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UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA

O tema desta palestra é a psicoterapia. Ocorreu-me


abordar primeiro o que a terapia não é, antes de pensar
no que ela é. Parti de dois mal-entendidos que conside­
ro sérios.
O primeiro deles, extremamente freqüente, consis-
:e em considerar a terapia como o lugar para onde de­
vem se dirigir as pessoas culpadas de alguma coisa ou
que estão erradas de alguma forma. Vejamos um exem­
plo: alguém anda há tempo com dificuldade para dormir,
tenso, brigando com a mulher, porque com a substitui­
ção de seu chefe surgiram dificuldades de relacionamento
no trabalho. Quando lhe perguntam se ele não gostaria
de fazer uma terapia, ele responde indignado: "Eu, fazer
terapia? Quem tem que fazer terapia é meu chefe, que é
um louco, que não entende nada, que chegou onde está
por motivos políticos...".
Esse é um ponto de vista não só de leigos, mas também
de muitos psicólogos. E comum ouvirmos de terapeutas de
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crianças, frustrados com as dificuldades que a família


cria no tratamento, o seguinte: "Imagina, a criança está
ótima, quem precisa de terapia são os pais!". Nesse co­
mentário, podemos ouvir: "Os pais devem fazer terapia
porque eles é que estão errados". Do mesmo modo, no
trabalho com populações carentes, aparecem os comen­
tários: "Essas pessoas estão ótimas, quem precisa de te­
rapia é a nossa sociedade". Aí também podemos ouvir:
"Quem está errada é a sociedade, é ela que precisa de
terapia".
A terapia, entretanto, não é um recurso de repressão
social destinado a corrigir as pessoas que estão erradas,
que se julgam erradas ou que são julgadas erradas por
qualquer tipo de grupo.
O que temos a dizer diante desse mal-entendido é
que a terapia é um recurso para quem está, com grande
dificuldade, arcando com o peso de uma situação; al­
guém que, de alguma maneira, está "pagando o pato",
não importa se a situação foi motivada por ele mesmo ou
por outros.
O segundo equívoco é a consideração da terapia
como o lugar no qual são aprendidos os valores, as nor­
mas e mesmo as dicas que uma pessoa deveria seguir na
eventual solução de uma situação difídl. Acredito que esse
mal-entendido também é mantido, até certo ponto, por
nós, psicólogos, porque uma tal idéia coloca o terapeuta
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como aquele que possui o saber, que tem as informações


para a resolução de problemas.
Esse é um engano ainda mais lamentável do que o
primeiro, pois talvez o elemento mais fundamental do
trabalho de um terapeuta consista justamente no contrá­
rio: no fato de que "ele não sabe". Em geral, quando afir­
mo que o terapeuta precisa ter isso sempre presente,
pessoas que estudam muito me olham perplexas e di­
zem: "Bom, se é para não saber, por que fazer tantos tra­
balhos, ler tantos textos...?". Não é que não exista um
conhecimento psicológico; ele existe e sua aquisição é
importante, não tanto para que se trabalhe com ele, mas
porque o próprio processo de aquisição desse conhecimen­
to pode ser a ocasião de alguém se esforçar para aprender
a aprender, e isso é uma chave fundamental para o tra­
balho terapêutico.
Ora, afirmar que "não saber" é uma condição fun­
damental do terapeuta é deixar algo estranho no ar. Dian­
te disso, então, perguntamos: terapia é... o quê?

Lembro-me do primeiro encontro que tive com


Medard Boss, o psiquiatra suíço que desenvolveu a clí­
nica fundamentada na Daseinsanalyse. Naquela oportu­
nidade, ele fez uma observação que me deixou intrigado:
"No consultório, Freud era completamente diferente...".
Descobri então que estava conversando não com um
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estudioso de Freud — embora Boss também o fosse —,


mas com um paciente de Freud. Curioso, perguntei: "E
o que ele fazia no consultório?". Boss respondeu, brin­
cando: "Fazia Daseinsanalyse, não fazia Psicanálise".
Comecei a refletir que, afinal de contas, Freud iniciou
seu trabalho de terapeuta antes da formulação da Psica­
nálise, que passou a existir a partir do acúmulo de sua
experiência. Retornei à questão sobre o que Freud fazia
no consultório antes de ter elaborado a teoria psicanalí-
tica. Para me dizer o que Freud fazia então, Boss me fa­
lou: "Psicoterapia é procura".
A palavra procura me chamou a atenção, e percebi
que se abria um significado mais original quando a lia­
mos assim: pró-cura.
"Terapia é pró-cura", isto é, "terapia é para cuidar";
em latim, cura tem o significado de cuidar.
Fundamentalmente, então, terapia é procura. Mas
procura de quê?
No caso da terapia, aquilo que se procura não é algo
que vai acontecer lá no final do processo, mas algo que
se dá, passo a passo, através do modo como ela se realiza.
Esse "modo" constitui o próprio acesso ao "o quê" se
procura.

