1) A palestra aborda os mal-entendidos em relação à psicoterapia, como considerá-la como lugar para corrigir pessoas erradas ou aprender dicas para resolver problemas.
2) A psicoterapia é, na verdade, um recurso para quem está com dificuldade lidando com uma situação, independente de culpa. Ela também não é sobre o terapeuta ter respostas.
3) A psicoterapia é uma "procura" através do diálogo e linguagem poética, na qual o terapeuta e paciente se compreendem mut
1) A palestra aborda os mal-entendidos em relação à psicoterapia, como considerá-la como lugar para corrigir pessoas erradas ou aprender dicas para resolver problemas.
2) A psicoterapia é, na verdade, um recurso para quem está com dificuldade lidando com uma situação, independente de culpa. Ela também não é sobre o terapeuta ter respostas.
3) A psicoterapia é uma "procura" através do diálogo e linguagem poética, na qual o terapeuta e paciente se compreendem mut
1) A palestra aborda os mal-entendidos em relação à psicoterapia, como considerá-la como lugar para corrigir pessoas erradas ou aprender dicas para resolver problemas.
2) A psicoterapia é, na verdade, um recurso para quem está com dificuldade lidando com uma situação, independente de culpa. Ela também não é sobre o terapeuta ter respostas.
3) A psicoterapia é uma "procura" através do diálogo e linguagem poética, na qual o terapeuta e paciente se compreendem mut
O tema desta palestra é a psicoterapia. Ocorreu-me
abordar primeiro o que a terapia não é, antes de pensar no que ela é. Parti de dois mal-entendidos que conside ro sérios. O primeiro deles, extremamente freqüente, consis- :e em considerar a terapia como o lugar para onde de vem se dirigir as pessoas culpadas de alguma coisa ou que estão erradas de alguma forma. Vejamos um exem plo: alguém anda há tempo com dificuldade para dormir, tenso, brigando com a mulher, porque com a substitui ção de seu chefe surgiram dificuldades de relacionamento no trabalho. Quando lhe perguntam se ele não gostaria de fazer uma terapia, ele responde indignado: "Eu, fazer terapia? Quem tem que fazer terapia é meu chefe, que é um louco, que não entende nada, que chegou onde está por motivos políticos...". Esse é um ponto de vista não só de leigos, mas também de muitos psicólogos. E comum ouvirmos de terapeutas de 154 N a P r esen ç a d o S e n t id o
crianças, frustrados com as dificuldades que a família
cria no tratamento, o seguinte: "Imagina, a criança está ótima, quem precisa de terapia são os pais!". Nesse co mentário, podemos ouvir: "Os pais devem fazer terapia porque eles é que estão errados". Do mesmo modo, no trabalho com populações carentes, aparecem os comen tários: "Essas pessoas estão ótimas, quem precisa de te rapia é a nossa sociedade". Aí também podemos ouvir: "Quem está errada é a sociedade, é ela que precisa de terapia". A terapia, entretanto, não é um recurso de repressão social destinado a corrigir as pessoas que estão erradas, que se julgam erradas ou que são julgadas erradas por qualquer tipo de grupo. O que temos a dizer diante desse mal-entendido é que a terapia é um recurso para quem está, com grande dificuldade, arcando com o peso de uma situação; al guém que, de alguma maneira, está "pagando o pato", não importa se a situação foi motivada por ele mesmo ou por outros. O segundo equívoco é a consideração da terapia como o lugar no qual são aprendidos os valores, as nor mas e mesmo as dicas que uma pessoa deveria seguir na eventual solução de uma situação difídl. Acredito que esse mal-entendido também é mantido, até certo ponto, por nós, psicólogos, porque uma tal idéia coloca o terapeuta U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P sic o t er a p ia 155
como aquele que possui o saber, que tem as informações
para a resolução de problemas. Esse é um engano ainda mais lamentável do que o primeiro, pois talvez o elemento mais fundamental do trabalho de um terapeuta consista justamente no contrá rio: no fato de que "ele não sabe". Em geral, quando afir mo que o terapeuta precisa ter isso sempre presente, pessoas que estudam muito me olham perplexas e di zem: "Bom, se é para não saber, por que fazer tantos tra balhos, ler tantos textos...?". Não é que não exista um conhecimento psicológico; ele existe e sua aquisição é importante, não tanto para que se trabalhe com ele, mas porque o próprio processo de aquisição desse conhecimen to pode ser a ocasião de alguém se esforçar para aprender a aprender, e isso é uma chave fundamental para o tra balho terapêutico. Ora, afirmar que "não saber" é uma condição fun damental do terapeuta é deixar algo estranho no ar. Dian te disso, então, perguntamos: terapia é... o quê?
