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18 JORCE LUIsFERRElRA AllI~o A HIST<'lRIA DA I'SIC/\NÁI ISE DE CRIAN\:t\~ N< I f31{,\~1I IlJ
Podemos dizer, sem incorrermos em uma afirmação de- pouco sublinhar as influências da psicanálise de crianças na
magógica, que a sociedade d9 sé~.1,!loXXp-rivilegioy-"'CQlD.9 cultura brasileira, haja vista que estes temas constituem um
nunca antes se Viu, ª-mf.ª-I}çiél ..~.!!l.cletrimento_dªs.A~mais ~a· capítulo à parte, requerendo uma análise diferenciada. Cum-
des da vida". A mídia dedica um espaço cada vez maior à in- pre-nos apenas, no âmbito do presente estudo, apontar o pa-
/Jância; a indústria, já há algum tempo, descobriu ser a criança pel social assumido pela infância e procurá r compreender sua
um significativo filão do mercado consumidor; multiplicam- evolução, colocando em relevo aqueles aspectos que tangen-
se as instituições de assistência e defesa dos direitos da crian- ciem nosso objeto de estudo. Para que possamos aquilatar o
ça; a legislação e os mecanismos de proteção à infância são significado do conceito de infância 11,1 sociedade contcmporã-
constantemente aperfeiçoados com o intuito de garantir o nea é necessário investigar seu desenvolvimento ao longo da
cumprimento desses direitos, que já foram até mesmo objeto história da civilização ocidental.
de deliberação da Organização das Nações Unidas, que a 20 Desta forma, deslocaremos temporariamente o foco de
de novembro de 1959 promulgou a Declaração Universal dos nossa atenção. Lançando o olhar para o passado, procurmc-
Direitos da Criança. mos deslindar, ainda que parcialmente, os fios que compõem
Esta tendência pode ser evidenciada não só no segmen- a trama do conceito de infância tal qual o conhecemos hoje,
to social, como demonstramos acima, mas, também, no meio sem com isto nos perdermos em digressões estéreis que fujam
científico, que tem dedicado na atualidade esforçossignifica- ao escopo desta pesquisa.
tivos para o estudo da criança.
Novas ciências como a Psicanálise, a Pediatria, a Psicologia,
consagraram-se nos problemas da infância e suas descobertas são A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INFÂNCIA
transmitidas aos pais através de uma vasta literatura de vulgari-
zação. Nosso mundo é obcecado pelos problemas físicos, morais
Ao revisitarmos a cultura da Antigüidade Clássica, por
e sexuais da infância. (Ariês, 1981: 276)
meio do legado de ~!§.tóJ.eles, encontraremos em uma de
Cria-se, com isto, um sistema retroalimentador, no qual suas obras, intitulada 1Pf!./!t.ifa, algumas referências sobre a
os conhecimentos acerca da infância, produzidos pelos ramos criança. Valendo-se destas referências, poderemos compreen-
da ciência a ela dedicados, são amplamente divulgados aos -·aerqualo estatuto assumido pelo infante na pólis grega, bem .,.
pais, que passam a incorporã-los em suas vidas cotidianas. como entender qual sua relação com aquela sociedade.
Por outro lado, estes mesmos pais demandam da ciência no- O selo distintivo da sociedade da Grécia antiga reside em
vos conhecimentos que sirvam de norte na educação de seus uma organização política descentralizada, definida pelas cida-
filhos. Evidencia-se, com isto, que a psicanálise ou, mais espe- des-estado, que se caracterizam como unidades administrati-
cificamente, a psicanálise de crianças, influenciou de forma vas independentes e autônomas, cujo poder político era
efetiva a maneira como a sociedade atual compreende e tra- exercido por seus cidadãos. A família, como parte constituti-
ta suas crianças. Por outro lado, seria ingênuo deixar de des- va do Estado, "já que o Estado é uma reunião de famílias"
tacar que as condições culturais necessárias para o desenvol- (Aristóteles, 1985: 16), pode ser decomposta em seus elemen-
vimento da psicanálise de criança já estavam presentes no seio tos constitutivos, para que venha a ser melhor compreendida.
da sociedade. \ .. Temos, assim, três elementos básicos: o senhor e o escravo, o
Não nos compete, ne~te momento, aprofundar as discus- marido e a mulher e o pai e o filho, que compõem, segundo
sões sobre a condição social da infância na atualidade, tam- Aristóteles, os três ramos da economia doméstica.
Ao analisarmos a natureza da relação entre cada um des- de criança na~tigüid()d<.' Clãssica.jscgundo a ótica de Aris-
ses pares de antíteses, podemos formar uma imagem de corno tóteles. --_. .
esta sociedade via a criança como indivíduo e a infância corno Com base nas citações acima podemos concluir que a 9.:-
categoria social. .a.ídéía de criança na pó/i,> gre-
~i.c;..qp.Ii:0_0.P..~1.qlle .çl.efiIJ~
Podemos ciepreender que as referências encontradas na .~.~.3.iru:.Q.ffip.letude.que caracteriza o indivíduo em
obra de Aristóteles sobre a criança estão sempre associadas às ~~§.~.!lYQbámento,no qual a faculdade de querer não está au-
figuras da mulher e do escravo. Isto permite concluir que, se- sente como no escravo, podendo vir a formar-se. Para que tal
gundo o filósofo grego, ~~J~_mentQ..J:Q.munLent(e..iL. .. formação ocorra é.necessáría a presença de um rnodeloque
criança, a mulher e.Q.~~.:@vo,_que os distinguiria do pai, do conduza a crianç~_.~C?.~~~-,~~~~nv.ºtY~lTlef.\tC1 potencial. Segun-
mãrlcIo e dosenhor, respectivamente. Este elemento comum do Aristóteles, o filho é um ser incompleto, é claro que sua
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seria ~~C?.r:!ºp:1.i~.q~eJl1es confere a condiçãode co- virtude não lhe pertence mais que o resto de si mesmo, mas
mandados. que ela deve ser confiada ao homem completo que a dirige"
Resta-nos compreender, agora, qual atributo que permite (ibid.: 39). Desta forma, a criança é entendida como um ser in-
distinguir comandantes de comandados ou, dito em outros completo, que ainda não possui AS qualidades inerentes ao
termos, quais as características que possibilitam ao pai exer- pai, mas poderá vir a tê-Ias, pois pertence fi mesma linhagem
cer autoridade sobre o filho, O marido sobre a mulher e o se- deste.
nhor sobre o escravo. Tomando por base estn breve l'Xpl,1I1ilÇi10, evidencia-se
Aristóteles encontrará a resposta para esta questão nas que o estatuto dos indivíduos nas relações sociais, vigentes na
qualidades intrínsecas aos indivíduos, que os difere como co- pólis grega, era definido pela política que atuava como ele-
mandantes e comandados, ou seja, aqueles' que comandam mento organizador desta sociedade. Neste contexto, a crian-
possuem atributos especiais que configuram-se como mode- . ça! ..?-.<?n.ãopossuir uma identidade política não poderia
lo para os comandados. "Em primeiro lugar todo ser vivo se a.!..~E:!jaru..m
estatuto definido como ser independente e autô-
compõe de alma e corpo, destinados pela natureza, uma a or- .!~?mo..Suas qualidades são definidas pela negação dos atri-
denar, outro a obedecer." E'mais à frente acrescenta: liA alma butos políticos que devem ser desenvolvidos pela orientação
dirige o corpo como o senhor ao esçravo" (Aristóteles, 1985: do pai. /""
19). Entretanto, a natureza da relação do senhor com o escra- . Da'Antigüidade à Idade Média) seremos agora conduzi-
vo, difere da relação do marido com a mulher e do pai com o dos pelo historiador francês Philipe Ariês, em nosso intento
filho, uma vez que os dois últimos, ao contrário do primeiro, de compreender o significado que a infância assumiu ao lon-
go da história como categoria social.
são livres. Diz Aristóteles:
Valendo-se da arte como representante simbólico dos va-
o homem livre ordena ao escravode uma maneira diferente lores culturais de uma sociedade, Aries vai buscar as repre- t\.bP
do marido à mulher, do pai ao filho. Os eJ~~~nl:Q.S
d~ estão sentações da criança na expressão artística da Idade Média, I>~
em cada um desses seres, mas em grau diferente. O escravo é com o intuito de compreender qual o significado da infância,
completamente privado da faculdade de querer; a mulher a tem,
como categoria social, neste período histórico.
