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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


Franco, Ruy Eduardo Debs
Artacho Jurado : arquitetura proibida / Ruy Eduardo
Debs Franco. – São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2008.

Bibliografia
ISBN 978-85-7359-676-2

1. Arquitetos – Biografia 2. Arquitetura 3. Arquitetura – His-


tória 4. Jurado, João Artacho, 1907-1983 5. Urbanismo I. Título.

08-01389 CDD-720.92
Índice para catálogo sistemático:
1. Arquitetos : Biografia e obra 720.92
RUY E D UA R D O DEBS FRANCO
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© Ruy Eduardo Debs Franco, 2008


SUMÁRIO(

Nota do editor, 7
Apresentação – Carlos A. C. Lemos, 9
Agradecimentos, 15
Introdução, 19
O movimento moderno na Europa: nascimento de uma nova arquitetura, 23
O modernismo no Brasil: Semana de Arte Moderna de 1922, 55
Jurado, 73
Conclusão, 315
Anexo – Depoimentos e textos sobre João Artacho Jurado, 319
Referências bibliográficas, 331
Índice geral, 335
NOTA(DO(EDITOR(
João Artacho Jurado, empresário do setor imobiliário que atuou no mercado pau-
listano e santista sobretudo na década de 1950, tornou-se polêmico em decorrência
das particularidades de seus projetos. Sem ser graduado quer em engenharia civil quer
em arquitetura, Artacho planejou e ergueu edifícios que contrariavam os preceitos de-
fendidos pelos profissionais da época. Tachado de excessivo no uso de elementos deco-
rativos com o intuito de causar impacto e conseguir vendas imediatas, Jurado não
descuidou, porém, de itens como espaço, luxo e conforto ao considerar o processo de
verticalização da cidade. Atento ao déficit de moradias ocasionado pela expansão do
município e à oferta de terrenos baratos em bairros de tradição nobre, Artacho proje-
tou condomínios residenciais que correspondiam aos desejos de ascensão social da
classe média emergente, o que garantiu o sucesso de seus empreendimentos.
Em Artacho Jurado: arquitetura proibida, o arquiteto Ruy Eduardo Debs Franco, ao
analisar a trajetória e o legado de Jurado, remete o leitor à história da capital paulista,
tema importante entre os segmentos publicados pelo Senac São Paulo.
Ao longo da produção do livro, lamentamos apenas que os acervos fotográficos de
época,de que são oriundas todas as fotos em preto-e-branco nele constantes,não tenham
proporcionado qualidade ideal para reprodução, embora entendamos que tal “imper-
feição” não comprometa o objetivo almejado.

8
APRESENTAÇÃO(
Quando, passada a metade do século XIX, o ecletismo se instalou definitivamente –
não o ecletismo nascido da convivência pacífica entre o neoclássico e o neogótico, mas
aquele caracterizado pela incontrolável miscelânea de estilos, tanto históricos como
inventados na hora –, não só a arquitetura foi colhida pelo gosto despoliciado, mas
também toda a produção de artefatos. Pela primeira vez, dentro da sociedade, a idéia
de beleza ou as apreciações estéticas cindiram-se contrariando a unanimidade anterior
advinda de um só julgamento crítico da coletividade. Agora, pensamentos diversos a
respeito do belo na vida cotidiana; discernimentos subjetivos. As variações passaram
de quantitativas para qualitativas na produção dos bens de consumo, inclusive na ar-
quitetura. Enfim, o ecletismo foi uma questão de firmação personalista de cada um na
multidão; somatório das criações ou dos gostos individuais. Um estado de espírito
voltado à liberdade de expressão através do uso livre e indiscriminado de milhares de
estilemas de estilos mil.
Tudo isso que aqui falamos está claramente à vista no catálogo da Grande Exposi-
ção Universal ocorrida na metade dos anos oitocentos em Londres, ocupando o inte-
rior do famoso Palácio de Cristal. Ali, todos, absolutamente todos, os produtos expos-
tos são profusamente decorados ou concebidos ostentando uma intenção de se distinguir
dos demais. Nenhuma forma pura, nenhuma superfície lisa. Até as lâminas das facas
possuíam adornos em baixo-relevo. Naqueles dias de euforia vitoriana estendida ao
resto do mundo, facilmente se aliou a idéia de rebuscamento ornamental à riqueza e ao
luxo: um simples copo d’água cilíndrico de vidro transparente era pobre e feio, desti-
nado ao proletariado. E a classe média, em seu latente anseio de escalada à classe rica,
foi contemplada com uma produção industrializada de bens de consumo imaginada a
partir dos modelos próprios dos ricos. Os bons investidores e negociantes, muito antes
de Freud, perceberam, então, o modo de cativar e vender à população bens elaborados
à maneira da produção da classe dominante. Tiveram êxito. É incrível, esse ecletismo
empolado existe até hoje, queiram ou não queiram os arquitetos modernos em busca
da primazia de seu posicionamento conceitual. Os incorporadores imobiliários esper-
tamente se aproveitaram disso. João Artacho Jurado foi um deles, há mais de cinqüenta
anos.
Em São Paulo, logo depois da Segunda Grande Guerra, deu-se início à verticaliza-
ção da cidade mercê da enorme demanda de habitações, sobretudo devido às conse-
qüências da Lei do Inquilinato, vinda desde 1941, com efeitos progressivos até a exas-
perante situação daqueles dias pós-armistício. Alguns empreendedores dominavam o
mercado de imóveis, e cada qual, desejando superar a concorrência, procurava ofere-
cer, mormente em apartamentos em condomínio, soluções arquitetônicas cativantes
em terrenos bem situados. João Artacho Jurado e seu irmão, donos da construtora
então chamada Monções, tiveram um estratégia inusitada: ofereciam o luxo à venda.
Jurado tinha uma idéia própria do que fosse luxo e de como expressá-lo. Não premedi-
10
tou meios de expressão; simplesmente, como se fosse um expositor no Palácio de Cris-
tal cem anos antes, materializou no concreto armado, nas pastilhas coloridas, nos gra-
dis, nos espelhos, nos mármores e granitos polidos, nas sancas de gesso, nos elementos
vazados de argamassa armada tudo aquilo que sinceramente achava bonito numa esté-
tica própria saída de sua vivência projetando exposições e lidando com seus visitantes
embasbacados. Com toda a liberdade que o ecletismo sempre permitiu, ofereceu à clas-
se média o seu conceito singular do que fosse belo e luxuoso. Houve nisso até uma dose
de astúcia – seus concorrentes não se atreveriam a copiá-lo. Ficou o dono do mercado
do mau gosto, esplendoroso, como dizia Eduardo Corona.
Jurado pensava grande e, daí, seus programas de edifícios grandiloqüentes, não só
nas proporções dos apartamentos, mas nas instalações comunitárias dos condomínios,
como piscinas, playgrounds, salas de jogos, salões de festas, salas de música, solários nas
coberturas e dependências várias para o lazer, sobretudo das crianças. No quadro da
arquitetura paulistana foi um personagem à margem, o que não impediu, no entanto,
seu inesperado êxito. Esse homem é o tema deste livro tão bem imaginado e escrito
pelo arquiteto Ruy Eduardo Debs Franco. Entretenham-se, que vale a pena.

Carlos A. C. Lemos

11
À memória de meu pai.
Agradecimentos
Alberto Botti, Alberto Fernando Xavier, Claudio Zeiger, David G. Lopes, Diva Artacho
Jurado, Eloiza Helena Rodrigues, Gegê Leme, Giancarlo Gasperini, Gilda Collet Bruna,
Irineu João Simonetti, Isabel Maria Macedo Alexandre, João Kon, José Carlos Silvares,
José Geraldo Simões Júnior, José Teixeira Neto, Lourdes Valente de Almeida e Silva, Luci-
la Mara Sbrana Sciotti, Luiz Guasco, Lydia Debs Franco (in memoriam), Lydia Young
Franco, Manuel Felix Vila Asorey (in memoriam), Marco Aurélio de Moraes Artacho,
Maria Dirce Duarte, Márcio Mazza, Maria Helena de Moraes Barros Flynn, Maria The-
reza Artacho d’Almeida Eça, Marilu Tassetto, Miguel Franco (in memoriam), Milton
Martins de Lara Júnior, Patrícia Regina Gomes de Lima, Roberta Martins, Sergio Teper-
man, Simone Iwai, Talita Duarte França, Tânia Fragoso, Thomas Young Franco, Vera
Lúcia Debs Souto, Vitor Alexandre da Silva, Wagner Tamanaha.
Fundação Arquivo e Memória de Santos, Hemeroteca Municipal de Santos, Associação
Viva o Centro, Condomínio Edifício Louvre.
Desde(o(aspecto(formal(até(serem(marcos(referenciais(na(paisa@(
gem,(os(edifícios(de(Jurado(apresentam(uma(visão(urbana.(Ela(se(
inicia(no(pavimento(térreo,(de(uso(coletivo(e(múltiplo,(estende@se(
na(implantação(do(corpo(edificado(e(na(sua(relação(com(o(entor@(
no,parafinalmentenascoberturas@mirantespresentearousuário(
com(um(cenário(real:(a(urbe.(
Gegê(Leme
INTRODUÇÃO(
Este trabalho apresenta a obra arquitetônica do paulistano João Artacho Jurado
construída nas cidades de São Paulo, Campinas e Santos, no período compreendido
entre as décadas de 1940 e 1970. Para tanto, proporcionou-se uma visão panorâmica
das realizações de Jurado, abrangendo todos os temas que compuseram sua eclética
produção, desde o início de sua carreira profissional, como projetista de estandes para
exposições e feiras no Parque Antártica em São Paulo, passando pelos edifícios de ou-
tras cidades paulistas e chegando até o seu mais significativo trabalho, o Edifício Bre-
tagne.
Sua trajetória na arquitetura começa a ser digna de registro com a grande obra no
bairro do Brooklin Paulista, em meados dos anos 1940, que envolveu a construção de
260 casas (conforme consta na capa do folder de vendas) destinadas à classe assalariada
de São Paulo.
O destaque foi dado a sua produção arquitetônica, que se registrou principalmente
na cidade de São Paulo e, em menor proporção, na cidade de Santos, onde ela atendeu
tão-somente aos anseios dos mercados imobiliários dessas urbes. Seus prédios se tor-
naram referências naquelas cidades, sobretudo pelas ótimas implantações e pelo estilo
de arquitetura, muito próprio e sem apego às regras do modernismo, embora com
citações constantes daquele importante movimento, que caracterizou e notabilizou a
arquitetura nacional por décadas. Ao todo foram observados e fotografados catorze
edifícios altos, além de casas e vilas, dos quais, em alguns casos, foi possível obter as
plantas e imagens de época e que estão “espalhados”, basicamente, por dois bairros
paulistanos – Centro e Higienópolis – e na orla da praia da cidade de Santos.
Esta obra está dividida em duas partes: a primeira procura enfocar de modo genera-
lizado o que foi a história da arquitetura moderna no mundo e no Brasil – associando-
a aos movimentos paralelos que contribuíram para a concretização do modernismo –
com o objetivo de contextualizar o trabalho de João Artacho Jurado. A segunda tratará
especificamente da obra de Jurado.
Durante a pesquisa, foram levantados aspectos inusitados de sua produção arquite-
tônica, além de algumas realizações totalmente desconhecidas do público em geral,
sobretudo no início de sua carreira, quando se dedicou a projetar e construir feiras
industriais e amostras nas cidades de Santos, Campinas e São Paulo, em fins da década
de 1930. Nesse período, Jurado pôde se aproximar de pessoas influentes, como os polí-
ticos Ademar de Barros e Fernando Costa, que foram interventores federais no estado
de São Paulo durante o Estado Novo, época da ditadura de Getúlio Vargas (Barros, de
1938 a 1941, e Costa, de 1941 a 1945), e do proeminente economista e empreendedor
santista Roberto Simonsen, ex-senador por São Paulo.
Reconhecidamente autodidata, Jurado conquistou a admiração das pessoas – de-
senvolvendo teorias sobre o conforto e o lazer comunitário dentro de alguns edifícios
que realizou – e, ao mesmo tempo, o ódio e o desprezo de parte dos arquitetos paulis-

20
tas, sobretudo os defensores do modernismo como uma corrente viva dentro da práti-
ca e do ensino de arquitetura.
Sem formação técnica ou diploma de curso superior – sua única fonte de erudição
e refinamento eram os 2 mil discos de música lírica que possuía e o hábito de fumar
charutos –, foi em vida, e mesmo depois de morto, ridicularizado na imprensa espe-
cializada por catedráticos e profissionais,que classificaram a sua obra como uma ameaça
aos cânones do modernismo – ainda que Jurado tenha se servido à vontade de dogmas
modernistas, fazendo referências aos grandes mestres da arquitetura nacional e inter-
nacional, produzindo cópias com sotaque anárquico.
Este livro propõe-se – com textos atuais, recortes do que foi publicado na imprensa da
época e imagens feitas no passado por fotógrafos contratados pela Construtora e Imobi-
liária Monções, cuja propriedade Jurado dividiu por quase vinte anos com seu irmão
caçula, Aurélio – a fazer não uma biografia, mas um apanhado abrangente do que foi a
polêmica obra arquitetônica de Jurado, realidades que muitas vezes se misturam.
Alguns documentos e fotos não têm registro de data, autoria ou lugar, o que leva à
conclusão de que, sendo cópias de negativos, não chegaram a ser catalogados. Além das
imagens, foi especialmente colhido o depoimento de uma pessoa que conviveu, de
1951 a 1967, lado a lado com Jurado. Essa pessoa é Irineu João Simonetti, que ocupou
os cargos de diretor de vendas e, depois, diretor-gerente da Construtora e Imobiliária
Monções e que, atualmente, reside na cidade de Pariqüera-Açu, interior de São Paulo.
Além de Simonetti, foram entrevistados cinco arquitetos de formação com importan-
tes e convergentes opiniões sobre a obra de Jurado:
· Giancarlo Gasperini, arquiteto que, naquele período, também vinha produzindo
referências arquitetônicas para o mercado imobiliário paulistano, com expressi-
vas obras na cidade de São Paulo, contemporâneas às de Artacho;
· Sérgio Teperman, arquiteto que, em 1989, publicou na revista A&U, no 26, edi-
ção muitas vezes cotejada, como adição a uma matéria sobre Jurado, um polêmi-
co texto analisando a totalidade de sua obra;
21
· João Kon, o Zeca, que produziu duas centenas de edifícios altos na cidade de São
Paulo, contemporaneamente e depois da Monções;
· Alberto Botti, que executou um empreendimento vendido por Jurado a um gru-
po paulistano; e, por fim,
· Maria Eugênia França Leme, ou Gegê Leme, arquiteta que, com seu trabalho de
conclusão de curso,1 além de um pequeno livro feito em conjunto com o jorna-
lista santista Paulo Matos, tornou nítida, com sua exposição, a intenção de Jura-
do de produzir boa arquitetura.
A principal expectativa com relação à pesquisa fixou-se, principalmente, na possi-
bilidade de reflexão sobre a totalidade da obra de Artacho Jurado, visto que poucas
vezes foi objeto de matérias publicadas. Ademais, suas realizações foram pouco anali-
sadas, isoladamente, em periódicos especializados, e, ainda, nesses casos sem a visão de
conjunto que este trabalho ora proporciona. De fato, o inventário desses projetos pôde
contribuir acentuadamente para o entendimento da arquitetura, que chamaremos sub-
jetiva, de Jurado, voltada especialmente para edifícios plurifamiliares.

1
Apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 1994.

22
O(MOVIMENTO(MODERNO(NA(EUROPA:(
NASCIMENTO(DE(UMA(NOVA(ARQUITETURA(
Para entender onde começa a arquitetura moderna, é preciso admitir a Revolução
Industrial, ocorrida na Inglaterra, como o fator que mais influenciou seu aparecimento.
O século XVIII foi profícuo em novos inventos. Uma onda de novas propostas, res-
pondendo a estímulos generalizados, manifestava-se em largas regiões das ilhas britâ-
nicas. Como conseqüência, não demorou muito para aparecerem as máquinas. É nesse
instante decisivo da história, quando se inicia uma revolução no mundo da produção,
passando a girar em torno das nascentes instalações industriais, que o ser humano
abandona a pequena manufatura e engaja-se na grande empresa que, num ritmo fe-
bril, passa a incrementar exponencialmente o que hoje se conhece como produtividade.

23
Os arquitetos, alheios ao movimento social gerador das transformações político-
econômicas que então começavam, seguem com seus projetos e obras neoclássicas,
tendência que em breve desaparecerá, dando lugar a uma postura que favorecerá o
neogótico. É a partir do confronto com o neoclássico – estilo artístico que tenta resga-
tar os elementos arquitetônicos e formais das edificações greco-romanas, característi-
cos da arquitetura clássica – que começam a proliferar obras com características não só
góticas, mas também bizantinas e manuelinas, de estilos, aliás, que alcançam grande
prestígio.
Essa era, com maior ou menor intensidade, a arquitetura oficial em todos os países.
Para constatá-lo, basta observar os edifícios públicos de então e a pouca influência que
sofrem da industrialização.
Não se constroem edifícios especialmente projetados para serem fábricas, mas er-
guem-se amplas naves como estufas, em que a luz penetra com abundância, adotando-
se, para isso, materiais correntes como o vidro, a pedra, o azulejo e, para vencer os
grandes vãos, vigas de madeira com artefatos de fundições.
O ferro até aquele momento era usado como elemento de decoração, ou seja, não
tinham sido descobertas as infinitas possibilidades de utilizá-lo na construção com
inteira liberdade, em armazéns e indústrias, por exemplo.
Mas, com o tempo, a indústria foi abrindo uma extraordinária perspectiva para a
arquitetura, à qual seria dado desempenhar um novo papel social, utilitário e, por con-
seguinte, sincero em relação a ela mesma. Paralelamente a esse processo, que se passava
mais no plano tecnológico, na Europa, consolidava-se um nível de vida melhor, esti-
mulando um novo olhar sobre todos os aspectos da cultura, que iria abranger mais
setores da vida material, atraindo um número cada vez maior de pessoas. Com isso,
uma outra arquitetura, pretendendo ser livre de todo tipo de preconceitos, podia surgir.
Registra-se assim a grande contribuição dos engenheiros à migração dos arquitetos
à nova arquitetura, ainda não chamada“moderna”.“A influência do arquiteto começou

24
há muito a declinar, e o engenheiro, l’hômme moderne par excellence, começa a substi-
tuí-lo.”1
Foram eles que apontaram a direção, mostrando aos arquitetos que havia de fato
algo de novo no ar, que deveria ser experimentado e desenvolvido, principalmente em
termos de materiais. Com a chegada desses novos materiais, que traziam numerosas
vantagens e facilidades antes desconhecidas, a arquitetura teria de mudar seu modo de
expressão.
Segundo Matthew Digby Wyatt (1820-1877), arquiteto e crítico das construções que
passavam a utilizar o ferro, em artigo publicado no Journal of Design, em 1905, “tor-
nou-se difícil saber onde acaba a engenharia civil e começa a arquitetura. As novas
pontes de ferro contam-se entre as maravilhas do mundo novo”.2
Ao mesmo tempo, os estilos em voga começam a perder sentido quando se conside-
ra que a indústria pode obter, com grande facilidade e economia, os adornos, objetos
de decoração, as formas e modelos que se projetavam. Nesse momento de triunfo da
técnica, proporcionada pela industrialização, o modo pelo qual as novas construções
são vistas é cercado de confusão quanto ao sentido e significado dessa nova arquitetu-
ra, logo dotada de muitos e inusitados elementos para expressar-se.
As construções surgidas no bojo da Revolução Industrial tiveram a grande virtude
de despertar na opinião pública um absoluto descontentamento com os padrões cons-
trutivos vigentes, em desacordo com a realidade daquela sociedade. De fato, o gosto da
burguesia de então exigia uma arquitetura anacrônica, pois baseada em estilos passa-
dos, aos quais se reduzia.
Assim, o movimento pela manutenção do passado versus o “moderno” em ascensão
soava como um contra-senso ante o emprego racional dos novos materiais, em que
estavam implícitos outros conceitos de beleza. Podia-se notar o início de um estilo

1
Anatole Baudot, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno (São Paulo: Martins Fontes, 1947), p. 35.
2
Matthew Digby Wyatt, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 117.

25
original, do qual alguns arquitetos, percebendo isso e negando os estilos consagrados
pelas gerações anteriores, faziam-se arautos. É importante observar as afirmativas do
arquiteto e escritor norte-americano Russel Sturgis (1836-1900):

Todos os estilos conhecidos foram mais ou menos desacreditados pelo uso impróprio
que padeceram às mãos da nossa geração e da que imediatamente a precedeu [...] os
estilos antigos muito simplesmente não se adaptam a nós, e temos de os pôr de parte [...]
tudo correria melhor se os arquitetos fossem autorizados durante algum tempo a cons-
truir edifícios muito simples. Quando os arquitetos passarem a recorrer apenas, como
fontes de efeito arquitetônico, ao edifício, à construção e ao uso dos materiais, então será
possível que surja um novo e admirável estilo.3

Ficou claro, naquele momento, que algo estava acontecendo e espalhava-se depressa
em todas as direções, notadamente na pintura e na escultura, que já vinham receben-
do, desde antes de 1900, contribuições de artistas como Auguste Rodin (1840-1917),
Vincent van Gogh (1853-1890), Henry Marie Raymond de Toulouse-Lautrec (1864-
1901). Eles, que muito antes se revoltaram contra tudo o que representasse as reminis-
cências das academias ou dos museus, iniciaram uma guerra aberta e franca contra o
gosto convencional do público daquele final de século XIX. Perseverantes e decididos
em sua empreitada, não foram compreendidos imediatamente, e somente o tempo
lhes daria razão, independentemente da glória, que só alguns deles puderam experi-
mentar.
Em vista dessas tendências inovadoras, a sensibilidade do trabalho na pintura dava
freqüentemente origem a teorias e correntes estéticas que, em alguns casos, a arquite-
tura assimilava em suas obras, ainda que demorasse algum tempo: “[...] mas os pinto-
res fizeram a ruptura antes dos arquitetos. Impõe-se, portanto, uma referência à revo-

3
Russel Sturgis, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 31.

26
lução na pintura antes de continuarmos o estudo da evolução arquitetônica e decora-
tiva [...]”.4
De fato, devemos fazer referência também às grandes feiras universais, instaladas no
final do século XIX e início do século XX, pois foi com elas que a Europa pôde tomar
contato com as novidades no ramo da construção. Naqueles grandes eventos interna-
cionais, os arquitetos puderam ver, por exemplo, as magníficas experiências com a
introdução de abóbadas em edifícios, mercados, estações. Experiências de novos espaços
que iam se erguendo paulatinamente, gerando uma arquitetura sem nenhuma monu-
mentalidade, despida de todo ornamento e que, finalmente, atendia a seus propósitos.
Inaugurava-se, então, um período muito fértil de inovações estimuladas por feiras
industriais pela Europa e por outras regiões importantes do mundo ocidental, período
que lançava a arquitetura em suas novas e mais decisivas metas.
Na Grande Exposição de Londres, de 1851, destacou-se o amplo Palácio de Cristal,
projetado em apenas dez dias pelo engenheiro e projetista de estufas, sir Joseph Paxton
(1801-1865).
Tratava-se de uma imensa estrutura metálica construída com vidro, madeira e fer-
ro, e montada, em menos de quatro meses, sobre pilares de ferro fundido e aço. Essa
obra durou cerca de 85 anos, até 30 de novembro de 1936, quando foi destruída por
um incêndio. Outra exposição de grande envergadura, não só pela qualidade e quanti-
dade de objetos industrializados, foi a Exposição Universal de Paris, de 1889, para a
qual foi montada a Torre Eiffel, de 204 metros de altura.
Destacou-se ainda nessa feira a grande Galeria de Máquinas, ou Halles des Machi-
nes, do arquiteto francês Louis Dutert (1845-1906), um extenso recinto medindo
410 m de comprimento, 105 m de largura e 45 m de altura, que, somado à Torre Eiffel,
resumia toda a lição obtida com as novas técnicas desde o início da Revolução Industrial.

