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Avaliação funcional como

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ferramenta norteadora
da prática clínica
Jan Luiz Leonardi
Nicodemos Batista Borges
Fernando Albregard Cassas

Assuntos do capítulo
> Definição de avaliação funcional.
> Objetivos da avaliação funcional na clínica.
> Etapas da avaliação funcional.
> Elementos da avaliação funcional.
> Elementos “suplementares” para planejar a intervenção.

Avaliação funcional é a identificação das rela- compreensão do caso e que norteia a tomada
ções de dependência entre as respostas de um de decisões clínicas.
organismo, o contex- Uma avaliação funcional tem quatro
Avaliação funcional to em que ocorrem objetivos, a saber:
é a ferramenta
pela qual o clí‑ (condições antece-
nico analítico­ dentes), seus efeitos 1. identificar o comportamento­‑alvo e as con­
‑comportamental: in‑ no mundo (eventos dições ambientais que o man­tém;
terpreta a dinâmica
consequentes) e as 2. determinar a intervenção apropriada;
de funcionamento do
cliente que o levou a operações motivado- 3. monitorar o progresso da intervenção;
procurar por terapia ras em vigor.1 Ela é a 4. auxiliar na medida do grau de eficácia e
e que determina a in‑ efetividade da intervenção (Follette, Nau-
tervenção apropria‑
ferramenta pela qual
da para modificar as o clínico analítico­ gle e Linnerooth, 1999).
relações comporta‑ ‑com­portamental in-
mentais envolvidas
na queixa.
terpreta a dinâmica
de funcionamento > Etapas da
do cliente, a qual o levou a procurar por tera- Avaliação Funcional
pia, e que determina a intervenção apropria-
da para modificar as relações comportamen- A avaliação funcional de determinado com-
tais envolvidas na queixa. Em poucas pala- portamento pode ser dividida em cinco eta-
vras, é a avaliação funcional que permite a pas (Follette, Naugle e Linnerooth, 1999):
106 Borges, Cassas & Cols.

1. Identificação das características do cliente porque o comportamento é plástico e multi-


em uma hierarquia de importância clínica: determinado. Além disso, vale apontar tam-
levantamento das informações gerais da bém que alguma intervenção pode ocorrer
vida do cliente, tanto presentes quanto nas etapas iniciais, pois, muitas vezes, não é
passadas, o que inclui a queixa clínica e os possível interagir com o cliente sem que isso
possíveis eventos relacionados a ela. produza certa mudança. Por exemplo, algu-
2. Organização dessas características em prin‑ mas perguntas que o clínico faz com o intuito
cípios comportamentais: organização das de levantar informações podem, por si só, le-
informações coletadas na primeira etapa, a var ao aprimoramento do repertório de auto-
partir das leis do comportamento (apre- conhecimento do cliente.
sentadas na primeira parte deste livro), em
que são identificadas as contingências ope-
rantes e respondentes em vigor. > Elementos da
3. Planejamento da intervenção: planejamen- avaliação funcional
to de uma ou mais intervenções com o ob-
jetivo de modificar as relações comporta- Como foi apontado anteriormente, a avalia-
mentais identificadas na etapa anterior. ção funcional é o processo pelo qual o clínico
4. Implementação da intervenção: atuação clí- identifica as contingências relacionadas à
nica com o objetivo de modificar as rela- queixa do cliente, sendo que o objetivo final
ções comportamentais responsáveis pela de toda avaliação funcional é promover o pla-
queixa do cliente, que pode envolver os nejamento de uma intervenção que produza
mais variados processos (reforçamento di- a mudança comportamental desejada.
ferencial, modelação, instrução, etc.). O primeiro elemento a ser identificado
5. Avaliação dos resultados: análise dos resul- em uma avaliação funcional diz respeito às
tados que as intervenções produziram, o respostas envolvidas na queixa do cliente.
que inclui investigar se as novas relações Nesse momento, o clínico ainda não está
comportamentais se manterão no ambien- buscando pelos determinantes do com­por­
te cotidiano do cliente. Se os resultados ta­mento­‑alvo, mas apenas descrevendo o
não forem satisfató- que ocorre e como ocorre. Em geral, os pro-
A avaliação funcio‑ rios, a avaliação fun- blemas relativos a essa parte da contingência
nal de determinado cional deve ser reini- são excessos comportamentais (lavar as mãos
comportamento
pode ser dividida em ciada. compulsivamente, por exemplo), déficits
cinco etapas: comportamentais (falta de habilidades so-
1. Identificação das É importante ciais, por exemplo) e comportamentos inter-
características do
cliente em uma
observar que as eta- ferentes (dificuldade em iniciar uma intera-
hierarquia de im‑ pas apresentadas aci- ção social devido à maneira de se vestir, por
portância clínica; ma são divisões didá- exemplo).
2. Organização des‑
ticas que visam auxi- Em seguida, com base nos vários even-
sas característi‑
cas em princípios liar o clínico a orga­ tos relatados pelo cliente ou observados na
comportamentais; nizar seu trabalho. interação terapêutica,2 o clínico deve levantar
3. Planejamento da hipóteses sobre quais processos comporta-
Na prática, essas eta-
intervenção;
4. Implementação da pas ocorrem conco- mentais estão envolvidos nas respostas­‑alvo
intervenção; mitantemente ao lon- que compõem a queixa, que podem ser refe-
5. Avaliação dos go de todo o processo rentes a condições consequentes (reforçamen-
resultados.
de análise, sobretudo to, punição, extinção, etc.) e antecedentes
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(discriminação, operação motivadora, equi- de respostas – o que é designado pela literatu-