Lembro-me do primeiro encontro que tive com
Medard Boss, o psiquiatra suíço que desenvolveu a clí nica fundamentada na Daseinsanalyse. Naquela oportu nidade, ele fez uma observação que me deixou intrigado: "No consultório, Freud era completamente diferente...". Descobri então que estava conversando não com um 156 N a P r esen ç a d o S e n t id o
estudioso de Freud — embora Boss também o fosse —,
mas com um paciente de Freud. Curioso, perguntei: "E o que ele fazia no consultório?". Boss respondeu, brin cando: "Fazia Daseinsanalyse, não fazia Psicanálise". Comecei a refletir que, afinal de contas, Freud iniciou seu trabalho de terapeuta antes da formulação da Psica nálise, que passou a existir a partir do acúmulo de sua experiência. Retornei à questão sobre o que Freud fazia no consultório antes de ter elaborado a teoria psicanalí- tica. Para me dizer o que Freud fazia então, Boss me fa lou: "Psicoterapia é procura". A palavra procura me chamou a atenção, e percebi que se abria um significado mais original quando a lia mos assim: pró-cura. "Terapia é pró-cura", isto é, "terapia é para cuidar"; em latim, cura tem o significado de cuidar. Fundamentalmente, então, terapia é procura. Mas procura de quê? No caso da terapia, aquilo que se procura não é algo que vai acontecer lá no final do processo, mas algo que se dá, passo a passo, através do modo como ela se realiza. Esse "modo" constitui o próprio acesso ao "o quê" se procura.
Pensemos no modo como se dá a terapia. O modo
diz respeito, basicamente, à linguagem que é fundamental U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P sic o t er a p ia 157
na terapia. Qual é a via dessa linguagem? Seria uma via
intelectual? Sabemos que o paciente, em geral, não precisa de explicações racionais. Ele mesmo é crítico de seus sinto mas. Uma pessoa que se apavora quando vai falar em pú blico sabe que não há motivo para se sentir tão ameaçada. Mas saber isso não diminui seu medo, parece que só faz aumentá-lo. A verdade racional é impotente diante das dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicula rizar a razão. Não é pela via da razão que caminha a linguagem da terapia. A linguagem própria do diálogo entre terapeuta e paciente tem uma outra via, para cuja compreensão é importante introduzirmos aqui uma palavra grega, poiesis. Esta significa não só poesia no sentido específico, como também criação ou produção em sentido mais amplo. No diálogo de Platão, O Banquete, encontramos:
— Como sabes, "poesia" é um conceito múltiplo. Em ge
ral se denomina criação ou poesia a tudo aquilo que pas sa da não-existência à existência. Poesia são as criações que se fazem em todas as artes. Dá-se o nome de poeta ao artífice que realiza essas criações.1
