escreveu ao Maestlin fa- Rogério: E a sua produção cientí- bliquei em 1609, mas a descoberta
lando mal de mim. E pior, quando eu fica? havia começado já em 1602.

Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002 Entrevista com Kepler 29


Pedro: Mas a primeira lei foi des- órbita no qual o planeta atingia a me-
coberta em 1602? nor velocidade, ou seja, a posição mais
Kepler: Não! Eu primeiro desco- distante do Sol ou afélio. Imagine, por
bri a segunda lei, a lei das áreas, aquela exemplo, um raio que saísse do
que diz, na linguagem que vocês en- equante até Marte. Esse raio poderia
sinam, que o raio vetor descreve áreas ser visto como varrendo ângulos
iguais em tempos iguais. Isso foi em iguais em tempos iguais, isso porque
1602. haveria uma compensação entre a
Galamba: Quer dizer que a pri- menor distância do equante ao pla-
meira lei, que afirma que as trajetórias neta e maior velocidade do mesmo,
dos planetas são elípticas, é posterior? fazendo com que ele percorresse o
Kepler: Isso mesmo! A primeira mesmo ângulo que quando estivesse
lei, a das elipses, eu a descobri em a uma maior distância do equante e
1605. com uma menor velocidade. Ok?
Galamba: Isso não faz sentido. Por Pedro: Estou ligado, Marte visto
O equante e sua função reguladora.
que você não chamou a primeira de do Sol apresentaria velocidade angu-
segunda e segunda de primeira? Que lar variável, maior nos pontos mais
confusão, cara. planeta deveria ser uniforme. Era o próximos da órbita e menor nos mais
Kepler: Não há nada de confusão. dogma do movimento circular uni- afastados. Entretanto, visto do equan-
A questão é que a denominação da forme estabelecido na Antiguidade por te, Marte apresentaria sempre a
ordem nas leis é posterior e tenta dar Platão. E então eu me coloquei um mesma velocidade angular. Certo?
conta de uma explicação para o sis- problema clássico: – como poderia o Kepler: Isso!
tema. Sua ordenação é, portanto, movimento de Marte ser descrito por Amélia: De onde vinha o nome
lógica, pedagógica, não cronológica. algum tipo de movimento uniforme? equante?
Sacou? Amélia: Essa forma de ver o Kepler: Equante quer dizer equa-
Nairon: E o que mais você estu- problema está me parecendo com o lizador, ou seja aquele que torna as
dou da Astronomia, por essa época? modo do Ptolomeu tentar encontrar coisas iguais. A idéia era exatamente
Kepler: Olha, em 1607, eu utilizei algum artifício mediante uma combi- a que o Pedro acabou de falar: – visto
uma câmara escura para observar o nação de movimentos circulares que do equante as velocidades angulares
disco solar e as manchas do Sol, que salvasse as aparências, ou seja, que tornavam-se iguais. Daí a origem do
por um equívoco eu interpretei como mostrasse que as irregularidades nome.
sendo um trânsito de Mercúrio. eram apenas aparentes. Jomar: Mas por que você falou,
Rogério: Mas como você desco- Kepler: Você tem razão, essa era momentos atrás, que não deu certo?
briu essas duas primeiras leis do mesmo a postura ptolomaica, mas ela Kepler: Porque eu testei aquele
movimento planetário? não dava certo. modelo do equante utilizando as
Kepler: Essa é uma história mui- Rogério: Explica isso melhor, observações muito precisas das posi-
to longa e complicada, mas vou sim- estou confuso. ções de Marte coletadas pelo Tycho e
plificar. Como eu já disse antes, eu Kepler: Veja, uma solução possível os seus dados não batiam com a idéia
estava trabalhando, inicialmente, com seria imaginar, como havia feito do equante. O melhor dos ajustes das
os dados de Tycho para a órbita de Ptolomeu, a existência de um ponto posições do Sol e do equante ainda re-
Marte. Embora, à primeira vista, a chamado ‘equante’, que ficasse, em sultava em um pequeno erro de 8 mi-
órbita de Marte fosse semelhante a nosso caso, a uma distância do centro nutos de arco para a órbita de Marte.