mas fraca;a~!<o ~ in~!:!!p~. (ibid.: 38)
I Pelo que nos apontam as pesquisas deste autor, as repre-
Chegamos, assim, à singularidade da relação pai filho,
o que nos permite definir algumas características da idéia I
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sentações da criança na iconografia da Idade Média eram qua-
se inexistentes ou mesmo totalmente ausentes até o século XII,
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24 A HIST(lRIA DA I'SICANAI.ISI' DE CRIAN<;AS N(l BI{A~IL 25
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Somente a partir do início do século XlIIé que a socieda- ~YJ.I.pod~scr considerado como um marco, ou
de medieval parece ter voltado o olhar para a criança, come- mesmo como um divisor de águas, ilustrando com bastante
çando a incluí-Ia em sua criação artística. E, mais do que isto, nitidez as transformações na forma como a criança era repre-
-podemos mesmo considerar, em um raciocínio dedutivo, que sentada, tanto na iconografia, quanto no imaginário do ho-
este fato é indicativo de que a~iança c~e.ç.9-._~.~~uepreseJ'\.~ mem medieval, mudanças estas introduzidas pelos moralistas
tada no seio da sociedade. m.:e9-i~yalÇQ~o.categoria .etária .di- e educadores da época, que começaram a questionar a forma
&K~nciãa~Embõra'êsta' representação possa, em princípio, como a criança vinha sendo tratada até então. É neste mesmo
manifestar-se de forma tênue, seu mérito reside em' trazer, século que iremos encontrar, segundo Donzelot, o surgirnen-
ernbrionariamente.jzgenng da transformação que irá gradual- tOde\,ãsta literatura dedicada ao tema da infância. A tônica
mente consolidar-se na visão de criança que predomina no central destes trabalhos gravitava em torno dos cuidados dis-
século XX. ·pendidos à criança, apontando para o fa to de como ela vinha
A iconografia da sociedade medieval nos fornece vários sendo negligenciada até então em seu cuidado, tecendo críti-
indícios da forma como aquela sociedade foi transformando cas sobre três hábitos educativos amplamente difundidos nes- ? \ ~,cI'~
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sua visão de infância ao longo dos séculos XIII,XIVe XV,trans- te período, quais sejam: "". a prática dos hospícios de menores
formações estas que se consolidarão nos séculos seguintes. abandonados, a da criação dos filhos por amas-de-leite, a da
Assim, a criança que havia sido ignorada na iconografia educação artificial das crianças ricas" (Donzelot, 1986: 15).
medieval começa, a partir 'do século XIII, a ser representada. .. . A crítica direcionada aos hospícios de menores enfocava,
Inicialmente, sob a forma de crianças mais velhas, quase jo- NJ'v".l " principalmente, o atendimento oferecido às crianças, que, em
vens. Posteriormente, encontraremos a representação do me- .0 ,"" virtude de suas más condições, provocavam altas taxas de
nino Jesus e da Virgem Maria menina. Devemos destacar a 01... mortalidade infantil. Assim, vemos surgir uma nova preocu- 7
natureza destas inscrições qU~Jgp~!lYªm..a.criançª-ç_o.IIl_o pação na mentalidade do homem da baixa Idade Média, a ~'" ri >
cópias ~iaturizadas do~ aqº,lto&. Uma terceira forma de morte da criança não era mais entendida como fato natural, 9'" (I(,.fl
expressão surgirá com o tema da criança nua, tendência que mas sim como um acontecimento indesejado que poderia e,<",,~~
só irá se consolidar no século XVII. mais do que isto, deveria ser evitado, demonstrando assim o
Embora a criança não esteja ausente da iconografia des- surgirnento de um sentimento de afeição em relação à crian-
de o século XIII,sua representação está sempre associada a ça. Aliado a isto, encontraremos uma preocupação de nature-
outros elementos, assumindo um caráter secundário, uma vez za política, uma vez que a maioria das crianças recolhidas nos \.
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que a ~~~p.reocupad~ .pelQs adultos, ca- asilos morriam antes t'UC pudessem servir no Estado. )"Iii\
bendo à criança apenas um espaço secundário. É somente a Outro hábito da educação da época, amplamente difun- ,/~~./
partir do século XV que encontraremos a criança. representa- . dido, tanto nos extratos mais elevados da sociedade, quanto ~.~7
da sozinha, nos retratos, o que indica uma tentativa de preser- · entre os artesões e comerciantes da cidade, era a criação das
var sua lembrança, tendência que estará consolidada no · crianças por amas-de-leite, hábito este que passou a ser vee-
século XVII.Isto nos aponta para o destaque que a criança co- mentemente criticado pelos educadores e moralistas, por cau-
meçava a receber na arte, como reflexo de uma nascente reor- sar inúmeros prejuízos ao desenvolvimento saudável da
ganização das estruturas sociais, na qual ela começava a criança, tanto em relação ao seu bem-estar físico, quanto men-
ocupar um lugar de maior destaque, assumindo um novo es- tal, uma vez que os cuidados oferecidos à criança, a té então,
tatuto. favoreciam, por um lado, as altas taxas de mortalidade e, por
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outro, o desenvolvimento de uma personalidade desajustada, c;r.iançado m(.jQd.os...adl.!!!os.Isto porque não mais se aconse-
em que predominavam traços de agressividade e desonestidade. lhava que a criança fosse preparada para a vida por meio de
A explicação para tal fato surge com facilidade: as nutri- um contato direto e participativo com o universo social dos
zes negligenciavam o cuidado da criança, ora por interesse, adultos, sendo necessário, portanto, o desenvolvimento de no-
ora por ódio. O interesse era evidente, uma vez que as nutri- vos espaços sociais para o atendimento e a educação da crian-
zes recrutadas no campo, para onde eram levados os filhos ça. Para dar conta desta demanda, inicialmente social e
das mulheres da cidade, precisavam apropriar-se de um ele- posteriormente afetiva, ocorreu um processo gradual de hi-
vado número de crianças para amamentar, com a finalidade pertrofia das instituições que se consagraram no cuidado à
de obterem maiores rendimentos, o que, obviamente, compro- criança, a saber: a família e a escola.
metia a qualidade dos cuidados e da nutrição oferecidos à
A família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade
criança. As amas-de-leite utilizadas pelos ricos, na sua maio-
dos adultos. A escola confinou a criança outrora livre n um regi-
ria escravas, não tinham disposição nem interesse em propor-
me disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e
cionar à criança condições para um desenvolvimento XIXresultou no enclausuramento total no internato. A sociedade
saudável de uma pessoa que no futuro poderia vir a oprimi- da família, da igreja, dos moralistas e dos administradores privou
Ia; além disso, os ressentimentos com relação ao senhor eram a criança da liberdade de que ela gozava entre os adultos. (Ariês,
transferidos, também, para o filho deste. 1981: 277-278)
Estes fatores levaram os estudiosos da época a concluir
que as altas taxas de mortalidade infantil, bem como os pro- Era uma realidade, para a medicina da época, os malefí-
blemas futuros manifestados pelas crianças, eFam decorrentes . cios causados por uma educação pouco criteriosa conduzida
dos precários cuidados prestados pelas amas-de-leite. É bas- por amas-de-leite, como descrevemos acima. Assim, afamília
tante ilustrativo desta linha de pensamento as conclusões a tornou-se o espaço privilegiado de educação da criança, so-
que chega Buchan em seu livro Mi/dicine domestique, de 1775. ffrefi.ldcfna"primeira infância, de onde ela só deveria sair para
Diz ele: ingressar nos bancos escolares. Sendo que a mãe passou a as-
sUIT.\irpapel de destaque na amamentação e cuidado do filho.