1. P latão . (1999). Diálogos. Rio de Janeiro, Ediouro.
158 Na Presença d o S e n tid o
Poiesis é um levar à luz, é trazer algo para a deso-
cultação. A linguagem da razão, chamada em geral de lingua gem do conhecimento, também desoculta o que estava oculto, mas de um modo diferente, de um modo que dá explicações. Ela é própria das ciências, das teorias e mes mo de certas argumentações do cotidiano; ela, de certa forma, garante ou "obriga" que alguém entenda o que dizemos. Com a linguagem poética é diferente. Esta pode apa recer na poesia propriamente dita, num texto em prosa, num diálogo ou mesmo numa piada engraçada. A pia da não é para ser explicada. Propomos que também a terapia acontece basicamen te na via da poiesis. A linguagem da terapia é poética. Essa linguagem busca o interlocutor em seu espaço de liberdade. Quando me expresso poeticam ente, o outro não é obrigado a concordar comigo. Na verdade, não há nenhuma razão para que ele o faça, e, no entanto, tenho uma grande expectativa de que ele possa me compreen der, dentro da não-necessidade de compreender. Nessa forma de linguagem, quando há compreen são, esta vem gratuitamente, emocionalmente e sem ne cessidade de argumentação mediada pela razão. Aqui teríamos uma comunicação que ou se dá, ou não se dá. U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P sic o t er a p ia 159
Nesse ponto encontramos uma discussão que é cara
para os psicólogos: a diferença entre explicação e com preensão. Considero que essa diferença está exatamente no âmbito dessas duas linguagens: a explicação se arti cula na linguagem do conhecimento e a compreensão acontece dentro de um diálogo na linguagem da poiesis. No âmbito da linguagem da poiesis existe um risco: eu nunca sei se o outro vai me compreender ou não. Se ele me compreender, é como se ele me autenticasse; en tão, eu me sinto não só muito próximo dele mas também da minha própria experiência que desejo expressar. Caso contrário, em algumas circunstâncias, chego até mesmo a perder de vista a minha experiência, como se ela se di luísse na incompreensão do outro. Em tal momento, pos so passar bruscamente de uma situação vivida como algo precioso para uma outra, na qual me sinto terrivelmente exposto, fragilizado. Às vezes, para descrever essa situa ção, usamos a expressão: "Eu fiquei ridículo". Descobri mos o quanto somos vulneráveis em nossa comunicação e o quanto somos dependentes da disponibilidade do outro. Quando o outro nos compreende, vivemos uma experiência extremamente significativa. Quanto mais delicada é a situação e mais pessoal o enunciado, maior é a nossa necessidade de compreensão e mais difícil se toma qualquer tentativa de explicação. 160 N a P r esen ç a d o S en t id o
Talvez isso nos permita compreender por que, às
vezes, a terapia pode ser tão difícil. A linguagem poética, no dizer de Heidegger, faz com que nos sintamos "indi gentes", nus, pela própria natureza da linguagem. Tínhamos dito antes que terapia é procura. Passa mos em seguida a perguntar pelo modo como ela se dá: qual a via de sua linguagem? Podemos acrescentar agora: terapia é procura através da linguagem da poiesis...
Mas procura de quê? É uma procura da verdade.
Essa palavra precisa ser pensada. Em português, ela deriva do latim veritas, e tem a ver com o verificável, aquilo que pode ser comprovado. Tal conceituação asso cia a perspectiva da verdade à linguagem do conheci mento. E certo que há uma dimensão da verdade que é definida por sua comprovação, por sua verificabilidade. Mas ela não é apenas o verificável. Como fazer para aproximar, via poiesis, a questão da verdade? A palavra grega aletheia pode ajudar, pois ela traz um outro senti do para a palavra verdade. A letheia é formada por um prefixo de negação (a) e por um radical (lethe ), que significa esquecimento. Aletheia pode ser o "não esquecido". Podemos nos aproximar da aletheia por uma via poética. Não-esqueddo pode ser o recordado. Recordar vem de um radical latino cor-cordis, que significa coração. U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P s ic o t er a p ia 161
Se lermos re-cordar, isso soa como se disséssemos algo
assim: colocar o coração de novo; aletheia, verdade — não meramente o não-esqueddo, mas aquilo em que se pode pôr de novo o coração. Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente aquelas coisas que já nos foram caras, que já foram coi sas do coração, mas que perderam esse vínculo em virtude de dificuldades de comunicação, tomaram-se desgastadas. Foram esquecidas, mas num esforço de procura, através da linguagem poética, podemos reencontrá-las. Quando isso acontece, encontramos uma verdade. Uma verdade assim encontrada nunca é relativa. Quando ela se manifesta, nós somos parte dela e não há como relativizar isso. A verdade enquanto veritas, geral mente, é diluída no tempo, no contexto, nas estruturas sociais ou culturais que suportam o enunciado da verdade. Mas a verdade recordada, por ser uma verdade vivida, já está sempre definida num lugar, naquele contexto úni co em que estamos. Longe de ser uma verdade relativa, encontramos aqui o sentido, talvez o mais arcaico, no qual a questão da verdade se tornou uma real obsessão para o homem. Reencontramos o momento em que a verdade é dada praticamente como algo que nos envolve e do qual par ticipamos, de modo que tenhamos dela uma vivência plena e absoluta. 162 N a P r esen ç a d o S en t id o
Mas por que uma pessoa quer a verdade?