uma circunferência, o Sol não parecia da órbita circular do planeta igual à Era, realmente, um erro praticamente
estar no centro da mesma. Claro, eu distância do Sol ao centro dessa mes- desprezível para a maioria dos obser-
não percebi isso logo de início, mas o ma órbita. Ou seja, esse tal ponto vadores. Aquele desacordo poderia
Sol estava situado em um ponto a equante e o Sol ficariam eqüidistantes muito bem ser atribuído a pequenos
uma distância de um terço do centro em relação ao centro da órbita, mas erros observacionais.
do círculo. Além disso, percebi que a de lados opostos. Sacou? Galamba: Então estava resolvido
velocidade de Marte variava ao longo Rogério: Entendi onde ficava o tal meu amigo. Se era um erro desprezí-
de sua órbita. Ele movia-se mais equante, mas não compreendi como vel, você já havia encontrado a solu-
rapidamente quando estava próximo esse tal ponto auxiliava na explicação ção com o tal equante e não havia
do Sol e mais lentamente quando es- do movimento de Marte não ser percebido.
tava mais afastado do mesmo. Aquilo uniforme. Kepler: De modo nenhum meu jo-
me intrigou. Kepler: Bem, a idéia era a de que vem. Um erro de oito minutos de arco
Jomar: Por que? Marte mover-se-ia em torno do seria realmente desprezível para as
Kepler: Porque eu acreditava, equante a uma velocidade angular medidas de praticamente todos os as-
como de resto todos os outros astrô- constante. Para isso bastava imaginar trônomos, mas jamais para as medi-
nomos, que o movimento de qualquer o equante mais próximo do ponto da das do Tycho. Ele era um observador

30 Entrevista com Kepler Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002


perfeccionista. Ele jamais cometeria danças de velocidade de Marte. velocidade, e o atraísse quando ele
um erro daquele porte. Eu agarrei-me Kepler: Exatamente! E aquilo me estivesse mais afastado do mesmo.
nessa convicção e não acreditei que encucou por um certo tempo. O que Assim se justificariam as mudanças
fosse possível resolver o problema do eu buscava era mais do que simples- de velocidades planetárias. Pareceu-
movimento não uniforme de Marte mente encontrar um outro modelo me, portanto, que deveria ser uma
utilizando o artifício do equante. descritivo. Eu não queria apenas força magnética. A Terra já era vista
Rogério: Quer dizer, então, que salvar as aparências, como já haviam então como um gigantesco imã, por-
você está admitindo que foram as me- feito tantos outros, ou construir uma que não pensar do mesmo modo para
didas do Tycho que o fizeram tomar outra cinemática dos céus. O que eu os outros planetas?
um outro rumo, buscar uma outra queria era entender as causas daqueles Galamba: Devo admitir que era
solução. Essa é mais ou menos a movimentos. Meu desejo era cons- muito interessante essa força magné-
versão que os livros didáticos apresen- truir, realmente, uma Física dos céus. tica que você inventou entre os plane-
tam. Foi então que passei a pensar dina- tas.
Kepler: Mas a questão é bem mais micamente. Kepler: Obrigado, mas eu, de fa-
complexa. Eu já tinha uma tendência Rogério: Como assim? to, não inventei isso. Eu apenas tomei
em não aceitar o equante. Ele vio- Kepler: Eu tentei compreender o essa idéia de empréstimo do Gilbert.
lentava o dogma platônico dos movimento planetário em termos de Foi o William Gilbert quem havia
movimentos celestes. Não foi apenas espíritos que arrastassem os planetas colocado essa idéia no seu De Magnette
a confiança nos dados do Tycho que ao longo das suas trajetórias. Aquela em 1600. Eu apenas aproveitei a dica
me lançou em outra direção da busca poderia ser a causa dos movimentos e a desenvolvi.
de uma nova solução. Foi um misto observados. Esses espíritos deveriam Rogério: E como você imaginou o
da minha atitude mística de não que- atuar de tal maneira que fosse possível mecanismo de atuação dessa força
rer aceitar o equante, de achar que explicar porque Marte apresentava magnética?