Espantamo-nos muitas vezes em ver os filhos de pais ho- Acompanhando estas transformações sociais, encontrare-
nestos e virtuosos manifestarem, desde os primeiros anos de mos o aparecimento de uma nova mentalidade, que impul-
vida, um fundo de baixeza e maldade. Não há dúvida de que es- sionará o homem ao estabelecimento de relações afetivas
tas crianças tiram todos os seus vícios de suas nutrizes. Eles te-
calcadas em novos valores. A vida social de caráter mais am-
riam sido honestos se suas mães os tivessem amamentado.
plo e intenso entre os membros de uma mesma comunidade
(Buchan apud Donzelot, 1986: 17)
tende a diminuir, " ... a família começa a manter a sociedade
A medicina e a educação que floresceram no século XV!1.. à distância, a confiná-Ia a um espaço limitado, aquém de uma
movimentos estes forjados sob o ideário Ren_ascJlllistq, conse- zona cada vez mais extensa de vida particular." (ibid.: 265). A
guiram paulatinamente influenciar delõi:ma efetiva os valo- C~~~'.!~Ç~torn~:~~..':~1!10bjctode.grande afeição para os adultos,
res culturais vigentes na baixa idade média, introduzindo em torno da qual a família passa a organizar-se, dcspcndcn-
inúmeras alterações na forma como a criança era vista por do a ela maior atenção. Desta forma, torna-se conveniente re-
aquela sociedade, bem como na maneira de educá-Ia. duzir a natalidade para que se possa melher cuidar dos filhos
Uma conseqüência imediata e de amplo alcance, uma e preservar suas vidas, haja vista que a morte da criança não
vez que alterou a condição social da infância, foi c:.. exclusão d-ª mais ocorre sem grande sofrimento e pesar. Vemos esboçar-se.
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.. I-IIST(lRII\ Ill\ I'SI(·i\N ..\I.I~1' DF CHII\M:I\S N( 1 1~1(I\SIl.
assim, um novo sentimento de infância que se estende até infância surge em decorrência de uma necessidade oriunda da
nossos dias. escola. À proporção que os dispositivos escolares foram se
Até o século xv, aproximadamente, o sistema educacio- aperfeiçoando, a infância foi, por sua influência, prolongando-
nal vigente na Europa medieval, remanescente das invasões se. Quando a necessidade da escolarização não se impunha 1<l~,..,\,.,l\ril\-j.,
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~.bárbaras que haviam . desarticulado
-.._......•. ." o modelo
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como no caso d asmerunas, que estavam excluídas do univer- to]"
antigüidad~~g_~§ic.a, era definido pela "vídaescoléstíca". As- so escolástico, nada se alterava, elas continuavam a ter uma
-··s-im;o-ensino nas escolas era reservado á 'um número restrito . infância bastante breve.
de clérigos em busca de formação religiosa. Enquanto a escola Uma vez freqüentando o ambiente escolar, as diferenças
era bastante restrita, a aprendizagem, valendo-se do contato de idades entre os alunos pareciam desaparecer, como reflexo
direto entre crianças e adultos, constituía-se no elemento cen- da velha sociedade medieval que não separava crianças de
tral da pedagogia medieval; garantindo a transmissão dos va~ adultos. Assim, era comum encontrarmos crianças de pouca
lores culturais e sociais. Nã9 era incomum neste período que idade, jovens e mesmo homens mais velhos convivendo no
as crianças, desde pequeninas, fossem enviadas a outras famí- mesmo espaço escolar. Isto porque A escola medieval não era
fi
lias com a finalidade de se socializarem e de aprenderem um destinada às crianças, era uma espécie de escola técnica des-
ofício. Era uma fase na qual predominavam a esperteza e a tinadaà instrução dos clérigos, 'jovens ou velhos' ..." (ibid.:
precocidade, privilegiando aqueles indivíduos que muito 187).
cedo conseguiam destacar-se no mundo dos adultos. Este fato nos remete a uma outra característica, a inexis-
A partir do século xv e, mais nitidamente, nos séculos tência das classes escolares separando alunos pela idade e ní-
XVIe XVIIir..~q",,-os)çl~.IltificaLum.movimentpde_exeltisãoda vel de instrução. Esta distinção só começará a ocorrer a partir
9ié!_I1Ǫd~~0_adulto-por.meiQ_de...seu_enclaustl:famen- do século XV, quando começou-se a dividir a população es-
li •••
_!9.n.~~sçola. Instituição esta que, por influência dos educado- colar em grupos de mesma capacidade, que eram colocados
res e moralistas da época, tendeu à expansão, tanto as sob a direção de um mesmo mestre, num mesmo local ..."
eclesiásticas quanto as particulares. (ibid.: 172), ao passo que a s~p~raç~o de alunos em espaços fí-
As características deste novo modelo educacional ainda _~ic.()sdiferentes em função da idade ou capacidade intelectual
preservam algumas reminiscências da educação medieval, ~o~~~te ocorrerá séculos mais tarde. , 1\ s.c-<J ', e àf\>
tais como a infância reduzida e a ausência de separação entre Acompanhando o aprimoramento das instituições edu- ·ff
'r\ c 1.,- f'p""A~ te ~ r
crianças e adultos. cacionais, surge, também, uma série de condutas disciplina- 'i) ,,/-_~f. (2'" t,j"~ hl;/U'l
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Inicialmente, a criança ingressava muito cedo na escola, re~, ~u~ pa~s~m a nortear a educação das crianças, cujos r,<ft\' d~ .l~ f!€.'/W 1>,) "r"
logo após a primeira infância, o que no século XVcorrespon- pnncipios básicos, entre outros, recomendam: evitar deixar as t: vrl' ",,,€..
dia a cinco· ou seis anos, em consonância com a mentalidade crianças sozinhas, não mimá-Ias e incentivar os comporta- \{f\d.,~ .o>: \ <!)·~i".P
medieval que reservava um período de tempo bastante curto men tos d e recato com o corpo. > ,,.r .!>N'~
e).r.-f> I c."," r \D oJ
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para a infância. Por volta do século XVII,encontraremos uma • N O amago d as t rans f ormaçoes
A - SOCiaiS . d as pe I'os v.
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tendência a pzolongar a primeira infância, protelando o in- educadores e moralistas entre os séculos XVe XVII,que pro- ~
gresso da criança na escola até a idade de dez anos em média. moveram significativas mudanças na família e na escola, en-
Esta nova prática era justificada pela imaturidade da criança contramos o dcsc nvolv imcntn de um novo sentimento de
pequena, que não se adaptava ao rigor da disciplina escolar. infância, que, com algumas variações, predominam até nossos
Podemos concluir, portanto, que a tendência a prolongar a dias. A criança passa a ser entendida menos como algo~
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resco com que os adultos divertiam-se, e mais como um ser Tivemos, 'l1().~é~:~:~)--;~;:>a
cristalização algulls de aconte-
inocente e imaculado que precisava ser formado. Com base ·cimentos, já enunciados nos séculos anteriores, que se defini-
nesta concepção, a educação da criança começa, ·ram pelo declínio do regime totalitário e pela extinção da
... resultando portanto numa dupla' atitude moral com relação à comunidade ampliada, da qual o indivíduo é parte indissociá-
infância: preservá-Ia da sujeira da vida, e especialmente da se- :vel, em benefício de uma economia mercantilista, caracteriza-
xualidade tolerada - quando não aprovada - entre os adultos; e ;da pela ascensão da burguesia, de seus ideais de liberdade,
fortalecê-Ia, desenvolvendo o caráter e a razão. (ibid.: 146) \igualdade e fraternidade, que há pouco tinham figurado
.corno lema da Revolução Francesa.
Podemos identificar nesta concepção de infância, como
Estas transformações sociais e políticas marcam o g$go,:,
reflexo de um movimento pendular da história, uma.retoma:
~ento g.a.v:ida .coletivae.o advento de uma nova ordem
da da visão de criança presente na Antigüidade Clássica.
