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AFI5E

PELOS CAMINHOS DA INFÂNCIA

A presente pesquisa versa sobre a história da psicanáli-


" se de crianças no Brasil, tra tando-se, obviamente, de uma his-
tória bastante recente, haja vista que a psicanálise, como ramo
do conhecimento científico, conta com pouco mais de um sé-
culo de existência. O que nos leva a concluir, em um raciocí-
nio simplista - quase tautológico, poderíamos dizer -, que a
psicanálise de crianças é uma invenção ainda mais recente,
gerada e consolidada sob os auspícios do século xx.
.4 i À primeira vista, esta afirmação pode parecer ingênua e
I quase desnecessária, uma vez que os dados nela enunciados
são de domínio comum. Entretanto, ao datarmos o surgimen-
to da psicanálise de crianças no século XX,devemos nos inda-
gar sobre quais as confluências de interesses e necessidades
que estiveram presentes para que"esta peculiar forma de com-
preender a criança e sua relação com o mundo pudesse vir à
luz e ganhar expressão, não só no meio científico, mas em
toda a cultura da civilização ocidental.
Assim, antes de enveredarmos por uma minuciosa des-
crição e análise das características básicas que definem a psi-
canálise de crianças no Brasil, é conveniente que façamos um
esboço dos principais movimentos socioculturais relativos à
infância que marcaram o pensamento ocidental e, conseqüen-
temente, a forma de significar a infância. Poderemos com isto
compreender com maior clareza as precondições existentes
para o surgimento da psicanálise de crianças e suas influên-
cias no contexto brasileiro .

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18 JORCE LUIsFERRElRA AllI~o A HIST<'lRIA DA I'SIC/\NÁI ISE DE CRIAN\:t\~ N< I f31{,\~1I IlJ

Podemos dizer, sem incorrermos em uma afirmação de- pouco sublinhar as influências da psicanálise de crianças na
magógica, que a sociedade d9 sé~.1,!loXXp-rivilegioy-"'CQlD.9 cultura brasileira, haja vista que estes temas constituem um
nunca antes se Viu, ª-mf.ª-I}çiél ..~.!!l.cletrimento_dªs.A~mais ~a· capítulo à parte, requerendo uma análise diferenciada. Cum-
des da vida". A mídia dedica um espaço cada vez maior à in- pre-nos apenas, no âmbito do presente estudo, apontar o pa-
/Jância; a indústria, já há algum tempo, descobriu ser a criança pel social assumido pela infância e procurá r compreender sua
um significativo filão do mercado consumidor; multiplicam- evolução, colocando em relevo aqueles aspectos que tangen-
se as instituições de assistência e defesa dos direitos da crian- ciem nosso objeto de estudo. Para que possamos aquilatar o
ça; a legislação e os mecanismos de proteção à infância são significado do conceito de infância 11,1 sociedade contcmporã-
constantemente aperfeiçoados com o intuito de garantir o nea é necessário investigar seu desenvolvimento ao longo da
cumprimento desses direitos, que já foram até mesmo objeto história da civilização ocidental.
de deliberação da Organização das Nações Unidas, que a 20 Desta forma, deslocaremos temporariamente o foco de
de novembro de 1959 promulgou a Declaração Universal dos nossa atenção. Lançando o olhar para o passado, procurmc-
Direitos da Criança. mos deslindar, ainda que parcialmente, os fios que compõem
Esta tendência pode ser evidenciada não só no segmen- a trama do conceito de infância tal qual o conhecemos hoje,
to social, como demonstramos acima, mas, também, no meio sem com isto nos perdermos em digressões estéreis que fujam
científico, que tem dedicado na atualidade esforçossignifica- ao escopo desta pesquisa.
tivos para o estudo da criança.
Novas ciências como a Psicanálise, a Pediatria, a Psicologia,
consagraram-se nos problemas da infância e suas descobertas são A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA INFÂNCIA
transmitidas aos pais através de uma vasta literatura de vulgari-
zação. Nosso mundo é obcecado pelos problemas físicos, morais
Ao revisitarmos a cultura da Antigüidade Clássica, por
e sexuais da infância. (Ariês, 1981: 276)
meio do legado de ~!§.tóJ.eles, encontraremos em uma de
Cria-se, com isto, um sistema retroalimentador, no qual suas obras, intitulada 1Pf!./!t.ifa, algumas referências sobre a
os conhecimentos acerca da infância, produzidos pelos ramos criança. Valendo-se destas referências, poderemos compreen-
da ciência a ela dedicados, são amplamente divulgados aos -·aerqualo estatuto assumido pelo infante na pólis grega, bem .,.
pais, que passam a incorporã-los em suas vidas cotidianas. como entender qual sua relação com aquela sociedade.
Por outro lado, estes mesmos pais demandam da ciência no- O selo distintivo da sociedade da Grécia antiga reside em
vos conhecimentos que sirvam de norte na educação de seus uma organização política descentralizada, definida pelas cida-
filhos. Evidencia-se, com isto, que a psicanálise ou, mais espe- des-estado, que se caracterizam como unidades administrati-
cificamente, a psicanálise de crianças, influenciou de forma vas independentes e autônomas, cujo poder político era
efetiva a maneira como a sociedade atual compreende e tra- exercido por seus cidadãos. A família, como parte constituti-
ta suas crianças. Por outro lado, seria ingênuo deixar de des- va do Estado, "já que o Estado é uma reunião de famílias"
tacar que as condições culturais necessárias para o desenvol- (Aristóteles, 1985: 16), pode ser decomposta em seus elemen-
vimento da psicanálise de criança já estavam presentes no seio tos constitutivos, para que venha a ser melhor compreendida.
da sociedade. \ .. Temos, assim, três elementos básicos: o senhor e o escravo, o
Não nos compete, ne~te momento, aprofundar as discus- marido e a mulher e o pai e o filho, que compõem, segundo
sões sobre a condição social da infância na atualidade, tam- Aristóteles, os três ramos da economia doméstica.

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JnRCE LUIs FI'.RRElRA ABRÍI()
20 A HIST()RIA !lA I'SKANAI.I~I·. liF CI{IAN(AS N\) BI{/\~II 21

Ao analisarmos a natureza da relação entre cada um des- de criança na~tigüid()d<.' Clãssica.jscgundo a ótica de Aris-
ses pares de antíteses, podemos formar uma imagem de corno tóteles. --_. .
esta sociedade via a criança como indivíduo e a infância corno Com base nas citações acima podemos concluir que a 9.:-
categoria social. .a.ídéía de criança na pó/i,> gre-
~i.c;..qp.Ii:0_0.P..~1.qlle .çl.efiIJ~
Podemos ciepreender que as referências encontradas na .~.~.3.iru:.Q.ffip.letude.que caracteriza o indivíduo em
obra de Aristóteles sobre a criança estão sempre associadas às ~~§.~.!lYQbámento,no qual a faculdade de querer não está au-
figuras da mulher e do escravo. Isto permite concluir que, se- sente como no escravo, podendo vir a formar-se. Para que tal
gundo o filósofo grego, ~~J~_mentQ..J:Q.munLent(e..iL. .. formação ocorra é.necessáría a presença de um rnodeloque
criança, a mulher e.Q.~~.:@vo,_que os distinguiria do pai, do conduza a crianç~_.~C?.~~~-,~~~~nv.ºtY~lTlef.\tC1 potencial. Segun-
mãrlcIo e dosenhor, respectivamente. Este elemento comum do Aristóteles, o filho é um ser incompleto, é claro que sua
rt •••

seria ~~C?.r:!ºp:1.i~.q~eJl1es confere a condiçãode co- virtude não lhe pertence mais que o resto de si mesmo, mas
mandados. que ela deve ser confiada ao homem completo que a dirige"
Resta-nos compreender, agora, qual atributo que permite (ibid.: 39). Desta forma, a criança é entendida como um ser in-
distinguir comandantes de comandados ou, dito em outros completo, que ainda não possui AS qualidades inerentes ao
termos, quais as características que possibilitam ao pai exer- pai, mas poderá vir a tê-Ias, pois pertence fi mesma linhagem
cer autoridade sobre o filho, O marido sobre a mulher e o se- deste.
nhor sobre o escravo. Tomando por base estn breve l'Xpl,1I1ilÇi10, evidencia-se
Aristóteles encontrará a resposta para esta questão nas que o estatuto dos indivíduos nas relações sociais, vigentes na
qualidades intrínsecas aos indivíduos, que os difere como co- pólis grega, era definido pela política que atuava como ele-
mandantes e comandados, ou seja, aqueles' que comandam mento organizador desta sociedade. Neste contexto, a crian-
possuem atributos especiais que configuram-se como mode- . ça! ..?-.<?n.ãopossuir uma identidade política não poderia
lo para os comandados. "Em primeiro lugar todo ser vivo se a.!..~E:!jaru..m
estatuto definido como ser independente e autô-
compõe de alma e corpo, destinados pela natureza, uma a or- .!~?mo..Suas qualidades são definidas pela negação dos atri-
denar, outro a obedecer." E'mais à frente acrescenta: liA alma butos políticos que devem ser desenvolvidos pela orientação
dirige o corpo como o senhor ao esçravo" (Aristóteles, 1985: do pai. /""
19). Entretanto, a natureza da relação do senhor com o escra- . Da'Antigüidade à Idade Média) seremos agora conduzi-
vo, difere da relação do marido com a mulher e do pai com o dos pelo historiador francês Philipe Ariês, em nosso intento
filho, uma vez que os dois últimos, ao contrário do primeiro, de compreender o significado que a infância assumiu ao lon-
go da história como categoria social.
são livres. Diz Aristóteles:
Valendo-se da arte como representante simbólico dos va-
o homem livre ordena ao escravode uma maneira diferente lores culturais de uma sociedade, Aries vai buscar as repre- t\.bP
do marido à mulher, do pai ao filho. Os eJ~~~nl:Q.S
d~ estão sentações da criança na expressão artística da Idade Média, I>~
em cada um desses seres, mas em grau diferente. O escravo é com o intuito de compreender qual o significado da infância,
completamente privado da faculdade de querer; a mulher a tem,
como categoria social, neste período histórico.
mas fraca;a~!<o ~ in~!:!!p~. (ibid.: 38)
I Pelo que nos apontam as pesquisas deste autor, as repre-
Chegamos, assim, à singularidade da relação pai filho,
o que nos permite definir algumas características da idéia I

sentações da criança na iconografia da Idade Média eram qua-
se inexistentes ou mesmo totalmente ausentes até o século XII,
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22 ]Oi{(;E LUIS FE1(J(ElI(A AIIJ(Ao
A 1'\IST(lI(IA DA I'SICANÁI.ISF [li' l'RI"N~'AS Nl) HI<ASII.