aquele artifício ia contra o dogma pla- uma maior velocidade nos pontos Kepler: Eu só considerei isso tem-
tônico do movimento circular, junta- mais próximos do Sol e uma menor pos depois, já após haver encontrado
mente com a confiança nos dados do velocidade nos pontos afastados do minhas duas primeiras leis, já a ca-
Tycho. Por isso eu também não acei- mesmo. Depois, bem depois, eu subs- minho da minha terceira lei. A coisa
tava a possibilidade de utilizar epici- tituí aqueles espíritos pela idéia de ficou meio latente por uns tempos.
clos, artifícios destinados a salvar as uma força que emanasse do Sol. Rogério: E como então você che-
aparências, que consistiam em círcu- Galamba: Você quer dizer a força gou à sua segunda lei, que na verdade
los menores centrados nas órbitas gravitacional. E como você descobriu foi a primeira que você descobriu?
circulares dos planetas. Eles haviam essa força? Kepler: Eu observei, analisando a
sido criados pelo Hiparco, na Grécia Kepler: Eu não falei na força gra- órbita de Marte, que o planeta varria
antiga, haviam sido fartamente utili- vitacional nos termos que talvez você áreas iguais a uma velocidade cons-
zados por Ptolomeu e pelos Árabes e esteja pensando, digamos, nos moldes tante ao longo de sua órbita. Ele não
até mesmo pelo Copérnico. newtonianos. Não tinha nada daquilo mantinha a velocidade constante ao
Pedro: Não estou entendendo. de ser proporcional ao produto das longo de sua trajetória, como já disse
Você é conhecido por haver introdu- massas e inversamente proporcional antes, mas varria áreas iguais a uma
zido a elipse no estudo do movimento ao quadrado da distância. Aquilo foi velocidade constante. Ali estava o mo-
planetário e assim sendo tendo con- realmente uma criação do Newton, vimento uniforme que eu procurava:
tribuído para derrubar o dogma pla- ainda que ele tivesse para isso sido – o movimento de varredura das áreas
tônico do movimento circular. Entre- influenciado pelas minhas leis do mo- percorridas por um raio que saia do
tanto, você falou, agora, no seu apego vimento planetário e talvez até por Sol até o planeta. Essa foi a primeira
às idéias platônicas. Como é essa coi- pensadores mais antigos como o Plo- lei que eu descobri e que veio a ser
sa? tino. E tem mais: – eu não descobri denominada, posteriormente, de mi-
Kepler: Bem observado. A ques- essa força no sentido empírico da nha segunda lei.
tão é que, de início, logo ao pegar os palavra. Eu não deduzi a sua existên- Cleide: Mas para saber disso você
dados do Tycho, eu não pensava mes- cia a partir diretamente dos dados teria de saber calcular aquelas áreas.
mo em elipses. Eu pensava, realmente observacionais do Tycho. Eu postulei Afinal os dados do Tycho apenas lhe
em termos de movimentos circulares a sua existência de tal forma que ela forneciam as posições do planeta ao
e uniformes. Só depois é que vim a desse conta da mudança de velocidade longo de uma trajetória curva. Como
pensar nas elipses, como você verá. de Marte. você calculou essas áreas?
Nairon: Mas tendo renunciado a Amélia: Mas que força era essa? Kepler: Olha, eu usei, com muita
usar equantes e epiciclos, você defron- Kepler: Deveria ser uma força que paciência, o método da exaustão do
tou-se com o problema de continuar repelisse o planeta quando este esti- Arquimedes. Eu construí uma infini-
sem saber explicar as aparentes mu- vesse próximo do Sol, reduzindo a sua dade de “triângulos” com um dos la-

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dos curvos e tomei as posições mais fui um dos poucos a escrever que ele Alexandre: Deixe para lá, isso já
próximas possíveis. Ao fazer isso, eu tinha razão. Ele estava sendo atacado faz tempo.