Retomemos a questão da verdade desde que a hu manidade procura por ela. Nessa procura, a verdade está sempre relacionada com libertação. Na Bíblia, nos mitos em geral e mesmo no mundo da ciência, encontramos: a verdade liberta. Nos mitos, a verdade revelada pela di vindade tinha o caráter de libertar o homem do jugo de sua identidade com o restante da criação. Na história de Édipo, a cidade de Tebas encontra-se escravizada pela Esfinge, que só a libertará no momento em que alguém puder desvendar seu enigma. Quando ele consegue, por trás do enunciado obscuro, reconhecer a verdade e responder ao enigma, a Esfinge se mata e li berta Tebas. Quando a psicoterapia começa a nascer, reencontra mos a idéia da verdade libertadora: a descoberta da ver dade liberta o paciente do jugo do sintoma. Podemos acompanhar uma quantidade enorme de relatos nos quais terapeuta e paciente buscam juntos al guma forma de verdade que possa colocar o paciente outra vez em liberdade; liberdade que foi perdida pela doença, pela neurose, pela angustia ou pela culpa, e que, ao ser reinstaurada, liberta. Neste ponto, já podemos dizer: terapia é procura, via poiesis, da verdade que liberta. U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P sic o t er a p ia 163
É comum a impressão de que a liberdade é sempre
uma coisa boa, agradável. Mas em grande parte das ve zes ela não é sentida assim. Talvez um dos grandes mé ritos de Sartre tenha sido revelar o aspecto incômodo da liberdade. E por que a liberdade pode incomodar? A questão da liberdade pode ser pensada de duas formas. A maneira mais comum de pensar é ligar a idéia de liberdade com o tornar-se livre de alguma coisa. A preo cupação das pessoas, quando lutam por livrar-se de algo, é completamente absorvida pelo de que elas que rem se libertar. Na hora em que finalmente encontram a liberdade descobrem que, na luta por ela, apaixonaram- se de uma maneira perversa por aquilo que impedia a própria liberdade. A palavra perversa é usada aqui no sentido de "pelo avesso", ou seja, as pessoas se apai xonam pelo avesso, pelas suas dificuldades. Assim, no momento em que se vêem livres delas, em vez de se sen tirem realizadas e felizes, percebem que a liberdade é fundamentalmente abandono, pois, livres de todo impe dimento, estão mais do que nunca sozinhas, desligadas de todas as coisas e lançadas numa situação na qual se sentem livres para coisa alguma. Outro modo de pensar a liberdade é perguntar: liberdade para qu ê ? Para buscar o quê? Quando, ao 164 N a Presen ça d o S e n t id o
romper com aquilo que impedia a liberdade, reencontra
mos um sentido, um para quê, começamos a compreender onde está o lado positivo da liberdade. Não existe nada mais agradável do que nos sentirmos plenamente liber tos para caminhar na direção de alguma coisa. A mesma dimensão do abandono que nos deixa, de repente, joga dos no meio das coisas, deixa-nos livres para a dedica ção a algo. A liberdade é condição fundamental para que possamos nos dedicar àquilo que pretendemos. Mas mesmo esse lado positivo da liberdade, ou seja, poder dedicar-se a um sentido, também pode ser incô modo, porque o sentido às vezes não está claro ou pare ce inatingível. A dificuldade, outras vezes, provém do quanto de compromisso e trabalho a pessoa sente que precisará ter para se dedicar ao sentido.