aproximadamente. Explicando tal característica, comenta ~~~li~?çlél?_.pelafamília ou pela escola, instituições


Aries: "É difícil crer que esta ausência se devesse à incompe- hoje consagradas nesta função, mas sim por toda a comunida-
tência ou à falta de habilidade. É mais provável que não hou- de com a qual ela passava a conviver, garantindo, desta for-
vesse lugar pqra a infância neste mundo" (Aries, 1981: 50). ma, as condições necessárias para a transmissão tan to dos
Podemos supor que a referida ausência possa ser enten- valores culturais, quanto do ofício a ser aprendido,
dida como reflexo da inexistência de um !~g~Lgef.i~isLQ_Pf\ra ~..:::~?_~~r~_r:mos_~s~a .se?regação nem r:nesmo no que
~~J!!~i.~v.al, que privilegiou outras eta- concerne a expressao da sexualidade, tão pudicamente afas-
pas da vida, como a juventude, em detrimento da infância. tada das crianças na atualidade. Até o século XVI, era comum
. Segundo Ariês, "Este período não foi nem de crianças, nem de encontrarmos relatos de adultos que se divertiam com as brin-
}", (; adolescentes, nem de velhos, foi um teI!!~.9!~?m!..ns 1~: cadeiras sexuais das crianças livremente manifestadas, ou que
\ ir \/ vens" (ibid.: 49). faziam alusões a assuntos sexuais em sua presença. Tal fato
-:"",:' •.. Iâl organização pode ser vislumbrada por várias carac- era entendido como algo natural,
''-vr' terísticas vigentes nas relações interpessoais da sociedade da
Primeiro porque se acreditava que a criança impúbere
Idade Média.
fosse alheia e indiferente à sexualidade. Portanto, os gestos e as
Um aspecto relevante, que marcou a sociedade do ho-
alusões não tinham conseqüências sobre a criança, tornavam-se
mem medieval, foi a~~.tf'~.mabrevidade 4~_dllra.çª-<?<!?..!~f~.!)::",
. gratuitos e perdiam sua especificidade sexual=- neutralizavam-se.
da, uma vez que o período da vida destinado a esta faixa Segundo porque ainda não existia o sentimento de que as referên-
'--effria, ao contrário dos tempos atuais, era extremamente fu- cias aos assun tos sexuais, mesmo que despojadas na prática de
gaz. Esta etapa restringia-se apenas aos anos mais tênues da segundas intenções equivocadas, pudessem mandar L1 inocência
existência da criança, cujos registros mnêmicos rapidamente infantil - de fato ou segundo a opinião q\!C se tinha dessa ino-
apagavam-se da lembrança'dos adultos. Assim, logo que a crian- cência. Na realidade, não se acreditava que essa inocência de
ça adquiria alguma desenvoltura era, automaticamente, incor- fato existisse. (ibid.: 132)
porada ao universo adulto, passando a compartilhar de suas
. Além disso, a mortalidade infantil ocorria em taxas bas-
atividades cotidianas e a aprender por intermédio delas.,
tante elevadas, quando comparada às estatísticas da atualida-
De criancinha pequena ela se transformava imediatamente de, fazendo com que ª-ç~~ançap~quena não se constituísse em
em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventudet..Slue tal- u_mobj~~9.,_9.~grande.in.vestimento afetivo, comovemos no
vez fossem praticadas antesa'ã1ããde média e que se tomaram as- mundo contemporâneo. Assim, a morte da criança era enten-
pectos essenciais da sociedade evoluída de hoje. (ibid.: 10) dida como algo natural e até mesmo inevitável, sem que tal
Evidências desta rápida adesão ao mundo adulto, po- perda fosse pranteada pelos adultos.
dem ser identificadas na inexistência de mecanismos de segre- Com base nestes dados, somos levados a concluir que_.9.
gação que tenham logrado .êxito em afastar as crianças das sentimento de infâJwa não existia para o homem medieval, se
atividades realizadas pelos adultos, sejam elas de natureza TolU'armos como pa;i~';et~'a' de
-cõmp~ração os padrões de
profissional ou de caráter lúdico. Passados os primeiros cin- afeição dedicados à criança contemporânea no mundo ociden-
co ou seis anos de vida, nos quais o cuidado da criança era tal. O que predominava era um " ... sentimento superficial, da
reservado às mães ou, com maior freqüência, às amas-de-lei- criança - o que chamei de 'paparicação - era reservado à
te, o pequeno infante iria, então, compartilhar a vida dos adul- criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela era
tos. Desta forma, ~Erendiza:gêri1 e a socialização d~ cri~nça uma coisinha engraçadinha." (ibid.: 10)

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24 A HIST(lRIA DA I'SICANAI.ISI' DE CRIAN<;AS N(l BI{A~IL 25

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Somente a partir do início do século XlIIé que a socieda- ~YJ.I.pod~scr considerado como um marco, ou
de medieval parece ter voltado o olhar para a criança, come- mesmo como um divisor de águas, ilustrando com bastante
çando a incluí-Ia em sua criação artística. E, mais do que isto, nitidez as transformações na forma como a criança era repre-
-podemos mesmo considerar, em um raciocínio dedutivo, que sentada, tanto na iconografia, quanto no imaginário do ho-
este fato é indicativo de que a~iança c~e.ç.9-._~.~~uepreseJ'\.~ mem medieval, mudanças estas introduzidas pelos moralistas
tada no seio da sociedade. m.:e9-i~yalÇQ~o.categoria .etária .di- e educadores da época, que começaram a questionar a forma
&K~nciãa~Embõra'êsta' representação possa, em princípio, como a criança vinha sendo tratada até então. É neste mesmo
manifestar-se de forma tênue, seu mérito reside em' trazer, século que iremos encontrar, segundo Donzelot, o surgirnen-
ernbrionariamente.jzgenng da transformação que irá gradual- tOde\,ãsta literatura dedicada ao tema da infância. A tônica
mente consolidar-se na visão de criança que predomina no central destes trabalhos gravitava em torno dos cuidados dis-
século XX. ·pendidos à criança, apontando para o fa to de como ela vinha
A iconografia da sociedade medieval nos fornece vários sendo negligenciada até então em seu cuidado, tecendo críti-
indícios da forma como aquela sociedade foi transformando cas sobre três hábitos educativos amplamente difundidos nes- ? \ ~,cI'~
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sua visão de infância ao longo dos séculos XIII,XIVe XV,trans- te período, quais sejam: "". a prática dos hospícios de menores
formações estas que se consolidarão nos séculos seguintes. abandonados, a da criação dos filhos por amas-de-leite, a da
Assim, a criança que havia sido ignorada na iconografia educação artificial das crianças ricas" (Donzelot, 1986: 15).
medieval começa, a partir 'do século XIII, a ser representada. .. . A crítica direcionada aos hospícios de menores enfocava,
Inicialmente, sob a forma de crianças mais velhas, quase jo- NJ'v".l " principalmente, o atendimento oferecido às crianças, que, em
vens. Posteriormente, encontraremos a representação do me- .0 ,"" virtude de suas más condições, provocavam altas taxas de
nino Jesus e da Virgem Maria menina. Devemos destacar a 01... mortalidade infantil. Assim, vemos surgir uma nova preocu- 7
natureza destas inscrições qU~Jgp~!lYªm..a.criançª-ç_o.IIl_o pação na mentalidade do homem da baixa Idade Média, a ~'" ri >
cópias ~iaturizadas do~ aqº,lto&. Uma terceira forma de morte da criança não era mais entendida como fato natural, 9'" (I(,.fl
expressão surgirá com o tema da criança nua, tendência que mas sim como um acontecimento indesejado que poderia e,<",,~~
só irá se consolidar no século XVII. mais do que isto, deveria ser evitado, demonstrando assim o
Embora a criança não esteja ausente da iconografia des- surgirnento de um sentimento de afeição em relação à crian-
de o século XIII,sua representação está sempre associada a ça. Aliado a isto, encontraremos uma preocupação de nature-
outros elementos, assumindo um caráter secundário, uma vez za política, uma vez que a maioria das crianças recolhidas nos \.
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que a ~~~p.reocupad~ .pelQs adultos, ca- asilos morriam antes t'UC pudessem servir no Estado. )"Iii\

bendo à criança apenas um espaço secundário. É somente a Outro hábito da educação da época, amplamente difun- ,/~~./
partir do século XV que encontraremos a criança. representa- . dido, tanto nos extratos mais elevados da sociedade, quanto ~.~7
da sozinha, nos retratos, o que indica uma tentativa de preser- · entre os artesões e comerciantes da cidade, era a criação das
var sua lembrança, tendência que estará consolidada no · crianças por amas-de-leite, hábito este que passou a ser vee-
século XVII.Isto nos aponta para o destaque que a criança co- mentemente criticado pelos educadores e moralistas, por cau-
meçava a receber na arte, como reflexo de uma nascente reor- sar inúmeros prejuízos ao desenvolvimento saudável da
ganização das estruturas sociais, na qual ela começava a criança, tanto em relação ao seu bem-estar físico, quanto men-
ocupar um lugar de maior destaque, assumindo um novo es- tal, uma vez que os cuidados oferecidos à criança, a té então,
tatuto. favoreciam, por um lado, as altas taxas de mortalidade e, por
_..·~f//' , .. : ~.:..' ' " ,