·~~~j~ti,:,a baseada na individualidade. Condição esta destaca-
Encontramos, nesta nova concepção de infância, um ter-
da por Luís Claudio Figueiredo. Para ele: .,.
reno bastante fértil para o desenvolvimento de um novo ramo
da ciência, dedicado ao estudo da criança. A nova concepção ... com a falência das "tradições históricas" (Feyerabend) e das
de infância, que passou a imperar no século XVII e que atin- formas de vida coletivas reguladas pelas tradições e pela obe-
giu seu ápice no século XIX, não comportava mais um cuida- diência a autoridades intangíveis, assistimos também à per-
do negligente com a criança, uma atitude desta natureza seria da de raízes e referências estáveis sobre os quais se pudessem
mesmo inconcebível ao homem vitoriano. Assim, torna-se assentar e desenvolver existências relativamente apaziguadas e
necessário proporcionar à criança cuidados para o corpo e protegidas de episódios catastróficos que colocassem em risco
para a alma com a finalidade de garantir-lhe um desenvolvi- suas continuidades e suas identidades. Neste contexto, o recurso
mento saudável. às experiências subjetivas, individualizadas e de caráter privati-
A partir do momento que a criança deixou de ser socia- vo passou a ser tanto urna posslblltdndecomo uma exigêllcin na ta-
lizada pelo contato direto com os adultos, sendo confinada, refa de reconstruir regras e crenças de ação, valores e critérios de
nos seus primeiros anos de vida, no meio familiar e mais tar- decisão seguros e confiáveis, já que os dispositivos da tradição
de na escola, surge a necessidade de instrumentalizar e gerir não se mostram mais aptos à manutenção e à legitimação das
sua educação. A espontaneidade e informalidade da educação existências individuais e coletivas. (Figueiredo, 1995: 15)
de outrora, quando o menino tornava-se um artesão obser-
Esta nova ordem social e política impõe ao homem uma
vando e assessorando o mestre, foi, paulatinamente, sendo
compreensão inovadora sobre si e sua constituição como in-
substituída por uma educação formal que viria buscar na
divíduo. Segundo esta concepção, os atributos e característi-
_ ciência os fundamentos para sua prática.
cas que definem o indivíduo e o tornam um ser autônomo e
Para conferir legitimidade a este raciocínio, é necessário
independente, são forjadas com base em uma realidade ínti-
que se explique de que forma o saber do mundo científico e
ma e subjetiva, consolidada em círculos bastante restritos,
de uma psicologia nascente no século XIX puderam imputar
corno a família nuclear.
a família e a escola normas e padrões para bem gerir a ed u-
cação da criança. É preciso que se compreenda quais as trans- Mais ainda, as pessoas comuns tiveram que conceber a si
formações na organização social e na subjetividade humana, mesma como incapazes de solucionar autonomamente, ou com a
ocorridas durante o século XIX, que vieram sedimentar a pe- ajuda de seus semelhantes, os conflitos surgidos no território de
netração do saber psicológico na educação da criança. sua intimidade psicológica. (Cunha, 1998: 31)
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Uma vez instituída e disseminada esta nova concepção . s:a no ufli~e~~~~.ental do adulto Ot~, dito no jargão psicanalí-.,
de subjetividade humana. o saber científico e, particularmen- tico, a existência das reminiscências infantis no inconsciente .: <
te, 'l ciência pSicól6gicaJoram requisitados a estabel~cer os do adulto. Podemos mesmo indagar, baseando-se nesta afir-···
preceitos que sirvam de baliza para a condução da vida do mação, se a dicotomia entre psicanálise de adultos e de crian-G';,
indivíduo e resolução de seus conflitos. Este caráter norrnali- ças é justificada, ou se existe apenas uma única psicanálise,
zador, assumido pela psicologia, torna-se uma condição impe- variando somente a forma de abordar o infantil, seja no adulto
rativa sobretudo na infância, quando o desenvolvimento do ou na criança. Evidentemente, a questão que se coloca abar-
caráter encontra-se em fase embrionária, afeito, portanto, a in- ca aspectos que vão muito além dos objetivos desta introdu-
fluências externas. Isto explica, ao menos em tese, a desqua- ção. Cabe-nos apenas demonstrar, neste momento, como a
lificação da família como agente autônomo e a coloca, cada psicanálise concebe a criança.
vez mais, na dependência de padrões externos, ditados pela
Os primeiros trabalhos de Freud com pacientes histéri-
ciência, que instruam quanto a melhor forma de gerir a edu-
cas, que culminaram nos "Estudos sobre a histeria" (1895), le-
cação dos filhos.
E neste ínterim, que iremos identificar as condições ne- varam à formulação de uma teoria na qual a patologia
cessárias para o desenvolvimento de novas ciências como a histérica era causada por uma experiência traumática na in-
pediatria e a psicanálise infantil. ~iança não érnél.i~reconhe- fância, quase sempre de natureza sexual, que era segregada da
cida como um adulto em miniatura, sua singularidade agorél consciência em razão do caráter insuportável do trauma, sen-
-~ãfQ. inêontés~Avet cabendo assim, aos ramos da ciência do que, na adolescência, os sintomas surgiriam em virtude da
.a ela dedicáéós, produzir conhecimentos que possibilitem reativação dos traços mnêrnicos deste trauma. _ .y.
compreender suas características como um-indivíduo em de- Entretanto, a teoria da sedução sexual na infância não Ó'~\~
senvolvimento; para, com isto, Identificar as formas mais ade- sobreviveu por muito tempo entre as formulações de Freud, ~?'~
quadas de gerir sua educação. sendo abandonada alguns anos depois, o que pode ser evi-
A psicanálise, em particular, ao desvendar os recônditos denciado em carta a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897.
do universo mental infantil, primeiro por meio das lembran- Dois fatores parecem ter conduzido Freud a reformular a teo-
ças dos adultos e depois, por intermédio das próprias crian- ria da sedução infantil: sua auto-análise, que o conduziu ao
ças em análise, surge com uma série de indicações acerca da reconhecimento da existência do complexo de Édipo e a expe-
educação das crianças, de forma a prevenir possíveis distúr- riência clínica, que possibilitou perceber que o trauma não
bios de conduta. Torna-se conveniente, portanto, analisarmos equivalia a uma experiência factual, sendo o relato das pacien-
o caminho percorrido pela psicanálise no que concerne a pro- tes fruto de suas realidades psíquicas, ou seja, as fantasias que
dução de conhecimentos sobre a criança. evocavam a cena traumática tinham, para °
psiquismo das
.pacientes, valor equivalente a um acontecimento real na cau-
sação dos sintomas. Com isso, Freud inaugura uma forma
A CRIANÇA DA PSICANÁLISE E A PSICANÁLISE DE CRIANÇAS .peculiar e inovadora de compreensão do psiquismo humano,
.
"Sem menosprezar a realidade histórica, factual, Freud passou
Para além do jogo semântico, que o título desta seção su- I a ocupar-se de sua realidade psíquica. Assim, uma história
gere, o enunciado proposto nos remete para uma condição 1 seria definida numa dimensão de fantasia e impresso nela o
básica da psicanálise: a descoberta da3,9brevivência.:d.a...cr.@D::: j registro de história." (Oliveira, 1996: 25).
-------.,..-----~-•.......•...-------
.~"'~'.'.:"'"
36 JORC;E Luis FERI\EIRA AllRÃO A HIST(lRIA liA I'SK'ANÀI.lSF 1)1' l'!(IANl,'i\S N\ 1 BI{/\SII.
-::'7
Com este objetivo, Freud passou a incentivar seus colaborado- No tocante ao primeiro destes aspectos, fica evidente o
res mais próximos " .., a reunir observações da vida sexual das interesse de Freud em estar encontrando elementos oriundos
crianças - cuja .•.existência, via de regra, tem sido argutamen- ·do cotidiano da criança que possibilitassem confirmar a teo-
te desprezada ou deliberadamente negada" (Freud, 1909: 16), ria da existência de uma neurose infantil, pedra angular da
E neste contexto que surge o relato da história do peque- psicanálise, formulada com base nas inferências decorrentes
no Hans, Os genitores do menino pertenciam ao círculo ínti- das associações livres dos adultos, Neste sentido, o desenvol-
mo de Freud, sendo que a mãe havia sido sua paciente alguns vimento de um sintoma fóbico em Hans parece ter ofuscado
anos antes, A proximidade e confiança no criador da psicaná- o brilho do relato, causando em Freud um certo desconfor-
lise explica a iniciativa dos pais de Hans de proporcionar ao · to, o que o levou a antever as críticas de que Hans, em função
filho, por inspiração da psicanálise, uma educação com o mí- da doença, fosse considerado um degenerado, o que invali-
nimo de coerção possível. Passam a relatar seu desenvolvi- daria a proposta de generalização do material obtido na ob-
mento nesta condição, dos três aos quatro anos e meio, servação.