4
Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 70.

27
Se, de um lado, havia a consagração da engenharia, retratada em suas feiras, de
outro, havia a inquietude reinante entre alguns arquitetos. Como exemplo disso, há a
curiosa história da Feira de Chicago, uma cidade com grande força econômica já na-
quela época.
Inaugurada em maio de 1893 (ficou aberta até outubro desse ano), a Feira e Expo-
sição Mundial de Colombo, também conhecida como Feira Mundial de Chicago, foi
realizada com a intenção de registrar o quadringentésimo aniversário da descoberta da
América. Teve o objetivo adicional de mostrar ao mundo que Chicago renascia das
cinzas do grande incêndio que havia destruído boa parte da cidade em 1871. Registra-
se nessa feira um fato curioso: por influência do grupo organizador, determinou-se
aos participantes o estilo de projetar e construir seus pavilhões, que deveria ser o clás-
sico, e somente um arquiteto contestou tal rigidez.
Foi um arquiteto norte-americano, chamado Louis Henry Sullivan (1856-1924),
quem daria o tom dissonante à feira ao projetar o pavilhão do Palácio dos Transportes,
que destoava de todas aquelas arquiteturas monumentais. Criaria com isso um marco
na história da arquitetura norte-americana em direção ao modernismo. É desnecessá-
rio dizer que Sullivan foi incompreendido e severamente criticado pela organização da
feira e pela opinião pública da época. A razão daquela atitude dissonante era que, para
Sullivan,“a forma segue a função!”. Esse slogan tornou-se, depois, o hino da arquitetura
moderna.
Voltando à Europa, o momento revelava-se contagiante, com figuras de renome
despontando no cenário local. Já em fins do século XIX, mais precisamente em 1898,
encontra-se um talentoso e influente arquiteto holandês, Hendrix Petrus Berlage (1856-
1934), que, embalado e atento à ressonância dos movimentos artísticos e de arquitetu-
ra das novas técnicas e práticas construtivas, projeta e executa o edifício da Bolsa de
Amsterdã, usando o ladrilho, material muito recorrente na Holanda. Dessa forma, o
prédio da Bolsa de Amsterdã constituiu a primeira tentativa de ruptura arquitetônica

28
com as obras clássicas, pois abriu caminho para o que ficou conhecido posteriormente
como racionalismo construtivo.
Por causa dessa obra, Berlage destaca-se nos meios arquitetônicos de então e, ante a
conseqüente agitação intelectual, social, econômica e artística da época, é reconhecido
como “o homem capaz de definir o verdadeiro traçado da nova arquitetura”.5 É dele a
frase que resume o sentido da corrente do pensamento na qual se abrigam as novas
construções: “A arquitetura da Idade Média é uma arquitetura que é uma pura arte de
utilidade”.6 Nesse sentido, e de acordo com essa afirmação de Berlage, pode-se dizer
que a fase embrionária da arquitetura moderna já havia surgido na Idade Média, pois
ali encontramos o gótico, estilo com pouco adorno.
Houve, todavia, em alguns países, profissionais que negaram a utilização tanto dos
avanços arquitetônicos proporcionados pelos novos materiais como de tudo que esti-
vesse ligado à produção industrial.
Na Inglaterra, os representantes dessa mentalidade foram principalmente William
Morris (1834-1896) e John Ruskin (discípulo de Morris). Este, por sua vez, dizia: “A
ornamentação é o elemento principal da arquitetura. É aquele elemento que confere a
um edifício determinadas características sublimes ou belas, mas que fora disso é desne-
cessário”.7
Com isso, Morris e Ruskin promoveram uma intensa campanha de oposição ao
“maquinismo” e ao desenvolvimento dos métodos construtivos, procurando resgatar
o trabalho dos artesãos, o que, em outras palavras, significava a volta da arte aos con-
ceitos medievais de produção artística. Morris acreditava que o trabalho desenvolvido
pelo ser humano, necessariamente, tinha de ser produzido pelas suas mãos, único re-
quisito que poderia conferir-lhe autenticidade e, sobretudo, amor.

5
Ibid., p. 35.
6
Hendrix Petrus Berlage, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 35.
7
John Ruskin, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 21.

29
Esse movimento foi batizado de Arts and Crafts, e teve considerável mérito ao pro-
por uma construção racional e orgânica (ainda que gótica). Mais tarde Morris, a partir
de uma perspectiva sociológica, chamaria a atenção para os problemas dos “frios blo-
cos” de habitação, que abrigavam as pessoas em edifícios nos quais os ornamentos
eram considerados desnecessários.
Com esse apelo a um espírito estético do passado, surgem na pintura a fase pré-
rafaelita e na arquitetura o chamado “estilo moderno”, que nada mais eram do que
uma tendência artística apoiada em um sistema decorativo cuja atitude geral consistia
em abusar de flores rebuscadas (como arabescos) e motivos vegetais. Esse estilo teve
características específicas de país para país, mas a essência foi a mesma em todos os
casos. Na Inglaterra, chamava-se modern style ou liberty, na França e Bélgica, art nou-
veau, e, na Espanha, modernismo.
O modernismo, assim, prescindiu de todas as formas clássicas, tão criticadas e des-
denhadas pelos arquitetos daquela época, mas manteve os motivos florais na decora-
ção. Pode-se dizer, em resumo, que esse movimento era contrário às linhas retas e à
ausência de ornamentos.
Na Europa, por volta de 1900, o ambiente era de efervescência – mas uma eferves-
cência provocada não apenas pelo advento de inovações tecnológicas decorrentes da
industrialização. Com o futurismo, houve, é claro, uma grande onda ufanista, motiva-
da por essas inovações tecnológicas, e que se manifestou sobretudo na apologia à má-
quina e à indústria, e até à própria guerra, que todos sabiam iminente.
Ao mesmo tempo, no entanto, havia um clima de profundo pessimismo e insatisfa-
ção diante da não-concretização dos ideais da Revolução Francesa: onde estariam a
igualdade, a liberdade e a fraternidade geradas pela nova ordem burguesa? Afinal, em
1789, a burguesia havia contado com o apoio da classe operária, que esperava ter seus
anseios atendidos – e que, em vez de ser ouvida, foi posteriormente desprezada.
No plano político, vivia-se, no início do século XX, o clima da “paz armada”, decor-
rente das acirradas disputas territoriais entre os países europeus, não só na própria
30
Europa – especificamente, na Alsácia e na Lorena, reclamadas pela Alemanha e pela
França –, mas principalmente na África e Ásia, as novas fontes de matérias-primas.
Além disso, pairava no ar um clima de ruptura de padrões. Havia uma classe operá-
ria se organizando para lutar contra uma ordem que só perpetuava a pobreza, haja
vista a Comuna de Paris (1852) e a subseqüente Revolução Russa (1917).
Assim, arquitetos e artistas estavam em busca de formas mais coerentes com a at-
mosfera reinante. Como conseqüência imediata dessas tensões, despontam respostas
que acabam por gerar o modernismo, que experimenta seu apogeu em 1900, com a
Exposição de Paris.
Naquele momento, os arquitetos Henry van de Velde (1863-1957), Victor Horta
(1861-1947) e Antoni Gaudí (1852-1926) são as figuras mais proeminentes do movi-
mento. Os três projetam obras representativas e revolucionárias, cuja expressão ro-
mântica e em desconformidade com as linhas clássicas, então em voga, dava a essa
arquitetura um caráter intelectual, porém carente da vitalidade que os recentes mate-
riais ofereciam. Não havia dúvidas de que, na Europa, o interesse pelos novos materiais
e novos métodos construtivos era muito grande; entretanto, isso não impediu o surgi-
mento de escolas com tendências opostas ao estilo moderno.
Reforçando esses métodos, Otto Wagner (1841-1918), arquiteto austríaco, funda,
com outros colaboradores, a escola de Viena, tendo como parâmetro a observação de
que, para Otto, “todas as formas modernas devem estar em harmonia com [...] as no-
vas exigências de nosso tempo. Nada que não seja prático poderá ser belo”.8
Com essa linha de pensamento, a escola de Viena dá a pista certa para que se inves-
tigue o processo evolutivo da arquitetura moderna. Seus colaboradores nesse projeto
foram Josef Hoffmann (1870-1955), Adolf Loos (1870-1933) e Josef Maria Olbrich
(1867-1908), todos partidários convictos do movimento moderno. Loos, em particu-
lar, imbuído de um racionalismo construtivo, segundo o qual a simplicidade, a elegân-

8
Otto Wagner, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 33.

31
cia e a redução dos meios expressivos marcaram o amadurecimento da arquitetura,
afirmava que “a beleza pura de uma obra de arte individual é aquele ponto em que ela
atinge a utilidade e a harmonia de todas as partes umas com as outras”.9
Diziam-se, ainda, inimigos declarados de todo excesso decorativo, e a favor da ob-
tenção da beleza por meio de um jogo hábil de superfícies e volumes. Como seguidores
dos ideais da escola de Viena, não se pode esquecer de H. P. Berlage, com sua belíssima
Bolsa de Amsterdã, e Auguste Perret (1874-1954), que teve grande influência sobre Le
Corbusier. O destaque a Perret justifica-se pela construção, em Paris, de habitações de
vários pavimentos, com linhas planas e simples, utilizando o concreto, que se tornou
seu melhor elemento construtivo e o maior destaque de sua arquitetura.
Sem dúvida, a escola de Viena, sob a batuta de Otto Wagner, deixava claro que sua
linha era a do modernismo e seu rastro, a proclamação de um dogma. Com isso, os
partidários do racionalismo, daí em diante, vão definindo o grau de maturidade da
arquitetura, apontando como parâmetro, para isso, a simplicidade, a elegância e a re-
dução no uso de ornamentos de fachada, elementos que eles fizeram destacar-se como
meios de expressão.
Outro francês, Tony Garnier (1869-1948), projeta a Cidade Industrial, na qual sur-
ge, pela primeira vez, o uso de pilotis, que tanta notoriedade alcançou na arquitetura
racionalista.
Nesse mesmo período, na América do Norte, destacam-se Willian Jenney Le Baron
(1832-1907), com seu Home Insurance Building (1884-1885), em Chicago; Louis Sulli-
van (1856-1924); e Frank Lloyd Wright (1869-1959), discípulo e seguidor de Sullivan,
com quem aprendera as formas e os rudimentos da arquitetura: “[...] coube a Sullivan
prestar ao aço a atenção devida, e o resultado foi o Wainwright Building de St. Louis
(1890-1891)”.10

9
Adolf Loos, apud Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 33.
10
Nikolaus Pevsner, Pioneiros do desenho moderno, cit., p. 121.

32
Esses arquitetos norte-americanos lutam para limpar as formas e varrer da arquite-
tura as reminiscências do passado e o fazem de modo decidido. Sua saga, um capítulo
importante da própria história da arquitetura moderna, anda a passos largos, e, já em
1914, pode-se dizer que o estilo clássico está vencido. Esse notável produto da América
do Norte segue então, e desde logo, livre de toda confusão monumental e decorativa.

Movimento De Stijl (O estilo)

O movimento De Stijl teve a escolha de seu nome inspirada em uma revista homô-
nima dirigida pelo holandês Christian Emil Marie KrupperVan Doesburg (1883-1931),
pintor, arquiteto, crítico de arte e autodidata. Esse movimento teve como principal
característica lançar novas teorias artísticas, objetivando a libertação definitiva da nova
produção e das novas construções em relação às formas antigas. Especificamente, o
movimento propõe a redução das composições a linhas retas e cores puras, ou só as
primárias.
Além de Van Doesburg, o De Stijl teve como fundadores o pintor Peter Cornelis
Mondrian, ou, apenas, Mondrian (1872-1941), e o ebanista e arquiteto Gerrit Thomas
Rietveld (1888-1964). O movimento surge na Holanda, vigorando de 1917 até 1931,
tempo suficiente para angariar adeptos do quilate de Ludwig Mies van der Rohe, e
rapidamente contamina os alunos da Bauhaus, por intermédio de Van Doesburg, que,
em 1921, era professor daquela instituição.
O De Stijl era a própria Sachlichkeit, termo alemão que significa a qualidade do que
é “pertinente, apropriado e objetivo, ausência total de decoração exterior e com formas
que são determinadas pelos fins a que se destinam e por nada mais”.11 Em suma, o que
pretendia era a objetividade!

11
Ibid, p. 36.

33
O holandês Mondrian era cubista por excelência. Dono de um estilo muito particu-
lar, sempre esteve à frente de seu tempo, daí sua obra ser tão pouco compreendida. Sua
pintura agradava a poucos, e, mesmo sendo um homem sensível e modesto, possuía
um caráter indomável, capaz de superar todas as adversidades que teve de enfrentar.
Esse comportamento peculiar chamou a atenção de seu compatriota Van Doesburg, o
qual reconhece em Mondrian o parceiro certo para o movimento que ambos vão iniciar.
A partir da fundação do De Stijl, Mondrian começa um trabalho de jornalismo
dentro da revista e imediatamente encontra uma legião de admiradores. Com ele, a
revista alcança um sucesso que vai aumentando a cada exemplar.
Van Doesburg foi o motor e a alma desse movimento, porém, por suas característi-
cas pessoais, foi mais um teórico do que propriamente um realizador. Apesar disso, um
de seus desenhos está em todos os manuais de arquitetura: o estudo transparente do
interior de uma casa. Essa representação propõe um conjunto de relações entre planos
verticais e horizontais, no qual se movimentam as linhas e as superfícies em um dese-
nho aparentemente simples, mas básico para o desenvolvimento da arquitetura. Foi
um recurso que facilitou de modo concreto os estudos da composição espacial, pondo
de lado o conceito da arquitetura como algo pesado, até aquele momento muito recor-
rente.
De todos os participantes e fundadores do De Stijl, somente Mondrian levou até o
final de seus dias o “compromisso com os princípios estritos do movimento, com o
ortogonal e as cores primárias, que [foram] os elementos constitutivos de sua obra da
maturidade”.12
Entre outros seguidores, está o artista, arquiteto e teórico Georges Vantongerloo
(1886-1965), um dos colaboradores de Van Doesburg na revista De Stijl, que, junta-
mente com Bart van der Leck (1876-1958), é um dos responsáveis pela evolução estéti-
ca do movimento. Seu papel é mostrar que a escultura, como a pintura, não deve limi-

12
Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1999), p. 178.

34
tar-se a uma única visão, mas ser fruto de vários pontos de vista, dando assim um novo
rumo à escultura, que agora rompe os espaços em volumes geométricos.
Também merece destaque Gerrit Thomas Rietveld (1888-1964),que,apesar de poucas
ligações com o movimento (ao que se sabe, Rietveld deu apenas uma discreta colabo-
ração a Van der Leck), entra para a história do De Stijl e do design mundial como o
criador da famosa Cadeira vermelha e azul, em 1917. Em 1924, Rietveld ergue uma casa
em Utrecht, Holanda, em que os avanços estéticos recentes e a harmonia entre planos e
volumes causam uma impressão nunca antes sentida.
Assim, a influência do movimento chega a todas as partes, constatando-se, rapida-
mente, os sinais de um espírito inovador, pois há muito não existia renovação nos
projetos de edifícios habitacionais. Essa nova tendência, até então, só era percebida em
edifícios públicos e escolas, pois era nesses locais que se destacava a importância da
luminosidade para o bem-estar e o bom desempenho das atividades de estudo, vindo
juntar-se a eles, em seguida, os prédios industriais. Não coube somente ao De Stijl,
porém, o mérito de dar direito de cidadania, no mundo intelectual de então, às obras
de arquitetos modernos.
O norte-americano Frank Lloyd Wright foi também um dos que apresentaram seus
projetos e obras nas páginas da revista De Stijl. Dessa forma, divulgavam-se as inquie-
tudes impulsionadas por esse movimento, que veio na esteira do neoplasticismo de
Mondrian e cujas manifestações chegaram até nós por intermédio de arquitetos da
importância e pioneirismo de Mies van der Rohe e Le Corbusier, que transmitiram em
suas obras a mensagem do De Stijl.
Era todo um processo de evolução arquitetônica e de sua contrapartida social que
estava em marcha. O entusiasmo pelas novas idéias envolvidas naquele momento rapi-
damente contagiou vários bons arquitetos e parcelas do público, minoritárias mas cres-
centes. Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969), por exemplo, adere de imediato à lin-
guagem Sachlich do De Stijl. A força que teve esse movimento trouxe, além de marcas
mais difusas, características hegemônicas de vários momentos da obra de Mies, como
35
no projeto para uma casa de campo em alvenaria, de 1923, e no pavilhão alemão na
Exposição Mundial de Barcelona, em 1929.

Bauhaus (1919-1933)

Como se sabe, o primeiro pós-guerra (a Primeira Guerra Mundial estendeu-se de


1914 a 1918) trouxe vozes ansiosas por renovação e por uma nova estética. De fato, a
arquitetura avançava paulatinamente, orientada pelo enfoque da simplicidade,enquanto
iam aparecendo arquitetos com idéias novas e conceitos avançados. Como conseqüên-
cia desse outro movimento, funda-se em 1919 a Bauhaus, cuja verdadeira origem foi a
fusão de duas instituições existentes em Weimar: a Academia de Belas Artes, que já
tinha tradição, e a escola Kunstgewerbe, fundada por Henry van de Velde (1863-1957).
A entrada de Walter Gropius (1883-1969) no processo de criação da Bauhaus dá-se
em 1915, quando ele recebe a Kunstgewerbe das mãos do demissionário Van de Velde.
Esse fato, descrito no livro Teoria e projeto na primeira era da máquina, de Reyner Ba-
nham,13 esclarece que a fundação da Bauhaus não é um ato isolado de Gropius, mas
sim o resultado de uma conjunção de fatores que levaram a isso, o que não tira, em
absoluto, o mérito e a determinação dele na concretização daquele projeto educacio-
nal. Gropius evidencia a consciência da importância de sua participação nesse fato
primordial da história da arquitetura num depoimento registrado nos anos 1950:

Depois de ter achado minha orientação própria dentro da arquitetura antes da Primeira
Guerra Mundial, como fica evidente no Edifício Fagus em 1911 e na Exposição Werk-
bund de Colônia em 1914 – movimento alemão que simboliza e unifica a construção
clássica e a nova arquitetura, com seu conjunto de resultados técnicos e artísticos –, as-

13
Reyner Banham, Teoria e projeto na primeira era da máquina (São Paulo: Perspectiva, 1976).

36
saltou-me a plena consciência de minha responsabilidade como arquiteto, baseada em
minhas próprias reflexões como produto dessa guerra, durante a qual tomaram forma,
pela primeira vez, minhas premissas teóricas. Terminada esta violenta erupção, todo
homem que pensa sentiu a necessidade de uma mudança de ordem intelectual. Em sua
particular área de atividade, cada um aspirava a colaborar para salvar do desastroso abis-
mo entre realidade e idealismo. Foi quando me dei conta da dimensão da missão do
arquiteto de minha geração. Vi que, em princípio, se deveria alinhavar um novo objetivo
para a arquitetura. Não poderia querer realizar tal tarefa, sem dúvida, mediante minha
própria contribuição arquitetônica, exclusivamente; isso deveria ser obtido orientando e
preparando uma nova geração de arquitetos em estreito contato com os modernos meios
de produção, em uma escola piloto determinada a ter legítima significação. A Bauhaus
foi a primeira entidade no mundo que ousou personificar este princípio em um progra-
ma de estudos bem definidos. Antecedeu a concepção deste programa uma análise das
condições de nosso período industrial e de suas tendências dominantes.14

A Bauhaus foi uma escola em constante processo de mutação, desde a fundação até
sua dissolução pelos nazistas, em 1933. Sua contribuição para a história reside no fato
de refletir o aspecto mutável do pensamento arquitetônico alemão dos anos 1920, em-
bora tenha se cercado de fama duradoura graças ao respaldo que encontrou no pensa-
mento arquitetônico internacional nos anos 1930 e 1940.
A escola prestava-se a ensinar não somente arquitetura, mas também pintura, deco-
ração, mobiliário, design, fotografia, cenografia, cinema, moda, etc., preocupando-se,
em suma, com o projeto estético, em geral.
Gropius era um futurista, porém deu declarações revelando apoiar os ideais de
William Morris, defensor da produção artesanal como ponto de partida para o desen-
volvimento do espírito humano. Essa ideologia permeou as cabeças bauhausianas que