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outro, o desenvolvimento de uma personalidade desajustada, c;r.iançado m(.jQd.os...adl.!!!os.Isto porque não mais se aconse-
em que predominavam traços de agressividade e desonestidade. lhava que a criança fosse preparada para a vida por meio de
A explicação para tal fato surge com facilidade: as nutri- um contato direto e participativo com o universo social dos
zes negligenciavam o cuidado da criança, ora por interesse, adultos, sendo necessário, portanto, o desenvolvimento de no-
ora por ódio. O interesse era evidente, uma vez que as nutri- vos espaços sociais para o atendimento e a educação da crian-
zes recrutadas no campo, para onde eram levados os filhos ça. Para dar conta desta demanda, inicialmente social e
das mulheres da cidade, precisavam apropriar-se de um ele- posteriormente afetiva, ocorreu um processo gradual de hi-
vado número de crianças para amamentar, com a finalidade pertrofia das instituições que se consagraram no cuidado à
de obterem maiores rendimentos, o que, obviamente, compro- criança, a saber: a família e a escola.
metia a qualidade dos cuidados e da nutrição oferecidos à
A família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade
criança. As amas-de-leite utilizadas pelos ricos, na sua maio-
dos adultos. A escola confinou a criança outrora livre n um regi-
ria escravas, não tinham disposição nem interesse em propor-
me disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e
cionar à criança condições para um desenvolvimento XIXresultou no enclausuramento total no internato. A sociedade
saudável de uma pessoa que no futuro poderia vir a oprimi- da família, da igreja, dos moralistas e dos administradores privou
Ia; além disso, os ressentimentos com relação ao senhor eram a criança da liberdade de que ela gozava entre os adultos. (Ariês,
transferidos, também, para o filho deste. 1981: 277-278)
Estes fatores levaram os estudiosos da época a concluir
que as altas taxas de mortalidade infantil, bem como os pro- Era uma realidade, para a medicina da época, os malefí-
blemas futuros manifestados pelas crianças, eFam decorrentes . cios causados por uma educação pouco criteriosa conduzida
dos precários cuidados prestados pelas amas-de-leite. É bas- por amas-de-leite, como descrevemos acima. Assim, afamília
tante ilustrativo desta linha de pensamento as conclusões a tornou-se o espaço privilegiado de educação da criança, so-
que chega Buchan em seu livro Mi/dicine domestique, de 1775. ffrefi.ldcfna"primeira infância, de onde ela só deveria sair para
Diz ele: ingressar nos bancos escolares. Sendo que a mãe passou a as-
sUIT.\irpapel de destaque na amamentação e cuidado do filho.
Espantamo-nos muitas vezes em ver os filhos de pais ho- Acompanhando estas transformações sociais, encontrare-
nestos e virtuosos manifestarem, desde os primeiros anos de mos o aparecimento de uma nova mentalidade, que impul-
vida, um fundo de baixeza e maldade. Não há dúvida de que es- sionará o homem ao estabelecimento de relações afetivas
tas crianças tiram todos os seus vícios de suas nutrizes. Eles te-
calcadas em novos valores. A vida social de caráter mais am-
riam sido honestos se suas mães os tivessem amamentado.
plo e intenso entre os membros de uma mesma comunidade
(Buchan apud Donzelot, 1986: 17)
tende a diminuir, " ... a família começa a manter a sociedade
A medicina e a educação que floresceram no século XV!1.. à distância, a confiná-Ia a um espaço limitado, aquém de uma
movimentos estes forjados sob o ideário Ren_ascJlllistq, conse- zona cada vez mais extensa de vida particular." (ibid.: 265). A
guiram paulatinamente influenciar delõi:ma efetiva os valo- C~~~'.!~Ç~torn~:~~..':~1!10bjctode.grande afeição para os adultos,
res culturais vigentes na baixa idade média, introduzindo em torno da qual a família passa a organizar-se, dcspcndcn-
inúmeras alterações na forma como a criança era vista por do a ela maior atenção. Desta forma, torna-se conveniente re-
aquela sociedade, bem como na maneira de educá-Ia. duzir a natalidade para que se possa melher cuidar dos filhos
Uma conseqüência imediata e de amplo alcance, uma e preservar suas vidas, haja vista que a morte da criança não
vez que alterou a condição social da infância, foi c:.. exclusão d-ª mais ocorre sem grande sofrimento e pesar. Vemos esboçar-se.

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.. I-IIST(lRII\ Ill\ I'SI(·i\N ..\I.I~1' DF CHII\M:I\S N( 1 1~1(I\SIl.

assim, um novo sentimento de infância que se estende até infância surge em decorrência de uma necessidade oriunda da
nossos dias. escola. À proporção que os dispositivos escolares foram se
Até o século xv, aproximadamente, o sistema educacio- aperfeiçoando, a infância foi, por sua influência, prolongando-
nal vigente na Europa medieval, remanescente das invasões se. Quando a necessidade da escolarização não se impunha 1<l~,..,\,.,l\ril\-j.,
. . "-\",,
~.bárbaras que haviam . desarticulado
-.._......•. ." o modelo
' .. " _-
.. _-_.-
edl,lcaOOnã"raà
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.. .'
como no caso d asmerunas, que estavam excluídas do univer- to]"

antigüidad~~g_~§ic.a, era definido pela "vídaescoléstíca". As- so escolástico, nada se alterava, elas continuavam a ter uma
-··s-im;o-ensino nas escolas era reservado á 'um número restrito . infância bastante breve.
de clérigos em busca de formação religiosa. Enquanto a escola Uma vez freqüentando o ambiente escolar, as diferenças
era bastante restrita, a aprendizagem, valendo-se do contato de idades entre os alunos pareciam desaparecer, como reflexo
direto entre crianças e adultos, constituía-se no elemento cen- da velha sociedade medieval que não separava crianças de
tral da pedagogia medieval; garantindo a transmissão dos va~ adultos. Assim, era comum encontrarmos crianças de pouca
lores culturais e sociais. Nã9 era incomum neste período que idade, jovens e mesmo homens mais velhos convivendo no
as crianças, desde pequeninas, fossem enviadas a outras famí- mesmo espaço escolar. Isto porque A escola medieval não era
fi

lias com a finalidade de se socializarem e de aprenderem um destinada às crianças, era uma espécie de escola técnica des-
ofício. Era uma fase na qual predominavam a esperteza e a tinadaà instrução dos clérigos, 'jovens ou velhos' ..." (ibid.:
precocidade, privilegiando aqueles indivíduos que muito 187).
cedo conseguiam destacar-se no mundo dos adultos. Este fato nos remete a uma outra característica, a inexis-
A partir do século xv e, mais nitidamente, nos séculos tência das classes escolares separando alunos pela idade e ní-
XVIe XVIIir..~q",,-os)çl~.IltificaLum.movimentpde_exeltisãoda vel de instrução. Esta distinção só começará a ocorrer a partir
9ié!_I1Ǫd~~0_adulto-por.meiQ_de...seu_enclaustl:famen- do século XV, quando começou-se a dividir a população es-
li •••

_!9.n.~~sçola. Instituição esta que, por influência dos educado- colar em grupos de mesma capacidade, que eram colocados
res e moralistas da época, tendeu à expansão, tanto as sob a direção de um mesmo mestre, num mesmo local ..."
eclesiásticas quanto as particulares. (ibid.: 172), ao passo que a s~p~raç~o de alunos em espaços fí-
As características deste novo modelo educacional ainda _~ic.()sdiferentes em função da idade ou capacidade intelectual
preservam algumas reminiscências da educação medieval, ~o~~~te ocorrerá séculos mais tarde. , 1\ s.c-<J ', e àf\>
tais como a infância reduzida e a ausência de separação entre Acompanhando o aprimoramento das instituições edu- ·ff
'r\ c 1.,- f'p""A~ te ~ r
crianças e adultos. cacionais, surge, também, uma série de condutas disciplina- 'i) ,,/-_~f. (2'" t,j"~ hl;/U'l
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Inicialmente, a criança ingressava muito cedo na escola, re~, ~u~ pa~s~m a nortear a educação das crianças, cujos r,<ft\' d~ .l~ f!€.'/W 1>,) "r"
logo após a primeira infância, o que no século XVcorrespon- pnncipios básicos, entre outros, recomendam: evitar deixar as t: vrl' ",,,€..
dia a cinco· ou seis anos, em consonância com a mentalidade crianças sozinhas, não mimá-Ias e incentivar os comporta- \{f\d.,~ .o>: \ <!)·~i".P

medieval que reservava um período de tempo bastante curto men tos d e recato com o corpo. > ,,.r .!>N'~
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para a infância. Por volta do século XVII,encontraremos uma • N O amago d as t rans f ormaçoes
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tendência a pzolongar a primeira infância, protelando o in- educadores e moralistas entre os séculos XVe XVII,que pro- ~
gresso da criança na escola até a idade de dez anos em média. moveram significativas mudanças na família e na escola, en-
Esta nova prática era justificada pela imaturidade da criança contramos o dcsc nvolv imcntn de um novo sentimento de
pequena, que não se adaptava ao rigor da disciplina escolar. infância, que, com algumas variações, predominam até nossos
Podemos concluir, portanto, que a tendência a prolongar a dias. A criança passa a ser entendida menos como algo~
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30 A HISTÓRIA DA I'SICANÁI.ISI' m: CRIAN(.·,\S N(l BRASil 31