Vamos esclarecer o nosso emprego da palavra sen
tido, visto que ela é sempre discutível, principalmente quando queremos explicá-la através da linguagem do conhecimento. Usamos essa palavra aqui em sua acepção mais simples. Trata-se daquele sentido que, na hora em que falta, todos nós sabemos de que se trata. É o sentido primário, fundamental, a que nos referimos quando per guntamos: "Qual o sentido de nossas vidas? Qual o sen tido de estarmos aqui?". U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P s ic o t er a p ia 165
Algumas vezes na vida, passamos por situações
nas quais o sentido se perde. Há uma situação específi ca em que isso ocorre de forma drástica e intensa: o mo mento em que vivendamos a morte de um sonho. Essa é uma experiência humana única, pois só os homens so nham. Referimo-nos ao sonho como expectativa, espe rança, perspectiva do desejo. Não só O homem é o único animal que sonha como também, uma vez tendo con quistado o direito de sonhar, transformou o sonho em seu valor mais alto. A imagem do herói, em todas as épocas e culturas, é sempre a imagem daquele que colocou o sonho acima de tudo, até da conservação da vida e da preservação da espécie. Numa belíssima cena do filme 2001, uma odisséia no espaço, um computador ultrapassa suas funções e come ça a enlouquecer. Impulsionado por uma grande aspiração, pergunta ao cosmonauta: "Será que eu posso sonhar?". Porque em sua perfeição técnica faltava o sonho.
Mas o sonho também morre, e quando isso aconte
ce ficamos provisoriamente privados de sentido. Quan do tudo aquilo que esperamos, a que nos dedicamos, em nome do que nos organizamos, morre, nossa vida morre também. Nesse momento, vivemos duas experiêndas in terligadas. Ao mesmo tempo em que percebemos grande 166 Na P resença d o S e n tid o
luddez e dareza, esta é absolutamente incompatível com a
ação, porque não há motivo para fazer coisa alguma. A morte do sonho traz uma experiência muito forte de solidão. Ao conversarmos com pessoas que vivem o drama de uma solidão muito intensa, em geral, depa ramos com um sonho que morreu. Para tais pessoas, o afeto, a preocupação, a proximidade dos outros apro fundam ainda mais sua solidão. É como se o amor e a preocupação dos outros ao redor fossem absurdos e va zios, porque, sem o sonho, nada se articula, o sentido é negado e não se tem como acolher e muito menos retri buir carinho. Muitas vezes a pessoa carrega em si um sonho que morreu, e ela não consegue abandonar e enterrar esse sonho, pois isso é assustador. É assustador porque a de silusão com um amor ou um ideal dá a impressão de que jamais ela poderá amar ou ter ideais de novo. Então, ela se agarra ao sonho morto, e este a escraviza na con dição de ausência de sentido. Ela fica presa na falta de sentido. É muito difícil nos aproximarmos da pessoa que vive esse momento. O fim de um sonho é uma das formas de perda do sentido. Essa perda traz não apenas dor. A pessoa po de sentir que perdeu também exatamente o que fazia sua existência ser digna de ser vivida. É como se ela se sen tisse ferida em sua dignidade. Desaparece o que tinha U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P sic o t er a p ia 167
importância, e, nessas horas em que um sentido muito im
portante da vida se desarticula, o perigo é que isso arraste tudo o mais, num movimento que tende a esvaziar todas as coisas de qualquer significado que ainda possam ter. Na ausência de sentido, fica difícil viver. Mas se a pessoa compreender que, embora sonhos se acabem, a possibilidade de sonhar permanece, ela poderá restabe lecer um sentido.