14
Walter Gropius, apud José Boix Gené, Arquitectura actual (Barcelona: Ceac, 1960), p. 34.

37
viam no “aprender fazendo” um caminho mais válido que o do “aprender lendo” ou
“ouvindo aulas”.
Dessa forma, o aluno, ao entrar para a Bauhaus, passava por um processo de des-
construção de todos os conceitos ou preconceitos e voltava ao jardim da infância, por
assim dizer, pois era impelido a começar do zero. O curso inicial, ou básico, batizado de
Bauhaus-Vorkurs, ficou conhecido como a essência do método da Bauhaus. O Vorkurs
teve como padrinho Johannes Itten (1888-1967), pintor suíço interessado em pedagogia.
O espírito de Itten afastava-se da cultura mecanizada e levava os estudantes a adota-
rem uma postura mística, envolvendo-os nos estudos de autores do misticismo medie-
val, como o mestre Eckhart, e na discussão de modos de disciplina oriental, como os
ensinados no masdeísmo, no taoísmo e no zen. Assim, Itten criava outra variante den-
tro da escola, que, por aquele tempo, já dera uma guinada em direção à produção
mecanizada, orientação em que permaneceria até seus últimos dias.
Itten estava descontente com o andamento do Bauhaus-Vorkurs, sobretudo por causa
da idéia de Sachlichtkeit (objetividade), defendida sempre por Gropius e que se torna-
ra diretriz da Bauhaus. O clima de divergência entre os dois ficou insustentável, após
uma circular interna de Gropius criticar Itten abertamente pela sua rejeição monástica
do mundo. Além disso, os alunos estavam sendo severamente censurados e mesmo
expulsos da Bauhaus por não projetarem dentro do “estilo racional” correto. Nesse
clima de conflitos internos, no ano de 1923, Itten deixa a Bauhaus. A partir daí, passou
a haver vínculos mais estreitos entre a escola e a indústria manufatureira, e projetos da
Bauhaus seriam cada vez mais usados, enquanto, simultaneamente, houve um declínio
no misticismo e no orientalismo. De fato, a ausência de Itten não se fizera notar.
De 1924 em diante, os produtos e edifícios projetados na Bauhaus também come-
çam a exibir um “estilo Bauhaus” reconhecível. Chegou-se, então, a uma considerável
unanimidade.
Com isso, um repertório de formas tais como acabamentos naturais rústicos, uso
do aço e do vidro, incluindo uma maneira evolutiva de composição tipográfica, tudo
38
basicamente semelhante ao que era preconizado pelo movimento De Stijl, somava-se,
por meio da repetição constante, compondo um estilo genuinamente unificado.
Sem Itten no caminho, Gropius consegue agrupar pessoas cujo pensamento estives-
se afinado com a nova plástica nascente.
A série de publicações da Bauhaus, os Bauhausbücher, representava uma das mais
concentradas e variadas campanhas editoriais de livros sobre arte moderna, em mea-
dos de 1927. Os livros marcam a emergência da Bauhaus, partindo de um provincia-
nismo expressionista para a corrente principal da arquitetura moderna, notadamente
a representada pelos novos edifícios agora projetados por Walter Gropius para o novo
endereço em Dessau.
Essa mudança adveio do clima conflituoso gerado pelas hostilidades por parte das
autoridades e do público de Weimar. A posição da escola havia se tornado insustentá-
vel por volta da Páscoa de 1925, e uma oferta de transferência feita pelo prefeito pro-
gressista de Dessau, Fritz Hesse, era boa demais para ser deixada de lado.
Todos os alunos, exceto alguns poucos, apoiaram Gropius, e a Bauhaus mudou em
1926, mais ou menos inteira, como um corpo em funcionamento para seu novo lar em
Dessau.
Gropius organizou a escola e a casa dos professores com construções que tornavam
manifestas as normas a serem seguidas no projetar arquitetônico. Nesses edifícios, des-
tacavam-se as amplas paredes de cristal, combinadas com o concreto e o ferro numa
belíssima concepção de espaço. As amplas paredes transparentes permitiam que a es-
cola fosse vista de novos ângulos, característica que se havia admirado na pintura de
Mondrian. Essa nova imagem que o novo conjunto arquitetônico transpirava mostra-
va que a escola havia mudado para uma posição de liderança indiscutível.
Em 1933, a Bauhaus encerra suas atividades em conseqüência da mudança na orien-
tação arquitetônica na Alemanha, acarretada pela tomada do poder pelo Partido Nacio-
nal-Socialista, sob o comando de Adolf Hitler. Foram então sufocadas todas as ativida-
des políticas, sociais e culturais que dependessem da liberdade ou da democracia. Com
39
seu fechamento, os dirigentes e alguns professores emigraram para o exterior, sobretu-
do os Estados Unidos, e lá, anos depois, ocorreu uma tentativa frustrada de promover
o renascimento da Bauhaus.
Eles continuaram, todavia, a beber nessa fonte, espalhando a doutrina daquela que
foi a mais importante escola de arte e arquitetura da história do século passado, por
onde passaram diversos arquitetos e artistas que, mais cedo ou mais tarde, foram reco-
nhecidos internacionalmente.

Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – Ciams


(Congrès Internationaux d’Architecture Moderne) a partir de 1928

Com todas as transformações ocorridas até então, constata-se como a arquitetura


vai alcançando uma firme ascensão, sendo cada vez mais numerosos os arquitetos que
pregam seus novos conceitos plásticos a um mundo dividido entre o temer e a fascina-
ção. São muitos os problemas que surgem, de ordem técnica e cultural, sobretudo,
carentes de formalização. Individualmente, o arquiteto encontra-se diante de vários
dilemas. Faz-se necessário reunir-se, somar esforços e conhecimentos dispersos, na in-
tenção de divulgar, numa formulação majoritária, a bela mensagem da arquitetura
contemporânea, em face da grande confusão que havia.
É assim que, em junho de 1928, no antigo castelo de La Sarraz, na Suíça, reúne-se
um grupo de arquitetos modernos, tidos como os mais destacados do momento. Rea-
liza-se, então, o I Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam), que con-
grega veteranos e jovens profissionais de espírito independente e inquieto, unidos pela
mesma fé, o mesmo ideal e tendo em mente as mesmas realidades sociais, estéticas e
econômicas.
Já no ano seguinte, o congresso é realizado em Frankfurt, na Alemanha. O Ciam
reconhece, nessa ocasião, a importância de uma necessidade que já não se podia des-

40
prezar: a criação de uma arquitetura voltada para a realidade urbana, para a necessida-
de premente de moradias e não mais baseada em idealizações. É difícil, para não dizer
impossível, pretender criar uma arquitetura orgânica, pensando-a isoladamente, des-
conectada do espaço exterior, de limites superficiais únicos, de serviços comuns e sin-
gulares, de uma harmonia equilibrada. Somente se o projeto arquitetônico é concebi-
do articuladamente com o urbanismo, tal desígnio mostra-se viável. Esse congresso
teve como enfoque principal, ao lado da ênfase ao urbanismo, o problema da moradia
para as populações de baixa renda.
No congresso seguinte, em Bruxelas, no ano de 1931, prosseguem as discussões en-
focando estudos a respeito das moradias em blocos, considerando o melhor aproveita-
mento do solo e formas funcionais de facilitar a circulação.
Em 1933, os critérios arquitetônicos e urbanísticos alcançam o seu ponto máximo
de notoriedade e maturidade, por ocasião do IV Ciam, realizado em Atenas, quando é
formulada a Carta de Atenas, que encampa totalmente a reivindicação da necessidade
de haver planejamento nas cidades. Ali se concluiu que era de suma urgência que cada
cidade fixasse um programa urbanístico e organizasse a legislação convenientemente
para implantá-lo. Dali em diante, ficou claro que havia outros afazeres, e não somente
as construções em si, a serem atribuídos aos arquitetos.
Os congressos sucederam-se, destacando-se, a seguir, aspectos proeminentes de al-
guns deles.

PARIS:(O(V(CIAM(

Realizado simultaneamente e dentro da estrutura da Feira de Paris, de 1937, o V


Ciam contou com a presença de Le Corbusier, que deixou claros alguns de seus princí-
pios para a arquitetura moderna:

Dentro da estrutura da Feira de Paris de 1937, de Artes e Técnica, Le Corbusier domina o


Ciam de 1937.“Habitação e Lazer”recordava um ímpeto revolucionário repentino, e uma

41
esperança cega e ilimitada que foi sua conseqüência. Le Corbusier introduz completamen-
te uma nova noção da inseparabilidade das funções: “o habitar” e o “renovar”. Este “reno-
var-se” apela ao lado sensível do homem: uma máquina não necessita entreter-se.
“O entretenimento diário e a recreação estão intimamente relacionados com a habitação
e devem ser incorporados na essência biológica da cidade e do partido.”15

Após a Segunda Guerra Mundial, em 1947, volta a reunir-se o Congresso de Arqui-


tetura Moderna, desta vez em Bridgewater (Inglaterra). Nele, os arquitetos dão-se con-
ta da grande vantagem obtida por haverem estudado a fundo as questões do urbanis-
mo, visto que a maioria deles estava às voltas com problemas de reconstrução de cidades
destruídas pela guerra. Além disso, no tocante à arquitetura, debatiam-se temas de
caráter estético.
A colaboração entre artistas e arquitetos, que em épocas passadas marcou esplendi-
damente as páginas da arquitetura e, em outras, a sua divisão, apresentava problemas
se observada tanto do ponto de vista dos primeiros quanto dos segundos. Por isso, essa
colaboração foi outro dos temas do primeiro Ciam do pós-guerra. Aí se manifestou a
preocupação com a possibilidade de uma nova cooperação entre artistas, escultores e
arquitetos. Acreditava-se, nesse meio, que a arquitetura contemporânea, integrada em
uma sociedade moderna, tinha de corporificar um sentido emocional, proveniente do
contato mútuo entre artistas e arquitetos.
Em 1949, o congresso acontece em Bérgamo (Itália), sem que daí reste qualquer
registro importante. Mas, em 1951, o evento se dá em Hoddesden (Inglaterra), e aí a
ordem do dia é de indiscutível importância na vida comunal: a revitalização do cora-
ção da cidade como centro de influência de vida pública e social, e para que possa ser,
de fato, o símbolo do espírito citadino.

15
Sarah Hernández & Ricardo Martinez, CIAM: un proyecto moderno, setembro de 1996; trecho extraído de http://
www.periferia.org/history/ciam.html. Acesso em setembro de 2006.

42
AIX@EN@PROVENCE:(O(IX(CIAM(

[…] a “Grelha Ciam” [foi] apresentada no evento tutelar de Le Corbusier e Gropius


como um manifesto visual de combate à ortodoxia vigente nos programas de habitação
e planeamento urbano europeu.
A Grelha revalorizava as relações existentes entre a casa, a rua e o bairro, entendendo-os
como partes de um todo capaz de definir coletivamente a experiência individual de viver
na cidade. Influenciando radicalmente toda uma geração de arquitetos, projetistas e teó-
ricos sociais, o Ciam de 1953 ficaria como o momento-chave da fragmentação da arqui-
tectura moderna heróica.16

O(X(CIAM,(OU(TEAM(10(

No seio do próprio movimento moderno, um grupo de jovens arquitetos organizadores


do X Ciam (1956), conhecido como Team 10, questionara duramente a rigidez do zoning
(zoneamento) e a homogeneidade formal que não reconhecia as diferentes escalas da
vida social nem respeitava os valores culturais e identitários preexistentes. Os novos pos-
tulados do Team 10 sugeriam a reintegração das funções urbanas e a recuperação da rua
e do bairro, entre outras propostas.
A crítica diante do international style, feita por De Carlo, os Smithsons, Van Eyck e ou-
tros arquitetos, que formavam o Team 10, poria fim aos Ciams em Otterlo, em 1959.
O Team 10, em sua maneira de se reunir e debater, compartilha muitos pontos dos ideais
anarquistas, e é importante para a construção de uma racionalidade dialógica sobre sua
arquitetura. “Éramos apenas um grupo de arquitetos que buscavam fazer o que faláva-
mos, e o debate era muito importante para detectar possíveis incoerências”, afirma De
Carlo. “A contraposição aos Ciams, com sua rígida hierarquia, e suas deliberações dog-

16
Lúcia Marques, Imagens da cidade, projeto “Lisboa, cidade triste e alegre (1956-1959)”, Lisboa, fevereiro de 2003, disponível
em http://imagensdacidade.blogspot.com/2004_05_01_imagensdacidade_archive.html. Acesso em 24-7-2007.

43
máticas, fica evidente. O Team 10 nunca emitiu cartas com determinações, conclusões
ou dogmas, por não acreditar na validade, nem na representatividade deste tipo de ins-
trumento.”17

PROJETOS(INSPIRADOS(NOS(IDEAIS(DOS(CIAMS(

O planejamento
lanej nto de Chandigarh por Le Corbusier
orb
Chandigarh foi o único planejamento urbano feito por Le Corbusier que foi executado.
Quando a província de Punjab foi dividida, em 1947, a parte que pertencia à Índia preci-
sava de uma nova capital, pois a outra capital, Lahore, estava situada na parte paquistã.
Então uma nova cidade foi planejada e Le Corbusier foi chamado para este trabalho. A
cidade de Chandigarh foi inaugurada em 1953 e oferece uma infra-estrutura moderna,
consistindo em mais de cinqüenta setores retangulares, projetados para serem auto-sufi-
cientes em relação às necessidades da população. As modernas instalações contrastam
não somente com as aldeias e vilarejos circunvizinhos, mas também com o resto da Ín-
dia. [...]
Esta é uma cidade com uma alta qualidade de vida e é exemplo para outros países.18

A arte de prrojetar arquitetura, de Errnst Neufert


Outro arquiteto que foi influenciado pelos Ciam foi um arquiteto formado na primeira
turma de Bauhaus, e que era professor colaborador de Walter Gropius. Estamos falando
de Ernst Neufert, que elaborou o livro Arte de projetar arquitetura, em 1936, a partir dos
conceitos surgidos no II Ciam e [que] até hoje funciona como um manual para todos os
arquitetos.

17
Franco Buncuga, Conversazioni com Giancarlo de Carlo: architettura e libertá (Milão: Eleuthera, 2000), p. 72.
18
Disciplina de Conforto Ambiental II – Ergonomia, São Paulo, FAU-USP, 2005; trecho extraído de http://www.usp.br/fau/
disciplinas/paginas/arquivos/aut_0260_dimensionamento.pdf. Acesso em setembro de 2006.

44
É um manual com mais de 6 mil gabaritos e abrange todos os elementos das construções.
Sua confecção foi baseada nos estudos de Le Corbusier, que utilizava as medidas do ho-
mem para obter o “Modulor”. Uma de suas premissas era que a arquitetura depende de
medidas e as medidas devem estar relacionadas ao corpo humano, pois ele acreditava
que as bases métricas para a composição do espaço, do plano, a proporção ideal e a
funcionalidade só podiam ser encontradas no próprio homem.
Sendo assim, o Modulor era baseado nas dimensões do corpo humano e nas proporções
da Seção Áurea.19

O Plano Piloto
ilot de Brasília
O Plano Piloto de Brasília herdou da Carta de Atenas, promulgada em 1933, no [IV]
Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, os conceitos do urbanismo raciona-
lista, no qual Le Corbusier foi seu principal mentor, arquiteto e urbanista francês (1887-
1966) que exerceu grande influência sobre os arquitetos brasileiros.
O traçado urbano de Brasília ganha dimensões simbólicas, tornando-se, de imediato,
fonte de referência popular; idealizado no gesto cristão, tal e qual apresentado com a
proposta do concurso: “Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele
toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.20
A simplicidade do Plano Piloto propiciou, de imediato, o poder de memorização, pois é
possível identificar o pássaro ou o avião, seja como planta da cidade, seja como logomar-
ca que definem o uso do espaço urbano. Por se tratar de um concurso, ao contrário da
Carta de Atenas, elaborada por Le Corbusier, Lúcio Costa apresentou croqui e perspecti-
vas no auxílio do texto, como recurso formal direto do projeto.21

19
Ibidem.
20
Relatório do Plano Piloto de Brasília (Brasília: GDF, 1991), p.13.
21
Mario Bonomo, A ordenação simbólica do espaço urbano de Brasília, comunicação apresentada na I Conferência Brasiliense
de Semiótica, Brasília, 2002; trecho extraído de http://www.dochis.arq.br/htm/numero/num06.html. Acesso em setembro de
2006.

45
Conjunto esidencncial
Reside Prefeitito Mendes de Mororaes
O Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho, é pro-
jetado pelo arquiteto Afonso Eduardo Reidy (1909-1964) a partir de 1947, para abrigar
funcionários públicos do então Distrito Federal. Localizado no bairro de São Cristóvão,
Rio de Janeiro, o Pedregulho compõe a face social da arquitetura de Reidy.
Os conjuntos residenciais populares construídos no Brasil entre as décadas de 1930 e
1950 representam as aspirações urbanísticas do momento ao procurar forjar novas for-
mas de sociabilidade e um ordenamento das relações sociais pela ênfase na vida comuni-
tária. Para tanto, valem-se do projeto moderno de compatibilização de economia, prati-
cidade, técnica e soluções esteticamente interessantes. O conjunto do Pedregulho traz
em sua concepção os preceitos urbanísticos do Ciam, revelando de forma acabada a rela-
ção entre habitação social, modernização, educação popular e transformação da socie-
dade, objetivos que nos nossos dias são postos em questão.22

CONSIDERAÇÕES(SOBRE(OS(CIAMS(

Os Ciams realizam os objetivos que seus idealizadores tinham em mente, deixando


como legado a contribuição que traduz os trabalhos, debates e resoluções levados a
cabo em seu âmbito. Graças a eles foram reunidas figuras de destaque, de múltiplas
origens, que trouxeram melhoramentos e novas interpretações às normas diretoras
exigidas pela arquitetura que passou a ser feita no mundo contemporâneo. Nasceu
também de seu estímulo fecundo o movimento construtivo que chegou até os dias de
hoje. Os horizontes de projeto ampliaram-se com base nos princípios da nova arquite-
tura, tornando possível e necessário contemplar desde edifícios isolados, para residên-
cias unifamiliares ou coletivas, até a escala do bairro, com a rua e conjuntos mais vastos
de prédios, e depois a unidade cívica maior, que é a cidade, e, indo além, até abranger o

22
Trecho extraído de http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia. Acesso em agosto de 2002.

46
campo e o território em seu conjunto, o que permitiu então conceber-se (e, em vários
países, implantar-se) o planejamento regional e nacional.
Mas a importância maior dos Ciams reside no fato de que, sob sua influência direta,
abriram-se amplas perspectivas para se imaginar, projetar e construir uma arquitetura
que ajudou a dar forma às novas manifestações da vida coletiva, imprimindo em todo
esse ambiente o selo da modernidade.

Le Corbusier

É imenso o espaço ocupado por Charles Édouard Jeanneret-Gris na história da ar-


quitetura moderna. Nascido em 6 de outubro de 1887 em La Chaux-de-Fonds (Suíça),
mais tarde ficou famoso com o nome, por ele mesmo adotado, de Le Corbusier.
Em sua juventude, estudou gravura, que aprendeu a aplicar em relógios, tradicio-
nalmente fabricados em sua cidade natal. Lá mesmo, aos 18 anos, em 1905, constrói
sua primeira casa.
Em 1908, em Paris, conhece o grande arquiteto e construtor Auguste Perret (1874-
1954), e trabalha para ele em um emprego de meio período. Em 1910, já está no ateliê
de Peter Behrens, em Berlim, onde permanece por cinco anos. Nesse período, realiza
suas duas últimas obras em La Chaux-de-Fonds, sob forte influência de Behrens: a
Ville Jeanneret Père, de 1912, e o cinema Scala, de 1916. Em seguida, viaja por vários
países, adquirindo grandes conhecimentos do processo arquitetônico e do emprego de
outras técnicas construtivas. De volta a Paris, em 1916, muda-se para lá definitivamen-
te, dedicando-se somente à pintura. Vale lembrar a importância desse aspecto pouco
conhecido do trabalho de Le Corbusier: é a especificidade de seu uso da linguagem
como artista plástico que vai trazer a característica mais destacada de sua expressão
como arquiteto.

47
Já a Casa Dominó, delineada em 1915, dez anos depois do primeiro projeto, marca
o início da evolução construtiva. Trata-se de um esqueleto de concreto armado, redu-
zido a seus termos mais simples, que permitem ao arquiteto uma ilimitada liberdade
para projetar os espaços. A seu ver, a genuína expressão só se encontrava na simplicida-
de. Esse projeto deixava transparecer as claras influências recebidas de Perret. Correta-
mente definida como uma “casa-estrutura”, essa obra foi desenvolvida em seu escritó-
rio de La Chaux-des-Fonds, com um amigo de infância, o engenheiro suíço Max du
Bois. A casa, verdadeiro protótipo anunciando toda uma série, levaria Le Corbusier a
utilizar essa base estrutural na “maioria de suas casas até 1935”.23
Em 1921, associa-se em uma obra a seu primo Pierre Jeanneret e passa a adotar o
nome de Le Corbusier. Continua, todavia, a assinar suas telas com o nome original.
Em 1922, edita Une maison et un palais e La cité moderne e, em 1923, Vers une archic-
tecture, no qual expõe seus princípios, ainda que sob forte influência das teorias de Van
Doesburg e Walter Gropius. Com grande repercussão pelo mundo afora, essas publica-
ções foram mais tarde reconhecidas como as suas melhores.
Antes de realizar os projetos que marcaram definitivamente sua trajetória como o
arquiteto do moderno em 1930 – a Ville Radieuse e, depois, a Unidade de Habitação,
em Marselha, em 1945 –, Le Corbusier viaja a Buenos Aires a convite de González
Garraño, diretor do Círculo de Artes Argentino, para dar dez conferências sobre arqui-
tetura e urbanismo.
No retorno a Paris, faz uma escala em São Paulo, para também proferir uma série de
conferências, no Instituto de Engenharia:

Le Corbusier solicitou a seu amigo Blaise Cendrars que procurasse Paulo Prado, o mece-
nas dos modernistas brasileiros, visando incluir uma visita ao Brasil em seu programa.
Em setembro de 1929, o arquiteto fez uma escala no Rio, a caminho de Buenos Aires, e

23
Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna, cit., p. 188.

48
recebeu o convite oficial articulado por Prado no Instituto de Engenharia. O contrato
previa duas conferências em São Paulo [...]. Le Corbusier chegou a São Paulo em no-
vembro de 1929 e pronunciou no Instituto de Engenharia, então presidido por Anhaia
Melo, suas palestras sobre “O urbanismo” e “A revolução arquitetural”. Em seguida, es-
tenderia sua visita ao Rio.24

Essas conferências de 1929 “são um apelo aos sul-americanos no sentido de uma


dupla aventura. Primeiramente, como conquistadores e bandeirantes, a tomarem em
mãos os seus destinos. A Europa burguesa é um peso para a América do Sul. Libertai-
vos! [...] é chegada uma nova hora”.25
Na visão corbusiana, a América do Sul era o próprio Eldorado para a sua arquitetu-
ra, local ideal para desenvolvê-la, pois temia e sabia “que a letargia européia jamais iria
favorecer a realização de seus projetos”.26
E não era para menos: suas dificuldades em dialogar com o establishment (não só os
altos escalões governamentais, mas também os empresários) francês comprovaram-se
com o fato de seu primeiro contato com autoridades francesas ter-se dado somente no
pós-guerra, em 1945, justamente para a construção da Unidade de Habitação em Mar-
selha, conforme já citado.
Os interesses de Le Corbusier no Brasil eram muitos, principalmente porque ficara
sabendo em Paris, pelo amigo Frédéric Sauser Cendrars (dito Blaise Cendrars, escritor
e poeta vanguardista, também nascido em La Chaux-de-Fonds; 1887-1961), dos pla-
nos de construção da nova capital do Brasil, que deveria chamar-se Planaltina.
Antes de sua vinda à capital paulista, por meio das cartas enviadas a Paulo Prado –
a quem conhecera em Paris, em 1927, apresentado pelo conterrâneo Cendrars, que

24
Cândido Malta Campos Neto, Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo (São Paulo: Editora Senac São
Paulo, 2002), p. 358.
25
Cecília Rodrigues dos Santos, Le Corbusier e o Brasil (São Paulo: Tesela, 1987), p. 13.
26
Kenneth Frampton, História crítica da arquitetura moderna, cit., p. 183.