resco com que os adultos divertiam-se, e mais como um ser Tivemos, 'l1().~é~:~:~)--;~;:>a
cristalização algulls de aconte-
inocente e imaculado que precisava ser formado. Com base ·cimentos, já enunciados nos séculos anteriores, que se defini-
nesta concepção, a educação da criança começa, ·ram pelo declínio do regime totalitário e pela extinção da
... resultando portanto numa dupla' atitude moral com relação à comunidade ampliada, da qual o indivíduo é parte indissociá-
infância: preservá-Ia da sujeira da vida, e especialmente da se- :vel, em benefício de uma economia mercantilista, caracteriza-
xualidade tolerada - quando não aprovada - entre os adultos; e ;da pela ascensão da burguesia, de seus ideais de liberdade,
fortalecê-Ia, desenvolvendo o caráter e a razão. (ibid.: 146) \igualdade e fraternidade, que há pouco tinham figurado
.corno lema da Revolução Francesa.
Podemos identificar nesta concepção de infância, como
Estas transformações sociais e políticas marcam o g$go,:,
reflexo de um movimento pendular da história, uma.retoma:
~ento g.a.v:ida .coletivae.o advento de uma nova ordem
da da visão de criança presente na Antigüidade Clássica.
·~~~j~ti,:,a baseada na individualidade. Condição esta destaca-
Encontramos, nesta nova concepção de infância, um ter-
da por Luís Claudio Figueiredo. Para ele: .,.
reno bastante fértil para o desenvolvimento de um novo ramo
da ciência, dedicado ao estudo da criança. A nova concepção ... com a falência das "tradições históricas" (Feyerabend) e das
de infância, que passou a imperar no século XVII e que atin- formas de vida coletivas reguladas pelas tradições e pela obe-
giu seu ápice no século XIX, não comportava mais um cuida- diência a autoridades intangíveis, assistimos também à per-
do negligente com a criança, uma atitude desta natureza seria da de raízes e referências estáveis sobre os quais se pudessem
mesmo inconcebível ao homem vitoriano. Assim, torna-se assentar e desenvolver existências relativamente apaziguadas e
necessário proporcionar à criança cuidados para o corpo e protegidas de episódios catastróficos que colocassem em risco
para a alma com a finalidade de garantir-lhe um desenvolvi- suas continuidades e suas identidades. Neste contexto, o recurso
mento saudável. às experiências subjetivas, individualizadas e de caráter privati-
A partir do momento que a criança deixou de ser socia- vo passou a ser tanto urna posslblltdndecomo uma exigêllcin na ta-
lizada pelo contato direto com os adultos, sendo confinada, refa de reconstruir regras e crenças de ação, valores e critérios de
nos seus primeiros anos de vida, no meio familiar e mais tar- decisão seguros e confiáveis, já que os dispositivos da tradição
de na escola, surge a necessidade de instrumentalizar e gerir não se mostram mais aptos à manutenção e à legitimação das
sua educação. A espontaneidade e informalidade da educação existências individuais e coletivas. (Figueiredo, 1995: 15)
de outrora, quando o menino tornava-se um artesão obser-
Esta nova ordem social e política impõe ao homem uma
vando e assessorando o mestre, foi, paulatinamente, sendo
compreensão inovadora sobre si e sua constituição como in-
substituída por uma educação formal que viria buscar na
divíduo. Segundo esta concepção, os atributos e característi-
_ ciência os fundamentos para sua prática.
cas que definem o indivíduo e o tornam um ser autônomo e
Para conferir legitimidade a este raciocínio, é necessário
independente, são forjadas com base em uma realidade ínti-
que se explique de que forma o saber do mundo científico e
ma e subjetiva, consolidada em círculos bastante restritos,
de uma psicologia nascente no século XIX puderam imputar
corno a família nuclear.
a família e a escola normas e padrões para bem gerir a ed u-
cação da criança. É preciso que se compreenda quais as trans- Mais ainda, as pessoas comuns tiveram que conceber a si
formações na organização social e na subjetividade humana, mesma como incapazes de solucionar autonomamente, ou com a
ocorridas durante o século XIX, que vieram sedimentar a pe- ajuda de seus semelhantes, os conflitos surgidos no território de
netração do saber psicológico na educação da criança. sua intimidade psicológica. (Cunha, 1998: 31)

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32 JORGE LUiS FERREIRA ASRÀO A HISTÓRIA DA I'SIl'ANÁI.ISE DI' CRIAN<;AS NU BRASil

Uma vez instituída e disseminada esta nova concepção . s:a no ufli~e~~~~.ental do adulto Ot~, dito no jargão psicanalí-.,
de subjetividade humana. o saber científico e, particularmen- tico, a existência das reminiscências infantis no inconsciente .: <
te, 'l ciência pSicól6gicaJoram requisitados a estabel~cer os do adulto. Podemos mesmo indagar, baseando-se nesta afir-···
preceitos que sirvam de baliza para a condução da vida do mação, se a dicotomia entre psicanálise de adultos e de crian-G';,
indivíduo e resolução de seus conflitos. Este caráter norrnali- ças é justificada, ou se existe apenas uma única psicanálise,
zador, assumido pela psicologia, torna-se uma condição impe- variando somente a forma de abordar o infantil, seja no adulto
rativa sobretudo na infância, quando o desenvolvimento do ou na criança. Evidentemente, a questão que se coloca abar-
caráter encontra-se em fase embrionária, afeito, portanto, a in- ca aspectos que vão muito além dos objetivos desta introdu-
fluências externas. Isto explica, ao menos em tese, a desqua- ção. Cabe-nos apenas demonstrar, neste momento, como a
lificação da família como agente autônomo e a coloca, cada psicanálise concebe a criança.
vez mais, na dependência de padrões externos, ditados pela
Os primeiros trabalhos de Freud com pacientes histéri-
ciência, que instruam quanto a melhor forma de gerir a edu-
cas, que culminaram nos "Estudos sobre a histeria" (1895), le-
cação dos filhos.
E neste ínterim, que iremos identificar as condições ne- varam à formulação de uma teoria na qual a patologia
cessárias para o desenvolvimento de novas ciências como a histérica era causada por uma experiência traumática na in-
pediatria e a psicanálise infantil. ~iança não érnél.i~reconhe- fância, quase sempre de natureza sexual, que era segregada da
cida como um adulto em miniatura, sua singularidade agorél consciência em razão do caráter insuportável do trauma, sen-
-~ãfQ. inêontés~Avet cabendo assim, aos ramos da ciência do que, na adolescência, os sintomas surgiriam em virtude da
.a ela dedicáéós, produzir conhecimentos que possibilitem reativação dos traços mnêrnicos deste trauma. _ .y.
compreender suas características como um-indivíduo em de- Entretanto, a teoria da sedução sexual na infância não Ó'~\~
senvolvimento; para, com isto, Identificar as formas mais ade- sobreviveu por muito tempo entre as formulações de Freud, ~?'~
quadas de gerir sua educação. sendo abandonada alguns anos depois, o que pode ser evi-
A psicanálise, em particular, ao desvendar os recônditos denciado em carta a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897.
do universo mental infantil, primeiro por meio das lembran- Dois fatores parecem ter conduzido Freud a reformular a teo-
ças dos adultos e depois, por intermédio das próprias crian- ria da sedução infantil: sua auto-análise, que o conduziu ao
ças em análise, surge com uma série de indicações acerca da reconhecimento da existência do complexo de Édipo e a expe-
educação das crianças, de forma a prevenir possíveis distúr- riência clínica, que possibilitou perceber que o trauma não
bios de conduta. Torna-se conveniente, portanto, analisarmos equivalia a uma experiência factual, sendo o relato das pacien-
o caminho percorrido pela psicanálise no que concerne a pro- tes fruto de suas realidades psíquicas, ou seja, as fantasias que
dução de conhecimentos sobre a criança. evocavam a cena traumática tinham, para °
psiquismo das
.pacientes, valor equivalente a um acontecimento real na cau-
sação dos sintomas. Com isso, Freud inaugura uma forma
A CRIANÇA DA PSICANÁLISE E A PSICANÁLISE DE CRIANÇAS .peculiar e inovadora de compreensão do psiquismo humano,
.
"Sem menosprezar a realidade histórica, factual, Freud passou
Para além do jogo semântico, que o título desta seção su- I a ocupar-se de sua realidade psíquica. Assim, uma história
gere, o enunciado proposto nos remete para uma condição 1 seria definida numa dimensão de fantasia e impresso nela o
básica da psicanálise: a descoberta da3,9brevivência.:d.a...cr.@D::: j registro de história." (Oliveira, 1996: 25).

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34 JORCE LUIs FElmEIRi\ AIlRÀ()


A I·IISTÚl(Ii\ Di\ I'SlCi\NAI.I~I: DF l"RIi\Nli\S Nl) BI\i\SII 35
Uma vez fundado o conceito de realidade psíquica,
prazer e eliminação do desprazerEsta atividade, psíquica in-
Freud é conduzido à descoberta da existência da sexualidade
.consciente, produz material recalcado que tem por caractons-
infantil, negada de forma contumaz pelo homem doi século . tira o c~ a-h.ifi.t~.t:.i):o,atuando durante toda a vida do
XIX e, simultaneamente, é levado a descobrir os aspectos in- . indivíduo.
fantis que sobrevivem no adulto. Partindo desta conclusão, Conclui-se, tomando-se por base est71 breve cxposiçào,
Freud formulou uma teoria relativa à sexualidade infantil, que a forma de compreender o infantil na psicanálise vai so-
que foi sistematizada nos "Irês ensaios sobre a teoria da sexua- frendo algumas transformações. Partindo de uma relação cau-
lidade" (1905). A inovação contida no conceito de sexualida- sal entre sedução sexual na infância e sintoma histérico,
de postulado por Preud, neste trabalho, estava em ampliar o pode-se descobrir a sobrevivência das experiências infantis no
conceito de sexualidade para além da obtenção de prazer por inconsciente do adulto. Desta forma, a infância ganha um
intermédio da atividade genital. A sexualidade era entendida novo estatuto, uma vez que as vivências desta etapa da vida
por ele de forma genérica, como obtenção de satisfação asso- interferem na saúde mental do adulto. Sendo necessário, em
ciada a uma necessidade, sendo que estas manifestações se- função disso, uma maior atenção para com a criança decor- :1. '"C;;"" o
. , e<"..l\
xuais da infância têm por característica o caráter polimorfo re daí a necessidade de compreender suas especificidades. -'" I{f; ~,\ fi 1\
perverso, ou seja, não possuem um objeto definido para sua Encontramos aqui um terreno bastante fértil, tanto pêlra o sur- \ ,'/2 '\ di€-
satisfação, caracterizando-se por uma obtenção de satisfação gimento de uma cducaçào guiada por princípios psicanalíü- ps"A..-<I
em diferentes zonas erógenas, que guardam uma correspon- cos, quanto para o advento da psicanálise de crianças, como
dência com as fases do desenvolvimento psicossexual, defini- técnica psicoterápica célpaz de tratar as manifestações neuró-
das por Freud como sendo as seguintes: oral, anal, fálica, la- ticas surgidas na infância.
tência e genital. É justamente a ausência de_um objeto defini- Da criança mítica, desvendada tomando-se como refe-
do para a satisfação da sexualidade p~é-genital q~p.fer~.jl· rência o adulto, à criança real, trazida à sala de análise, encon-
-sêXua 1 a e Infantil uma característica p_~ç~liar.· ea~tl9 traremos um vasto campo de atuação que possibilitou, ao
longo dos anos, a emergência de uma genuína compreensão
P~~~~~:~Cªí2i~idªi~5i~--. bli~_açã, ~ue
'J)ermite direcionar o impulso sexual para ativídá es artísticas sobre a criança, baseando-se na psicanálise, bem como a con-
e intelectuais, entre outras. solidação da aplicação terapêutica do método psicanalítico a
esta faixa etária.
Nosso autor procura, naquele trabalho, formular uma
O.marminidal da psicanálise de crianças ocorreu no ano
hipótese explicativa que possibilite compreender as razões
de 1909, com a publicação por Freud de "Análise de uma fo-
pelas quais a sexualidade infantil vem sendo constantemen-
bia em um menino de cinco anos", que ficou conhecida como
te negada. Argumenta ele que isto ocorre em decorrência da "pequeno Hans".
"... singular amnésia que!pa maioria das pessoas (mas não em
Embora este trabalho seja considerado como a primeira
todas!), encobre os primeiros anos da infância, até os seis ou
referência sobre a psicanálise de crianças, a intenção inicial de
oito anos de idade" (Freud, 1905: 163).
Freud, com este relato, não era a de formular as bases desta
Partindo desta descoberta, novas compreensões pude- modalidade de tratamento psicanalítico. Ao contrário, a ínten-
ram advir, conduzindo ao reconhecimento da precocidade da ção inicial de Ereud, neste momento, era de confirmar suas hi-
vida mental expresso pela~é!..tiYiçlMes psíquicas inCQ!l§çllmtes,
presentes desde o nascimento, voltadas para a obtenção de
P?te ses acerca da sexualidade infantil, postuladas alguns anos
.,,:.------------ o
antes nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905) .