Entretanto, neste momento, Hans é acometido por uma fobia O que na ocasião configurava-se como um inconveniente
de animais, fazendo com que seu pai comece a analisã-lo sob para Freud, visto retrospectivamente, pode ser entendido
orientação de Freud. como um significativo avanço para a técnica psicanalítica,
A exposição do material de Hans, apresentado por pois foi .9.:.Pêirtir.do aparecimento dos sintomas neuróticos
Freud, fica circunscrito, basicamente, a dois momentos: uma ~.~..Hans qu~§gJl11PÔS a necessidade de uma intervenção te-
primeira parte de relato da observação de Hans, em um pe- rapêutíca, abrindo caminho para o desenvolvimento da psi-
ríodo anterior à instalação dos sintomas neuróticos e um se- ·canálise de crianças. Chegamos assim ao segundo aspecto.'
gundo momento no qual são descritas as tentativas de análise negligenciado ou, ao menos, pouco enfa tizado por Freud:
da criança, É digno de nota os aspectos deste material, que fo- o valor deste caso como precursor da técnica da análise de
ram privilegiados por ocasião das discussões dos dados, diz crianças. -
Freud: . . O ponto que mais nos chama a atenção na conduta téc-
nica adotada neste caso, se assim podemos dizer, é a recomen-
Em primeiro lugar, devo considerar, até que ponto o exame
dação de que o próprio pai conduzisse a análise de seu filho,
desta observação apóia as afirmações que fiz nos meus Três en-
1I O que hoje soa com estranheza - para não dizermos como
saios sobre a teoria da sexualidade (1905d), Em segundo lugar,
/. devo considerar em que medida ele pode contribuir para nossa uma heresia - era, segundo Freud, condição essencial para a
i' i compreensão desta freqüente forma de distúrbio, E em terceiro lu- realização de um trabalho analítico com crianças, Segundo
gar, devo considerar se pode ser feito de modo a projetar alguma ele:
luz sobre a vida mental das crianças ou a fornecer alguma críti- Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uni-
ca dos nossos objetivos educacionais, (Freud, 1909: 109) ram numa só pessoa, e porque nela se combinava o carinho afe-
O recorte feito por Freud, durante a discussão do rnàte- tuoso tom o interesse científico, é que se pode neste único
exemplo, aplicar o método em uma utilização para a qual ele pró-
rial, chama-nos a atenção em dois aspectos principais: a ênfa-
prio não se teria prestado, fossem as coisas diferentes, (Freud,
se dada ao desenvolvimento da sexualidade da criança e a
1909: 15)
ausência de um aprofundamento sobre as condições técnicas,
que permitiram ao pai de Hans conduzir sua análise a bom Embora a análise de Hans tenha sido conduzida por seu
termo, próprio pai, o que inviabilizou a utilização da transferência
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como recurso técnico, a contribtiição deste caso é bastante sig- te, os trabalhos de psicanálise de crianças que surgiram pos-
nificativa, pois permitiu compr~!:.ger a imEortâ!lcia lín- .~ª.. teriormente. . , i ..~
~m pré-verbal ~rn:p_~.gad_Cl.peIa ..criança, bem como Ao caso de Hans, vlra~omar-seeI!'-,:l21~) portanto qua-
.reconhecer que as interpretações podiam ser entendidas por tro anos depois, o artigo de:.,~á.ndorFerenczi, intitulado "Um
ela, possibilitando, desta forma, a elucidação do conflito edí- pequeno homem galo", no qual iremos encontrar alguns pon-
pico de Hans, o que culminou com a remissão de seu sintoma -tos de.convergências e divergências com o relato de Preud.
fóbíco .. O relato refere-se a um menino de aproximadamente cin-
'. Além disso, este trabalho teve o mérito de demonstrar co anos, o pequeno Arpard, que durante as férias de verão
I que a aplicação da técnica psicanalítica a uma criança tão pe- passou a apresentar uma repentina mudança em seu compor-
i quena não causava prejuízo algum ao seu desenvolvimento, tamento habitual, até então considerado normal e vivaz. Seu
\ ou seja, a liberação dos impulsos reprimidos por intermédio interesse, antes bastante aguçado por tudo aquilo que o cir-
; das interpretações comunicadas à criança não provocaram cundava, foi substituído por uma única preocupação, o gali-
, intensificação e descontrole destes impulsos, ao contrário nheiro que ocupava os fundos da casa de campo, onde a
...a análise não desfaz os efeitos da repress.ªP..Os instintos que fo- família estava hospedada. Arpard ficava o dia inteiro obser-
ram suprimidos anteriormente permanecem suprimidos, mas o vando o galinheiro, e quando longe dele, produzia grunhidos
mesmo efeito é produzido de uma maneira diferente. A análise que se assemelhavam a cacarejos. Retomando a sua casa, na
substitui o processo de repressão, que é um processo automático cidade, seu interesse continuou centrado nas aves, sendo que
excessivo,por um controlemoderado e resoluto da parte das mais . sua brincadeira predileta consistia em produzir moldes de
altas instâncias da mente. Numa palavra a análise substitui a re- papel em formato de galos e galinhas e, em seguida, degolá-
pressão pela condenação. (íbid.: 150)' , Ias com um objeto qualquer, que era por ele denominado de
Por fim, um último aspecto deste caso que merece ser faca. Além das fantasias agressivas manifestadas neste e em
outros jogos, evidenciava-se, também, no comportamento de
destacado é a relação estabelecida por Freud, na parte final da
discussão do material, entre psicanálise de crianças e educa- Arpard um medo bastante exagerado de galos, que era justi-
ficado por ele pelo fato de ter
ção. A julgar-se pela indicação de que o pai era a pessoa mais
indicada para analisar a criança, podemos deduzir que Freud ... ido um dia ao galinheiro e urinado lá dentro; foi então que um
não fazia neste momento uma distinção muito nítida entre as frango ou um capão de plumagem amarela (às vezes dizia mar-
duas modalidades de cuidado com a criança. ~~ rom) veio morder seu pênis, e Liona, ti arrumadeira, fez o cura-
~nQe gue os co~ç.iJ!l,l;!n.tQS_p..§jgnªlítico..s.reJÇltiyº~.~J~fân-
., tivo em seu ferimento. Cortaram em seguida o pescoço do galo
~~G.r~er..soRreª ..educação.substituindo o modelo que "rebentou". (Fereuczi,1913:62)
repressIvo da época por uma educação menos coercitiva, que Este fato foi confirmado por seus pais, que datavam o in-
agregue a seus princípios o esclarecimento das fantasias se- cidente quando o menino contava dois anos e meio. Não sa-
xuais da criança. Esta área de sobreposíção entre educação e tisfeito somente com esta explicação, Ferenczi indaga aos pais
psicanálise de crianças influenciou, de forma bastante eviden- sobre possíveis ameaças de castração em decorrência de epi-
sódios de manipulação genital apresentada por Arpard, o que
é confirmado, não sem uma certa relutância.
1. Anosmaistarde,esta questão constituir-se-à em um dos pontosde di- É evidente a aproximação entre os casos de Hans por um
vergênciaentre MelanieKleine Anna Freud. lado e de Arpard por outro, no que concerne à natureza dos
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sintomas apresentados. Ambos manifestam fobia de animais, deu início ao tratamento psicanalítico de crianças, publican-
no primeiro caso de cavalos e no segundo de galos, em decor- do, em 1921, o artigo A técnica da análise de criança". Entre-
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rência de uma ansiedade de castração deflagrada pela amea- · tanto, a descrição por ela apresentada sugere lima abordagem
ça dos pais. Porém, as diferenças não tardam a surgir, a · bastante limitada e precária. Referindo-se a este artigo, apre-
docilidade e cooperação de Hans, que se esforçava em produ- sentado um ano antes no congresso de Haia, comenta Petot:
zir associações que seriam relatadas ao professor, como ele se "". é um verdadeiro catálogo das razões pelas quais é impos-
referia a Freud, são substituídas, em Arpard, por um compor- sível se psicanalisar urna criança e que justifica o emprego de
tamento mais agressivo e hostil. As fantasias de Arpard comu- um método educativo e curativo de inspiração psicanalítica"
nicam a existência de um mundo mental povoado por objetos (Petot, 1979: 92).