49
freqüentou a troupe modernista brasileira baseada em Paris e que já em 1924 havia
viajado ao Brasil –, Le Corbusier incluía-se de forma bizarra na equipe que elaboraria
o futuro plano da nova capital. Escrevia a Paulo Prado, então, ironizando o amigo
Cendrars: “Ele está acabando de cercar o terreno de Planaltina para poder organizar
uma sábia especulação quando nós começarmos os trabalhos da nova cidade”.27
Le Corbusier vem, então, a São Paulo pelas mãos de Paulo Prado, um rico exporta-
dor de café e amante do modernismo. Sua chegada à capital paulista dá-se em novem-
bro de 1929, o que coincide com os debates na Câmara Municipal sobre o urbanismo
moderno. Profere, então, duas conferências no Instituto de Engenharia (IE), sendo
uma sobre arquitetura e outra sobre urbanismo. No gabinete do prefeito paulistano,
José Pires do Rio, Le Corbusier dá o seu veredicto:

Vendo pendurada na parede do gabinete do prefeito essa imagem de ruas embaralhadas,


passando, às vezes, umas sobre as outras; medindo, por outro lado, o enorme diâmetro
da cidade, pude exclamar: vocês têm uma crise de circulação; não podem ligar rapida-
mente uma cidade com 45 quilômetros de diâmetro construindo ruelas neste dédalo.28

Mesmo assim, traça, após um vôo sobre a capital paulista, um impactante croqui
daquilo que imaginava que poderia ser a reconstrução da cidade de São Paulo.
Ficava então registrada mais uma tentativa corbusiana de plantar, em solo sul-ame-
ricano, suas propostas urbanas, tão combatidas pelo ceticismo europeu e por alguns
arquitetos nacionais.
De São Paulo, Le Corbusier desce a serra e vai a Santos de trem, e é do alto da serra
do Mar que registra no bloco de notas do Hotel Terminus (onde se hospedara em São
Paulo), com rara beleza e simplicidade, a Baixada Santista, com seus meandros e rios.

27
Cecília Rodrigues dos Santos, Le Corbusier e o Brasil, cit., p. 13.
28
Ibid., p. 92.

50
Lá, faz desenhos fantásticos do estuário santista, e da Ponta da Praia, com seus navios
em trânsito.
Paulo Prado e Le Corbusier tornam-se, nesse ínterim, grandes amigos, e é por meio
dessa amizade que nascerá o convite para a visita à capital federal, o Rio de Janeiro,
comandada pelo irmão de Paulo Prado, Antônio Prado Júnior.
Le Corbusier despede-se de São Paulo e parte para o Rio de Janeiro, no início de
dezembro, com a finalidade de proferir mais quatro conferências, desta vez no Institu-
to Central de Arquitetos.
Antes dessas conferências, porém, um fato marca a visita de Le Corbisier ao Rio de
Janeiro. O prefeito Antônio Prado Júnior havia contratado o arquiteto e urbanista fran-
cês Donat-Alfred Agache (1875-1959), que chegara ao Rio em fevereiro de 1927, para
elaborar o plano de remodelação da capital federal. A situação fica então incômoda
para Le Corbusier, que, havendo protelado sua vinda ao Rio, nunca se perdoaria por
ter perdido a chance de elaborar esse plano. Assim, discorda do projeto de Agache e
não poupa críticas ao compatriota (Le Corbusier havia se naturalizado francês), por
julgá-lo acadêmico demais.
Ainda no Rio, recebe do prefeito Prado Júnior um convite para sobrevoar a capital
federal e fica deveras impressionado com as belezas naturais do Rio de Janeiro. Um fato
curioso a respeito desse vôo é que o piloto da aeronave era Saint-Exupéry, que se con-
sagraria por obras como Vôo noturno e O pequeno príncipe, morto algum tempo depois
num acidente aéreo. Em seguida, traça um plano levando em consideração o relevo e
as curvas da orla carioca. O mestre é seduzido pela incomparável topografia e sinuosas
paisagens da região, adotando a curva como elemento-chave para “contornar” os mor-
ros. Le Corbusier, que sempre pautou sua arquitetura pelo ângulo reto, passaria dali
por diante a sofrer influência direta da ondulante topografia carioca.
Anos mais tarde, em 1952, essa influência da topografia carioca que marcou o mes-
tre franco-suíço se fará notar, numa espécie de resposta, entre outros projetos, no fan-

51
tástico Conjunto Residencial Marquês de São Vicente (situado no bairro da Gávea, Rio
de Janeiro), de autoria do arquiteto brasileiro (nascido em Paris, de pai escocês e mãe
brasileira, mas filha de italianos) Afonso Eduardo Reidy.
Le Corbusier ainda retorna ao Brasil mais duas vezes. A penúltima visita ocorre em
1936, a convite de Lúcio Costa, que convence Gustavo Capanema, ministro do governo
Getúlio Vargas, a aceitar a vinda do suíço para orientar a equipe que havia sido monta-
da por Costa para desenvolver o projeto do edifício do então Ministério de Educação e
Saúde no Rio.
Le Corbusier desembarca e, em reunião com a equipe de Lúcio Costa, traça o parti-
do arquitetônico para o novo prédio do ministério chefiado por Capanema. Os mo-
dernistas cariocas recebem o projeto sem muita contestação, a não ser por um único
membro, Oscar Niemeyer, até então desconhecido. Este faz várias alterações, que são
levadas a Lúcio, mas, como é extremamente tímido e ético, acaba por jogá-las pela
janela do escritório.
Essas modificações são recuperadas por Oscar a pedido de Lúcio e, em seguida,
apresentadas a Le Corbusier. Como eram bastante pertinentes, passam a fazer parte do
projeto de modo definitivo. O mestre vai embora, e o projeto é detalhado pela equipe
brasileira. No entanto, após a inauguração do prédio, o nome de Le Corbusier não foi
lembrado como autor do plano. Anos mais tarde, em depoimento sobre esse assunto,
Lúcio Costa escreveu:

Com o início da guerra, os contatos eventuais se interromperam de todo, e Le Corbusier


só teve notícias da obra concluída quando, terminado o pesadelo, revistas especializadas
em todos os países começaram a divulgar, como revelação, a chamada nova arquitetura
brasileira, despertando assim o interesse de arquitetos que vinham unicamente para co-
nhecer os Ministérios, a ABI, a Pampulha, o Parque Guinle, etc., enquanto daqui partiam
grupos de estudantes em excursão pela Europa, orientados por professores, nem sempre
suficientemente informados, mas que faziam palestras sobre o assunto. E, como tanto as

52
revistas como os improvisados divulgadores omitissem pormenores da participação pes-
soal de Le Corbusier no caso, e os contatos diretos conosco ainda não houvessem sido
restabelecidos, ele passou a interpretar tais ocorrências como usurpação da parte que, de
direito, lhe cabia, estado de espírito que o levou, numa espécie de revide, à défaillance
[fraqueza] de publicar como risco original seu para o edifício, efetivamente executado
em croqui, calcado sobre aquela fotografia da maquete que lhe havíamos em tempo en-
viado junto com o projeto, desenho esse feito sem muita convicção e sem data (ele sem-
pre datava todo e qualquer risco que fizesse). Evidentemente sua intenção fora simples-
mente evidenciar o vínculo melhor, a filiação de uma coisa com outra.29

Apesar desse mal-entendido, anos mais tarde Le Corbusier reconheceu que o méri-
to principal da obra do Ministério de Educação e Saúde cabia à equipe brasileira.
Sua terceira e última vinda ao Brasil ocorreu em 1962, quando, a pretexto de visitar
o terreno destinado à construção de seu futuro projeto para a Embaixada da França em
Brasília (que não passou de um estudo, em conseqüência de interferências do próprio
governo francês), faz uma visita silenciosa à capital federal recém-inaugurada. Nega-se
então a falar com a imprensa brasileira, mas deixa escapar um pequeno comentário
quando se detém por alguns minutos observando as cúpulas do Congresso Nacional:
“Aqui há invenção!”.
Em 27 de agosto de 1965, morre, aos 77 anos, em Cap Martin, na França, deixando
como legado 32 mil desenhos e plantas arquitetônicas, vários desenhos para mobiliá-
rio, aproximadamente 550 pinturas a óleo, 25 peças esmaltadas em metal, por volta de
7 mil desenhos originais, entre aquarelas, pastéis e colagens, 13 mil rascunhos de via-
gem, 25 esculturas, perto de 29 tapeçarias, 52 livros e 150 trabalhos gráficos originais.

29
Lúcio Costa, apud Abelardo de Souza, Arquitetura no Brasil: depoimentos (São Paulo: Diadorim/Edusp, 1978), p. 35. Para
saber mais sobre esse episódio, recomendo a leitura das cartas trocadas entre Lúcio Costa e o arquiteto franco-suíço, publica-
das em Cecília Rodrigues dos Santos, Le Corbusier e o Brasil, cit.

53
O(MODERNISMO(NO(BRASIL:(
SEMANA(DE(ARTE(MODERNA(DE(1922(
Foi assim que ficou conhecido o movimento que, em 1922, mais precisamente nos
dias 13, 15 e 17 de fevereiro, na cidade de São Paulo, precipitou o processo de renova-
ção nos padrões estéticos vigentes na criação artística no Brasil que, até então, se modi-
ficava lentamente.
Segundo o historiador Mário da Silva Brito, estudioso do modernismo, vários acon-
tecimentos, anteriores a 1922, desencadearam o movimento.
Em 1912, o poeta Oswald de Andrade (1890-1954) regressa da Europa trazendo
consigo o Manifesto futurista, de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) – escritor e
poeta que estimulou a entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial, e que já apresen-
tava idéias fascistas, movimento consolidado na década de 1920 e ao qual aderiu. Além
do manifesto, Oswald traz também a lembrança da coroação de Paul Fort (1862-1960)
“como o príncipe dos poetas franceses, ele que era o mais formidável desmantelador
da métrica de que se tem notícia”.1 Oswald de Andrade vê na poesia de Paul Fort novos
caminhos de expressão literária, como o verso livre, por exemplo, e ao mesmo tempo
uma forma de golpear duramente a estética parnasiana, que ainda imperava no meio
literário brasileiro.
No ano seguinte, em 1913, o pintor lituano Lasar Segall (1890-1957), que se natura-
lizaria brasileiro, junta-se ao time dos modernos e faz a primeira exposição não-acadê-
mica em São Paulo.
Mais um ano, e, em 1914, é a vez de Anita Malfatti (1889-1964) exibir, na casa Map-
pin Stores,“as suas telas de aluna de pintores alemães e impressionistas”2 e, em seguida,
partir para os Estados Unidos com a intenção de aperfeiçoar os estudos.
Por meio de seu jornal recém-fundado, o irreverente O Pirralho, Oswald de Andra-
de reclama abertamente por uma pintura verdadeiramente nacional. Soma-se a esse
clamor, em 1915, a fundação, em Portugal, da revista Orfeu, tendo como um de seus
colaboradores o poeta e ensaísta Ronald de Carvalho (1893-1935). Esse magazine apa-
recia como uma mescla de tendências, mas com a missão principal de ser o órgão de
divulgação do modernismo português, contando com a participação de Fernando Pes-
soa e Mário de Sá Carneiro. Na verdade, Ronald de Carvalho, apesar de brasileiro, foi o
diretor do primeiro número de Orfeu.
Por essa época, Oswald exercita-se no futurismo de Marinetti, a quem se refere como
o precursor dos “caminhos inovadores”.
Nesse contexto, surgem várias formas literárias inovadoras, que se utilizam de pro-
cessos de criação mais livres, resultando numa literatura mais voltada à vida nas ruas
do que à academia. E é assim que, em 1917, se dá o ápice na evolução dos acontecimen-

1
Grande Enciclopédia Delta Larousse, vol. 13, verbete “Semana de Arte Moderna” (Rio de Janeiro: Delta, 1972), pp. 6242-6243.
2
Ibid., p. 6242.

56
tos que conduzem à eclosão do movimento modernista em razão da aproximação en-
tre Oswald de Andrade e Mário de Andrade (1893-1945), figuras que adquirem grande
importância para o desenvolvimento do modernismo.
Anita Malfatti volta ao Brasil e inaugura sua nova exposição, que é atacada com
veemência por Monteiro Lobato no artigo “Paranóia ou mistificação?”, tornando-se,
assim, a “protomártir da renovação plástica brasileira”.3 Com essa exposição de Anita, a
reivindicação de Oswald de Andrade está satisfeita, pois nela fica traçado um dos mais
fortes rumos da nova representação do estilo nacional em pintura: o expressionismo.
Além disso,é nessa première que os novos valores intelectuais brasileiros vão se encontrar.
Na literatura, Juca mulato, de Menotti del Picchia (1892-1988), sinaliza a decadên-
cia da era agrária dos barões do café, apontando a emergência da nascente indústria,
que de maneira incipiente, porém constante, iniciava suas atividades, principalmente
na cidade de São Paulo, graças ao capital acumulado pelo café e à influência da imigra-
ção européia.
A pancadaria literária estava solta, e, com o surgimento de A cinza das horas, de
Manuel Bandeira (1886-1968), e Os carrilhões, de Murilo Araújo (1894-1980), João
Ribeiro (1860-1934) é levado a afirmar que Olavo Bilac (1865-1918) e Alberto de Oli-
veira (1857-1937), os dois maiores poetas parnasianos, “estão fora do seu tempo”.
O ano de 1917 traz ainda a Revolução Russa, com suas repercussões ideológicas
pelo mundo afora. Em São Paulo, estoura uma greve, considerada geral, que conta com
a adesão de 70 mil operários.
Em 1919, Vítor Brecheret (1894-1955) retorna da Itália, onde esteve por um perío-
do aperfeiçoando-se em Roma com o escultor Arturo Dazzi, e vai instalar-se como
pensionista do estado de São Paulo no Palácio das Indústrias. Ali é descoberto por
Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti (1897-1976) e Menotti del Pic-

3
Ibidem.

57
chia, e, a partir de então, passa a ser visto como um dos artistas mais importantes entre
os modernistas.
Diante do quadro paulistano de grande inquietação renovadora, Oswald de Andra-
de anuncia, nos primeiros dias de 1920, que um grupo de escritores e artistas está se
preparando para fazer uma grande manifestação no ano do Centenário da Indepen-
dência do Brasil, marcando a data para sempre, dessa vez não com espadas e cavalos,
mas sim com canetas e pincéis!
Os modernistas, então, passam a negar o caráter idealizador e sentimental do ro-
mantismo, mas retomam seu viés nacionalista e criador de uma identidade brasileira,
proscrevem o parnasianismo, o naturalismo e o realismo, reivindicando uma produ-
ção literária que expressasse valores brasileiros, a realidade urbana, a marginalização
em que vivia grande parte da população, a cultura brasileira, fruto da mistura de gru-
pos étnicos diversificados, a língua falada nas ruas, a música e a poesia do povo, distan-
tes da pompa da academia e dos preceitos lingüísticos, literários e culturais ditados
pela Europa. Os modernistas deixam de lado a literatura portuguesa e o português
(língua) de Portugal como parâmetro gramatical e lingüístico para os brasileiros. Pela
primeira vez se reconhece que temos uma língua que é nossa, distante do português de
Portugal. Já o índio e o negro são vistos como as “fôrmas” nas quais foi moldado o
povo brasileiro. Veja-se o poema “Essa negra Fulô”, de Jorge de Lima (1893-1953), o
próprio Macunaíma, de Mário de Andrade, a produção poética de Manuel Bandeira.
Dessa maneira, posicionam-se contra a métrica e todos os moldes e formas antes
aceitas e, sobretudo, contra o regionalismo que se exclui da nova realidade urbana
brasileira.
O entourage modernista está formado, e o grupo é composto pelos poetas e prosa-
dores Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Al-
meida, Agenor Barbosa, Plínio Salgado, Cândido Mota Filho, Sérgio Milliet; os pinto-
res Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e John Graz; os escultores

58
Vítor Brecheret e W. Haerberg; e os arquitetos Antônio Moya e George Przirembel,
todos futuros participantes da Semana de Arte Moderna.
Uma cruzada futurista segue para o Rio de Janeiro e lá encontra uma frente de
simpatizantes já devidamente sensibilizada pela causa. Entre outros, lá estão Manuel
Bandeira, Renato Almeida, Heitor Vila-Lobos, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira e o
paulista Sérgio Buarque de Holanda.
Em 1921, está de volta ao Brasil Graça Aranha (1868-1931), escritor e diplomata
brasileiro que mexeu com o cenário da literatura nacional, em 1902, ao lançar o ro-
mance Canaã. Aranha, não por acaso, começa a freqüentar os lugares por onde anda-
vam os modernistas, principalmente a editora O Livro.
Faz contato com o grupo e de pronto assume o timão, dando um rumo mais defini-
do ao movimento. É a partir daí que os planos para a escolha do palco do acontecimen-
to recaem sobre o Teatro Municipal de São Paulo. Fica confirmada a idéia de que no
ano de 1922, coincidindo com o Centenário da Independência, se realizaria a semana
de atrações e debates que se dedicaria plenamente “à arte moderna, durante a qual se
exibiriam a prosa e o verso, a pintura e a escultura, a arquitetura e a música”.4
O nome de Graça Aranha, agora embarcado no movimento, traria eco e repercus-
são nacional, que antes não havia, pois os modernistas, cujos nomes eram desconheci-
dos do grande público, estavam, até aquele momento, lutando sozinhos e sem nenhum
apoio. Aranha assume então definitivamente o comando da Semana de Arte Moderna,
“que se realiza sob os auspícios de pessoas de projeção da sociedade paulistana, mas,
apesar desse apadrinhamento categorizado, a iniciativa é vaiada”.5
O que, porém, importava mesmo a seus seguidores era marcar presença e dar segui-
mento às idéias de renovação que pretendiam divulgar, e foi o que de fato aconteceu. A

4
Ibidem.
5
Ibidem.

59
Semana de Arte Moderna finalmente introduziu o Brasil no tumultuado século XX,
levando o país a incorporar as novas tendências políticas, culturais e sociais.
O movimento teve a conotação clara de ruptura, sobretudo no aspecto literário e
poético, o que não impediu os arquitetos de pegar uma “carona” nessa proposta de
nova ordem nacional.
É oportuno citar o valioso texto acerca da Semana de Arte Moderna do historiador
Nelson Werneck Sodré intitulado “A verdade sobre o modernismo”, publicado na re-
vista Módulo, em 1979.
Nelson Werneck analisa, com muita clareza e precisão, o momento histórico pelo
qual passava o Brasil, focalizando outros fatores que também contribuíram para a rea-
lização da Semana. Segundo sua abordagem, essa não foi somente uma revolta por
parte do grupo de intelectuais que a idealizaram. O fato é que, naquele período, confli-
tos políticos estavam acontecendo e levariam a sociedade brasileira a mudanças sociais
profundas. O campo estava sofrendo intervenções capitalistas, com muitas alterações
nas relações de trabalho e a realização de grandes investimentos. Nas cidades brasilei-
ras, era crescente a urbanização, fenômeno intimamente ligado à produção industrial,
que “provocaria o crescimento da pequena burguesia e o aparecimento da classe ope-
rária”.6 Havia apenas três décadas que o escravismo fora extinto no Brasil, e o novo
regime de produção apresentava sinais de crise, gerando descontentamento e incerte-
zas “devido às graves contradições, que se aprofundavam agora. Em escala universal
assistia-se à crise do capitalismo. A Revolução de Outubro e a consolidação subseqüen-
te do poder soviético abalavam o mundo”.7
Três fatos, então, ocorrem concomitantemente e podem ser interpretados como res-
postas às inquietações políticas e sociais daquele Brasil de 1922: a fundação do Partido
Comunista do Brasil (posteriormente, denominado Partido Comunista Brasileiro, pas-

6
Nelson Werneck Sodré, “A verdade sobre o modernismo”, em Módulo, no 55, setembro de 1979, p. 46.
7
Ibidem.

60
sando, em 1962, o antigo nome a ser usado por uma dissidência que cria um novo
partido), a rebelião tenentista de Copacabana e a Semana de Arte Moderna.
A agitação política fervia em muitas regiões do país, que se via desnorteado em face
das lutas pela sucessão presidencial (vivia-se então o governo Epitácio Pessoa, sucedi-
do, a partir de 15 de novembro de 1922, por Artur Bernardes), revestida de acaloradas
e “apaixonadas” trocas de opinião. Portanto, “não seria surpreendente que a tormenta
atingisse o campo das artes e, particularmente, o da literatura”.8
Sodré questiona a “grandiosidade” do movimento e não vê motivo, em sendo a
Semana apenas mais uma peça desse tabuleiro, para receber tamanha ovação por parte
da historiografia brasileira. Reconhece, todavia, que a Semana teve seu contexto cultu-
ral e também importância no processo que constituiu a base para a reforma da lingua-
gem e da literatura, instituindo uma nova maneira de praticá-las e ensiná-las. Na ver-
dade, ele nos faz entender que a Semana, posta no centro das discussões de toda aquela
tempestade, eclipsa outros fatos de grande relevância histórica. Mais à frente, cita de-
clarações antológicas proferidas pós-Semana por alguns ex-participantes, nas quais se
vê claramente que o movimento partiu de intelectuais dos mais variados pensamentos.
Finalizando, Nelson Werneck Sodré arremata o texto citando uma afirmação feita
pelo crítico Sérgio Milliet, que teve uma participação pessoal discreta na Semana:“Com
exceção de Mário de Andrade, que lera quase tudo, ninguém sabia nada do que se
escrevia na Europa, e os que liam, liam mal”.9

O modernismo em São Paulo

O russo, natural de Odessa, Gregori Warchavchik, nascido em 2 de abril de 1896,


formou-se em arquitetura na universidade de sua cidade. Em 1918, parte para a capital

8
Ibidem.
9
Nelson Werneck Sodré, “A verdade sobre o modernismo”, cit., p. 47.

61
italiana e lá se matricula no Istituto Superiore de Belle Arti, “completando sua forma-
ção na cultura clássica e obtendo seu diploma de arquiteto em 1920”.10
Em Roma, trabalhou para Marcello Piacentini, e acompanhou a obra do Teatro
Savóia, em Florença.
De lá, quando tinha 27 anos, ruma para São Paulo, contratado pela Companhia
Construtora de Santos, empresa “que se tornou uma das maiores empreiteiras de obras
públicas nos anos 1920”,11 e que fora fundada, em 1912, pelo engenheiro civil Roberto
Simonsen (1889-1948). Simonsen havia se tornado figura de destaque após ocupar a
chefia da Comissão de Melhoramentos Municipal de Santos.
O empresário Simonsen, um adepto do taylorismo, participaria mais tarde, em 1939,
com sua construtora e outras empresas que representava, da Exposição do Centenário,
montada em Santos (SP), no ano de 1939, por João Artacho Jurado, e inaugurada pelo
então interventor federal, Ademar de Barros.
Em 14 de junho de 1925, Warchavchik publica seu primeiro manifesto, intitulado
“Futurismo?”, em Il Piccolo – jornal paulistano redigido em italiano. Esse foi reconheci-
do como o primeiro manifesto da arquitetura moderna no Brasil, e em 1o de novembro
daquele ano foi traduzido e publicado pelo jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro,
com o título de “Acerca da arquitetura moderna”.
Dois anos mais tarde, em 1927, Gregori Warchavchik projeta e constrói aquela que
seria a primeira obra residencial modernista no Brasil e na América do Sul: sua própria
casa. E a localização, em São Paulo, era no bairro de Vila Mariana, na rua Santa Cruz,
no 325 (atual).
Preocupado com a tradição na arquitetura nacional, Warchavchik incluiu uma va-
randa posterior e jardins, cujo projeto paisagístico contou com a participação decisiva
de sua esposa, Mina Klabin, a qual já estava afinada com o discurso modernista, que

10
Abelardo de Souza, Arquitetura no Brasil: depoimentos (São Paulo: Diadorim/Edusp, 1978), p. 49.
11
Cândido Malta Campos Neto, Os rumos da cidade (São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2002), p. 457.