Pensemos no modo como se dá a terapia. O modo


diz respeito, basicamente, à linguagem que é fundamental
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na terapia. Qual é a via dessa linguagem? Seria uma via


intelectual?
Sabemos que o paciente, em geral, não precisa de
explicações racionais. Ele mesmo é crítico de seus sinto­
mas. Uma pessoa que se apavora quando vai falar em pú­
blico sabe que não há motivo para se sentir tão ameaçada.
Mas saber isso não diminui seu medo, parece que só faz
aumentá-lo. A verdade racional é impotente diante das
dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicula­
rizar a razão.
Não é pela via da razão que caminha a linguagem
da terapia.
A linguagem própria do diálogo entre terapeuta e
paciente tem uma outra via, para cuja compreensão é
importante introduzirmos aqui uma palavra grega, poiesis.
Esta significa não só poesia no sentido específico, como
também criação ou produção em sentido mais amplo.
No diálogo de Platão, O Banquete, encontramos:

— Como sabes, "poesia" é um conceito múltiplo. Em ge­


ral se denomina criação ou poesia a tudo aquilo que pas­
sa da não-existência à existência. Poesia são as criações
que se fazem em todas as artes. Dá-se o nome de poeta
ao artífice que realiza essas criações.1

1. P latão . (1999). Diálogos. Rio de Janeiro, Ediouro.


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Poiesis é um levar à luz, é trazer algo para a deso-


cultação.
A linguagem da razão, chamada em geral de lingua­
gem do conhecimento, também desoculta o que estava
oculto, mas de um modo diferente, de um modo que dá
explicações. Ela é própria das ciências, das teorias e mes­
mo de certas argumentações do cotidiano; ela, de certa
forma, garante ou "obriga" que alguém entenda o que
dizemos.
Com a linguagem poética é diferente. Esta pode apa­
recer na poesia propriamente dita, num texto em prosa,
num diálogo ou mesmo numa piada engraçada. A pia­
da não é para ser explicada.
Propomos que também a terapia acontece basicamen­
te na via da poiesis. A linguagem da terapia é poética.
Essa linguagem busca o interlocutor em seu espaço
de liberdade. Quando me expresso poeticam ente, o outro
não é obrigado a concordar comigo. Na verdade, não há
nenhuma razão para que ele o faça, e, no entanto, tenho
uma grande expectativa de que ele possa me compreen­
der, dentro da não-necessidade de compreender.
Nessa forma de linguagem, quando há compreen­
são, esta vem gratuitamente, emocionalmente e sem ne­
cessidade de argumentação mediada pela razão. Aqui
teríamos uma comunicação que ou se dá, ou não se dá.
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Nesse ponto encontramos uma discussão que é cara


para os psicólogos: a diferença entre explicação e com­
preensão. Considero que essa diferença está exatamente
no âmbito dessas duas linguagens: a explicação se arti­
cula na linguagem do conhecimento e a compreensão
acontece dentro de um diálogo na linguagem da poiesis.
No âmbito da linguagem da poiesis existe um risco:
eu nunca sei se o outro vai me compreender ou não. Se
ele me compreender, é como se ele me autenticasse; en­
tão, eu me sinto não só muito próximo dele mas também
da minha própria experiência que desejo expressar. Caso
contrário, em algumas circunstâncias, chego até mesmo
a perder de vista a minha experiência, como se ela se di­
luísse na incompreensão do outro. Em tal momento, pos­
so passar bruscamente de uma situação vivida como algo
precioso para uma outra, na qual me sinto terrivelmente
exposto, fragilizado. Às vezes, para descrever essa situa­
ção, usamos a expressão: "Eu fiquei ridículo". Descobri­
mos o quanto somos vulneráveis em nossa comunicação
e o quanto somos dependentes da disponibilidade do
outro. Quando o outro nos compreende, vivemos uma
experiência extremamente significativa. Quanto mais
delicada é a situação e mais pessoal o enunciado, maior
é a nossa necessidade de compreensão e mais difícil se
toma qualquer tentativa de explicação.
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Talvez isso nos permita compreender por que, às


vezes, a terapia pode ser tão difícil. A linguagem poética,
no dizer de Heidegger, faz com que nos sintamos "indi­
gentes", nus, pela própria natureza da linguagem.
Tínhamos dito antes que terapia é procura. Passa­
mos em seguida a perguntar pelo modo como ela se dá:
qual a via de sua linguagem? Podemos acrescentar agora:
terapia é procura através da linguagem da poiesis...