bem menos amistosos do que se imaginava até então. Segun- As razões apresentadas pela dra. Hug-Hellmuth, para
do Barros (1996b: 97) "Há um nítido parentesco entre as fan- justificar a limitação da psicanálise de crianças em relação à
tasias de Arpard e aquelas registradas por Melanie Klein nos de adultos, baseavam-se nos seguintes fatos: a criança não
seus pequenos pacientes" . busca espontaneamente o tratamento e, além disso, está vi-
Após estas contribuições iniciais, a psicanálise de crian- · vendo no ambiente propiciador das experiências reais que
ças ainda permaneceu por alguns anos como urna área pou- irão causar sua neurose. Neste sentido, o tratamento psicana-
co explorada e abordada com muitas reservas e ceticismo. O lítico é indicado apenas para crianças a partir do período de
que pode ser explicado, em parte, pela própria atitude de latência, sendo que as interpretações deveriam ser comunica-
Freud, que considerava a psicanálise um procedimento pou- ·das de modo muito cauteloso à criança, de forma a não libe-
co apropriado para o tratamento de crianças. ~?~- . rar impulsos que o pequeno paciente ainda não poderia
rá ao tema, com uI.!1.posiciona~ento bem mais otimis_t.aJ.n.o controlar. Sugere, ainda, a adoção de um tratamento educa ti-
ano de 1933, ocasião em-que os
fundamentos teóricos e técni- vo de inspiração psicanalítica, no qual o brincar é empregado
'(às da análiSe infantil já haviam sido desenvolvidos por Me- corno um recurso para despertar o interesse da criança pelo
lanie Klein e Anna Freud, afirmando: "Verificou-se que a · tratamento.
j criança é muito propícia para tratamento analítico; os resulta-
, dos são seguros e duradouros" (Freud, 1933: 181). Salienta, en-
Por algum tempo, a análise de crianças ainda foi aborda-
da com muita reserva; parece ter contribuído para manter esta
. tretanto, no mesmo texto, a necessidade de algumas postura de excessiva cautela, além das restrições apontadas
adaptações da técnica quando aplicada com esta finalidade,
urna vez que a criança " ... não possui superego, o método da
associação livre não tem muita razão de ser, a transferência
pela dra. Helmuth, o fatídico acontecimento de seu assassina-
to praticado pelo sobrinho que ela havia analisado quando
cr~ança. Este episódio colocou em alerta os psicanalistas de
r.,
~<õ4l~1 o-
~~
\ o J
r:
(porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempe-
nha um papel diferente" (ibid.: 181). Apesar de não formular
cnanças, ~a época, ~obre os pos.síveis efeitos[atrogênicos\qu~ ..+e.•.h ;cr,~~
lima análise
.
descuidada podena causar sobre a personalida- l ",óP\~
$e.CAl
uma queixa explícita ao trabalho de Melanie Klein, as conclu- de da cnança.
sões postuladas por Freud nesta conferência deixam antever Na segunda década do século XX,Anna Freud e Melanie
urna adesão velada às idéias de sua filha Anna. Klein, seguindo caminhos distintos e, muitas vezes, divergen-
Os primeiros passos em direção à consolidação da psica- tes, destacaram-se na psicanálise de crianças e fundaram as
nálise de crianças começa~am a ser empreendidos no final da bases desta modalidade de tratamento psicanalítico em con-
década de 1910, quando a dra. Hermine von Hug-Hellmuth dições bem mais amplas e estr uturadas que as contribuições
e«~·~·
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da dra. Hug-Hellmuth. fu!rgem..L.a.ssim,duas escol~s_di~!~as cci to Ireudiano de neurose de transferência, os si n tornas di,
em psicanálise de criança, lideradas pelas duas damas da psi- neurose manifest<ld~)spelo paciente são substituídos por um"
canálise, que com algumas variações persistem até nossos neurose artificial, na qual os conflitos infantis, gl'radorcs do
sintoma, são revividos na relação com o analista, por meio do
dias. Fiel aos ensinamentos de seu paijAnna-F~-~_:d)nicia-se princípio da compulsão à repetição. Anna Freud, apoiada nes-
na psicanálise de crianças baseando-senocaminho aberto ta definição formulada por seu pai, não acreditava na possi-
pela dra. Hug-Hellmuth, de quem incorpora muitas idéias. bilidade de que a criança viesse a desenvolver tal fenômeno,
Apresenta, no ano de 1926, uma série de conferências a,o I~s- ·uma vez que ela ainda "... não se vê, como o adulto, pronta a
tituto de Psicanálise de Viena, que versavam sobre a técnica produzir uma nova edição de suas relações amorosas, por-
da análise de crianças, sendo publicadas no ano seguinte com quanto, como se poderia dizer, a antiga edição não se encon-
o título O tratamento psicanalítico de crianças. Nestes trabalhos, tra ainda esgotada" (ibid.: 60).
ela expõe seu posicionamento diante da psicanálise de crian- Com relação à técnica empregada durante a análise da
ças, apontando as características básicas que definem a técnica criança, também são encontradas significativas alterações, se
por ela empregada. .
comparada àquela empregada com adultos. A principal reco-
A primeira questão levantada por Anna Freud refere-se
mendação técnica do tratamento com pacientes adultos, a as-
às adaptações da técnica psicanalítica clássica, que se fazem
sociação livre, não pode ser facilmente utilizada com as crian-
necessárias, para que se possa conduzir a bom termo a análi-
ças, levando Anna Freud a empregar outros recursos que per-
se de uma criança, uma vez que esta chega à análise em uma
mitissem entrar em contato com o conteúdo inconsciente de
condição diferente da do adulto. Argumenta ela que ao con-
seus pequenos pacientes. Neste sentido, vale-se da análise de
trário do adulto" A decisão relativa a submeter-se à análise
nunca parte da criança na qualidade de futuro paciente, mas sonhos, de sonhos diurnos (devaneios) e de desenhos para ter
vem sempre dos pais ou de outras pessoas que a cercam" acesso ao inconsciente da criança. Quanto à utilização da téc-
(Anna Freud, 1927: 22). Soma-se a isto uma segunda dificul- nica do brincar, que vinha sendo empregada por Melanie
dade, a criança não possui consciência de sua enfermidade, e Klein, como um equivalente das associações livres dos adul-
conseqüentemente não se engaja com facilidade ao tratamento. ·tos, Anna Freud posiciona-se de forma bastante cética e relu-
Para superar tais dificuldades, impostas pela falta de au- tante, argumentando que o brincar não possui o caráter simbó-
tonomia da criança, torna-se necessário a adoção, no início do lico a ele atribuído, sendo antes uma expressão inocente de
tratamento, de algumas adaptações da técnica clássica da psi- dramatização das atividades cotidianas vividas pela criança.
canálise, em vigor na época. Recomenda-se, assim, a ~ão. Por fim, Anna Freud considera que o analista de crianças
dE!.llll1--ª
fase preliminar no tratamento, de caráter não analíti- ·deve adotar uma postura educativa no curso da análise, for-
c~, para~que se possa conquistar a cãiU'iança da criança e de- talecendo o ego da criança, tendo em vista que ela; por encon-
senvolver nela a consciência da enfermidade, o que facilita o trar-se em desenvolvimento, ainda não possui um superego
seu engajamento e cooperação durante o tratamento analí~ic~. suficientemente constituído, que seja capaz de controlar os
Esta recomendação técnica sugere a necessidade de se dissi- impulsos liberados pelas interpretações com unicad as d uran-
par a transferência negativa por meios não analíticos, caso te o tratamento. Desta forma, cabe ao analista
contrário o tratamento da criança pode tornar-se inviável. . ... assumir a orientação da criança para assçgurar a feliz conclu-
É justamente com relação à transferência que encontrare- são do tratamento; deve ensiná-Ia a dominar sua vida instintiva
mos outra dificuldade na análise da criança. Seguindo o con- e a opinião do analista decidirá que parte dos impul~os infantis
.... -.;(.-7' ..