62
pedia, entre outras coisas, a brasilidade. Oriunda de uma família de grandes industriais
do ramo de papel e celulose, também de origem européia, mas radicados há mais tem-
po no Brasil, Mina desenvolve um paisagismo que lida com elementos autóctones ou
locais, usando, no caso, plantas do agreste nordestino. A colaboração de Mina nesse e
em outros projetos de Warchavchik foi fundamental para tornar sua visão de arquite-
tura mais palatável ao público provinciano da São Paulo de então.
A obra tem como característica as fachadas nuas e completamente desprovidas de
ornamentos, além da planta racional, dogmas modernistas que causaram grande co-
moção no meio arquitetônico paulistano, levantando polêmica, de um lado, e, de ou-
tro, grande admiração e aceitação, principalmente pela troupe modernista, que havia,
poucos anos antes, inserido o Brasil no mapa mundial do modernismo, com a Semana
de Arte Moderna de 1922.
As obras da residência têm início em 1927, sendo concluídas em 1928, ano que
marca a naturalização de Gregori Warchavchik como cidadão brasileiro.
De toda forma, não era só sua arquitetura que se apresentava com feição polêmica.
Seus textos, de conteúdo claramente proselitista, ditavam os rumos daquilo que pou-
cos conheciam, a então recém-chegada arquitetura moderna e “o novo conceito de
viver”.12
Com esse estilo, Gregori conquista a ira de arquitetos, engenheiros, jornalistas e
críticos de arte. Dentre aqueles que se posicionariam contra seu modernismo, destaca-
se o então eminente arquiteto e futuro prefeito de São Paulo (em 1947), Cristiano
Stockler das Neves (1889-1982). Cristiano, que se declarava “um velho combatente
contra extremismos em arquitetura”, mais tarde, por volta dos anos 1950, três anos
depois de sua meteórica passagem pela Prefeitura de São Paulo, iria aproximar-se de
João Artacho Jurado, por quem nutria profunda admiração e respeito profissional.
Escreveria no Diário de São Paulo sobre a obra de Warchavchik no bairro do Pacaem-

12
Abelardo de Souza, Arquitetura no Brasil: depoimentos, cit., p. 49.

63
bu: “Imagine-se o que será da Cidade Jardim se continuarem a aparecer as casas tumu-
lares de cimento armado. Será inevitável a desvalorização desses terrenos, que mais
parecerão o prolongamento do Araçá”.13
Cristiano referia-se à casa da rua Itápolis, no 119, de 1929, na qual se realizou a
“Exposição de uma casa moderna”.
Pelo sim, pelo não, o tempo mostrou ao grande (mas tradicional) arquiteto que ele
estava enganado, pois não só Warchavchik se tornou um dos arquitetos mais brilhantes
e representativos de sua geração e da arquitetura mundial – merecendo a indicação de
Le Corbusier para ser o único representante da América do Sul nos Congressos Inter-
nacionais de Arquitetura Moderna (Ciams) em 1930 –, como o estilo moderno tor-
nou-se o mote de todo o ensino nas então nascentes escolas de arquitetura do Rio de
Janeiro e de São Paulo.
A sociedade brasileira levou algum tempo para assimilar o movimento. Não só ela,
mas também os arquitetos, engenheiros, professores e críticos de arquitetura, que relu-
taram muito em aceitar essa nouvelle vague.
Essa incompreensão foi um índice do conjunto de fatores que levaram a arquitetura
neoclássica a ser, durante um tempo considerável, ainda prestigiada. Mas isso se deu
principalmente

[…] por influência da colônia alemã, a mais importante na época, são, pois, alemães os
arquitetos que vêm trazer à arquitetura local a primeira influência estrangeira desde a
colonização. Curiosamente são os alemães, e não os italianos, que trazem para São Paulo
o neoclássico italiano, que, pela influência posterior da imigração peninsular, iria, por
longo período, dominar quase que exclusivamente toda a construção da cidade.14

13
Cristiano Stockler das Neves, apud Abelardo de Souza, Arquitetura no Brasil: depoimentos, cit., p. 50.
14
Roberto Cerqueira César, “A arquitetura em São Paulo”, em Acrópole, no 184, janeiro de 1954, p. 154.

64
A reboque desse processo, ocorreu também a reafirmação do ecletismo,“que surgiu
no final do século XIX e que desempenhou importante papel na afirmação republica-
na, ao sobrepor-se ao neoclássico, com seu caráter de arquitetura oficial de Império”.15
O ecletismo era uma saída para atender um setor significativo da burguesia, sequioso
por consumir aquela arquitetura rebuscada, que transmitia a imagem da nova era re-
publicana que chegava. Arquitetura maneirista, produzida principalmente por arqui-
tetos recém-chegados da Europa, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro.
Gregori Warchavchik foi ainda indicado por Lúcio Costa, quando diretor da Escola
Nacional de Belas Artes (Enba) no Rio, em 1931, para ser professor da disciplina de
Composição de Arquitetura naquela instituição.Warchavchik contava, à época, 34 anos,
tendo, igualmente, convidado o jovem (tinha apenas 20 anos) e talentoso arquiteto
Afonso Eduardo Reidy para ser seu assistente.
Ainda com Lúcio Costa, manteve uma breve associação que durou um ano, de 1931
a 1932, e durante a qual chegaram a realizar alguns importantes projetos de residên-
cias, como a casa na rua Toneleros e o conjunto de casas econômicas no bairro da
Gamboa, ambos de 1931, no Rio de Janeiro.
De volta a São Paulo, Warchavchik projeta e constrói um prédio de apartamentos na
rua Barão de Limeira (1939), além de várias casas na cidade balneária de Guarujá, a
partir dos anos 1940, para membros da elite do café e da indústria, que por essa época
a estavam descobrindo. Realiza obras para a família Prado, naquela cidade, além de um
edifício para escritórios no centro da cidade de Santos, que ainda existe.
Warchavchik deu sua inestimável contribuição para o desenvolvimento da arquite-
tura moderna paulista e mereceu, por isso, de seus colegas e da crítica o reconhecimento.
Escrevia então Mário de Andrade acerca da arquitetura moderna projetada por ele,
em uma crônica publicada no Diário Nacional, em 1930:

15
Alfredo Luiz Porto de Britto, Rio contemporâneo (Rio de Janeiro: Fundação Rio, s/d.), p. 4.

65
Ora, a arquitetura modernista não desmente ou destrói nenhum dos “verdadeiros” esti-
los da arquitetura que a história enumera. Mas se a gente imagina Amiens junto do
Partenão, está claro, os dois templos – hurlent d’être ensemble. Da mesma forma, uma
casa modernista como as de Warchavchik berra junto desses bangalôs, chacrinhas, neo-
coloniais, pudins, marmeladas e xaropes que andam por aí.
Uma diferença: o Partenão junto de Amiens, os dois berram. Berra o Partenão e berra
Amiens. Uma casa de Warchavchik junto do neocolonial, seja espanhol ou português,
berra sozinha. O bangalô não berra, não. Está bem calmo na sua desmandibulada in-
consciência, na sua ignorância beata e beócia. Nós é que ficamos envergonhados por ele;
da mesma maneira como qualquer pessoa bem-nascida, ante as pabulagens dum novo-
rico ou manejos dum arrivista, sofre em vez de rir.
Uma casa de Warchavchik berra junto das outras, berra orgulhosamente, porque é legí-
tima.16

Em 27 de agosto de 1972, aos 76 anos, falece em plena atividade, projetando e cons-


truindo suas obras com a mesma lealdade ao espírito modernista que abraçou e divul-
gou, porém longe da fama que esteve a seu lado no início do movimento.
Warchavchik, assim como o arquiteto Rino Levi, também formado na Itália, reali-
zou e defendeu, por meio de seus artigos-manifestos, as primeiras obras de arquitetura
contemporânea no Brasil, conhecidas naquela época como “funcionais”, “futuristas”
ou “modernas”.
Descontado o apoio dos modernistas, os dois lutaram sozinhos ao lado de outro
anunciador e realizador de idéias modernas, o também arquiteto e artista de expressão
múltipla Flávio de Carvalho,“uma vez que não tinham contato com a classe estudantil

16
Geraldo Ferraz, Warchavchik e a intenção da nova arquitetura no Brasil, 1925-1940 (São Paulo: Editora do Masp, 1965), p. 56,
apud Abelardo de Souza, Arquitetura no Brasil: depoimentos, cit., pp. 53-54.

66
em que se pudessem escorar para enfrentar a luta, como aconteceu no Rio, com Lúcio,
Reidy, Buddeus e tantos outros...”.17

O modernismo no Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, o modernismo na arquitetura teve início somente na década de


1930, com a passagem de Lúcio Costa pela direção da Escola de Belas Artes, para a qual
foi indicado pelo ministro da Educação de Getúlio Vargas, o mineiro Gustavo Capane-
ma. Em sua rápida gestão, Costa introduziu uma mudança radical no currículo dos
cursos de arquitetura e artes plásticas, caracterizada principalmente pelo abandono da
cópia de modelos, junto com a extinção do tradicional uso do manual do arquiteto
renascentista Vignola (1503-1573), para uma fase em que o ensino passou a ter como
base a criação. Outra frente em que o modernismo carioca teve início foi a que surgiu
com as primeiras obras de Marcelo Roberto (a quem logo se juntou o irmão Milton,
seis anos mais novo; Marcelo é de 1908), dentre as quais se destacaram o edifício da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e o do escritório de Gregori Warchavchik e
Lúcio Costa.
Lúcio Costa, um ex-aluno da Enba, assim como Reidy, Marcelo Roberto, Atílio Cor-
reia Lima, Paulo Antunes Ribeiro e Jaime da Silva Teles, transformou o curso daquela
escola, de viés acadêmico, em uma verdadeira escola de ensino de arquitetura, que
mais tarde formaria profissionais do quilate de “Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Luís
Nunes, Jorge Moreira, Alcides da Rocha Miranda e tantos outros que, abrindo cami-
nho, iriam dar um grande impulso à arquitetura que nascia”.18

17
Alberto Fernando Xavier (org.), Depoimento de uma geração (São Paulo: Cosac & Naify, 2003), apud Abelardo de Souza,
Arquitetura no Brasil: depoimentos, cit., p. 69.
18
Ibid., p. 68.

67
Data de 1937 o projeto escolhido por unanimidade pelo júri do I Concurso Nacio-
nal de Anteprojetos para o Aeroporto Santos-Dumont, de autoria de Marcelo Roberto
e Milton Roberto. Assim, já se conseguia definir o espaço arquitetônico moderno pe-
rante uma cidade: a capital do país.
Anos antes, porém, com a vinda de Le Corbusier ao Brasil, em 1929, para a realiza-
ção de conferências em São Paulo e no Rio, o pensamento dos arquitetos brasileiros,
principalmente dos mais jovens e dos estudantes, sofreu grande impacto. Esse grupo,
verdadeiro “caldo de cultura” para as idéias modernas, seja quanto à aceitação, seja
quanto à rejeição, estava perdido em discussões a respeito dos estilos importados e do
neocolonial.
Em 1935, com a autorização de Getúlio Vargas e a pedido do ministro Gustavo
Capanema, foi “aberto um concurso para a construção de um novo edifício para o
Ministério da Educação e Saúde Pública”.19
O projeto declarado vencedor era de autoria do arquiteto acadêmico Arquimedes
Memória, professor da Enba, mas, em seu ecletismo decorado com motivos marajoa-
ras, acaba desagradando o ministro, que resolve não construí-lo. Capanema organiza
então uma comissão não executiva, composta por arquitetos que haviam participado
do concurso, porém sem classificação.

Vamos fazer uma coisa corajosa, interessante. Vale a pena. Comporemos uma comissão,
com esses rapazes, encarregada de fazer um projeto do Palácio do Ministério da Educa-
ção e Saúde Pública, livremente. Vamos dar-lhes oportunidade de fazer uma coisa avan-
çada.20

19
Alberto Fernando Xavier (org.), Depoimento de uma geração, cit., p. 122.
20
Gustavo Capanema, apud Alberto Fernando Xavier, Depoimento de uma geração, cit., p. 125.

68
Com essa iniciativa, anos mais tarde, segundo Henrique Mindlin, nasceria a primei-
ra realização monumental da arquitetura nova em todo o mundo.
A pedido de Lúcio Costa, Gustavo Capanema convida Le Corbusier, o grande cria-
dor do l’esprit nouveau, para vir novamente ao Brasil:

V. Exa. poderia chamar Le Corbusier, que é o maior arquiteto do nosso tempo, o grande
mestre, o grande inovador, o grande revolucionário, uma figura muito combatida e que
não tem uma grande realização no terreno prático, mas que, pelo que se lê nos seus livros
e na sua doutrina, é o líder da arquitetura nova no mundo [...] para ajudar-nos e orien-
tar-nos na construção do edifício do Ministério da Educação.
Queremos fazer uma coisa nova, mas não queremos nos arriscar a um tão grandioso
empreendimento, a uma realização tão monumental, que seria a primeira do mundo,
sem primeiro ouvir o conselho do grande mestre no momento da nova arquitetura. Além
do mais, ele vem também ajudar a fazer a cidade universitária.21

Como não havia forma de contratá-lo, pois as leis brasileiras não permitiam esse
tipo de trabalho por parte de estrangeiros não residentes, Le Corbusier vem com a
missão de opinar no projeto da Cidade Universitária do Rio de Janeiro e no projeto da
equipe de Lúcio Costa para o Ministério da Educação e Saúde (MES) e, por último,
realizar seis conferências sobre arquitetura nova, pelas quais seria, enfim, remunerado.
Assim sendo, depois de um longo período, desde a instituição do concurso, passan-
do pelas intervenções pontuais de Le Corbusier, o movimento moderno na arquitetura
brasileira, que, pode-se dizer, nasceu propriamente só com o edifício do MES no Rio
de Janeiro, trouxe como dividendo positivo a emergência do talento de Oscar Nie-
meyer para o Brasil e o mundo.

21
Ibidem.

69
O fato de o poder público federal pós-Revolução de 1930 ter dado impulso ao mo-
dernismo na arquitetura brasileira, por meio do financiamento de obras de vulto e,
principalmente, confiando à vanguarda da arquitetura esses programas, é inconteste.
Não fosse ainda a macrovisão e o dinamismo de Lúcio Costa em convencer o ministro
Capanema da necessidade da presença de Le Corbusier na equipe, e a abertura de Ca-
panema, em aceitar de maneira ética a opinião de Costa, os ventos modernistas na
arquitetura oficial demorariam um pouco mais para deslanchar.
É verdade que Lúcio já estava determinado a mudar os rumos da Escola Nacional de
Belas Artes – como o fez, de fato –, ao assumir sua direção e convidar para fazer parte
do corpo docente, de maneira muito pontual, arquitetos já imbuídos do espírito mo-
dernista, que tardava a chegar ao Brasil.
Saltando da Semana de Arte Moderna, de 1922, para a Casa Modernista de Warchav-
chik, em 1927, e de lá para o edifício do MES, em 1936, o cômputo geral que se pode
fazer é que foi pouca a importância do modernismo até esse momento na arquitetura
brasileira.
Esse discurso receberia novo fôlego logo em seguida, com a encomenda feita pelo
prefeito da capital mineira, Juscelino Kubitschek, a Oscar Niemeyer de elaborar o pro-
jeto para o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte (1941-1945), e uma década
depois, em 1955, com a decisão de construir a nova capital, Brasília.
A vinda e a conseqüente participação de Le Corbusier nesse processo dão a largada
oficial para a afirmação da modernidade como um patamar que o país tem de alcan-
çar, consolidando o esforço de pessoas que lutaram por essa causa no eixo São Paulo–
Rio.
A primeira grande obra nesse estilo é reivindicada pela escola fluminense, com todo
o mérito e justiça, pois é um marco no Centro da cidade do Rio de Janeiro e outro no
pensamento da arquitetura nacional, assim como no de toda a geração de arquitetos
dos anos 1930 em diante.

70
Considerações

É preciso lembrar, todavia, que o esforço isolado de um arquiteto na cidade de São


Paulo, anos antes, marcou de forma solitária, e com muita personalidade, a paisagem
nacional. Gregori Warchavchik corporificou as premissas modernistas de 1922, inseri-
das no quadro do racionalismo internacional, em três dimensões.
A diferença em relação ao Rio foi que, em São Paulo, embora tenha sido o lugar em
que:

[...] os primeiros passos tivessem sido dados [...] e os arquitetos paulistas, iniciadores do
movimento, jamais tivessem esmorecido da luta, não foi aqui que o sucesso firmou-se.
No Rio e em Minas, os arquitetos modernos são encarregados de obras de vulto, como o
Ministério da Educação, o Aeroporto Santos-Dumont e a Pampulha, enquanto em São
Paulo a incompreensão oficial barrava, até muito recentemente, aos arquitetos moder-
nos a oportunidade de aplicar em obras de vulto, que só a obra pública pode ter, os
princípios pelos quais se batiam. Esta a razão da menor repercussão, principalmente no
conceito internacional, do movimento em São Paulo.22

A constatação do arquiteto Cerqueira César é oportuna, coerente e, certamente,


baseada na realidade. Soma-se a isso o fato de que o Rio de Janeiro era a capital federal,
o que significa que todas as correntes intelectuais e políticas convergiam para lá, aliás,
desde a chegada da família real portuguesa, em 1808.
E mais, o Estado Novo (decretado em 1937) de Getúlio Vargas, que consolida o
processo de centralização iniciado com a Revolução de 1930, precisava mostrar-se to-
lerante culturalmente e afeito às mudanças. E isso se mostrou em boa parte verdadeiro,
com o apoio dado a grandes artistas, como Heitor Vila-Lobos e Cândido Portinari, e

22
Roberto Cerqueira César, “A arquitetura em São Paulo”, cit., p. 154.

71
com todo o trabalho que puderam concretizar sob a égide do governo federal. Para o
ponto de vista deste estudo, isso também se confirma ao se levar em consideração os
frutos colhidos com a realização do edifício do Ministério da Educação e Saúde, já que
essa obra forneceu à arquitetura elementos para a investigação formal e técnica, que
culminou na constituição do discurso moderno plenamente desenvolvido com a cons-
trução de Brasília.
Indubitavelmente, simbolizando todo esse amadurecimento, o edifício do MES foi
a linha curva que marcou em definitivo a nossa nascente arquitetura, “com a plástica
leve e sensual que só o concreto armado pode dar”.23
A mesma curva que, posteriormente, iria consagrar a arquitetura de Oscar Nie-
meyer, primeiro, no conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, e, mais tarde, em Bra-
sília, nas colunas dos palácios e na catedral.

23
Alberto Fernando Xavier (org.), Depoimento de uma geração, apud Abelardo de Souza, Arquitetura no Brasil: depoimentos,
cit., p. 68.

72
JURADO(
João Artacho Jurado, ou simplesmente Jurado, como ficou
conhecido, morreu em São Paulo em 18 de outubro de 1983, aos
76 anos de idade, distante de todo o glamour que criou em torno
de suas obras, entre as décadas de 1940 e 1960. Foi nesse período
que projetou e executou, pela Construtora Monções, a maioria
de suas obras, fossem edifícios ou casas, que em pouco tempo se
tornaram referências arquitetônicas e urbanas nas cidades de São
Paulo e Santos.
Jurado era filho de imigrantes espanhóis. A família de seu pai
originava-se de um vilarejo perto de Málaga, no sul da Espanha.
O grupo em que estava seu pai desembarcou no porto de Santos
em fins do século XIX, em plena onda de imigração promovida
João Artacho Jurado.
Acervo Diva Jurado. 73
pelo primeiro governo republicano, e per-
maneceu nessa cidade durante algum
tempo.
Seu pai, Ramón Artacho, morto em
1955, testemunhou o sucesso profissional
do filho. Ramón exerceu vários ofícios, tra-
balhou como correeiro e, mais tarde, em
São Paulo, foi condutor de bonde puxado
por burros. Em São Paulo, conheceu e se
casou com Maria Dolores Jurado, tendo o
casal seis filhos: Maria Teresa Artacho Ju-
A família Jurado: Maria Teresa rado, José Artacho Jurado, João Artacho Jurado, Ramón Jurado Artacho, Dolores Jura-
Artacho Jurado, José Artacho
Jurado, dona Maria Dolores do Artacho e Aurélio Jurado Artacho.
Jurado,Aurélio Jurado Artacho,
Ramón Jurado Artacho, senhor
Ramón, anarquista convicto, influenciou diretamente a educação dos filhos, bus-
Ramón Artacho, João Artacho cando educá-los dentro de seus princípios ideológicos. Um exemplo desse zelo paterno
Jurado e Dolores Jurado
Artacho. de motivação ideológica deu-se quando Ramón tomou conhecimento de que os filhos
Acervo Diva Jurado.
haviam prestado juramento à bandeira em uma cerimônia escolar, atitude condenada
pela filosofia anarquista, que renega todos os símbolos que representem qualquer tipo
de poder político. Conforme o depoimento de sua filha única, Diva Artacho Jurado, o
resultado disso foi que “[...] ele tirou todos da escola, montou uma escolinha em casa e
passou a ensinar os filhos!”. Como conseqüência dessa opção do pai, João Artacho
Jurado não concluiu o curso primário em uma escola comum; entretanto é possível
que, mais tarde, “tenha feito um curso técnico de desenho de perspectiva, mas sem
qualquer prova”.1

1
Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”, em Folha de S.Paulo, D’, 14-1-1990, p. 6.