contribuí para lançar as bases do Cál- por todos os lados e com certeza o Cleide: É, Kepler, você está fican-
culo, antecipando-me, em certo meu apoio foi útil para ele. Eu, afinal, do muito estressado. Continue a sua
sentido, ao Newton. Posteriormente, esquisito ou não, era um astrônomo história sobre a descoberta das suas
já em 1611, eu cheguei mesmo a es- de respeito. Então escrevi para ele leis. Como você chegou à sua lei se-
crever um livro sobre isso, um texto pedindo que me mandasse um da- guinte, ou seja, à sua primeira lei?
que continha as bases do Cálculo inti- queles seus telescópios que ele dizia Kepler: Bem, eu rapidamente per-
tulado Stereometrica Doliorum. aumentar mil vezes. Ele nem me res- cebi que a órbita não era circular. E só
Cleide: Mas você chegou a apre- pondeu. Eu havia feito observações acreditei nisso, mesmo, porque tinha
sentar um corpo de conhecimentos com um telescópio vagabundo que uma enorme fé nas observações do
matemáticos, neste aspecto, tão estru- um amigo havia me obtido, mas o Tycho. De início imaginei que fosse
turado quanto o Newton? aumento era muito pequeno e não uma espécie de oval. Eu não pensei
Kepler: Certamente não, eu ape- pude checar o que o Galileu havia logo em uma elipse. Mas as ovais não
nas lancei as bases daquelas idéias, visto. Mesmo assim eu acreditei nele se encaixavam com os dados das
estendendo com isso as idéias do Ar- e escrevi isso. Aquilo me colocou em observações do Tycho.
quimedes, mas em compensação eu uma situação difícil. Começaram a me Pedro: Por que você, dispondo dos
também fui pioneiro no estudo dos atacar. Como é que eu, não tendo dados relativos às posições de Marte,
logaritmos, independentemente do observado nada, podia acreditar no não equacionou logo o problema e
Napier, como falarei daqui a pouco. E Galileu? Em desespero, escrevi nova- observou tratar-se de uma elipse? Não
tudo isso foi um subproduto do meu mente para ele e ameacei retirar o meu teria sido mais fácil e imediato? Porque
esforço de compreender o movimento apoio; solicitei, mais uma vez, que me utilizando a Geometria Analítica...
planetário. Eu pedi socorro aos mate- obtivesse um telescópio. Kepler: Mas aí é que está o pro-
máticos mais famosos da época, mas Amélia: E só então o espertinho blema. A Geometria Analítica ainda
eles nem me responderam. Tive de lhe mandou o tal telescópio. não havia sido criada pelo Descartes.
desbravar tudo aquilo sozinho. Nem Kepler: Pior! Ele nem assim man- Ela foi criada tempos depois. Eu não
o Maestlin veio em meu socorro. dou. Agradeceu o meu apoio, mas tinha como ver aquilo de imediato. O
Alexandre: Você não acha que eles disse que não podia mandar o ins- que eu fiz foi seguir um caminho bem
não entenderam as suas idéias; que trumento solicitado por isso e por mais tortuoso.
pode ser que tenham achado todo aquilo, que era trabalhoso, que era ca- Amélia: Como assim?
aquele seu misticismo muito esquisi- ro, que era demorado. Inventou uma Kepler: É difícil explicar exatamen-
to, quase como uma coisa de maluco? porção de desculpas. Logo depois eu te nos mesmos termos originais. Se
Kepler: Depois de morto percebi soube que ele presenteou uns pode- você tiver realmente essa curiosidade
que sim, mas naquela época fiquei rosos com os seus telescópios. Daí por leia o meu Astronomia Nova. Mas
sem compreender. O Maestlin que diante nunca mais escrevi para ele, posso lhe dar uma idéia. Veja essa
tanto me incentivara no início, após nem ele para mim. E também nunca figura. Nela, M representa Marte, S
algum tempo não quis me ajudar a recebi o tal telescópio. representa o Sol e A é afélio, o ponto
resolver aquele quebra-cabeças atroz. Galamba: Eu acho bom a gente extremo da órbita de Marte, onde ele
E o Galileu deveria pensar mesmo que conversar com Galileu sobre essa his- tem a menor velocidade. Pois bem,
eu era maluco mesmo. tória. Esse Kepler está me parecendo veja como a figura auxilia a compre-
Galamba: E você não era? cheio de confusão. Bem que o Tycho
Kepler: Espera aí! disse que ele era encrenqueiro.