\
___ :._~ __ ._ •• _ • •••••• •• 0 -_._----_._-_·._- • • ._ •• ••• _ •• .-._. •• _._ ••••• ._. __ • ._. __ ••
deve ser suprimida ou condenada, gue parte se deve satisfazer e I Empenhada em confirmar sua hipótese, Klein submete o
gual deve ser conduzida à sublimação.(Aberastury 1989: 63) ,. filho a dois curtos períodos de educação psicanalítica, um de
três dias, seguido por outro de quatro, com um intervalo de
Ao longo dos anos, a experiência clínica conduziu Anna poucos meses entre eles. Os resultados decorrentes destas in-
Freud a uma modificação em suas recomendações técnicas, tervenções foram satisfatórios, o que pôde ser notado pela
que são sucintamente descritas no prefácio à edição inglesa de ampliação do interesse pelos acontecimentos do mundo exter-
seu livro, publicado naquele país somente no ano de 1946. A no e pela melhora do senso de orientação espacial e temporal
fase introdut6ria ao tratamento foi bastante slmplifícada e a manifestados por Erich.
idade das crianças acessíveis ao tratamento analítico foi redu- No entanto, apesar dos bons resultados iniciais, a educa-
zida gQP~río.9o de latência para os dois anos.' ção psicanalítica, realizada por Klein, não livrou Erich da tão
(Melanie Kle~~por outro lado, dá ir:ício a seu trabal~o temida inibição intelectual, tão pouco do aparecimento de sin-
em torno ael:919, quando começa a realizar uma educaçao tomas neuróticos. Após alguns meses, o estado geral da crian-
psicanalítica com seu filho Erich, a quem atribui o pseudôni- ça era caracterizado por
mo de Fritz (Petot, 1979 e Grosskurth, 1986), publicando, em
1921, seu primeiro artígo.t'O desenvolvimento de uma crian- ... inibição para o brincar, acompanhada de inibição de ouvir e
contar histórias. Ele também estava cada vez mais taciturno, hi-
ça", no qual comunica seu trabalho inicial como psicanalista,
percrítico, distraído e anti-social.Apesar de se poder nesse pon-
realizado com Erich. . to não descrever a condição mental da criança como uma
Em princípio, a intenção de Klein era a de proporcionar "doença", era possível traçar algumas suposições sobre seu de-
ao filho uma educação não coercitiva e de promover o escla- senvolvimento possível a partir de certas analogias. Estas inibi-
recimento sexual necessário, com o objetivo de possibilitar o. ções relacionadas à brincadeira, a contar e ouvir histórias, e ainda
pleno desenvolvimento intelectual do menino. Esta primeira a postura hipercríticadiante de coisassem importânciae a atitude
intervenção proposta por Klein consistia em responder às per- distraída, poderiam, num estágio posterior, ter se tornado traços
guntas da criança, fossem elas relativas a temas sexuais ou de neuróticos. Da mesma maneira, a postura taciturna e anti-social
qualquer outra natureza, " ... com absoluta sinc,eridade e, poderiam ter se tornado traços de seu caráter. (ibid.: 69)
quando necessário, uma base científica adequa?a a s~a capa- Em face a estas evidências, Klein é levada a defrontar-se
cidade de compreensão - mas sempre da maneira mais breve com o insucesso da "educação psicanalítica", concluindo, en-
possível" (Klein, 1921: 24). Acreditava. ~la, neste m~n:e~:'o, tão, que a origem da repressão pode ser encontrada mais em
que a repressão da curiosidade sexual ma provocar inibição ~~~~internos do que externos, afirmando:
da capacidade intelectual da criança, uma vez que, no c~rso
normal do desenvolvimento, é a curiosidade sexual sublima- Não existe nenhum tipo de educação que não traga dificul-
dades, não há dúvidas de gue aguelas que agem de fora para
da que permite expandir o interesse nas várias atividades do
dentro são um fardo bem menor para a criança, do que aquelas
mundo externo. que agem inconscientemente de dentro. (ibid.: 73)
______ Jo __ Desta forma, Melanie Klein decide conduzir a análise do
2. No pós-escrito de 1947, agregadoao artigo"Simpósiosobreanálisede próprio filho, o que foi realizado em duas etapas, a primeira
criança" (1927), MelanieKlein comenta,não sem uma certasatisfa- em Budapeste e a segunda, alguns meses depois, em Berlim,
ção, as alteraçõesintroduzidas por Anna Freud, o que diminuiu as onde Melanie Klein passou a residir, a partir de 1921. Esta se-
diferençascomrelaçãoa sua técnica. gunda fase do trabalho com Erich, denominada por Melanie
"
Klein de "análise", em oposição à fase anterior realizada sob Um exemplo bastante ilustrativo, que nos permite acom-
a rubrica de "educação psicanalítica", tinha por fundamento panhar a gênese e o desenvolvimento das formulações teóri-
penetrar mais profundamente no inconsciente da criança, va- cas e técnicas de Melanie Klein, pode ser encontrado no caso
lendo-se de interpretações do conteúdo inconsciente explies- Rita, sua primeira paciente propriamente dita, analisada na
so no simbolismo dos sonhos, das fantasias e, eventualmente, primavera de 1923, que assumiu uma importância seminal
no brincar de Erich. durante toda a sua obra. A mesma linha de raciocínio é segui-
O suporte técnico des:t.;;tanálise foi sendo definido. pau- da por Horácio Etchegoyen, que ao discorrer sobre a técnica
latinamente, à proporção que as necessidades e os obstáculos kleiniana comenta: "Assim como pode-se dizer que Anna O.
iam se interpondo durante a execução do trabalho. ~.p.timeira inventou a falklÍlg cure, também cabe afirmar que a pequena
~intr9.c!}!.~~q!l porKlein foi a de reservar uma hora dQ- Rita criou a técnica lúdica, com seus brinquedos e seu famo-
f!.!.apara a análise do filho. Apesar de estar em contato cons- so ursinho superegóico" (Etchegoyen, 1987: 230). Desta forma,
tante com o menino, ela reconhece a necessidade de diferen- discutiremos as principais contribuições de Melanie Klein à
ciar o momento da análise das demais atividades cotidianas. psícanáliscde crianças, tomando como ponjo de referência a
Outro dispositivo técnico, que começou a ser esboçado neste análise de Rita.
momento, refere-se à postura adotada com relação fi interpre- Durante () primeiro nno de vida, Rita !11anifl'st.wa maior
tação de sonhos. Em princípio, Klein procura obter de Erich interesse pela mãe, em seguida passou .1 manifestar ciúmes
associações livres, o que lhe permitiria interpretar os sonhos em relação a ela e predileção pelo pai. Com 18 meses, a situa-
do menino seguindo a técnica clássica sugerida por Freud. Ao ção inverteu-se e a mãe passou a ser a figura de maior valên-
defrontar-se com a insuficiência das associações produzidas cia para a criança. Paralelamente a este fato, surgiram pavores
pelo filho, passa a conduzir suas associações por intermédio noturnos e fobia de animais. Aos dois anos, após o nascimento
de perguntas. Estes obstáculos, no tocante às parcas associa- do irmão, seus sintomas intensificaram-se. Até que, aos dois
ções da criança, conduziram Klein a uma abordagem técnica anos e nove meses, quando foi levada à análise, Rita mostra-
que primava pela interpretação do conteúdo simbólico dos va-se muito ambivalente, era inibida no brincar, manifestava
sonhos e das fantasias (devaneios) narrados pelo menino. forte sentimento de angústia e baixa tolerância à frustração,
Em seguida, Melanie Klein começa a analisar sgundo a além disso "Apresentava cerimoniais obsessivos e alternava
técnica do brincar por ela desenvolvida, crianças de tenra ida- entre ser 'um amorzinho' mesclado com sentimentos de re-
de, entre dois e seis anos. Isto lhe permite entrar em contato morso e 'uma ruindade' incontrolável" (Klein, 1932: 23).
com o universo mental da criança e ~~<!ªmen!ar §eu trabalho A análise de Rita foi conduzida na casa da própria crian-
em t<:>E..~con_~~~ta~!~j!ú~º-~ent.~, que tem como ça, em função de sua pouca idade. Ao ficar sozinha em seu
forma privilegiada de expressão o simbolismo do brincar, que quarto com a psicanalista, Rita demonstrou fortes sinais de
pode ser equiparado, segundo esta autora, à associação livre ansiedade, pedindo para ir ao jardim, com o que Klein concor-
do adulto. Suas formulações teóricas e técnicas desenvolvidas dou. Ao saírem do quarto, foram acompanhadas pelos " ...
ao longo dos anos de 1923 a 1926, com base nas análises de
Rita, Ruth, Trude, Peter e Erna, foram apresentadas sob a for-
ma de conferências proferidas na Sociedade Britânica de Psi-
I olhares observadores de sua mãe e de sua tia que tomaram
isto como um sinal de fracasso" (Klein, 1955: 152), rememora
'Klein, trinta anos mais tarde, sua primeira sessão com Rita.
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canálise no ano de 1925 e, posteriormente, sistematizadas no I Levando em conta algumas associações da menina, a analis-
livro A psicanálise de crianças, publicado em 1932.