74
Originais em pastel, de Jurado,
para estandes de feira.
Ramón, tempos depois, mudou-se com a família para Mogi das Cruzes, o que deu Acervo Diva Jurado.

margem a boatos de que teria vivido em uma comunidade anarquista ali existente. Na
verdade, porém, não houve essa experiência, pois, conforme Diva Jurado, “ele com-
prou umas terras lá e resolveu ir viver do que a terra desse [...] E não deu certo, claro!
Aí... voltou...”.
Adepto do naturalismo, Ramón não admitia que as doenças em casa fossem trata-
das com remédios. E assim procedeu, por exemplo, quando seu quarto filho, Ramón,
teve pneumonia – contraída após a família ter ido ver a chegada do hidroavião Jaú, em
1928, na represa de Guarapiranga. Conforme relata Irineu Simonetti: “O pai dele era
um naturalista, um espanhol, como todo espanhol, turrão e naturalista. Não gostava
que dessem remédios em casa, pois tinha que tratar por meios naturais. Se não me
falha a memória, um irmão do Jurado teve uma gripe, e o pai exigia que ele tomasse
banhos frios, porque achava que esta era a forma de cura”.
Esse aspecto da personalidade e da visão de mundo de Ramón foi o traço mais
marcante da formação familiar recebida por João. As dificuldades financeiras existiam,
assim, ele passou a infância, a adolescência e o início de sua fase adulta participando da
luta, comum a todos os membros de sua família, pela sobrevivência.
A vida profissional de Artacho Jurado começa a desenhar-se na década de 1930,
quando, aos 27 anos de idade, parte para o Rio de Janeiro, em companhia da mulher,
75
Projetos originais de estandes
de feira, assinados por Jurado.
Acervo Diva Jurado.
Mercedes García, e do irmão Aurélio e a mulher, Antonieta, para lá trabalhar em feiras
como letrista. A respeito de sua esposa, deve-se dizer que Mercedes García abandonara
uma promissora carreira no City Bank – na época, The National City Bank of New
York – na cidade de São Paulo, para acompanhar o marido e apoiá-lo em seus projetos.
A viagem ao Rio marca o início da sociedade que Jurado iria ter com o irmão Auré-
lio, sete anos mais novo, união que, misturada à amizade que havia entre eles, termina-
ria somente com a morte de Aurélio em janeiro de 1983, aos 69 anos. Era um sentimen-
to em que a consideração e o respeito, algo às vezes incomum entre irmãos, seriam
uma constante, embora a filha Diva afirme que “eram muito diferentes um do outro,
mas se davam maravilhosamente bem”.
Na capital federal, diante das dificuldades, o quarteto morou em pensões mas não
pensou em desistir. Como letrista, Jurado fez placas e faixas bebendo da fonte que viria
a ser em breve seu grande trunfo: a publicidade e o marketing promocional. Depois de
um tempo no Rio de Janeiro, retornam à cidade de São Paulo. Era o ano de 1934,
marcante para a família, pois foi o ano de nascimento de Diva, única filha de Mercedes
e Jurado.
76
Nesse período, Jurado começa a participar de forma discreta de feiras e exposições
produzindo letreiros e projetando pequenos estandes. Ele e sua mulher chegam a viajar
e morar também em pensões nas cidades de Marília, Santos e Campinas, agora com a
companhia da filha, sempre envolvidos com atividades ligadas a feiras.
Em São Paulo, ainda como letrista, Jurado conquistou excelente reputação e um
bom relacionamento com um dos maiores letristas da época, conhecido como Bepe,
que tinha seu estúdio na ladeira da Memória em parceria com Novelli (o mesmo que
produzia outdoors, até recentemente), que também foi amigo de Jurado.
Foi assim, de posse de conhecimentos sólidos de marketing e publicidade, aplicados
em sua arquitetura, que ele, no futuro, conquistaria o público e venderia seus edifícios
nas cidades de São Paulo e de Santos, em pleno boom imobiliário.

A falta de diploma e o desprezo dos arquitetos

O fato de Jurado não ter diploma de curso superior impediu-o natural e legalmente
de assinar seus projetos. Para contornar essa dificuldade, ele teve alguns colaboradores,
como os engenheiros Luís Diógenes Zeppelini, Aurélio Marazzi e Guinio Patella, que,
além de serem os responsáveis técnicos e autores dos projetos perante o Conselho Regio-
nal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Crea), foram também os calculistas em
algumas obras. Entre esses colaboradores, o principal, porém, foi João Birman. A autoria
dos projetos era assumida também, por vezes, conjuntamente com o engenheiro respon-
sável, na época, pela seção de aprovação de projetos da Prefeitura paulistana, Luís Trappe.
Jurado foi pressionado e punido algumas vezes pelo Crea por causa de uma fiscali-
zação mais rígida que era exercida em certos períodos, não só nas obras como também
nas placas de obra. Segundo as normas vigentes, o nome dele não poderia aparecer
num tamanho maior que o do engenheiro responsável, o que acontecia com certa fre-
qüência e era alvo de críticas dos concorrentes e desafetos.

77
Assim, os arquitetos sentiam-se insultados, pois, além de Jurado não ser arquiteto
formado, abusava do marketing pessoal em suas placas e invadia o reduto que os mo-
dernistas paulistanos julgavam seu – o bairro de Higienópolis e o Centro paulistano –
com sua arquitetura “dos pilotis e das pastilhas”.2 Por tudo isso, Artacho sofreu a injus-
tiça de ser acusado de trambiqueiro. Mas o fato é que os prédios projetados e construí-
dos por ele eram considerados muito confortáveis, e, segundo vários depoimentos,
“eram tudo com que se podia sonhar”.
Sua arquitetura não tinha inimigos identificados, o que havia era uma corrente de
críticos anônimos sempre mobilizada para combatê-lo. Conforme Alberto Botti, em
entrevista de junho de 2006: “Artacho Jurado, ele não tinha nada a favor e tudo contra.
Ele era o anti-Cristo!” .
O arquiteto Eduardo Corona, um desafeto assumido, sempre disparou críticas con-
tra ele em várias ocasiões. O mais famoso de seus ataques foi publicado na revista
Acrópole, em 1958, em que Corona assina o texto intitulado “Que audácia!”, transcrito
a seguir:

Tem surgido em jornais desta cidade uma nota publicitária dispendiosamente preparada
pela firma Monções tentando justificar uma das tantas aberrações arquitetônicas pelas
quais é responsável. Trata-se de um edifício de nome pomposo já construído no bairro
de Higienópolis e que já é suficientemente desconhecido pelos arquitetos, pelos estu-
dantes de arquitetura e por todos os que entendem alguma coisa dessa arte entre nós.
O que consideramos, de fato, audacioso por parte dos promotores da publicidade referi-
da é a apresentação de declarações de um arquiteto americano chamado John R. Fugard,
que, em visita a essa obra, fez uma série de afirmações que têm chamado a atenção dos
arquitetos paulistas pela coragem que teve o arquiteto americano de deitar opinião da
forma absurda como o fez. Disse ele, por exemplo, confessando-se vivamente impressio-

2
Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”, cit., p. 7.

78
nado: “Conhecemos a arquitetura de Atenas, de Roma, de Copenhage, de Paris e várias
cidades norte-americanas. Foi necessário vir a São Paulo, contudo, para encontrar o mais
fabuloso exemplo da arquitetura moderna. Em nossas peregrinações pelo mundo, ja-
mais vimos coisa melhor – do que a realizada pelos arquitetos brasileiros. Cumpre, ain-
da, observar que, dentro do Brasil, São Paulo pontifica, e, dentro de São Paulo, o Edifício
Bretagne constitui, em minha opinião, a última palavra no tocante à arquitetura moder-
na. Este prédio está destinado a se tornar famoso no mundo inteiro. Desejo felicitar os
arquitetos brasileiros por essa notável realização, que se reveste de características pionei-
ras na avançada arquitetura moderna”.
Ora, meus amigos, jamais ouvimos afirmações tão sem fundamento, tão graciosas e tão
infelizes. Ou esse arquiteto percorreu o mundo e não viu nada, ou, então, é autor nos
Estados Unidos de aberrações iguais a essa, levando, porém, a vantagem e a diferença de
ser ele arquiteto e diplomado, o que não acontece com os seus protegidos. Além do mais,
rasga um elogio aos arquitetos brasileiros, provavelmente desconhecendo nossas gran-
des obras. Pois os estudantes das faculdades de arquitetura já sabem desde o primeiro
ano que este exemplo é exatamente aquele que não deve ser imitado, porque é o avesso
da arquitetura contemporânea, é o joio de nosso trigo. Contém tudo o que pode consti-
tuir aberrações: na forma, na cor, no tratamento, no equilíbrio, na proporção. Errado de
cima a baixo. É ridículo, várias vezes, toparmos com elogio dessa natureza, pois seria o
último dos exemplos de arquitetura a ser mencionado em qualquer parte do mundo.
Não atinamos com a artimanha usada para levar esse americano a dizer tal coisa e trans-
portar a comitiva que se compunha de vários outros arquitetos até esse local. Esse edifí-
cio constitui-se num dos piores exemplos de arquitetura, e elogiá-lo dessa forma é igno-
rar maldosamente, com toda a certeza, o Edifício Esther, dos arquitetos Álvaro Vital Brasil
e Ademar Marinho, o Hospital do Câncer, do arquiteto Rino Levi, o Edifício Três Marias,
do arquiteto Abelardo de Souza, o Edifício Mara, do arquiteto Eduardo Kneese de Mello,
o edifício do cinema Ipiranga, também do arquiteto Rino Levi, o Edifício Eiffel, do ar-
quiteto Oscar Niemeyer, os vários edifícios do arquiteto Franz Heep, que já se integrou

79
em nosso meio, produzindo ótima arquitetura, as obras do Parque Ibirapuera, dignas de
admiração, dos arquitetos Oscar Niemeyer, Hélio Uchôa, Zenon Lotufo e Eduardo Kneese
de Melo, e uma enorme série de obras notáveis que corporificam nossa criação artística.
Mr. John R. Fugard, quem lhe contou tamanha anedota?
O senhor foi tapeado deslavadamente. Aplicaram no senhor “o conto dos pilotis”, e o
senhor, que parece tão culto, tão viajado, caiu como pato! Que pena!
Por que o senhor não fez como tanta gente que tem subido no topo de tal monte… [...]
mas de tijolos e se maravilhando com o panorama, ignorando, no entanto, o que está dos
pés para baixo?
A arquitetura contemporânea brasileira, que já adquiriu consistência, não permite mais
o deboche, nem pode ser confundida como se fosse a [...] respeitosa.3

É bastante provável que Jurado nem tenha tomado conhecimento dessa matéria,
embora se mantivesse há tempos como um grande anunciante daquele importante
meio de divulgação e comunicação da arquitetura contemporânea da época, a revis-
ta Acrópole. A fonte para o protesto de Eduardo Corona está nas impressões deixadas
por escrito no livro de visitas – parte delas citadas por ele no artigo – pelo chefe da
delegação de arquitetos norte-americanos, John R. Fugard, e que depois foram pu-
blicadas na Folha da Manhã, como matéria paga, a título de promoção e venda do
Edifício Bretagne.
Mais tarde, em 1989, aos 68 anos, Corona, professor titular da FAU-USP, lamentou
que os arquitetos não tivessem exercido pressão suficiente para reprimir “essas aberra-
ções”, mas também achava que, agora, não são mais nada e devem ser esquecidas:

O cara não era arquiteto, era empresário. O período era de alta especulação imobiliária.
O setor imobiliário recorria a empresas daquele tipo, e não a arquitetos, por isso ficáva-

3
Eduardo Corona, “Que audácia!”, em Acrópole, no 232, fevereiro de 1958, pp. 32-35.

80
mos indignados. Os prédios dele estão hoje no bolo da coisa ruim. São como os outros,
não precisamos mais ficar indignados como na época. Não interessa dizer que aquilo era
fedorento. É coisa ruim. Acabou.4

O que parecia incomodar bastante o professor era a falta de brasilidade na arquite-


tura de Artacho Jurado. Segundo Corona, Artacho revelava desprezo pelas marcas da
identidade nacional. Ao que parece, no entender de Corona, podia-se comprovar esse
viés no gosto de Artacho observando-se as cores geralmente escolhidas por ele para o
exterior de seus prédios: o azul colonial, o rosa, o amarelo, etc.
Todavia, não houve apenas acusações na trajetória de Jurado. Durante a fase que
antecedeu a inauguração e a entrega do Bretagne, o arquiteto Cristiano Stockler das
Neves aproximou-se dele e passou a freqüentar a roda de amigos da Monções, dedi-
cando ao colega uma crítica altamente favorável enaltecendo seu estilo arquitetôni-
co. Após uma visita, ao lado de Jurado e Aurélio, às dependências do Bretagne, Cris-
tiano concedeu, a pedido de Jurado, uma entrevista que foi publicada no Diário da
Noite, de 27 de novembro de 1958, na qual declarava: “A Monções está, pois, de para-
béns. Fez um edifício para o corpo e também para o espírito, e não apenas uma
máquina de morar, que o materialismo inventou, que o mimetismo adotou e que o
esnobismo fomentou”.5
Controvérsias, contradições, desvarios e enaltecimentos à parte, o fato, que não se
pode negar, é que João Artacho Jurado escreveu algumas páginas na história da cons-
trução civil paulistana e santista.

4
Eduardo Corona, apud Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”, cit., intertítulo “Dos pilotis e das pastilhas”, p. 7.
5
Cristiano Stockler das Neves, apud Diário da Noite, 27-11-1958; recorte avulso do jornal, s/p.

81
Feiras de amostras e exposições

Em meados dos anos 1930, depois de


praticamente abandonar a fase de letrista
– não sem antes fazer algumas placas e le-
treiros para os estandes das exposições e
feiras que começavam a acontecer no es-
tado de São Paulo –, Jurado abre uma em-
presa para montar luminosos com gás
néon, que passava a ser muito utilizado na
iluminação publicitária.
É nessa ocasião que entra em cena, de-
finitivamente, agora como sócio, o irmão
mais novo de Jurado, Aurélio Jurado Ar-
O povo paulistano prestigiando tacho, que se tornaria seu braço direito e
a I Feira Nacional da Indústria.
Acervo Diva Jurado.
homem da mais alta confiança. Aurélio permaneceu a seu lado até o fim de suas ativi-
dades de projetista e de marketing e desempenhou o papel do empreendedor, adminis-
trando a saúde financeira dos negócios e fazendo as prospecções de áreas para os novos
empreendimentos imobiliários da futura construtora, enquanto a Jurado estaria reser-
vado o papel de protagonista no processo.
O escritório e a oficina da empresa localizavam-se atrás da Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, no centro da cidade de São Paulo. Ali eram feitos e vendidos os
luminosos à base de néon para as exposições e feiras que, naquele tempo, aconteciam
no Parque Antártica, na cidade de São Paulo.
A empresa prosperava, mas a montagem de néon para os estandes das feiras parecia
não mais entusiasmar tanto assim o espírito inquieto e aventureiro de Jurado, pois, ao
mesmo tempo que montava e comercializava os luminosos, passou a vislumbrar outra
possibilidade que o levaria a expandir sua crescente criatividade.
82
Jurado adorava o mar e a praia e, certamente, as várias passagens pela cidade de
Santos (SP), nos anos 1930, concorreram para que estabelecesse seu mais importante
contato: o empresário Roberto Simonsen. Esse contato lhe traria bons dividendos no
mercado de projeto, construção e organização de feiras, pois, em pouco tempo, ele
seria convidado para organizar e montar a I Feira Nacional de Indústria, na cidade de
São Paulo.
Antes, porém,em 1938, Jurado recebe, em Santos, a incumbência de organizar aquela
que viria a ser uma importante obra na área de feiras e exposições, tanto que, em fun-
ção disso, ele se mudou para essa cidade juntamente com a família. Ali, a família Jurado
permaneceu o tempo que durou a feira, aproximadamente cinco meses, hospedada em
uma das famosas e tradicionais pensões de Santos, que se localizavam principalmente
no bairro praieiro de José Menino.
Tratava-se da Feira do Centenário, que foi promovida pela Prefeitura Municipal de
Santos, com os patrocínios do Touring Clube do Brasil e da Sociedade Pró-Cidade de
Santos. Jurado, responsável pelo projeto e construção da feira, é também indicado para
comissário da Exposição do Centenário, inaugurada solenemente no dia 4 de fevereiro
de 1939. Essa grande exposição, comemorativa dos 100 anos da elevação da vila de
Santos à categoria de cidade, daria grande impulso em sua carreira, pois o poria em
destaque no cenário político estadual e adicionalmente o aproximaria de pessoas que,
em breve, o levariam a vôos mais altos.
Dentre essas pessoas, destacam-se o interventor federal, nomeado por Getúlio Var-
gas, para governar o estado de São Paulo, Ademar Pereira de Barros (1901-1969), o
prefeito de Santos, Ciro de Ataíde Carneiro, que, por sua vez, fora nomeado por Barros,
e governou a cidade de 1938 a 1941, tendo sido diretor de Serviços Jurídicos da Prefei-
tura de Santos e era historiador e membro da Primeira Comissão de História da Cida-
de de Santos, além do já mencionado Roberto Simonsen (1889-1948), engenheiro,
ex-senador por São Paulo, membro da Academia Brasileira de Letras e que naquela
época era dono da Companhia Construtora Santista.
83
Jurado em Santos, durante a montagem da Leonor Mendes de Barros (no centro, à direita) à frente de Ademar de Barros.
Exposição do Centenário. A menina Diva Artacho Jurado (à direita), com 5 anos, era quem sempre entregava
Acervo Diva Jurado. a tesoura para o interventor cortar a fita.
Acervo Diva Jurado.

84
Essa importante exposição atraiu multidões durante os meses em que esteve mon-
tada na avenida Conselheiro Nébias, no terreno da Companhia City, tendo recebido
grande destaque na imprensa local. Por exemplo, o jornal A Tribuna assim noticiou o
evento na primeira página:

O importante certame cujos trabalhos de organização foram confiados ao senhor


João Artacho Jurado, técnico competente, laureado em vários outros cometimentos
dessa natureza, apresenta aspecto grandioso, imponente, oferecendo, em síntese, um
conjunto esplêndido de nossas realizações no terreno comercial, industrial e artísti-
co. Os vários pavilhões que se estendem pelo vasto parque denotam, em sua cons-
trução, fino gosto arquitetônico, destacando-se, entre outros, o da Prefeitura, Indús-
tria e Comércio, Cia. City, Instituto do Café, Museu de Cera, Indústrias Reunidas
Francisco Matarazzo, SPR [São Paulo Railway], Touring Clube, Instituto Nacional
do Matte e Casino.6

A feira estendeu-se até fins de maio daquele ano, e várias comemorações paralelas
acompanharam o evento enquanto durou, como a Festa Veneziana, realizada no bairro
do Gonzaga; o desfile das organizações trabalhistas de Santos, visto pelo prefeito Ciro;
a apresentação dos ranchos – a maior atração do carnaval santista –, grupos musicais e
de dança que foram exibir-se no recinto da exposição.
Para que a feira fosse atraente pelo tempo que durasse, Jurado locou um parque de
diversões, montou um rinque de patinação para o público – onde houve apresentações
de patinadores internacionais –, um aristocrático cassino, cinema ao ar livre, autopista
e ainda barracas de comestíveis e de prendas. Tudo ficou registrado tal como noticiou
A Tribuna: “Já hoje funcionará o parque de diversões, o mais completo de quantos se

6
“Inaugura-se hoje, solenemente, a Exposição do Centenário”, em A Tribuna, 4-2-1939, p. 1.

85
Portal de entrada da
exposição do Centenário de
Santos, em 1939.
Acervo Fundação Arquivo e
Memória de Santos (FAMS).

Portal da Exposição do
Centenário em obras.
Acervo Diva Jurado.

86
Aspectos da Exposição do Centenário de Santos, em 1939.
Acervo Fundação Arquivo e Memória de Santos (FAMS).

87
apresentaram em nossa cidade. Um conjunto magnífico de diversões se oferecerá aos
freqüentadores do moderno e bem organizado parque”.7 Além dessa variada gama de
atrações, Jurado ofereceu e sorteou, ao final do evento, um automóvel ano 1939.

Na presença do senhor Aurélio Jurado Artacho, representando o comissário geral, se-


nhor João Artacho Jurado [...] foi efetuada ontem a entrega do automóvel Opel Olym-
pia, sorteado entre os visitantes da Exposição [...] no recinto da Exposição do Centená-
rio de Santos [...] oferecido pelo comissário geral da Exposição.8

Roberto Simonsen, que também participou da feira como expositor, deixou seu
registro em entrevista publicada na edição especial de A Tribuna, em 29 de janeiro:
“Estive, de fato, em Santos, visitando o recinto em que se vai realizar a exposição come-
morativa do centenário da cidade. A Companhia Construtora de Santos e algumas
outras empresas a que me acho ligado vão figurar nessa exposição”.9 A participação das
empresas ligadas a Simonsen no evento traria a Jurado, graças à nova amizade, a chan-
ce de, em 1940, montar e organizar a I Feira Industrial, a ser realizada no Parque Antár-
tica, na cidade de São Paulo. Foi representativo para Jurado ter desenvolvido esse con-
tato com o engenheiro Roberto Simonsen, pois este,importante empresário e intelectual,
foi o homem que ajudou a fundar a Fiesp e, como proprietário da Construtora Santis-
ta, havia empregado o próprio Gregori Warchavchik, um dos pioneiros do movimento
moderno brasileiro.
Durante alguns anos, Jurado projetou, vendeu e comercializou seus estandes em
exposições em sua cidade natal e em outras no interior do estado, como Campinas,
onde, em 1939, também projetou e montou estandes para os festejos do bicentenário
daquela cidade.

7
Ibidem.
8
Ibidem.
9
Roberto Simonsen, apud A Tribuna, edição especial, 29-1-1939.

88
Mas, como Jurado era o proprietário
dos estandes que construía, comumente os
alugava, reformando-os ou adaptando-os
a cada novo evento. Nesse cenário, graças
à sua competência e à influência das recen-
tes amizades, é incumbido da organização
da Feira Industrial em São Paulo.
Assim, a exemplo do que fizera em San-
tos, Jurado transporta seus estandes serra
acima e executa o projeto de adequação
para a área do Parque Antártica, espaço re-
servado à I Feira Nacional de Indústrias de Estudo em perspectiva para a entrada da I Feira Nacional de Indústrias.
São Paulo, inaugurada no dia 7 de setem- Acervo Diva Jurado.

bro de 1940, também pelo interventor es-


tadual Ademar Pereira de Barros.
No início de 1940, começam as adapta-
ções necessárias à realização da exposição
com os trabalhos de remodelação de toda
a infra-estrutura do parque, para receber
os edifícios da feira, que foi patrocinada
pelo Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio – chefiado por Waldemar Fal-
cão – e organizada pela Federação das In-
dústrias e Comércio do Estado de São
Paulo.
Esse evento pioneiro, com essa dimen-
são, realizado na cidade mais industriali-
Fotografia da maquete da I Feira Nacional de Indústrias, em 1940.
zada do país, proporcionou a Jurado fama Acervo Diva Jurado.