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.~"'~'.'.:"'"
36 JORC;E Luis FERI\EIRA AllRÃO A HIST(lRIA liA I'SK'ANÀI.lSF 1)1' l'!(IANl,'i\S N\ 1 BI{/\SII.
-::'7

Com este objetivo, Freud passou a incentivar seus colaborado- No tocante ao primeiro destes aspectos, fica evidente o
res mais próximos " .., a reunir observações da vida sexual das interesse de Freud em estar encontrando elementos oriundos
crianças - cuja .•.existência, via de regra, tem sido argutamen- ·do cotidiano da criança que possibilitassem confirmar a teo-
te desprezada ou deliberadamente negada" (Freud, 1909: 16), ria da existência de uma neurose infantil, pedra angular da
E neste contexto que surge o relato da história do peque- psicanálise, formulada com base nas inferências decorrentes
no Hans, Os genitores do menino pertenciam ao círculo ínti- das associações livres dos adultos, Neste sentido, o desenvol-
mo de Freud, sendo que a mãe havia sido sua paciente alguns vimento de um sintoma fóbico em Hans parece ter ofuscado
anos antes, A proximidade e confiança no criador da psicaná- o brilho do relato, causando em Freud um certo desconfor-
lise explica a iniciativa dos pais de Hans de proporcionar ao · to, o que o levou a antever as críticas de que Hans, em função
filho, por inspiração da psicanálise, uma educação com o mí- da doença, fosse considerado um degenerado, o que invali-
nimo de coerção possível. Passam a relatar seu desenvolvi- daria a proposta de generalização do material obtido na ob-
mento nesta condição, dos três aos quatro anos e meio, servação.
Entretanto, neste momento, Hans é acometido por uma fobia O que na ocasião configurava-se como um inconveniente
de animais, fazendo com que seu pai comece a analisã-lo sob para Freud, visto retrospectivamente, pode ser entendido
orientação de Freud. como um significativo avanço para a técnica psicanalítica,
A exposição do material de Hans, apresentado por pois foi .9.:.Pêirtir.do aparecimento dos sintomas neuróticos
Freud, fica circunscrito, basicamente, a dois momentos: uma ~.~..Hans qu~§gJl11PÔS a necessidade de uma intervenção te-
primeira parte de relato da observação de Hans, em um pe- rapêutíca, abrindo caminho para o desenvolvimento da psi-
ríodo anterior à instalação dos sintomas neuróticos e um se- ·canálise de crianças. Chegamos assim ao segundo aspecto.'
gundo momento no qual são descritas as tentativas de análise negligenciado ou, ao menos, pouco enfa tizado por Freud:
da criança, É digno de nota os aspectos deste material, que fo- o valor deste caso como precursor da técnica da análise de
ram privilegiados por ocasião das discussões dos dados, diz crianças. -
Freud: . . O ponto que mais nos chama a atenção na conduta téc-
nica adotada neste caso, se assim podemos dizer, é a recomen-
Em primeiro lugar, devo considerar, até que ponto o exame
dação de que o próprio pai conduzisse a análise de seu filho,
desta observação apóia as afirmações que fiz nos meus Três en-
1I O que hoje soa com estranheza - para não dizermos como
saios sobre a teoria da sexualidade (1905d), Em segundo lugar,
/. devo considerar em que medida ele pode contribuir para nossa uma heresia - era, segundo Freud, condição essencial para a
i' i compreensão desta freqüente forma de distúrbio, E em terceiro lu- realização de um trabalho analítico com crianças, Segundo
gar, devo considerar se pode ser feito de modo a projetar alguma ele:
luz sobre a vida mental das crianças ou a fornecer alguma críti- Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uni-
ca dos nossos objetivos educacionais, (Freud, 1909: 109) ram numa só pessoa, e porque nela se combinava o carinho afe-
O recorte feito por Freud, durante a discussão do rnàte- tuoso tom o interesse científico, é que se pode neste único
exemplo, aplicar o método em uma utilização para a qual ele pró-
rial, chama-nos a atenção em dois aspectos principais: a ênfa-
prio não se teria prestado, fossem as coisas diferentes, (Freud,
se dada ao desenvolvimento da sexualidade da criança e a
1909: 15)
ausência de um aprofundamento sobre as condições técnicas,
que permitiram ao pai de Hans conduzir sua análise a bom Embora a análise de Hans tenha sido conduzida por seu
termo, próprio pai, o que inviabilizou a utilização da transferência

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38 ]ORCE LUIs FERREIHA ABRÃO


A HISTÓRIA DA I'SICANAI.ISE DE CRlAN<,:AS NO I3I\ASII.

como recurso técnico, a contribtiição deste caso é bastante sig- te, os trabalhos de psicanálise de crianças que surgiram pos-
nificativa, pois permitiu compr~!:.ger a imEortâ!lcia lín- .~ª.. teriormente. . , i ..~
~m pré-verbal ~rn:p_~.gad_Cl.peIa ..criança, bem como Ao caso de Hans, vlra~omar-seeI!'-,:l21~) portanto qua-
.reconhecer que as interpretações podiam ser entendidas por tro anos depois, o artigo de:.,~á.ndorFerenczi, intitulado "Um
ela, possibilitando, desta forma, a elucidação do conflito edí- pequeno homem galo", no qual iremos encontrar alguns pon-
pico de Hans, o que culminou com a remissão de seu sintoma -tos de.convergências e divergências com o relato de Preud.
fóbíco .. O relato refere-se a um menino de aproximadamente cin-
'. Além disso, este trabalho teve o mérito de demonstrar co anos, o pequeno Arpard, que durante as férias de verão
I que a aplicação da técnica psicanalítica a uma criança tão pe- passou a apresentar uma repentina mudança em seu compor-
i quena não causava prejuízo algum ao seu desenvolvimento, tamento habitual, até então considerado normal e vivaz. Seu
\ ou seja, a liberação dos impulsos reprimidos por intermédio interesse, antes bastante aguçado por tudo aquilo que o cir-
; das interpretações comunicadas à criança não provocaram cundava, foi substituído por uma única preocupação, o gali-
, intensificação e descontrole destes impulsos, ao contrário nheiro que ocupava os fundos da casa de campo, onde a
...a análise não desfaz os efeitos da repress.ªP..Os instintos que fo- família estava hospedada. Arpard ficava o dia inteiro obser-
ram suprimidos anteriormente permanecem suprimidos, mas o vando o galinheiro, e quando longe dele, produzia grunhidos
mesmo efeito é produzido de uma maneira diferente. A análise que se assemelhavam a cacarejos. Retomando a sua casa, na
substitui o processo de repressão, que é um processo automático cidade, seu interesse continuou centrado nas aves, sendo que
excessivo,por um controlemoderado e resoluto da parte das mais . sua brincadeira predileta consistia em produzir moldes de
altas instâncias da mente. Numa palavra a análise substitui a re- papel em formato de galos e galinhas e, em seguida, degolá-
pressão pela condenação. (íbid.: 150)' , Ias com um objeto qualquer, que era por ele denominado de
Por fim, um último aspecto deste caso que merece ser faca. Além das fantasias agressivas manifestadas neste e em
outros jogos, evidenciava-se, também, no comportamento de
destacado é a relação estabelecida por Freud, na parte final da
discussão do material, entre psicanálise de crianças e educa- Arpard um medo bastante exagerado de galos, que era justi-
ficado por ele pelo fato de ter
ção. A julgar-se pela indicação de que o pai era a pessoa mais
indicada para analisar a criança, podemos deduzir que Freud ... ido um dia ao galinheiro e urinado lá dentro; foi então que um
não fazia neste momento uma distinção muito nítida entre as frango ou um capão de plumagem amarela (às vezes dizia mar-
duas modalidades de cuidado com a criança. ~~ rom) veio morder seu pênis, e Liona, ti arrumadeira, fez o cura-
~nQe gue os co~ç.iJ!l,l;!n.tQS_p..§jgnªlítico..s.reJÇltiyº~.~J~fân-
., tivo em seu ferimento. Cortaram em seguida o pescoço do galo
~~G.r~er..soRreª ..educação.substituindo o modelo que "rebentou". (Fereuczi,1913:62)
repressIvo da época por uma educação menos coercitiva, que Este fato foi confirmado por seus pais, que datavam o in-
agregue a seus princípios o esclarecimento das fantasias se- cidente quando o menino contava dois anos e meio. Não sa-
xuais da criança. Esta área de sobreposíção entre educação e tisfeito somente com esta explicação, Ferenczi indaga aos pais
psicanálise de crianças influenciou, de forma bastante eviden- sobre possíveis ameaças de castração em decorrência de epi-
sódios de manipulação genital apresentada por Arpard, o que
é confirmado, não sem uma certa relutância.
1. Anosmaistarde,esta questão constituir-se-à em um dos pontosde di- É evidente a aproximação entre os casos de Hans por um
vergênciaentre MelanieKleine Anna Freud. lado e de Arpard por outro, no que concerne à natureza dos
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40 ]OR<a: LUIs FERREIRA Alllv\O