! ta interpreta o medo de Rita em ficar a sós com ela no quar-
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to, relacionando isto corri.seus terrores noturnos, que se carac- mas obsessivos manifestados pela pequena paciente. O fato de
terizavam pelo medo de que uma mulher má a atacasse du- Rita necessitar ser enrolada nas cobertas para não se levantar
rante a noite. Com esta interpretação, a ansiedade da criança durante a noite, expressava simultaneamente os seus desejos
diminuiu permitindo que analista e paciente retomassem ao sádicos em relação aos pais e a tentativa de controlá-tos.
quarto. Embora superado o primeiro impasse, Rita continua- A análise de Rita foi interrompida quatro meses após o
va evitando contato com a analista, limitava-se a brincar com · seu início em decorrência da mudança dos pais para o exte-
seus brinquedos de forma estereotipada, vestindo e desvestin- rior. Entretanto, Rita apresentou muitas melhoras: seu ritual
do obsessivamente uma boneca, seguido da afirmação de que obsessivo diminuiu, sua rivalidade edípica foi abrandada c
a boneca não era sua filha. Esta atividade lúdica da pequena ela pôde assumir uma atitude maternal em suas brincadeiras.
paciente não passou despercebida, permitindo a Klein inter- Fica evidente ao leitor, que acompanhou a descrição da
pretar para Rita sua fantasia inconsciente de roubar o bebê análise de Rita, que Melanie Klein não empregou de forma
real de sua mãe, que havia nascido há poucos meses. sistemática com esta paciente a técnica do brincar, tampouco
No curso desta análise; Melanie Klein começa a defron- pretendia privilegiar o brincar em detrimento de qualquer
tar-se com a premência dos impulsos destrutivos expressos outra forma de expressão do conteúdo inconsciente. Podemos
por meio de fantasias sádicas de natureza oral, anal e uretral, observar que a escolha do brinquedo como elemento central
que estão presentes tanto no desenvolvimento da criança nor- da comunicação entre paciente e analista foi, de certa forma,
mal quanto na origem de seus sintomas neuróticos, descober- imposta: por um lado, pelas circunstâncias do atendimento c,
ta bastante jnovadora para a época, quando as atenções por outro, pela própria criança. O fato da análise ter sido con-
estavam voltadas quase exclusivamente para os impulsos li- duzida no quarto de Rita, em meio a seus brinquedos, que lhe
bidinais. ' eram tão familiares, atuou como um elemento propiciador da
Evidências destas fantasias foram sendo encontradas ao utilização deste material para a comunicação simbólica de
longo da análise de Rita, e sua compreensão permitiu elucidar conteúdos inconscientes. Aliado a isto, podemos destacar,
seus sintomas obsessivos. Uma das atividades lúdicas que também, a pouca idade de Rita, o que dificultava a verbaliza-
absorveu Rita, durante sua análise, consistia em colocar um ção de suas emoções e fantasias.
elefantinho de brinquedo ao lado da cama da boneca, para · . . A sensibilidade clínica de Melanie Klein, aliada à expe-
impedir que a última se levantasse durante a noite e fosse até riência que a análise de Erich lhe proporcionara, alguns anos
o quarto dos pais para lhes fazer alguma maldade. A com- antes, na qual a atividade lúdica figurava como elemento
preensão deste material expressa por Melanie Klein, anos coadjuvante, criaram as condições necessárias para que o sim-
mais tarde, é a seguinte: bolismo do brincar de Rita fosse elucidado. A partir deste
caso, Melanie Klein passa a empregar de forma sistemática a
O elefantinho representava o superego (o pai e mãe), e os
té~ní9i .do brincar, tomando-a como uma "via régia" ao in- .
ataques que ele deveria evitar eram expressão dos impulsos sádi-
consciente da criança.
cos da própria Rita, centrados na relaçãosexual entre os pais e na
gravidez da mãe. O superego impediria a menina de roubar o Urna interpretação de relevância histórica que vem ilus-
bebê que se encontrava dentro da mãe, de ferir e destruir o cor- trar a contra posição entre o estilo técnico de Melanie Klein,
po dela e de castrar o pai. (Klein,1945: 447) · por um lado, e dos analistas de crianças da década de 1920,
inspirados nos trabalhos da dra. Hug-Hellmuth, por outro, é
Podemos compreender assim, baseando-se no conteúdo encontrada, em 1923, na análise de Rita. Referindo-se a esta
simbólico subjacente a esta brincadeira, a natureza dos sinto- interpretação, em 1955, Melanie Klein comenta:
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da personalidade da criança, esta autora procura formular al- enfatiza a importância da utilização da contratransfcrência
'guma~ hipóteses explicativas relativas ao autismo psicogêni- ,c?~~_~e~u~so para el:trar em contato com as emoções do pa-
1 co. Segundo ela, a angústia básica vivenciada pela criança ,CIente. Destaca também, de forma original, a necessidade de
lí' autista está ligada à tomada de consciência da separação em que o psicoterapeuta acautele-se no emprego de interpreta-
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.\/ relação ao objeto, experimentada em um momento muito pre- ções transferenciais com pacientes gravemente perturbados,
I)' i coce, quando a criança ainda não é capaz de significar este uma vez que "Crianças psicóticas e borderlines em seus mo-
I acontecimento. Nestes casos, segundo Tustin, a separação não mentos mais psicóticos, freqücntemcntc têm grande dificulda-
é entendida pela criança somente como a perda de um obje- ~e.em perceber as implicações das coisas que lhe são ditas"
to, mas, também, como perda do próprio eu, ou dito em ter- (ibid.: 100), Propõe nestes casos o emprego de uma atitude in-
mos de objetos arcaicos, a separação do contínuo seio/boca é terpretativa mais ativa, que chame a criança para a vida, o que
entendida não como separação do objeto seio, mas sim como ela denominou de "reclamação".
sensação de perda de parte da própria boca. . Percorridas as principais linhas de desenvolvimento da
Partindo deste raciocínio, Tustin é conduzida a formular psicanálise de crianças, desde sua gênese até a atualidade,
uma hipótese explicativa r~lativa a um fenômeno clínico fre- .acreditamos ter sido possível apresentar um panorama, ainda
qüentemente observado em crianças autistas: o uso idiossin- .que sucinto, dos fundamentos principais da análise infantil,
crático que habitualmente elas tendem a conferir aos objetos. ~undamentos estes que influenciaram de forma inequívoca a
r ,v Para designá-los, cunhou a expressão "2.~etos autísticos", em Implantação desta modalidade de tratamento psicanalítico no
i / contraposição ao conceito de "objetos transicionãls'rpropos~ Brasil. Evidentemente, negligenciamos em nossa introdução a
./' ,.: to por Winnicott, uma vez que o primeiro vivenciado pela contribuição de inúmeros autores que se dedicaram, ao longo
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é
criança como a primeira possessão do "eu", ao passo que o se- dos anos, à psicanálise de crianças. Procuramos tão-somente
f . ,:,-'"- gundo é entendido como a primeira possessão "não eu", ou . expor, em linhas abreviadas, os trabalhos daqueles autores
",:, seja, o .0?jejQautlg~r:t.~C? P?S~ui~~~ji~!.lt~~~~_<:l?_r.~pr~a
sen- " que marcaram, com maior destaque, o pensamento psicana-
: ..,do entendido pela criança como parte de seu corpo. ASSIm,es- lítico brasileiro.
" r' ,sesóbfe'fos·~assúmém-uiiúi.'fünçIróde·fén'srva· contra uma
1.'percepção de perda e descontinuidade com relação ao objeto
externo, uma vez que "Essa perda foi sentida como perda de
•• j (;.uma parte de seu corpo e não como perda da mãe e seu seio.
') É essa situação que leva ao uso obsessivo de objetos experi-
mentados como se fossem partes corporais" (Tustin, 1981:
132),
Mais recentemente, Anne Alvarez (1992) tem se dedica-
do ao estudo de crianças autistas, psicóticas, borderlinese mal-
tratadas, tendo como fundamento a teoria das relações obje-
tais, em uma linha de pensamento que, segundo a autora, vai
de Freuda Bion, passando por Klein. Seu trabalho traz, como
marca distintiva, a valorização das atitudes do psicoterapeu-
ta diante da criança gravemente perturbada. Neste contexto,
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