89
Apresentação da maquete da feira na presença de Simonsen, Jurado e Aurélio (acima à direita).
Acervo Diva Jurado.

Diva Artacho Jurado entrega a tesoura a Ademar de Barros. Ademar de Barros e sua comitiva, acompanhados por Jurado (à
Acervo Diva Jurado. esquerda do interventor), em visita à I Feira Nacional de
Indústrias de São Paulo.
Acervo Diva Jurado.

90
e, sobretudo, admiração de pessoas do ce-
nário político e cultural paulista. Não foi à
toa que, durante as obras, a feira recebe a
visita de muitas personalidades, entre elas,
o amigo Roberto Simonsen, agora depu-
tado.
Jurado já era um empreendedor expe-
riente, e procurou esmerar-se na realiza-
ção dessa feira,que brilhou como seu maior
empreendimento da época. Isso pronta-
mente o credenciou para realizar a II Fei-
ra, em 1941, no mesmo Parque Antártica.
Esse convite subseqüente foi resultado As obras da feira nacional em fase de conclusão.
da criatividade e esmero de Jurado para Acervo Diva Jurado.

atrair o público da I Feira, que, em sua


con-
cepção, deveria freqüentar a área do par-
que diuturnamente, dada a magnitude do
evento, previsto para proporcionar uma
permanência prolongada.
Assim, foram montados, além dos pa-
vilhões dos estados e secretarias estaduais,
outros atrativos, como um parque de di-
versões, uma concha acústica para shows
de artistas da época e a apresentação de
números circenses, cinema, um restauran-
te do tipo grill, em que as pessoas podiam
almoçar e jantar, sem contar uma infini- Obras para a I Feira Nacional de Indústrias de São Paulo realizada em 1940.
dade de barracas que serviam sanduíches Acervo Diva Jurado.

e refrigerantes, espalhadas por toda a área.


91
Concha acústica para apresentações ao ar livre.
Acervo Diva Jurado.

92
Concurso de cartazes para a I Feira Nacional de Indústrias. Exibição dos cartazes que concorreram à Feira.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

Segundo Irineu Simonetti: “Ele me disse: eu mecanizei muita coisa na feira, você
nem imagina quanta coisa. Tinha esteira rolante para demonstração de coisas, esteira
plana rolante. Mecanizei muita coisa. Depois ficou um mundo de motores que ele
tinha usado”.
As áreas de circulação eram verdadeiras alamedas, que receberam tratamento urba-
nístico. Nelas, Jurado redesenhou postes de iluminação, estilizando-os com caracterís-
ticas que lembravam os cenários dos filmes de Flash Gordon, além de fontes lumino-
sas, como as que fizera na Feira de Santos, um ano antes.

93
O que mais chamou a atenção, porém, foi uma história em quadrinhos em forma de
tira, escrita e desenhada inteiramente por Jurado. Essa tira era veiculada nos jornais da
época, e nela uma certa família Vieira, cujo chefe era o senhor Vieira, passeava por
todos os cantos da feira, descrevendo os equipamentos de diversão ali instalados, as
barracas de sanduíches e lanches, e relatava que lá se comia bem e barato. Falava, sobre-
tudo, das novas amizades que conquistava.
Esse foi um momento raro na trajetória de Artacho Jurado, pois é sabido que ele
pouco ou nada escreveu, não tendo a menor queda para tal atividade. No entanto, essa
história em quadrinhos é um fato comprovado: foram encontrados os textos originais
– escritos em prosa, num estilo bem recorrente da época –, datilografados para talvez
serem apreciados por algum crítico.
Mas também foram usados outros meios para atrair o público, tais como a instala-
ção de uma placa, logo na entrada, na qual se lia: “Um prêmio aos visitantes/todos os
dias. Qual será a numeração da borboleta de entrada número 1 às 10 horas da noite?
Dê seu palpite e leve para casa um rádio inteiramente grátis”.
Naquela época, as feiras, diferentemente do que ocorre hoje, tinham tempo de per-
manência muito maior. Só em 1954, por conta das comemorações do IV Centenário
da cidade de São Paulo, foi inaugurado o primeiro local permanente de exposições em
São Paulo: o Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, inicialmente chamado Palá-
cio das Indústrias, e, hoje, oficialmente denominado Pavilhão Cicillo Matarazzo Sobri-
nho. Por serem ao ar livre, pois não existiam ambientes edificados com o fim de abrigar
exposições, os pavilhões eram construídos com solidez e requintes de acabamento de
obras civis, isto é, eram feitos para resistir, sem infiltrações, a toda sorte de intempéries.
Essas “instalações” eram verdadeiros edifícios urbanos. Isso fazia com que durassem
um bom tempo além do necessário e fossem reaproveitados, passando por manuten-
ções ou sofrendo pequenas reformas, para se adaptar a outros eventos que ali pudes-
sem ser realizados.

94
De qualquer forma, o consumo de materiais de construção para esse tipo de evento
era gigantesco, com largo emprego de madeira, telhas, tintas, ferragens, tijolos, arga-
massa, vidros, instalações elétricas e hidráulicas, sendo necessários também projetos
de arquitetura, design e engenharia para fundações e estrutura. Constituía-se, então,
um verdadeiro parque de obras.
Enfim, o sucesso dessa primeira feira paulistana realizada por Artacho Jurado ficou
registrado no depoimento dado pelo então ministro do Trabalho, Indústria e Comér-
cio, Waldemar Falcão, quando de sua passagem por São Paulo, em novembro de 1940,
e transcrito da capa do convite do evento: “Detive-me assim em São Paulo a visitar a
Feira Nacional de Indústrias, que ali vem funcionando desde setembro último, com
grande resultado [...]”.
Freqüentando esse campo de atividades por um longo período, Jurado aprendeu
muito sobre construção civil. As feiras seriam a sua principal e única escola de arquite-
tura, engenharia e, sobretudo, de marketing promocional. Com elas, Jurado deu asas à
sua criatividade, chegando mesmo a assumir riscos na execução de pavilhões de gran-
de porte.

A guinada definitiva para a construção civil

O final dos anos 1930 e o início dos anos 1940 foram um período fértil, apesar dos
anos de guerra que se iniciavam e do momento político nacional delicado, tempo do
Estado Novo e da repressão política de Getúlio Vargas. Nos idos de 1930, o Brasil co-
meçava a dar uma guinada em sua trajetória e deixaria em poucos anos de ser um país
essencialmente agrícola, para acolher mais e mais a presença de massas operárias nas
grandes cidades, especialmente do Centro–Sul, tornando mais freqüentes atitudes e
discursos sindicalistas, embarcando, paulatinamente, no sonho industrial ou no de-
senvolvimentismo inspirado pela ação do Estado.

95
É dessa época o início da construção e montagem da Companhia Siderúrgica Na-
cional (CSN), pelos norte-americanos, em Volta Redonda (RJ), entre 1941 e 1946. Ao
mesmo tempo, dava-se a expansão das cidades brasileiras graças à expansão industrial,
à ampliação dos setores públicos e de serviços e aos movimentos de migração interna.
Era o Brasil urbano nascendo.
Esse fenômeno foi registrado notadamente no Rio e em São Paulo, que já mostrara
sua vocação industrial desde os anos 1920, quando recebeu e implantou muitas indús-
trias, tendo se acentuado desde a segunda metade do século XIX, contando, para isso,
com a imigração de trabalhadores estrangeiros, substituída posteriormente por migra-
ções de brasileiros de outras regiões em direção ao Sudeste.
Enfim, o que se revelou em todo esse período foi um surto urbanístico.

Em São Paulo, a escassez de habitação e o problema de transportes foram reivindicações


constantes da população nos anos de Getúlio Vargas. A oferta de apartamentos compac-
tos, econômicos, de um quarto, a popular kitchnette, constituiu uma tipologia arquitetô-
nica inovadora e de grande sucesso na época, limitando a necessidade de moradia ao
essencial.10

Essa verticalização, sobretudo voltada para a moradia de aluguel e de baixo custo –


e com alto índice de aproveitamento –, foi um dos desafios aos propósitos da arquite-
tura moderna, que respondeu com a produção de plantas livres, que, nas condições
efetivas em que se processou, gerou espaços exíguos.
É nesse momento que os arquitetos ficam na mira dos empreendedores imobiliá-
rios, sendo contratados para produzir tais plantas. São reconhecidos como os únicos

10
Maria Ruth Amaral de Sampaio (org.), A promoção privada de habitação econômica e a arquitetura moderna 1930-1964 (São
Carlos: Rima, 2002), p. 11.

96
profissionais capazes de proporcionar, agora sim, com a formação funcionalista que
passaram a receber, a solução para o emergente mercado imobiliário paulistano.
De acordo com Maria Ruth Amaral de Sampaio:

A crise de 1929 e a guerra de 1939-45 tiveram conseqüências na oferta de habitações. No


período da guerra as construções decresceram: Prestes Maia, em artigo publicado no
Digesto Econômico, mostrava que a cidade de São Paulo construiu no ano de 1941 cerca
de 12 mil prédios e, com a guerra, a cifra anual desceu a 6 mil, resultando, em cinco anos,
em déficit de cerca de 30 mil casas. Embora nem todas essas construções fossem residen-
ciais, havia ainda a agravante da existência das habitações coletivas e do afluxo anormal
de população a São Paulo atraída pelo surto industrial.11

Ainda segundo a autora: “Analisando o crescimento da população paulistana e o


número de prédios [...] [havia] em dezembro de 1926, um déficit de 31.200 prédios”.12
A São Paulo de então estava passando por grandes reformas em seu plano urbano,
quando Prestes Maia – o prefeito naquele período – começou a pôr em prática seu
famoso Plano de Avenidas, com importantes alargamentos de ruas e abertura de aveni-
das propriamente ditas. Essa “obra, que pode ser considerada clássica em nossa biblio-
grafia urbanística [...] constitui um documento singular em vários sentidos”,13 pois
apontou e apoiou uma tendência importante à verticalização. Essa tendência, graças a
Prestes Maia, passou a ser vista como intensificadora do urbano e estimulante das vi-
vências dos cidadãos, no momento em que foi detectado o fortalecimento desse fenô-
meno nas áreas próximas ao Centro, favorecendo a ocupação da zona fora do Triângu-
lo histórico (formado pelas ruas Direita, Quinze de Novembro e São Bento, que é o
próprio núcleo do Centro Velho).

11
Ibid., p. 24.
12
Ibid., p. 14.
13
Nádia Somekh & Cândido Malta Campos (orgs.), “A cidade que não pode parar”: planos urbanísticos de São Paulo no século
XX (São Paulo: Mack Pesquisa, 2002), p. 60.

97
Daí em diante, o processo de verticalização estendeu-se e acelerou-se, fazendo que
as propostas de Prestes Maia fossem vistas de nova perspectiva: “Podemos identificar
como pressupostos centrais do plano o princípio do crescimento (horizontal e vertical,
destacando a expansão do Centro)”.14 Esse plano alimentou as idéias de técnicos da
Prefeitura paulistana, que nele se empenharam e o detalharam muitos anos antes de
sua implantação, enquanto ele estava numa espécie de latência, esquecido durante a
gestão Fábio Prado (1934-1938).
Jurado, por esse tempo, estava, todavia, concentrado nas feiras industriais que vi-
nham acontecendo, mas, ao final de 1946, resolve abandonar por completo, sem maio-
res explicações, a promoção de feiras e exposições, deixando para trás grande quanti-
dade de materiais, além da mão-de-obra por ele mobilizada e um vasto equipamento,
assim como todo o ferramental para construção. Com isso, os irmãos Jurado passam a
se dedicar, exclusivamente, à produção de pequenas obras, que já vinham tocando pa-
ralelamente às feiras industriais.
Assim, junto com o dinheiro e o enorme conhecimento ganho na realização de
obras civis, eles resolvem partir definitivamente para a construção civil. De saída, vão
se ocupar de casas, mas logo a seguir mudarão seu foco para empreendimentos maiores.
Nesse espaço de tempo, João, em companhia do irmão Aurélio, vai em busca de
terrenos pelos bairros próximos à Água Branca. E também estuda financiamentos pela
Caixa Econômica Estadual e pelo Instituto de Previdência do Estado de São Paulo
(Ipesp). O bairro da Água Branca parecia ser o local mais indicado, pois era próximo
do Parque Antártica – área de atuação deles, com a qual estavam familiarizados – e de
onde Jurado e Aurélio moravam: ele, na rua Ana Pimentel, que dava fundos para o
parque; e Aurélio, na avenida Antártica.
Esse foi o início da sua trajetória no ramo da construção civil, cujo cenário seria
enriquecido, mais tarde, com seu nome e de tantos outros, que lá estavam, passageira

14
Ibid., p. 62.

98
ou permanentemente. Na história que escreveram nesse campo de atuação, deixaram
destacado seu diferencial de trabalho e competência, além de evidenciarem, em todas
as suas ações, que não eram como alguns que por ali passavam para fazer dinheiro
rápido e, logo depois, desaparecerem.
É com esse espírito empreendedor que nasce, nessa ocasião, a primeira empresa da
dupla no ramo da construção: a Construtora Anhangüera Ltda., na rua Bráulio Go-
mes, no 25, no Centro Novo, nas proximidades da Biblioteca Municipal.

Primeiras obras – sobrados e prédios na Vila Romana e em Perdizes

A busca vai desaguar na compra, sem financiamento, de um grande “L” formado


por lotes de terrenos na esquina da rua Coriolano com a rua Crasso, no bairro da Vila
Romana, em São Paulo.
Trata-se de um conjunto de sobrados – que ainda existe, com algumas das caracte-
rísticas originais, conforme puderam ser observadas em fins de 2003 –, em que Jurado
pôde experimentar a sua arquitetura, dessa vez exposta para a rua, e não em recintos
fechados, como nas feiras e exposições. Visando agora o uso contínuo de moradores, e
não apenas o uso transitório dos visitantes de um evento. Nesse conjunto da rua Corio-
lano, já se podem notar as prototendências“artachianas”do projetar sem censura. Con-
forme Diva Jurado: “[...] ele tinha muita mão-de-obra. Eu lembro que ele tinha um
mestre nas feiras, que esse mestre-de-obras foi com ele depois para começar a cons-
truir essas casas [...] Esse pessoal ele aproveitou pra fazer aquelas primeiras casas da
Vila Romana [...]”.
Observando-se sua composição, é possível perceber algo de um estilo rústico na-
quela arquitetura, carregada com detalhes de pilares revestidos com pedras e enfeites
nas platibandas, mas que dava sinais de alguma coisa diferente estar sendo buscada. À
primeira vista, nota-se que não há um sobrado igual ao outro, embora façam parte de
99
Edifício Cláudio,
na Vila Romana.
Acervo Diva Jurado.

100
Casas na esquina da rua
Coriolano com a rua Crasso.
As primeiras experiências de
Jurado na Vila Romana com a
recém-inaugurada
Construtora Anhangüera.
Acervo Diva Jurado.

101
Duas residências na rua Crasso. Edifício Tupã, na esquina da rua Rafael Correia com a rua Crasso.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

102
Prédio na rua Cláudio com a rua Fábio. O térreo foi projetado por Jurado para ser moradia de seus pais.
Acervo Diva Jurado.

103
um conjunto e as casas sejam geminadas duas a duas. As casas têm tamanhos e progra-
mas diferenciados, algumas com varandas e terraços. Isso caracteriza o exercício de um
estilo rebuscado, como o de um aluno de arquitetura recém-formado e ávido por apli-
car todos os seus conhecimentos de uma só vez e em uma única obra; algo como uma
ansiedade de criação, que vai se perpetuar por toda a sua obra dali para a frente.
Mas, concomitantemente à construção e à venda dessas casas, ele teve dois rápidos
exercícios de projetar e construir edifícios baixos – prédios que ainda existem: um na
rua Rafael Correia com a rua Crasso, próximo à praça Tupã, chamado Edifício Tupã, e
outro na rua Cláudio, anônimo.
De acordo com sua filha Diva, “[...] era ali, atrás da igreja, ele fez um apartamento
térreo pro vovô e pra vovó. Porque aí era perto da igreja, e minha avó estava velhinha
[...] E ela gostava muito de ir à igreja. E meu avô não tinha deixado batizar filho ne-
nhum [...] então papai, nessa altura, resolveu fazer uma coisa perto da igreja, porque
ele achava que ela tinha o direito de ir à igreja [...]”.
Nota-se na balaustrada desses edifícios e casas o destino dado às madeiras que so-
braram das edificações provisórias da Feira Nacional de Indústrias de São Paulo, no
Parque Antártica, porém caprichosamente trabalhadas para darem o efeito desejado:
ornar as varandas dessas edificações.
Esse é o marco inicial das primeiras residências projetadas por Artacho Jurado na
cidade de São Paulo, fora do âmbito das feiras.
Com a finalização dessas obras,e a venda financiada pelo Ipesp,a Construtora Anhan-
güera parte para a realização de mais alguns empreendimentos, ainda nas imediações
do bairro da Água Branca. Poucos anos depois (1946-1947), é lançada uma vila de
casas, com o nome de Jardim Anhangüera (uma homenagem óbvia à recém-criada
construtora), na rua Venâncio Aires, invadindo a travessa Gondoleiro do Amor e parte
da primeira quadra da rua Raul Pompéia.
A arquitetura dessas casas nos remeterá imediatamente às suas construções seguintes
localizadas na rua Cajaíba, em 1948,cujos programas diferenciados são bem semelhantes
104
Dezesseis casas na esquina da rua Cajaíba com a avenida Pompéia.
Acervo Diva Jurado.

105
Entrada do Jardim Anhangüera, na rua Venâncio Aires.
Acervo Diva Jurado.

106
aos das primeiras, na Vila Romana, o pró-
ximo alvo da Anhangüera. Artacho como
que veio“caminhando”da Água Branca em
direção ao bairro de Perdizes, para depois
saltar até o Brooklin – onde outra compa-
nhia, a Bandeirantes, já estava fazendo, na
época, um grande loteamento –, onde Ju-
rado faria o grande conjunto de casas que
viria a ser o “Cidade Monções”, fruto de
muita coragem, que lhe daria notorieda-
de, tornando-o um profissional ainda mais
conceituado.
É preciso destacar que tanto na rua Ve- Arcos na entrada de uma
casa na rua Cajaíba.
nâncio Aires como na avenida Pompéia, esquina com a rua Cajaíba, Jurado faz uso dos Foto: Ruy Eduardo Debs Franco.

mesmos recursos arquitetônicos de que se apropriara quando da construção de suas


primeiras casas. Na Vila Anhangüera, porém, começa a destacar-se um elemento dife-
rente em sua arquitetura, que até então ficara recolhido embaixo de varandas: o arco,
que dá forma aos alpendres e que, se não é pleno, por vezes assume a característica de
ogiva, um vôo que Jurado faz pela arquitetura gótica, a primeira morada da arquitetu-
ra moderna. Outras vezes, esse arco assume a forma do túnel daqueles brinquedos de
parque de diversões ou dos brinquedos que ele criava para as feiras. O ambiente dessas
primeiras obras ainda lembra o de uma maquete do abandonado Parque Antártica das
exposições, agora pertencente ao passado.
Crescendo em destaque, o arco acaba por se tornar o elemento predominante em
suas próximas criações, ainda tímidas, em Cidade Monções.

107
Sanca no teto da sala de uma
das residências entre as ruas
Coriolano e Crasso.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.

Escada e corrimão,
na mesma residência.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.

108
Cidade Monções

Em 1949, a Construtora Anhangüera


deixa a região da Água Branca, Pompéia e
Perdizes e parte para uma localidade que
poucos anos antes havia se desenvolvido
como um núcleo urbano autônomo nos ar-
rabaldes do município de São Paulo. Tra-
tava-se do então promissor e histórico ex-
município de Santo Amaro, que, em 22 de
fevereiro de 1935,fora anexado a São Paulo.
Atraídos pelo perfil desse novo bairro-
cidade e pela crescente linha de emprésti-
mos populares, os Jurado, João e Aurélio,
conseguem, por intermédio da Caixa Eco-
Publicidade do
nômica Federal, uma promessa de financiamento para a construção de casas, acertan- loteamento
Cidade Monções.
do a opção de compra de quadras com a Companhia Bandeirantes de Terrenos e Cons- Acervo Diva Jurado.

truções, que naquele momento estava loteando o bairro do Brooklin Paulista.


O Brooklin ficava afastado do Centro da cidade de São Paulo e não tinha esse nome.
Era um local restrito a chácaras de fins de semana ou de cultura de verduras, principal-
mente de descendentes de imigrantes alemães, que lá se fixaram ainda no século XIX,
concentrando na freguesia de Santo Amaro parte da colônia alemã.

Em 1867, Carlos Kleyn, que viera da Alemanha e se localizara em companhia dos seus
patrícios no lugar chamado Colônia, constituída de terras doadas pelo governo provin-
cial, comprou a fazenda onde veio a residir em companhia de sua esposa, dona Ana
Catarina Norgang Klein, e seus filhos já nascidos aqui. Entretanto, ao contrário do que
muita gente pensa, o Brooklin Paulista nasceu e cresceu auto-suficiente. O bairro pro-

109
grediu dentro das suas próprias e na-
turais divisas [...]. Não teve ajuda nem
a influência dos poderes administra-
tivos. Ilhado,pode-se dizer,por muitos
anos, entre o córrego do Espraiado e
Cordeiro, os prédios residenciais, fá-
bricas e outros empreendimentos par-
ticulares sucediam-se formando o
monumental bairro, o qual, como dis-
semos no início, nasceu para ser uma
metrópole. Além, tanto ao lado da
capital como de Santo Amaro, por
Santo Amaro em 1921.
Acervo Diva Jurado.
muitos quilômetros, não havia vida,
isto é, não existiam casas de espécie
alguma.15

Para iniciar o empreendimento, os ir-


mãos adquirem, da Companhia Bandei-
rantes, duas quadras de 100 m por 100 m
entre as ruas Padre José Antônio dos San-
tos e Michigan, antiga avenida Central.
De acordo com Irineu Simonetti: “A
Companhia Bandeirantes existia até há
pouco tempo. Lotearam muito na Zona
Sul, muito. Nós visitamos várias áreas da

O bairro do Brooklin Paulista, em 1936, dois anos depois da anexação de Santo Amaro à cidade 15
Como nasceu o Brooklin, disponível em http://www.brooklin.
de São Paulo. com.br/especiais/comonasceuobrooklin.htm. Acesso em
Acervo Diva Jurado. 5-2-2004.