valência de estímulos, etc.). Para isso, o pro- ra de análise molecular (Andery, 2010). Toda-
fissional precisa identificar regularidades en- via, o clínico deve ampliar a avaliação funcio-
tre as diversas experi- nal englobando ou-
O profissional preci‑ O clínico deve
ências narradas pelo tros aspectos que ampliar a avaliação
sa identificar regu‑
laridades entre as
cliente ou vivencia- favorecem o planeja- funcional engloban‑
diversas experiên­ das na interação tera- mento da interven- do outros aspectos
cias narradas pelo que favorecem o
pêutica, sendo que, ção, como o históri-
cliente ou vivencia‑ planejamento da
das na interação
quando possível, es- co de desenvolvi- intervenção, como
terapêutica. sas relações identifi- mento do problema, o histórico de
cadas devem ser tes- a história de vida do desenvolvimento do
problema, a história
tadas, confirmando ou não suas existências. cliente não direta- de vida do cliente
Algumas perguntas favorecem o levan- mente relacionada à não diretamente
tamento de informações sobre as consequên- queixa e a análise relacionada à queixa
e a análise molar do
cias produzidas por determinada resposta, molar do funciona- funcionamento do
tais como “O que acontece quando você faz mento do cliente. cliente.
isso?”; “Se você não o fizesse, o que acontece-
Histórico de desenvolvimento do comportamento­
ria?”; “Como você se sente depois que age
‑alvo: consiste no levantamento de informa-
desta maneira?”. Outras perguntas contri-
ções sobre o desenvolvimento do problema, o
buem para a coleta de dados sobre os antece-
que permite ao clínico entender a constitui-
dentes, tais como “Quando você se comporta
ção da queixa e verificar as possíveis estraté-
assim?”; “O que você acha que te leva a agir
gias que já foram utilizadas e seus respectivos
(ou pensar) assim?”; “Como você estava se
resultados.
sentindo antes de fazer isso?”.
Outros recursos podem ser utilizados História de vida do cliente não diretamente re‑
além de fazer perguntas, como a observação lacionada à queixa: trata­‑se da coleta de dados
direta da interação terapêutica e a regularida- (mesmo que breve) acerca da história de vida
de (ou sua ausência) no discurso do cliente. do cliente, o que inclui seu desenvolvimento
Cabe ao clínico usar diferentes estratégias infantil, adolescência, relações familiares, re-
para levantar as informações necessárias para lações sociais e culturais, estudo, trabalho,
a formulação da avaliação funcional. ­hobbies, etc. A identificação dos recursos exis-
É essencial destacar que todo o clínico tentes na vida do cliente pode ser útil para o
deve ser versado nos aspectos filosóficos, teó- planejamento da intervenção.
ricos e empíricos da análise do comporta- Análise molar do funcionamento do cliente: con-
mento. É esse conhecimento que orienta o te- siste na avaliação dos impactos que o problema
rapeuta a formular perguntas, criar hipóteses clínico está causando no funcionamento glo-
e elaborar uma intervenção bem­‑sucedida. bal do cliente. Para o clínico abranger essa am-
plitude de análise, ele não deve se limitar às
questões tradicionais como “Quais são as res-
> Elementos “suplementares” postas que fazem parte da classe?”, “Em que
para planejar a intervenção contexto elas acontecem?”, “Quais são suas
consequências?”, “Com que frequência ocor-
Em geral, a ênfase da avaliação funcional re- rem?”, etc. Apesar da enorme importância de
cai sobre o efeito específico e momentâneo de tais questões, é fundamental incluir perguntas
variáveis ambientais sobre determinada classe como “De que forma as pessoas reagem aos
108 Borges, Cassas & Cols.

comportamentos do cliente, atualmente?”; “O de conduzir a avaliação funcional ao longo de


que aconteceria se estes comportamentos mu- todo este processo e apresentar os elementos
dassem?”; “O ambiente cotidiano do cliente que a compõem. Nos demais capítulos desta
pode prover conse­ seção do livro, o leitor poderá encontrar vários
Todo indivíduo
possui um repertório quências reforçadoras outros aspectos que merecem a atenção do clí-
comportamental para seu novo respon- nico analítico­‑comporta­men­tal.
vasto em que a alte‑ der?”, etc. (Borges,
ração de uma única
classe de repostas 2009). Todo indiví-
pode afetar todo o duo possui um reper- > Notas
sistema em diferen‑ tório comportamen-
tes graus, sendo 1. Há um longo debate sobre o termo mais apropriado
papel do clínico
tal vasto em que a al-
a empregar para se referir ao processo de identifica-
analisar os efeitos teração de uma única ção das relações de dependência entre uma classe de
de cada mudança a classe de respostas respostas, os estímulos antecedentes e consequentes
curto, médio e longo
prazos.
pode afetar todo o e as operações motivadoras. Alguns termos propos-
sistema em diferentes tos na literatura incluem análise funcional, avalia-
ção funcional, avaliação comportamental e análise
graus, sendo o papel do clínico analisar os efei- de contingências. Além disso, não há consenso
tos de cada mudança a curto, médio e longo sobre as práticas que esses termos representam (cf.
prazos. Neno, 2003; Sturmey, 1996; Ulian, 2007).
2. Um maior aprofundamento de como fazer isso
encontra­‑se nos demais capítulos desta seção do
livro.
> Considerações finais