Mas procura de quê? É uma procura da verdade.


Essa palavra precisa ser pensada. Em português, ela
deriva do latim veritas, e tem a ver com o verificável,
aquilo que pode ser comprovado. Tal conceituação asso­
cia a perspectiva da verdade à linguagem do conheci­
mento. E certo que há uma dimensão da verdade que é
definida por sua comprovação, por sua verificabilidade.
Mas ela não é apenas o verificável. Como fazer para
aproximar, via poiesis, a questão da verdade? A palavra
grega aletheia pode ajudar, pois ela traz um outro senti­
do para a palavra verdade.
A letheia é formada por um prefixo de negação (a) e
por um radical (lethe ), que significa esquecimento. Aletheia
pode ser o "não esquecido".
Podemos nos aproximar da aletheia por uma via
poética. Não-esqueddo pode ser o recordado. Recordar
vem de um radical latino cor-cordis, que significa coração.
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Se lermos re-cordar, isso soa como se disséssemos algo


assim: colocar o coração de novo; aletheia, verdade — não
meramente o não-esqueddo, mas aquilo em que se pode
pôr de novo o coração.
Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão
do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente
aquelas coisas que já nos foram caras, que já foram coi­
sas do coração, mas que perderam esse vínculo em virtude
de dificuldades de comunicação, tomaram-se desgastadas.
Foram esquecidas, mas num esforço de procura, através
da linguagem poética, podemos reencontrá-las. Quando
isso acontece, encontramos uma verdade.
Uma verdade assim encontrada nunca é relativa.
Quando ela se manifesta, nós somos parte dela e não há
como relativizar isso. A verdade enquanto veritas, geral­
mente, é diluída no tempo, no contexto, nas estruturas
sociais ou culturais que suportam o enunciado da verdade.
Mas a verdade recordada, por ser uma verdade vivida,
já está sempre definida num lugar, naquele contexto úni­
co em que estamos.
Longe de ser uma verdade relativa, encontramos
aqui o sentido, talvez o mais arcaico, no qual a questão
da verdade se tornou uma real obsessão para o homem.
Reencontramos o momento em que a verdade é dada
praticamente como algo que nos envolve e do qual par­
ticipamos, de modo que tenhamos dela uma vivência
plena e absoluta.
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Mas por que uma pessoa quer a verdade?


Retomemos a questão da verdade desde que a hu­
manidade procura por ela. Nessa procura, a verdade está
sempre relacionada com libertação. Na Bíblia, nos mitos
em geral e mesmo no mundo da ciência, encontramos: a
verdade liberta. Nos mitos, a verdade revelada pela di­
vindade tinha o caráter de libertar o homem do jugo de
sua identidade com o restante da criação.
Na história de Édipo, a cidade de Tebas encontra-se
escravizada pela Esfinge, que só a libertará no momento
em que alguém puder desvendar seu enigma. Quando
ele consegue, por trás do enunciado obscuro, reconhecer
a verdade e responder ao enigma, a Esfinge se mata e li­
berta Tebas.
Quando a psicoterapia começa a nascer, reencontra­
mos a idéia da verdade libertadora: a descoberta da ver­
dade liberta o paciente do jugo do sintoma.
Podemos acompanhar uma quantidade enorme de
relatos nos quais terapeuta e paciente buscam juntos al­
guma forma de verdade que possa colocar o paciente
outra vez em liberdade; liberdade que foi perdida pela
doença, pela neurose, pela angustia ou pela culpa, e que,
ao ser reinstaurada, liberta.
Neste ponto, já podemos dizer: terapia é procura,
via poiesis, da verdade que liberta.
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É comum a impressão de que a liberdade é sempre