A HlsrORIA OA 1'5ICANAI.lSE DI' <:IUAN(,'AS NO BRASil. 41

sintomas apresentados. Ambos manifestam fobia de animais, deu início ao tratamento psicanalítico de crianças, publican-
no primeiro caso de cavalos e no segundo de galos, em decor- do, em 1921, o artigo A técnica da análise de criança". Entre-
/I

rência de uma ansiedade de castração deflagrada pela amea- · tanto, a descrição por ela apresentada sugere lima abordagem
ça dos pais. Porém, as diferenças não tardam a surgir, a · bastante limitada e precária. Referindo-se a este artigo, apre-
docilidade e cooperação de Hans, que se esforçava em produ- sentado um ano antes no congresso de Haia, comenta Petot:
zir associações que seriam relatadas ao professor, como ele se "". é um verdadeiro catálogo das razões pelas quais é impos-
referia a Freud, são substituídas, em Arpard, por um compor- sível se psicanalisar urna criança e que justifica o emprego de
tamento mais agressivo e hostil. As fantasias de Arpard comu- um método educativo e curativo de inspiração psicanalítica"
nicam a existência de um mundo mental povoado por objetos (Petot, 1979: 92).
bem menos amistosos do que se imaginava até então. Segun- As razões apresentadas pela dra. Hug-Hellmuth, para
do Barros (1996b: 97) "Há um nítido parentesco entre as fan- justificar a limitação da psicanálise de crianças em relação à
tasias de Arpard e aquelas registradas por Melanie Klein nos de adultos, baseavam-se nos seguintes fatos: a criança não
seus pequenos pacientes" . busca espontaneamente o tratamento e, além disso, está vi-
Após estas contribuições iniciais, a psicanálise de crian- · vendo no ambiente propiciador das experiências reais que
ças ainda permaneceu por alguns anos como urna área pou- irão causar sua neurose. Neste sentido, o tratamento psicana-
co explorada e abordada com muitas reservas e ceticismo. O lítico é indicado apenas para crianças a partir do período de
que pode ser explicado, em parte, pela própria atitude de latência, sendo que as interpretações deveriam ser comunica-
Freud, que considerava a psicanálise um procedimento pou- ·das de modo muito cauteloso à criança, de forma a não libe-
co apropriado para o tratamento de crianças. ~?~- . rar impulsos que o pequeno paciente ainda não poderia
rá ao tema, com uI.!1.posiciona~ento bem mais otimis_t.aJ.n.o controlar. Sugere, ainda, a adoção de um tratamento educa ti-
ano de 1933, ocasião em-que os
fundamentos teóricos e técni- vo de inspiração psicanalítica, no qual o brincar é empregado
'(às da análiSe infantil já haviam sido desenvolvidos por Me- corno um recurso para despertar o interesse da criança pelo
lanie Klein e Anna Freud, afirmando: "Verificou-se que a · tratamento.
j criança é muito propícia para tratamento analítico; os resulta-
, dos são seguros e duradouros" (Freud, 1933: 181). Salienta, en-
Por algum tempo, a análise de crianças ainda foi aborda-
da com muita reserva; parece ter contribuído para manter esta
. tretanto, no mesmo texto, a necessidade de algumas postura de excessiva cautela, além das restrições apontadas
adaptações da técnica quando aplicada com esta finalidade,
urna vez que a criança " ... não possui superego, o método da
associação livre não tem muita razão de ser, a transferência
pela dra. Helmuth, o fatídico acontecimento de seu assassina-
to praticado pelo sobrinho que ela havia analisado quando
cr~ança. Este episódio colocou em alerta os psicanalistas de
r.,
~<õ4l~1 o-
~~
\ o J
r:
(porquanto os pais reais ainda estão em evidência) desempe-
nha um papel diferente" (ibid.: 181). Apesar de não formular
cnanças, ~a época, ~obre os pos.síveis efeitos[atrogênicos\qu~ ..+e.•.h ;cr,~~
lima análise
.
descuidada podena causar sobre a personalida- l ",óP\~
$e.CAl
uma queixa explícita ao trabalho de Melanie Klein, as conclu- de da cnança.
sões postuladas por Freud nesta conferência deixam antever Na segunda década do século XX,Anna Freud e Melanie
urna adesão velada às idéias de sua filha Anna. Klein, seguindo caminhos distintos e, muitas vezes, divergen-
Os primeiros passos em direção à consolidação da psica- tes, destacaram-se na psicanálise de crianças e fundaram as
nálise de crianças começa~am a ser empreendidos no final da bases desta modalidade de tratamento psicanalítico em con-
década de 1910, quando a dra. Hermine von Hug-Hellmuth dições bem mais amplas e estr uturadas que as contribuições

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42 A HISTtlRI/\ D/\ I'SIC/\NAI.ISF IJF C1(J/\N~:I\S N(l BI\I\SII 43

da dra. Hug-Hellmuth. fu!rgem..L.a.ssim,duas escol~s_di~!~as cci to Ireudiano de neurose de transferência, os si n tornas di,
em psicanálise de criança, lideradas pelas duas damas da psi- neurose manifest<ld~)spelo paciente são substituídos por um"
canálise, que com algumas variações persistem até nossos neurose artificial, na qual os conflitos infantis, gl'radorcs do
sintoma, são revividos na relação com o analista, por meio do
dias. Fiel aos ensinamentos de seu paijAnna-F~-~_:d)nicia-se princípio da compulsão à repetição. Anna Freud, apoiada nes-
na psicanálise de crianças baseando-senocaminho aberto ta definição formulada por seu pai, não acreditava na possi-
pela dra. Hug-Hellmuth, de quem incorpora muitas idéias. bilidade de que a criança viesse a desenvolver tal fenômeno,
Apresenta, no ano de 1926, uma série de conferências a,o I~s- ·uma vez que ela ainda "... não se vê, como o adulto, pronta a
tituto de Psicanálise de Viena, que versavam sobre a técnica produzir uma nova edição de suas relações amorosas, por-
da análise de crianças, sendo publicadas no ano seguinte com quanto, como se poderia dizer, a antiga edição não se encon-
o título O tratamento psicanalítico de crianças. Nestes trabalhos, tra ainda esgotada" (ibid.: 60).
ela expõe seu posicionamento diante da psicanálise de crian- Com relação à técnica empregada durante a análise da
ças, apontando as características básicas que definem a técnica criança, também são encontradas significativas alterações, se
por ela empregada. .
comparada àquela empregada com adultos. A principal reco-
A primeira questão levantada por Anna Freud refere-se
mendação técnica do tratamento com pacientes adultos, a as-
às adaptações da técnica psicanalítica clássica, que se fazem
sociação livre, não pode ser facilmente utilizada com as crian-
necessárias, para que se possa conduzir a bom termo a análi-
ças, levando Anna Freud a empregar outros recursos que per-
se de uma criança, uma vez que esta chega à análise em uma
mitissem entrar em contato com o conteúdo inconsciente de
condição diferente da do adulto. Argumenta ela que ao con-
seus pequenos pacientes. Neste sentido, vale-se da análise de
trário do adulto" A decisão relativa a submeter-se à análise
nunca parte da criança na qualidade de futuro paciente, mas sonhos, de sonhos diurnos (devaneios) e de desenhos para ter
vem sempre dos pais ou de outras pessoas que a cercam" acesso ao inconsciente da criança. Quanto à utilização da téc-
(Anna Freud, 1927: 22). Soma-se a isto uma segunda dificul- nica do brincar, que vinha sendo empregada por Melanie
dade, a criança não possui consciência de sua enfermidade, e Klein, como um equivalente das associações livres dos adul-
conseqüentemente não se engaja com facilidade ao tratamento. ·tos, Anna Freud posiciona-se de forma bastante cética e relu-
Para superar tais dificuldades, impostas pela falta de au- tante, argumentando que o brincar não possui o caráter simbó-
tonomia da criança, torna-se necessário a adoção, no início do lico a ele atribuído, sendo antes uma expressão inocente de
tratamento, de algumas adaptações da técnica clássica da psi- dramatização das atividades cotidianas vividas pela criança.
canálise, em vigor na época. Recomenda-se, assim, a ~ão. Por fim, Anna Freud considera que o analista de crianças
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fase preliminar no tratamento, de caráter não analíti- ·deve adotar uma postura educativa no curso da análise, for-
c~, para~que se possa conquistar a cãiU'iança da criança e de- talecendo o ego da criança, tendo em vista que ela; por encon-
senvolver nela a consciência da enfermidade, o que facilita o trar-se em desenvolvimento, ainda não possui um superego
seu engajamento e cooperação durante o tratamento analí~ic~. suficientemente constituído, que seja capaz de controlar os
Esta recomendação técnica sugere a necessidade de se dissi- impulsos liberados pelas interpretações com unicad as d uran-
par a transferência negativa por meios não analíticos, caso te o tratamento. Desta forma, cabe ao analista
contrário o tratamento da criança pode tornar-se inviável. . ... assumir a orientação da criança para assçgurar a feliz conclu-
É justamente com relação à transferência que encontrare- são do tratamento; deve ensiná-Ia a dominar sua vida instintiva
mos outra dificuldade na análise da criança. Seguindo o con- e a opinião do analista decidirá que parte dos impul~os infantis