Cleide: Calma Kepler, o Galamba Kepler: Vão lá, perguntem ao Ga-
está brincando. Vá em frente. lileu se ele me mandou algum teles-
Kepler: Tudo bem, no fundo eu cópio.
acho que era isso mesmo que o mal- Jomar: Engraçado, eu já li em um
dito do Galileu pensava. livro didático que Galileu o havia pre-
Jomar: Como maldito? Não vá senteado um telescópio e que você ha-
dizer que você também não topava via feito observações com ele.
com o Galileu. Kepler: Mentira! Esses livros
Kepler: Não é bem isso. A questão didáticos de vocês contam barbarida-
é que ele não foi leal comigo. Quando des; nesse ponto o Tycho tinha razão.
ele publicou as suas observações sobre Eu utilizei, como disse, um telescópio
os satélites de Júpiter, os quais eles vagabundo, o Galileu não me mandou
Tentativa kepleriana de ajustar circulos e
chamou de planetas Medicianos, eu coisa nenhuma. Miserável!
ovais para as órbitas planetárias.

32 Entrevista com Kepler Física na Escola, v. 3, n. 2, 2002


ensão. Eu trabalhava com a idéia de Kepler: Creio que sim! Creio que A também pertence à elipse, o compri-
encaixar uma oval dentro de um cír- ele estava pensando nessa minha mento da corda pode ser visto como
culo que lhe aproximasse. Para dar observação. SA + S’A. Assim, o comprimento to-
conta do quanto a minha suposta oval Nairon: Mas como você sacou que tal da cordinha é SA + S’A = 2AC e
correspondia à deformação daquele aquilo era, de fato, uma elipse? nós podemos ver que AC = MS.
círculo eu calculei, com os dados Kepler: Eu intuí que aquela relação Rogério: E então você enunciou a
disponíveis do Tycho, a razão entre deveria valer para todos os outros sua primeira lei.
os comprimentos AC e MC e encontrei pontos da órbita. E chequei aquela Kepler: Isso! Eu, após seis longos
que ela era igual a 1,00429. Pensando idéia para uma vasta quantidade de anos de estudos, chequei os outros
nos ângulos subtendidos por Marte dados disponíveis, representando-os dados e generalizei as conclusões ti-
na linha de base eu calculei a razão um a um e comecei, assim, a descon- radas para Marte chegando à conclu-
SM sobre CM e para meu espanto fiar que a curva era uma elipse com o são de que os planetas se movem em
encontrei o mesmo valor 1,00429. Eu Sol em dos seus focos. A elipse era elipses com o Sol em um dos focos.
deixei registrado esse meu espanto. uma curva que havia sido estudada Jomar: E a terceira lei?
Aquilo não parecia ser uma simples na Antiguidade pelo Apolônio. A Kepler: Essa deu ainda mais tra-
coincidência. Como lembra bem o coincidência numérica apontava para balho. E é aí que eu retomei a questão
Koestler, eu deixei assinalado que o fato de que AC/MC = MS/MC, ou da força magnética em conjunto com
havia acordado de um longo sono. É seja, que AC = MS. a minha idéia da existência de uma
como se até então eu houvesse andado Galamba: E daí? sinfonia planetária, de uma harmonia
para lá e para cá, apenas tateando a Kepler: Veja, se nós construirmos dos mundos, que, aliás, veio a ser o
verdade divina, como se fosse um uma elipse com uma cordinha em nome do meu livro publicado em 1619
sonâmbulo. formato de anel com focos S e S’ no qual aparece a minha terceira lei do
Amélia: Será que foi por isso que poderemos notar que SM tem um movimento planetário. Essa é uma his-
o Koestler intitulou o seu livro de Os comprimento igual à metade do com- tória longa, deixe-me beber um copo
Sonâmbulos? primento dessa corda. E como o ponto d’água e descansar um pouco.

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