uma coisa boa, agradável. Mas em grande parte das ve­
zes ela não é sentida assim. Talvez um dos grandes mé­
ritos de Sartre tenha sido revelar o aspecto incômodo da
liberdade.
E por que a liberdade pode incomodar?
A questão da liberdade pode ser pensada de duas
formas.
A maneira mais comum de pensar é ligar a idéia de
liberdade com o tornar-se livre de alguma coisa. A preo­
cupação das pessoas, quando lutam por livrar-se de
algo, é completamente absorvida pelo de que elas que­
rem se libertar. Na hora em que finalmente encontram a
liberdade descobrem que, na luta por ela, apaixonaram-
se de uma maneira perversa por aquilo que impedia a
própria liberdade. A palavra perversa é usada aqui no
sentido de "pelo avesso", ou seja, as pessoas se apai­
xonam pelo avesso, pelas suas dificuldades. Assim, no
momento em que se vêem livres delas, em vez de se sen­
tirem realizadas e felizes, percebem que a liberdade é
fundamentalmente abandono, pois, livres de todo impe­
dimento, estão mais do que nunca sozinhas, desligadas
de todas as coisas e lançadas numa situação na qual se
sentem livres para coisa alguma.
Outro modo de pensar a liberdade é perguntar:
liberdade para qu ê ? Para buscar o quê? Quando, ao
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romper com aquilo que impedia a liberdade, reencontra­


mos um sentido, um para quê, começamos a compreender
onde está o lado positivo da liberdade. Não existe nada
mais agradável do que nos sentirmos plenamente liber­
tos para caminhar na direção de alguma coisa. A mesma
dimensão do abandono que nos deixa, de repente, joga­
dos no meio das coisas, deixa-nos livres para a dedica­
ção a algo. A liberdade é condição fundamental para que
possamos nos dedicar àquilo que pretendemos.
Mas mesmo esse lado positivo da liberdade, ou seja,
poder dedicar-se a um sentido, também pode ser incô­
modo, porque o sentido às vezes não está claro ou pare­
ce inatingível. A dificuldade, outras vezes, provém do
quanto de compromisso e trabalho a pessoa sente que
precisará ter para se dedicar ao sentido.

Vamos esclarecer o nosso emprego da palavra sen­


tido, visto que ela é sempre discutível, principalmente
quando queremos explicá-la através da linguagem do
conhecimento. Usamos essa palavra aqui em sua acepção
mais simples. Trata-se daquele sentido que, na hora em
que falta, todos nós sabemos de que se trata. É o sentido
primário, fundamental, a que nos referimos quando per­
guntamos: "Qual o sentido de nossas vidas? Qual o sen­
tido de estarmos aqui?".
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Algumas vezes na vida, passamos por situações


nas quais o sentido se perde. Há uma situação específi­
ca em que isso ocorre de forma drástica e intensa: o mo­
mento em que vivendamos a morte de um sonho. Essa
é uma experiência humana única, pois só os homens so­
nham. Referimo-nos ao sonho como expectativa, espe­
rança, perspectiva do desejo. Não só O homem é o único
animal que sonha como também, uma vez tendo con­
quistado o direito de sonhar, transformou o sonho em
seu valor mais alto.
A imagem do herói, em todas as épocas e culturas,
é sempre a imagem daquele que colocou o sonho acima
de tudo, até da conservação da vida e da preservação da
espécie.
Numa belíssima cena do filme 2001, uma odisséia no
espaço, um computador ultrapassa suas funções e come­
ça a enlouquecer. Impulsionado por uma grande aspiração,
pergunta ao cosmonauta: "Será que eu posso sonhar?".
Porque em sua perfeição técnica faltava o sonho.

Mas o sonho também morre, e quando isso aconte­


ce ficamos provisoriamente privados de sentido. Quan­
do tudo aquilo que esperamos, a que nos dedicamos, em
nome do que nos organizamos, morre, nossa vida morre
também. Nesse momento, vivemos duas experiêndas in­
terligadas. Ao mesmo tempo em que percebemos grande
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luddez e dareza, esta é absolutamente incompatível com a


ação, porque não há motivo para fazer coisa alguma.
A morte do sonho traz uma experiência muito forte
de solidão. Ao conversarmos com pessoas que vivem
o drama de uma solidão muito intensa, em geral, depa­
ramos com um sonho que morreu. Para tais pessoas, o
afeto, a preocupação, a proximidade dos outros apro­
fundam ainda mais sua solidão. É como se o amor e a
preocupação dos outros ao redor fossem absurdos e va­
zios, porque, sem o sonho, nada se articula, o sentido é
negado e não se tem como acolher e muito menos retri­
buir carinho.
Muitas vezes a pessoa carrega em si um sonho que
morreu, e ela não consegue abandonar e enterrar esse
sonho, pois isso é assustador. É assustador porque a de­
silusão com um amor ou um ideal dá a impressão de
que jamais ela poderá amar ou ter ideais de novo. Então,
ela se agarra ao sonho morto, e este a escraviza na con­
dição de ausência de sentido. Ela fica presa na falta de
sentido. É muito difícil nos aproximarmos da pessoa que
vive esse momento.
O fim de um sonho é uma das formas de perda do
sentido. Essa perda traz não apenas dor. A pessoa po­
de sentir que perdeu também exatamente o que fazia sua
existência ser digna de ser vivida. É como se ela se sen­
tisse ferida em sua dignidade. Desaparece o que tinha
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importância, e, nessas horas em que um sentido muito im­


portante da vida se desarticula, o perigo é que isso arraste
tudo o mais, num movimento que tende a esvaziar todas
as coisas de qualquer significado que ainda possam ter.
Na ausência de sentido, fica difícil viver. Mas se
a pessoa compreender que, embora sonhos se acabem, a
possibilidade de sonhar permanece, ela poderá restabe­
lecer um sentido.