O clínico analítico­‑comportamental analisa


os comportamentos funcionalmente, ou seja,
> Referências
examina como as relações entre o cliente e seu American Psychiatric Association. (2002). Manual diagnós‑
ambiente se constituíram e se mantêm. Desse tico e estatístico de transtornos mentais (4. ed., texto revisado).
modo, o clínico compreende os comporta­ Porto Alegre: Artmed.
mentos­‑alvo sem emitir julgamentos de valor Andery, M. A. P. A. (2010). Métodos de pesquisa em aná-
lise do comportamento. Psicologia USP, 21(2), 3133-42.
e sem recorrer a explicações metafísicas, pois Borges, N. B. (2009). Terapia analítico­‑comportamental:
entende que aqueles comportamentos foram Da teoria à prática clínica. In R. Wielenska (Org.), Sobre
selecionados na história de vida do cliente. comportamento e cognição (vol. 24, pp. 231-239). Santo
André: ESETec.
O planejamento e implantação da in-
Carr, E. G., Langdon, N. A., & Yarbrough, S. C. (1999).
tervenção são passos que sucedem à avaliação Hypothesis­‑based intervention for severe problem behavior.
funcional inicial. Não é aconselhável fazer In A. C. Repp, & R. H. Horner (Orgs.), Functional analysis
of problem behavior: From effective assessment to effective sup‑
qualquer intervenção sem que a primeira eta- port (pp. 9-31). Belmont: Wadsworth.
pa seja elaborada, sob pena de fracasso do Catania, A. C. (1999). Aprendizagem: Comportamento, lin‑
processo terapêutico. A intervenção só deve guagem e cognição (4. ed.). Porto Alegre: Artmed.
ocorrer quando se conhecer sobre qual(is) Cavalcante, S. N., & Tourinho, E. Z. (1998). Classificação
e diagnóstico na clínica: Possibilidades de um modelo
pedaço(s) da contingência será necessário in- analítico­‑comportamental. Psicologia: teoria e pesquisa,
tervir – operação motivadora, estímulo dis- 14(2), 139-147.
criminativo, classe de respostas, reforçador, Follette, W. C., Naugle, A. E., & Linnerooth, P. J. (1999).
etc. –, ou seja, quando o clínico souber qual é Functional alternatives to traditional assessment and diag-
nosis. In M. J. Dougher (Org.), Clinical behavior analysis
o “problema” que ocorre. (pp. 99-125). Reno: Context Press.
Este capítulo teve como objetivo explici- Leonardi, J. L., Rubano, D. R., & Assis, F. R. P. (2010).
tar as etapas do processo clínico, a importância Subsídios da análise do comportamento para avaliação de
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diagnóstico e tratamento do transtorno do déficit de aten- Skinner, B. F. (1977). Why I am not a cognitive psycholo-
ção e hiperatividadde (TDAH) no âmbito escolar. In Con- gist. Behaviorism, 5(2), 1-10.
selho Regional de Psicologia de São Paulo, & Grupo Inte- Sturmey, P. (1996). Functional analysis in clinical psychology.
rinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de Chichester: John Wiley & Sons.
crianças e adolescentes: Conflitos silenciados pela redução de
questões sociais a doenças de indivíduos (pp. 111-130). São Sturmey, P. (2008). Behavioral case formulation and inter‑
Paulo: Casa do Psicólogo. vention: A functional analytic approach. Chichester: John
Wiley & Sons.
Neno, S. (2003). Análise funcional: Definição e aplicação
na terapia analítico­-comportamental. Revista Brasileira de Sturmey, P., Ward­‑Horner, J., Marroquin, M., & Doran, E.
Terapia Comportamental e Cognitiva, 5(2), 151-65. (2007). Structural and functional approaches to psychopa-
thology and case formulation. In P. Sturmey (Org.), Func‑
Sidman, M. (1960). Normal sources of pathological beha- tional analysis in clinical treatment (pp. 1-21). Burlington:
vior. Science, 132, 61-68. Academic Press.
Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New Ulian, A. L. A. O. (2007). Uma sistematização da prática do
York: Free Press. (Trabalho original publicado em 1953) terapeuta analítico­comportamental: Subsídios para a forma‑
Skinner, B. F. (1976). About behaviorism. New York: Vin- ção. Dissertação de mestrado não publicada, Universidade
tage Books. (Trabalho original publicado em 1974) de São Paulo, São Paulo.

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