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deve ser suprimida ou condenada, gue parte se deve satisfazer e I Empenhada em confirmar sua hipótese, Klein submete o
gual deve ser conduzida à sublimação.(Aberastury 1989: 63) ,. filho a dois curtos períodos de educação psicanalítica, um de
três dias, seguido por outro de quatro, com um intervalo de
Ao longo dos anos, a experiência clínica conduziu Anna poucos meses entre eles. Os resultados decorrentes destas in-
Freud a uma modificação em suas recomendações técnicas, tervenções foram satisfatórios, o que pôde ser notado pela
que são sucintamente descritas no prefácio à edição inglesa de ampliação do interesse pelos acontecimentos do mundo exter-
seu livro, publicado naquele país somente no ano de 1946. A no e pela melhora do senso de orientação espacial e temporal
fase introdut6ria ao tratamento foi bastante slmplifícada e a manifestados por Erich.
idade das crianças acessíveis ao tratamento analítico foi redu- No entanto, apesar dos bons resultados iniciais, a educa-
zida gQP~río.9o de latência para os dois anos.' ção psicanalítica, realizada por Klein, não livrou Erich da tão
(Melanie Kle~~por outro lado, dá ir:ício a seu trabal~o temida inibição intelectual, tão pouco do aparecimento de sin-
em torno ael:919, quando começa a realizar uma educaçao tomas neuróticos. Após alguns meses, o estado geral da crian-
psicanalítica com seu filho Erich, a quem atribui o pseudôni- ça era caracterizado por
mo de Fritz (Petot, 1979 e Grosskurth, 1986), publicando, em
1921, seu primeiro artígo.t'O desenvolvimento de uma crian- ... inibição para o brincar, acompanhada de inibição de ouvir e
contar histórias. Ele também estava cada vez mais taciturno, hi-
ça", no qual comunica seu trabalho inicial como psicanalista,
percrítico, distraído e anti-social.Apesar de se poder nesse pon-
realizado com Erich. . to não descrever a condição mental da criança como uma
Em princípio, a intenção de Klein era a de proporcionar "doença", era possível traçar algumas suposições sobre seu de-
ao filho uma educação não coercitiva e de promover o escla- senvolvimento possível a partir de certas analogias. Estas inibi-
recimento sexual necessário, com o objetivo de possibilitar o. ções relacionadas à brincadeira, a contar e ouvir histórias, e ainda
pleno desenvolvimento intelectual do menino. Esta primeira a postura hipercríticadiante de coisassem importânciae a atitude
intervenção proposta por Klein consistia em responder às per- distraída, poderiam, num estágio posterior, ter se tornado traços
guntas da criança, fossem elas relativas a temas sexuais ou de neuróticos. Da mesma maneira, a postura taciturna e anti-social
qualquer outra natureza, " ... com absoluta sinc,eridade e, poderiam ter se tornado traços de seu caráter. (ibid.: 69)
quando necessário, uma base científica adequa?a a s~a capa- Em face a estas evidências, Klein é levada a defrontar-se
cidade de compreensão - mas sempre da maneira mais breve com o insucesso da "educação psicanalítica", concluindo, en-
possível" (Klein, 1921: 24). Acreditava. ~la, neste m~n:e~:'o, tão, que a origem da repressão pode ser encontrada mais em
que a repressão da curiosidade sexual ma provocar inibição ~~~~internos do que externos, afirmando:
da capacidade intelectual da criança, uma vez que, no c~rso
normal do desenvolvimento, é a curiosidade sexual sublima- Não existe nenhum tipo de educação que não traga dificul-
dades, não há dúvidas de gue aguelas que agem de fora para
da que permite expandir o interesse nas várias atividades do
dentro são um fardo bem menor para a criança, do que aquelas
mundo externo. que agem inconscientemente de dentro. (ibid.: 73)
______ Jo __ Desta forma, Melanie Klein decide conduzir a análise do
2. No pós-escrito de 1947, agregadoao artigo"Simpósiosobreanálisede próprio filho, o que foi realizado em duas etapas, a primeira
criança" (1927), MelanieKlein comenta,não sem uma certasatisfa- em Budapeste e a segunda, alguns meses depois, em Berlim,
ção, as alteraçõesintroduzidas por Anna Freud, o que diminuiu as onde Melanie Klein passou a residir, a partir de 1921. Esta se-
diferençascomrelaçãoa sua técnica. gunda fase do trabalho com Erich, denominada por Melanie

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A HISTÚRIA DA I'SICANÁI.lSE DE CRIAN<,:AS NO BI{ASII . 47

Klein de "análise", em oposição à fase anterior realizada sob Um exemplo bastante ilustrativo, que nos permite acom-
a rubrica de "educação psicanalítica", tinha por fundamento panhar a gênese e o desenvolvimento das formulações teóri-
penetrar mais profundamente no inconsciente da criança, va- cas e técnicas de Melanie Klein, pode ser encontrado no caso
lendo-se de interpretações do conteúdo inconsciente explies- Rita, sua primeira paciente propriamente dita, analisada na
so no simbolismo dos sonhos, das fantasias e, eventualmente, primavera de 1923, que assumiu uma importância seminal
no brincar de Erich. durante toda a sua obra. A mesma linha de raciocínio é segui-
O suporte técnico des:t.;;tanálise foi sendo definido. pau- da por Horácio Etchegoyen, que ao discorrer sobre a técnica
latinamente, à proporção que as necessidades e os obstáculos kleiniana comenta: "Assim como pode-se dizer que Anna O.
iam se interpondo durante a execução do trabalho. ~.p.timeira inventou a falklÍlg cure, também cabe afirmar que a pequena
~intr9.c!}!.~~q!l porKlein foi a de reservar uma hora dQ- Rita criou a técnica lúdica, com seus brinquedos e seu famo-
f!.!.apara a análise do filho. Apesar de estar em contato cons- so ursinho superegóico" (Etchegoyen, 1987: 230). Desta forma,
tante com o menino, ela reconhece a necessidade de diferen- discutiremos as principais contribuições de Melanie Klein à

ciar o momento da análise das demais atividades cotidianas. psícanáliscde crianças, tomando como ponjo de referência a
Outro dispositivo técnico, que começou a ser esboçado neste análise de Rita.
momento, refere-se à postura adotada com relação fi interpre- Durante () primeiro nno de vida, Rita !11anifl'st.wa maior
tação de sonhos. Em princípio, Klein procura obter de Erich interesse pela mãe, em seguida passou .1 manifestar ciúmes
associações livres, o que lhe permitiria interpretar os sonhos em relação a ela e predileção pelo pai. Com 18 meses, a situa-
do menino seguindo a técnica clássica sugerida por Freud. Ao ção inverteu-se e a mãe passou a ser a figura de maior valên-
defrontar-se com a insuficiência das associações produzidas cia para a criança. Paralelamente a este fato, surgiram pavores
pelo filho, passa a conduzir suas associações por intermédio noturnos e fobia de animais. Aos dois anos, após o nascimento
de perguntas. Estes obstáculos, no tocante às parcas associa- do irmão, seus sintomas intensificaram-se. Até que, aos dois
ções da criança, conduziram Klein a uma abordagem técnica anos e nove meses, quando foi levada à análise, Rita mostra-
que primava pela interpretação do conteúdo simbólico dos va-se muito ambivalente, era inibida no brincar, manifestava
sonhos e das fantasias (devaneios) narrados pelo menino. forte sentimento de angústia e baixa tolerância à frustração,
Em seguida, Melanie Klein começa a analisar sgundo a além disso "Apresentava cerimoniais obsessivos e alternava
técnica do brincar por ela desenvolvida, crianças de tenra ida- entre ser 'um amorzinho' mesclado com sentimentos de re-
de, entre dois e seis anos. Isto lhe permite entrar em contato morso e 'uma ruindade' incontrolável" (Klein, 1932: 23).
com o universo mental da criança e ~~<!ªmen!ar §eu trabalho A análise de Rita foi conduzida na casa da própria crian-
em t<:>E..~con_~~~ta~!~j!ú~º-~ent.~, que tem como ça, em função de sua pouca idade. Ao ficar sozinha em seu
forma privilegiada de expressão o simbolismo do brincar, que quarto com a psicanalista, Rita demonstrou fortes sinais de
pode ser equiparado, segundo esta autora, à associação livre ansiedade, pedindo para ir ao jardim, com o que Klein concor-
do adulto. Suas formulações teóricas e técnicas desenvolvidas dou. Ao saírem do quarto, foram acompanhadas pelos " ...
ao longo dos anos de 1923 a 1926, com base nas análises de
Rita, Ruth, Trude, Peter e Erna, foram apresentadas sob a for-
ma de conferências proferidas na Sociedade Britânica de Psi-
I olhares observadores de sua mãe e de sua tia que tomaram
isto como um sinal de fracasso" (Klein, 1955: 152), rememora
'Klein, trinta anos mais tarde, sua primeira sessão com Rita.
.,.

canálise no ano de 1925 e, posteriormente, sistematizadas no I Levando em conta algumas associações da menina, a analis-
livro A psicanálise de crianças, publicado em 1932.
! ta interpreta o medo de Rita em ficar a sós com ela no quar-
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A HISTÓRIA DA I'SICANÁUSE DE CRIANÇAS NO BRASil. 49

to, relacionando isto corri.seus terrores noturnos, que se carac- mas obsessivos manifestados pela pequena paciente. O fato de
terizavam pelo medo de que uma mulher má a atacasse du- Rita necessitar ser enrolada nas cobertas para não se levantar
rante a noite. Com esta interpretação, a ansiedade da criança durante a noite, expressava simultaneamente os seus desejos
diminuiu permitindo que analista e paciente retomassem ao sádicos em relação aos pais e a tentativa de controlá-tos.
quarto. Embora superado o primeiro impasse, Rita continua- A análise de Rita foi interrompida quatro meses após o
va evitando contato com a analista, limitava-se a brincar com · seu início em decorrência da mudança dos pais para o exte-
seus brinquedos de forma estereotipada, vestindo e desvestin- rior. Entretanto, Rita apresentou muitas melhoras: seu ritual
do obsessivamente uma boneca, seguido da afirmação de que obsessivo diminuiu, sua rivalidade edípica foi abrandada c
a boneca não era sua filha. Esta atividade lúdica da pequena ela pôde assumir uma atitude maternal em suas brincadeiras.
paciente não passou despercebida, permitindo a Klein inter- Fica evidente ao leitor, que acompanhou a descrição da
pretar para Rita sua fantasia inconsciente de roubar o bebê análise de Rita, que Melanie Klein não empregou de forma
real de sua mãe, que havia nascido há poucos meses. sistemática com esta paciente a técnica do brincar, tampouco
No curso desta análise; Melanie Klein começa a defron- pretendia privilegiar o brincar em detrimento de qualquer
tar-se com a premência dos impulsos destrutivos expressos outra forma de expressão do conteúdo inconsciente. Podemos
por meio de fantasias sádicas de natureza oral, anal e uretral, observar que a escolha do brinquedo como elemento central
que estão presentes tanto no desenvolvimento da criança nor- da comunicação entre paciente e analista foi, de certa forma,
mal quanto na origem de seus sintomas neuróticos, descober- imposta: por um lado, pelas circunstâncias do atendimento c,
ta bastante jnovadora para a época, quando as atenções por outro, pela própria criança. O fato da análise ter sido con-
estavam voltadas quase exclusivamente para os impulsos li- duzida no quarto de Rita, em meio a seus brinquedos, que lhe
bidinais. ' eram tão familiares, atuou como um elemento propiciador da
Evidências destas fantasias foram sendo encontradas ao utilização deste material para a comunicação simbólica de
longo da análise de Rita, e sua compreensão permitiu elucidar conteúdos inconscientes. Aliado a isto, podemos destacar,
seus sintomas obsessivos. Uma das atividades lúdicas que também, a pouca idade de Rita, o que dificultava a verbaliza-
absorveu Rita, durante sua análise, consistia em colocar um ção de suas emoções e fantasias.
elefantinho de brinquedo ao lado da cama da boneca, para · . . A sensibilidade clínica de Melanie Klein, aliada à expe-
impedir que a última se levantasse durante a noite e fosse até riência que a análise de Erich lhe proporcionara, alguns anos
o quarto dos pais para lhes fazer alguma maldade. A com- antes, na qual a atividade lúdica figurava como elemento
preensão deste material expressa por Melanie Klein, anos coadjuvante, criaram as condições necessárias para que o sim-
mais tarde, é a seguinte: bolismo do brincar de Rita fosse elucidado. A partir deste
caso, Melanie Klein passa a empregar de forma sistemática a
O elefantinho representava o superego (o pai e mãe), e os
té~ní9i .do brincar, tomando-a como uma "via régia" ao in- .
ataques que ele deveria evitar eram expressão dos impulsos sádi-
consciente da criança.
cos da própria Rita, centrados na relaçãosexual entre os pais e na
gravidez da mãe. O superego impediria a menina de roubar o Urna interpretação de relevância histórica que vem ilus-
bebê que se encontrava dentro da mãe, de ferir e destruir o cor- trar a contra posição entre o estilo técnico de Melanie Klein,
po dela e de castrar o pai. (Klein,1945: 447) · por um lado, e dos analistas de crianças da década de 1920,
inspirados nos trabalhos da dra. Hug-Hellmuth, por outro, é
Podemos compreender assim, baseando-se no conteúdo encontrada, em 1923, na análise de Rita. Referindo-se a esta
simbólico subjacente a esta brincadeira, a natureza dos sinto- interpretação, em 1955, Melanie Klein comenta:

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50 JORGE Luis FERREIRA ABRÃO A HISTÓRIA DA PSICANÁLISE DE CRlANÇASNO BRASIL 51


,-
A partir das poucas coisas que ela disse e do fato de que ela mente dita quanto em campos afins - tais como as clínicas de
havia ficado menos amedrontada quando estava fora, concluí que orientação infantil - progressos estes que foram influenciados de
ela estava particularmente receosa de alguma coisa que eu pode- forma profunda e direta pelos trabalhos de Melanie Klein e Anna
ria fazer a ela quando ela estava a sós comigo no quarto. Interpre- Freud. Um exemplo disso é o fato de se ter ampliado o espectro
tei isto e, referindo-me a seus terrores noturnos, liguei sua de criança que se considera apropriadas para o tratamento ana-
suspeita de mim como uma estranha hostil ao seu medo de que lítico: a técnica psicanalítica agora é de uso geral, embora muitas
uma mulher má a atacasse quando estivesse sozinha à noite. vezes de forma modificada; a importância das interpretações tem
(Klein, 1955: 152) sido amplamente aceita e há um maior reconhecimento da abor-
dagem psicanalítica na formação de psicoterapeutas e psiquiatras
Com base neste fragmento, podemos extrair várias carac-
de crianças.
terísticas distintivas da técnica empregada por Melanie Klein.
Com relação à transferência, esta autora acredi~Ê-'l!!e. _~_ SE.i-ª.l}ça- Segundo Elizabeth Spillius (1988), a psicanálise de crian-
t~~p-ª_~.fl.~l~belecer uma relação tr~~~f~ren~i~l.c9~. ~ ana- ças viveu um período bastante promissor até o início da dé-
lista desde iniciado o tratamento, entendeI}gº.-ª_l1.o~~!llqªçie cada de 1950, experimentando, após esta fase, um momento
dõp~c:~~ntic'omo uma manifestaçãõd;.Jii.n~ferê-l1.fi.él }:legéJ.ti:- de maior estagnação, tendo em vista que a análise de pacien-
Vã, ql.;l,~,.cl.~yeser debelada por intermédio da interpretação e tes psicóticos passou para o primeiro plano na pesquisa psi-
nã~_~,~.gle~os educativos, corno suger~ Ann~ Freud. canalítica. Não obstante, muitos progressos foram obtidos até
~-" No tocante à interpretação, Melanie Klein emprega uma o presente momento, seja na psicanálise de crianças ou em
abordagem bem menos cautelosa, se comparada àque~a ado- áreas correia tas nela inspiradas.
tada por Anna Freud, nomeando as ansiedades da criança e Uma contribuição significativa introduzi da por Esther
trazendo à consciência suas fantasias edípicas. Sustentando Bick, em 1964, foi o desenvolvimento da técnica de observa-
esta atitude, encontramos uma concepção de desenvolvimen- ção psicanalítica da relação mãe-bebê, que se constitui em
to do psiquismo infantil que rompe com alguns t:>ressueostos uma observação semanal da dupla mãe e bebê, realizada em
da teoria psicanalítica que.vigorava na época,~lem s~t:>0e que casa durante o primeiro ano de vida. Esta técnica, que leve
o superego da crianç~"çieser.w9.lye~.Se..t,\~tes da ~~ fª~lça,. s_<?~ por objetivo inicial encontrar elementos que pudessem confir-
a p'rimazi?-dos impulsos pré-genitais, ao contrário do que su- mar as formulações de Melanie Klein acerca do psiquismo da
püii.ha'Freud. Assim, ~~ão do__ªDal.is.t<l a d~.:~~rancla~.a .
é •• criança no primeiro ano de vida, tem se mostrado de grande
severid~~d.~>-s:up.~egQptimi.ti'lP.e,não a Q~.ª1J)~JhªIoegoda valor tanto na pesquisa psicanalítica, quanto no treinamento
'Ciíi:inçél..a controlar os imeulsos P-I-Qy:en,ientes.do id .. de psicoterapeutas e psicanalistas de crianças.
Nãóoo'scábé:'neste- momento, aprofundar as discussões Ao longo dos últimos anos, muitos progressos têm sido
sobre as divergências entre as escolas de Melanie Klein e Anna obtidos na psicanálise infantil, sobretudo no que se refere ao
Freud, que se estendem por diversas questões teóricas e téc- . tratamento de crianças autistas, psicóticas borderlines, demons-
nicas. Cumpre-nos, apenas, salientar que, partindo destas trando a viabilidade de uma intervenção psicanalítica no tra-
duas abordagens, muitos progressos foram feitos no campo tamento desses estados mentais. '
da psicanálise infantil, ampliando o número de crianç~s aten- Merecem destaque os trabalhos de Francis Tustin (1972,
didas e aperfeiçoando esta forma de tratamento. Referindo-se 1981,1990), que tem se dedicado a investigar o funcionamen-
a este assunto, escreve Esther Bick (1962: 186): to psíquico de crianças com graves transtornos emocionais.
Tenho plena consciência de que foram feitos progressos nos Empregando °
conceito de autismo, não como uma entidade
últimos trinta e quatro anos, tanto na análise de criança propria- nosológica definída, mas sim como um estado de organização

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52 JORGE Luis FERREIRA ABI~O


'., A HIST()RII\ DI\ I'SICI\NAI.ISE DE C/UI\N<;I\S NO I)Rt\SII, 53

da personalidade da criança, esta autora procura formular al- enfatiza a importância da utilização da contratransfcrência
'guma~ hipóteses explicativas relativas ao autismo psicogêni- ,c?~~_~e~u~so para el:trar em contato com as emoções do pa-
1 co. Segundo ela, a angústia básica vivenciada pela criança ,CIente. Destaca também, de forma original, a necessidade de
lí' autista está ligada à tomada de consciência da separação em que o psicoterapeuta acautele-se no emprego de interpreta-
!'

.\/ relação ao objeto, experimentada em um momento muito pre- ções transferenciais com pacientes gravemente perturbados,
I)' i coce, quando a criança ainda não é capaz de significar este uma vez que "Crianças psicóticas e borderlines em seus mo-
I acontecimento. Nestes casos, segundo Tustin, a separação não mentos mais psicóticos, freqücntemcntc têm grande dificulda-
é entendida pela criança somente como a perda de um obje- ~e.em perceber as implicações das coisas que lhe são ditas"
to, mas, também, como perda do próprio eu, ou dito em ter- (ibid.: 100), Propõe nestes casos o emprego de uma atitude in-
mos de objetos arcaicos, a separação do contínuo seio/boca é terpretativa mais ativa, que chame a criança para a vida, o que
entendida não como separação do objeto seio, mas sim como ela denominou de "reclamação".
sensação de perda de parte da própria boca. . Percorridas as principais linhas de desenvolvimento da
Partindo deste raciocínio, Tustin é conduzida a formular psicanálise de crianças, desde sua gênese até a atualidade,
uma hipótese explicativa r~lativa a um fenômeno clínico fre- .acreditamos ter sido possível apresentar um panorama, ainda
qüentemente observado em crianças autistas: o uso idiossin- .que sucinto, dos fundamentos principais da análise infantil,
crático que habitualmente elas tendem a conferir aos objetos. ~undamentos estes que influenciaram de forma inequívoca a
r ,v Para designá-los, cunhou a expressão "2.~etos autísticos", em Implantação desta modalidade de tratamento psicanalítico no
i / contraposição ao conceito de "objetos transicionãls'rpropos~ Brasil. Evidentemente, negligenciamos em nossa introdução a
./' ,.: to por Winnicott, uma vez que o primeiro vivenciado pela contribuição de inúmeros autores que se dedicaram, ao longo
~:<
é

criança como a primeira possessão do "eu", ao passo que o se- dos anos, à psicanálise de crianças. Procuramos tão-somente
f . ,:,-'"- gundo é entendido como a primeira possessão "não eu", ou . expor, em linhas abreviadas, os trabalhos daqueles autores
",:, seja, o .0?jejQautlg~r:t.~C? P?S~ui~~~ji~!.lt~~~~_<:l?_r.~pr~a
sen- " que marcaram, com maior destaque, o pensamento psicana-
: ..,do entendido pela criança como parte de seu corpo. ASSIm,es- lítico brasileiro.
" r' ,sesóbfe'fos·~assúmém-uiiúi.'fünçIróde·fén'srva· contra uma
1.'percepção de perda e descontinuidade com relação ao objeto
externo, uma vez que "Essa perda foi sentida como perda de
•• j (;.uma parte de seu corpo e não como perda da mãe e seu seio.
') É essa situação que leva ao uso obsessivo de objetos experi-
mentados como se fossem partes corporais" (Tustin, 1981:
132),
Mais recentemente, Anne Alvarez (1992) tem se dedica-
do ao estudo de crianças autistas, psicóticas, borderlinese mal-
tratadas, tendo como fundamento a teoria das relações obje-
tais, em uma linha de pensamento que, segundo a autora, vai
de Freuda Bion, passando por Klein. Seu trabalho traz, como
marca distintiva, a valorização das atitudes do psicoterapeu-
ta diante da criança gravemente perturbada. Neste contexto,
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