Depois de abandonar um sonho morto, é hora de


começar a sonhar de novo; é hora de começar a habitar
um novo sonho.
Que é habitar um sonho?
Sabemos que somos frágeis; por isso, precisamos de
um lugar para morar. Isso vai além da concretude do lu­
gar, queremos habitar "em-casa".
Mas a necessidade de habitar ainda vai mais longe.
Dotados de linguagem, percebendo significados, e capa­
zes de sonhar, o precisar "estar-em-casa" tem uma am­
plitude maior. Precisamos habitar no sentido das coisas,
habitar nossos sonhos, que são os grandes articuladores
de sentido.
Quem já passou pela experiência de perder o senti­
do sabe o que isso quer dizer: chegar em casa e não ter
mais casa, só um espaço vazio.
Habitar no sentido é a possibilidade que procuramos.
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Na condição de seres que sonham e vêem seus so­


nhos morrerem, há uma situação muito angustiante que
se manifesta na tentativa desesperada de, ao sentir que um
sonho está acabando, querer preservá-lo de qualquer jeito,
acima de toda experiência. É a tentativa de radicalizar
o sonho por não admitirmos que nada o ameace. Assim, o
sonho já não é algo cheio de vigor, capaz de se confron­
tar e de se relacionar com as coisas; tornou-se um sonho
moribundo, que não queremos deixar morrer. Para não
o deixarmos morrer, começamos a ser cada vez mais
agressivos com relação a tudo que o ameace. Já não ha­
bitamos mais o sonho, passamos a defendê-lo e nos tor­
namos escravos daquilo que esperamos a qualquer custo.
Nisso, perdemos a liberdade.
A pessoa nessa situação não se dá conta de que, as­
sim como é preciso habitar no sentido, como sonhadores,
por outro lado, estamos destinados ao desenvolvimento,
não podemos ficar parados lá atrás.
Nós temos de nos desenvolver. O desenvolvimento
não é uma opção nossa, assim como não o são o sentido
e o habitar. Precisamos nos des-envolver, des-cobrir nós
mesmos e o mundo. Isso faz parte do nosso destino, en­
tendido não como algo previamente definido e demar­
cado, como uma obrigatoriedade ou regido por uma
causalidade férrea. Empregamos a palavra destino da
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mesma forma como a encontramos na estação rodoviária


ou no aeroporto: "Atenção passageiros com destino a...".
O que define o passageiro é o seu destino. Dessa mesma
forma, também somos destinados a nos desenvolver na
direção do horizonte para o qual caminhamos.

Somos destinados, mas podemos nos perder: pode­


mos perder nossa morada no sentido, não saber o que
fazer com a liberdade, sentir dificuldade para prosseguir
em nossa direção. Nesses momentos é preciso cuidado...
Talvez isso justifique termos dito, no início, que terapia
é procura, é pró-cura, é para cuidar.
Estamos chegando a poder dizer que terapia é a
procura, via poiesis, pela verdade que liberta para a de­
dicação ao sentido.
Somos todos lançados nesse processo que é a exis­
tência, pois recebemos a vida à revelia de qualquer de­
cisão própria. Podemos decidir sobre possibilidades de
rumos diferentes que queiramos seguir, mas há uma coi­
sa que vale para todos nós: enquanto existimos, estamos
destinados ao próprio desenvolvimento, habitando o sen­
tido ao qual nos dedicamos na efetivação da nossa liberda­
de, radicada na verdade que liberta e que nós procura­
mos. Às vezes, perdemos esse sentido e então temos, na
terapia, pela via da poiesis, uma forma de reencontrá-lo.
Í70 N a P r esen ç a d o S e n t id o

Não chegamos a urna definição precisa de psico-


terapia. A via que escolhemos percorrer vai em outra di­
reção. É como podemos falar de psicoterapia na perspec­
tiva da Daseinsanalyse que, em nosso caso, é o que está
em nosso horizonte e destino profissional.

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