Depois de abandonar um sonho morto, é hora de
começar a sonhar de novo; é hora de começar a habitar um novo sonho. Que é habitar um sonho? Sabemos que somos frágeis; por isso, precisamos de um lugar para morar. Isso vai além da concretude do lu gar, queremos habitar "em-casa". Mas a necessidade de habitar ainda vai mais longe. Dotados de linguagem, percebendo significados, e capa zes de sonhar, o precisar "estar-em-casa" tem uma am plitude maior. Precisamos habitar no sentido das coisas, habitar nossos sonhos, que são os grandes articuladores de sentido. Quem já passou pela experiência de perder o senti do sabe o que isso quer dizer: chegar em casa e não ter mais casa, só um espaço vazio. Habitar no sentido é a possibilidade que procuramos. 168 N a P r esen ç a d o S e n t id o
Na condição de seres que sonham e vêem seus so
nhos morrerem, há uma situação muito angustiante que se manifesta na tentativa desesperada de, ao sentir que um sonho está acabando, querer preservá-lo de qualquer jeito, acima de toda experiência. É a tentativa de radicalizar o sonho por não admitirmos que nada o ameace. Assim, o sonho já não é algo cheio de vigor, capaz de se confron tar e de se relacionar com as coisas; tornou-se um sonho moribundo, que não queremos deixar morrer. Para não o deixarmos morrer, começamos a ser cada vez mais agressivos com relação a tudo que o ameace. Já não ha bitamos mais o sonho, passamos a defendê-lo e nos tor namos escravos daquilo que esperamos a qualquer custo. Nisso, perdemos a liberdade. A pessoa nessa situação não se dá conta de que, as sim como é preciso habitar no sentido, como sonhadores, por outro lado, estamos destinados ao desenvolvimento, não podemos ficar parados lá atrás. Nós temos de nos desenvolver. O desenvolvimento não é uma opção nossa, assim como não o são o sentido e o habitar. Precisamos nos des-envolver, des-cobrir nós mesmos e o mundo. Isso faz parte do nosso destino, en tendido não como algo previamente definido e demar cado, como uma obrigatoriedade ou regido por uma causalidade férrea. Empregamos a palavra destino da U m a C a r a c t e r iz a ç ã o da P sic o t er a p ia 169
mesma forma como a encontramos na estação rodoviária
ou no aeroporto: "Atenção passageiros com destino a...". O que define o passageiro é o seu destino. Dessa mesma forma, também somos destinados a nos desenvolver na direção do horizonte para o qual caminhamos.
Somos destinados, mas podemos nos perder: pode
mos perder nossa morada no sentido, não saber o que fazer com a liberdade, sentir dificuldade para prosseguir em nossa direção. Nesses momentos é preciso cuidado... Talvez isso justifique termos dito, no início, que terapia é procura, é pró-cura, é para cuidar. Estamos chegando a poder dizer que terapia é a procura, via poiesis, pela verdade que liberta para a de dicação ao sentido. Somos todos lançados nesse processo que é a exis tência, pois recebemos a vida à revelia de qualquer de cisão própria. Podemos decidir sobre possibilidades de rumos diferentes que queiramos seguir, mas há uma coi sa que vale para todos nós: enquanto existimos, estamos destinados ao próprio desenvolvimento, habitando o sen tido ao qual nos dedicamos na efetivação da nossa liberda de, radicada na verdade que liberta e que nós procura mos. Às vezes, perdemos esse sentido e então temos, na terapia, pela via da poiesis, uma forma de reencontrá-lo. Í70 N a P r esen ç a d o S e n t id o
Não chegamos a urna definição precisa de psico-
terapia. A via que escolhemos percorrer vai em outra di reção. É como podemos falar de psicoterapia na perspec tiva da Daseinsanalyse que, em nosso caso, é o que está em nosso horizonte e destino profissional.