110
Projeto de Jurado de loteamento e urbanização de uma das quadras do Brooklin Paulista.
Acervo Diva Jurado.

Contracapa do folder da Companhia Bandeirantes que dá idéia


do tamanho do empreendimento. A empresa de Jurado e
Aurélio negociou algumas glebas.
Acervo Diva Jurado.

Bandeirantes. Eu participava da compra de terreno. A Companhia Bandeirantes de


Terrenos tinha escritório na Líbero Badaró. A Monções comprou uma quadra da Ban-
deirantes, o terreno não valia nada, a Cidade Monções era brejo”.
Por outro lado, havia a linha de bondes (o vetor da expansão urbana paulistana),
uma realidade na cidade que abria caminhos para novas áreas de interesse imobiliário
e precedia o povoamento de regiões distantes do Centro. Esse meio de transporte já há
muito tempo fazia a ligação entre a cidade de São Paulo e o bairro de Santo Amaro,
serviço que era prestado pela Companhia Carris de Ferro de São Paulo a Santo Amaro.
111
Em 14 de março de 1886, o conselheiro João Alfredo, presidente da
Província de São Paulo, presidiu a cerimônia de inauguração da nova
estrada de ferro: o trenzinho a vapor saiu da estação da rua São Joa-
quim às 11h36 da manhã. A linha seguia pelas atuais rua Vergueiro,
rua Domingos de Morais, avenida Jabaquara, até o local onde está a
Igreja de São Judas Tadeu. Ali ficava a estação “do encontro”, onde os
trenzinhos faziam um reabastecimento de combustível e água. Seguia
depois por vastos campos, onde hoje estão os bairros do Aeroporto e
Campo Belo, e alcançava o Brooklin Paulista. Seguia depois pela atual
Chácara Flora, e entrava em Santo Amaro por uma curva que passava
pelas atuais ruas São José e Nove de Julho. O ponto final era na praça
Santa Cruz, onde está a Escola Linneu Prestes. O percurso todo era
feito em uma hora e meia, mais ou menos.16

O desenvolvimento do então município de Santo Amaro re-


laciona-se diretamente à história dos bondes na cidade de São
Paulo, que começa com esse trenzinho a vapor e encerra-se em
Capa do folder da Companhia
Bandeirantes para a campanha
1968, passando por várias etapas, dentre as quais se destaca a
do Brooklin Paulista. criação da primeira linha de bondes elétricos, inaugurada em 7 de maio de 1900, ligan-
Acervo Diva Jurado.
do o largo São Bento ao bairro da Barra Funda.
Com toda essa expansão para Santo Amaro, não havia dúvidas de que o Brooklin
seria uma boa aposta para um investimento seguro da Construtora Anhangüera de
João e Aurélio Jurado. O transporte de passageiros entre São Paulo e Santo Amaro
atingia números muito elevados, e estava em constante crescimento.
Sem dúvida, na época, o serviço de bondes de São Paulo representou um dos agen-
tes de definição de áreas de interesse para a urbanização, desenvolvimento e expansão

16
Trecho extraído de http:www.wvp.hpg.ig.com.br/Hbd3.html. Acesso em 5-2-2004.

112
da cidade, ainda que, nesse processo, prevalecessem formas
clientelistas de definição de trajetos e investimentos.
Já de posse da primeira gleba (de 100 m ! 100 m) adquirida
da Companhia Bandeirantes, Jurado desenvolve a planta-tipo das
residências, que tinham aproximadamente 70 m2 e ocupariam
um lote-padrão de 10 m de frente por 15 m de fundo. Foi dada
entrada no projeto na Prefeitura de São Paulo, e, com a conse-
qüente aprovação, iniciou-se a construção.
O projeto de arruamento interno das quadras também foi fei-
to por ele, ficando assim definida a implantação dos lotes. Dá-se,
então, sua percepção de que o tamanho do empreendimento de-
mandava um procedimento diferenciado de obra, já que o volu-
me de construção ao qual ele se havia proposto era o da produ-
ção maciça de casas térreas. Assim sendo, a racionalização da
construção se fazia mister e, portanto, ele desenvolve um equipa-
mento – talvez, ou provavelmente, com a ajuda de um engenhei-
ro mecânico – que fosse capaz de instalar os forros dos telhados
pré-montados das casas, e outro que era composto de guias pa- Folder publicitário do
ralelas para gabaritar as paredes, dispensando o fio de prumo, buscando, dessa manei- Brooklin Paulista.
Acervo Diva Jurado.
ra, o máximo de desempenho...
Irineu Simonetti é quem relata: “Ele punha o andaime numa altura, a caixa de mas-
sa numa altura regulável, inventou carrinho com rodas grandes e caçamba [...] Ele
inventou que, ao invés de usar a colher de pedreiro com um pedreiro, devia pôr três
operários seqüenciais, um com uma colher dessa de cereais pondo a massa sob o tijolo
e o pedreiro de trás vindo colocando o tijolo e recolhendo o excesso de massa, dimi-
nuindo o desperdício e para dar velocidade maior na construção”. Ao medir todo esse
processo, continua Simonetti, “chegou à conclusão de que ele conseguiu o dobro da
metragem quadrada de parede operando dessa forma [...] Autodidata.Mas ele era genial.
113
Fotografia da maquete da planta-padrão com 70 m² Perspectiva feita por Jurado. Material publicitário para promover as vendas de Cidade Monções.
desenvolvida por Jurado para Cidade Monções. Acervo Diva Jurado.
Acervo Diva Jurado.

114
Racionalização na montagem
dos panos de telhado e arcos
pré-moldados em concreto.
Acervo Diva Jurado.

115
As inovações tecnológicas
propostas por Jurado para o
processo construtivo. O prazo
também é fator de vendas.
Acervo Diva Jurado.

116
Racionalização no
assentamento dos tijolos.
Acervo Diva Jurado.

117
Ele lucubrava, anotava. Não pense que ele escrevia bem, não, ele escrevia mal. Anotava,
chamava os auxiliares e punha em execução e ia acompanhar o resultado”.
Dessa forma, optando por uma construção seriada e racional, ele ergueu a Cidade
Monções. O conjunto foi sendo desenvolvido e vendido com financiamento da Caixa
Econômica Federal. Como conseqüência, Jurado e o irmão Aurélio ganham prestígio
como novos empreendedores, pois novas quadras lhes são reservadas para compra à
medida que as construções avançam e novas glebas são requeridas.
Esse empreendimento tinha como público-alvo os funcionários da própria Caixa
Econômica Federal, do Banco do Brasil, do Banco do Estado de São Paulo (Banespa) e
da Caixa Econômica Estadual, além de professores e escriturários, que, naquele tempo,
eram profissões bem-remuneradas e de grande prestígio.
A esse respeito, Irineu Simonetti explica:“As casas eram parceladas em até cem vezes
com juros mensais. No processo mais empírico que podia haver. Vendia, suponha em
linguagem de hoje, uma casa por 100 mil. A pessoa dava 10 mil de entrada ficava de-
vendo 90 mil. Então, no fim do mês, calculava 1% de juros, ou 10% ao ano, acrescenta-
va ao capital, rachava capital com juros, fazia a prestação, deduzia e rachava o capital
que seria amortizado no mês seguinte. O recibo era detalhado para o comprador que
não tinha escolaridade entender o desenvolvimento de sua dívida. O que levava a ele,
quando tinha uma folga de dinheiro, vir fazer uma amortização. Aí não havia ainda
correção monetária”.
De início, eram cem unidades, que foram oferecidas aos compradores já com um
carro da marca Ford na garagem, um modelo Prefect, pois, conforme Simonetti,“para
vender na Cidade Monções, naquela época, era impossível! Então a venda foi sendo
dando um Prefect, que era um carrinho inglês que parecia um guarda-louça. A pessoa
na compra da casa recebia um Prefect ou tinha um desconto e não recebia o Prefect...
Então você diria: a Cidade Monções foi vendida para pobre? Não, tanto que quando se
ofereceu um carro partiu-se do princípio de que ela tinha carta. O povão não tinha
carta naquela altura, nem pensava em carro. Era a classe B alta”.
118
O gerenciamento do processo
construtivo inventado por Jurado
para agilizar a construção. As
guias das paredes são feitas em
perfis.
Acervo Diva Jurado.

119
Racionalização na montagem de
caibros e ripas.
Acervo Diva Jurado.

120
Cidade Monções em 1949. Os
arcos e os pórticos de Jurado,
já registrados na Vila Romana
anos atrás.
Acervo Diva Jurado.

121
Cidade Monções em março de 1950. Ao fundo nasceria o futuro bairro do Morumbi.
Acervo Diva Jurado.

122
Um fato curioso, embora desmentido
por Simonetti, sobre o marketing adotado
na venda das casas, era a oferta, além do
Prefect, de uma linha telefônica instalada
nas residências. Segundo o entrevistado,
em 1948, uma linha telefônica era extre-
mamente cara, e não estava disponível, es-
pecialmente para um local tão distante
quanto o Brooklin. Com essa atitude, iné-
dita e inovadora, até mesmo para os dias
de hoje, Jurado despertava a curiosidade
do mercado imobiliário de São Paulo, na- Uma das quadras em fase final.
queles idos de 1940, dando os primeiros Acervo Diva Jurado.

passos em direção ao marketing imobiliá-


rio, que, bem a seu estilo, era desprovido
de censura e métodos ortodoxos.
Por causa desse empreendimento, a di-
reção da Companhia Bandeirantes de Ter-
renos e Construções teve em alta conta a
Construtora Anhangüera. Como a linha de
crédito com a Caixa Econômica Federal se
mantinha aberta, os irmãos continuavam
contando com os financiamentos e, assim,
terminaram as duzentas casas restantes
usando os mesmos métodos de construção
e marketing.
Antes do encerramento da operação das
Vista do conjunto em meados de 1951.
linhas de bonde, introduz-se a primeira Acervo Diva Jurado.

123
linha de ônibus, criada pela Companhia Jabaquara de Ônibus. Essa linha foi batizada
de “Cidade Monções”. Tudo se encaminhava para consolidar o empreendimento como
um verdadeiro bairro da cidade de São Paulo. Até uma igreja havia sido construída
pela Anhangüera, na rua Guararapes. Jurado entendia, assim, que estava criado o novo
bairro – agora denominado oficialmente – Cidade Monções, e, certamente, além da
formação de um centro comercial e da presença de uma igreja, a linha de ônibus foi
uma melhoria muito bem-vinda.
Durante as obras de Cidade Monções, nasceu a Imobiliária Monções Ltda., que teve
como primeira função a comercialização das pequenas casas de Cidade Monções. Os
irmãos aprenderam muito com essa obra, que começava a encerrar-se pelos fins dos
anos 1940.
Durante a empreitada, considerando o sucesso com as vendas, as transformações
urbanas de São Paulo chamaram a atenção de Jurado. Naquele período, vinha ocorren-
do a expansão do centro paulistano e dos bairros vizinhos a ele, como Higienópolis,
que estavam se tornando extremamente atraentes sob o ponto de vista de novos negócios.
Particularmente Higienópolis, pois ali as grandes mansões do fim do século XIX
estavam sendo, em sua maioria, abandonadas por seus proprietários, para serem alu-
gadas, transformando-se em pensões ou em grandes cortiços. As antigas residências
passavam por franca decadência, com suas vastas instalações, de manutenção difícil e
custosa, demandando mão-de-obra que, gradativamente, era absorvida pelas indústrias
que se instalavam em São Paulo, num processo que só se intensificava desde o fim do
século XIX. Estabelecera-se, portanto, uma concorrência direta e pouco favorável aos
proprietários de residências em Higienópolis, quando se tratava de contratar criados.
Além disso, o hábito familiar, comum em séculos passados, de morar em grupo
estava, aos poucos, acabando. Dessa maneira, essas famílias cederiam cada vez mais às
propostas do mercado imobiliário, que via, em seus vastos e bem localizados terrenos,
uma promessa de boas vendas de grandes edifícios residenciais. “Com sua localização
privilegiada, aliada ao antigo prestígio, o bairro sofreu o assédio da classe média
124
Cidade Monções em março de 1952.
Acervo Diva Jurado.

125
emergente”.17 A intensificação da verticalização em Higienópolis data de 1940, segun-
do Gagetti. Essa mesma febre havia começado quase ao mesmo tempo no Centro, e é
para lá também que a construtora dos irmãos Jurado se dirige, pois o Centro dispunha
ainda de muitos terrenos, e a preços baixos, além de boa infra-estrutura.
O lucro teve destino certo nas mãos da recém-fundada Construtora e Imobiliária
Monções, que, daquele momento em diante, só faria planos ousados, e partiria defini-
tivamente para a construção de prédios altos, primeiro na cidade de São Paulo e, pos-
teriormente, na cidade de Santos.
João e Aurélio eram, porém, dois filhos de imigrantes, sem o tradicional prestígio
das famílias antigas para se aventurarem no efervescente mercado imobiliário paulis-
tano. Por isso, abrem as portas da recém-criada Construtora e Imobiliária Monções
S. A. à participação de Sílvio Brand Correia, que, segundo Simonetti, era advogado e
parente de Sebastião Camargo, da Construtora Camargo Corrêa, que, naquela época,
já tinha grande participação no meio. Sílvio Brand entra como sócio da empresa parti-
cipando com 13% das ações. Outros nomes importantes viriam a somar-se ao de Brand,
como José de Castro Tibiriçá, que ocuparia o cargo de diretor-gerente. Castro era ban-
cário e já fora diretor de uma grande instituição financeira privada.
Assim, com reforços recém-adquiridos, a Monções esperava conquistar a confiança
de novos clientes e se mostraria pronta para entrar no mercado de construção de edi-
fícios altos, agora amparada tanto no aspecto jurídico, quanto no financeiro. Portanto,
a construtora teve, logo nos primeiros anos de vida, a sua sociedade dividida entre os
irmãos fundadores e terceiros, seguindo o intuito de torná-la conhecida e fazê-la atin-
gir patamares mais elevados.

17
Luiz Flávio Gagetti,“Verticalização e produção de edifícios residenciais no bairro de Higienópolis de 1933 a 1964”, em Cader-
nos de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, I (1), 2001, p. 70.

126
Cidade Monções tendo ao fundo (à direita) o futuro bairro do Morumbi.
Acervo Diva Jurado.

127
Primeiros lançamentos da Monções no Centro de São Paulo –
os edifícios Pacaembu, General Jardim e Duque de Caxias

No ano de 1947 já havia começado a grande virada no estilo construtivo da Anhan-


güera. Desse período em diante, só os prédios altos interessariam aos irmãos. O apelo
do mercado imobiliário para a verticalização era tão forte que, tendo já uma quadra
pronta e urbanizada com ruas e calçadas, no Brooklin, a construtora desiste de cons-

Edifício Pacaembu. Estudo para o Edifício Pacaembu com igreja na praça Padre
Acervo Diva Jurado. Péricles.
Acervo Diva Jurado.

128
Edifício General Jardim em fase de acabamento. Edifício Duque de Caxias.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

129
Solário do Edifício Duque de Caxias.
Acervo Diva Jurado.

130
truir o restante do planejado das casas e vende o empreendimen-
to para investir na construção de edifícios.
Assim sendo, o salto para as alturas é dado com o lançamento
quase simultâneo do Edifício Duque de Caxias, de planta escalo-
nada, na rua Barão de Campinas, no 243, com quarenta aparta-
mentos; do Pacaembu, com doze andares-tipo, financiado pela
Caixa Econômica Federal, localizado na avenida General Olím-
pio da Silveira, no 386, com cinqüenta apartamentos; e do Piauí,
com nove andares, localizado na rua Piauí, no 428, esquina com a
rua Maranhão, em Higienópolis. Eles são descritos no relatório
anual da construtora, de 1953, como “confortáveis, sóbrios e ra-
cionais”. Mais que isso, eles estavam “no coração aristocrático do
bairro de Higienópolis”.18
Paralelamente à obra do Pacaembu, acontecia a do Edifício
Piauí, que vinha em ritmo mais lento, talvez porque, além do
Pacaembu e do Duque de Caxias, havia ainda outro edifício em
curso: o General Jardim, na avenida Amaral Gurgel, formado de Detalhe do corrimão
em estilo art déco.
quinze andares-tipo, mais um terraço-jardim com pergolado. Eram, na verdade, qua- Foto: Ruy Eduardo
tro edifícios sendo erguidos ao mesmo tempo.E de acordo com Irineu Simonetti:“Aquilo Debs Franco, 2003.

foi um breve ensaio. Tanto o Duque de Caxias como o Pacaembu. Foi um ensaio, não
tinham expressão. Ele [Jurado] não ficou contente com aquilo”.
Ainda segundo Simonetti, o Edifício General Jardim nasceu da associação com um
capitalista chamado Arthur Sieveres, que era o dono do terreno. Por causa disso, acres-
centa: “Ele herdou umas lojas e alguns apartamentos no segundo e terceiro andares”.
Isso nos leva à conclusão de que a permuta por área também era objeto de negócio da
construtora.

18
Regina Maria Prosperi Meyer, Metrópole e urbanismo: São Paulo anos 50, tese de doutorado (São Paulo: FAU-USP, 1991).

131
Hall de entrada e cobertura
do Edifício Duque de Caxias.
Começam a surgir os
pergolados.
Acervo Diva Jurado.

132
Não existe uma ordem cronológica definida e registrada para o nascimento dos
prédios. Segundo Irineu Simonetti, os lançamentos são concomitantes e se dão imedia-
tamente após o sucesso obtido com as vendas das casas. Tanto que esses terrenos –
ocupados com a construção do Pacaembu e do Duque de Caxias – foram comprados
com o lucro gerado em Cidade Monções.
Por meio de levantamento feito posteriormente, pôde-se estimar que os três lança-
mentos aconteceram entre 1947 e 1948. Provavelmente, o Duque de Caxias e o General
Jardim tiveram a assessoria técnica do mesmo engenheiro, que mais tarde, em agosto
de 1952, assinaria o projeto do Louvre, na avenida São Luís. Quanto ao Pacaembu, teve
como responsável técnico o engenheiro Giunio Patella.
Com esses empreendimentos projetados totalmente por ele, o estilo de Jurado co-
meça a ser respeitado. Essas primeiras experiências com arranha-céus passam a ser
ostentadas em seu currículo de construtor, integrando ao espaço público uma arquite-
tura com personalidade. De posse dessas realizações, Jurado terá a chance de provar,
para si e para seus concorrentes, que seria capaz de implantar edifícios de apartamen-
tos no Centro e no concorrido bairro de Higienópolis, a exemplo do que já vinha ocor-
rendo com outros construtores na recém-urbanizada avenida Nove de Julho.
Ressalte-se, ainda, que, dentro dessa experiência que já estava sendo vista como“mar-
ca registrada” de Artacho Jurado, ganhava destaque o modo de decorar. Por exemplo, o
saguão de entrada do Edifício Pacaembu é ornado com granito, no piso e nas paredes
até o teto. O corrimão da escada tem como elemento decorativo liras (instrumentos
musicais) estilizadas, chamando a atenção as sancas redondas de gesso no hall de en-
trada, ladeadas por um grande espelho bisotado e emoldurado com mogno. Essas san-
cas também circundam pilares redondos e paredes, proporcionando uma bela ilumi-
nação indireta no ambiente.
Como na maioria dos empreendimentos da época, o Pacaembu tem no térreo áreas
comerciais e um mezanino – usado como sobreloja – que dá para um belvedere. A
visão oferecida pelo belvedere foi, no entanto, obstruída por um “monstro” ali instala-
133
Pavilhão no terraço.
Citações ao Parque Antártica.
Acervo Diva Jurado.

134
Entrada do Edifício Pacaembu.
Uma referência aos cinemas
de Rino Levi.
Acervo Diva Jurado.

135
Terraço de onde se avista o Estádio do Pacaembu à esquerda.
Acervo Diva Jurado.

136
O Edifício Pacaembu, sem o Elevado Costa e Silva, O saguão de entrada do Edifício Pacaembu.
em setembro de 1950. Acervo Diva Jurado.
Acervo Diva Jurado.

137
do no futuro. Certamente, na época, não seria possível prever a construção do Minho-
cão, ocorrida décadas mais tarde, que sufocou não só seu empreendimento, como to-
dos os outros que ladeiam a General Olímpio da Silveira.
A porta de entrada do Pacaembu repete elementos bizarros – feitos de latão e ferro
fundido – que nos remetem imediatamente aos postes de iluminação das feiras, no
agora distante Parque Antártica. Uma marquise com pé-direito duplo na entrada traz
embutidas luminárias redondas, que parecem vigias de navio, e nos fazem lembrar os
cinemas de Rino Levi no Centro: o Ipiranga (avenida Ipiranga) e o Art Palácio (aveni-
da São João).
Para Maria Eugênia França Leme:

Seus primeiros edifícios, o Duque de Caxias (1947), o Pacaembu (1948) e o General


Jardim (cerca de 1957), ainda não contêm, bem como as casas da Monções, as singulari-
dades que os colocariam futuramente nos guias turísticos da cidade. Sem décors ou
cromatismos, eles, de certa maneira, seguem as tendências da época, as influências do
art déco e de Rino Levi.19

Na fachada, varandas ainda tímidas e presas ao alinhamento insinuam apartamen-


tos pequenos, destinados a um público modesto ou a grandes investidores do setor
imobiliário que tinham nessa mercadoria sua fonte de renda, investimento e lucro.
Mas fazem-se presentes e mostram personalidade, porque, assim como o piso na en-
trada, são revestidas de pastilhas coloridas. “Artacho Jurado empregava revestimentos
em tudo quanto podia revestir, esbanjando formalismo e ornamentação, considerados
na época extravagantes”.20 Cabe lembrar que o uso da pastilha não foi privilégio dele,
pois já se havia difundido a partir do
19
Maria Eugênia França Leme, Re-conhecendo Artacho Jurado, capítulo V, trabalho final de graduação (São Paulo: FAU-USP,
1994), mimeo., s/p.
20
José Marcelo do Espírito Santo,“João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, em A&U, no 26, out.-nov. de 1989,
p. 82.

138
[…] edifício do Banco do Estado de São Paulo, no início da
avenida São João [praça Antônio Prado], [que] é típico desse
período. É o primeiro, em São Paulo, a utilizar o revestimento
de pastilhas, cujo uso se disseminou a partir de então, princi-
palmente após 1947, quando duas fábricas de pastilhas de por-
celana se instalaram em São Paulo.21

No topo do Edifício Pacaembu, de onde se avistava o estádio


municipal (inaugurado em 1940, é, atualmente, o Estádio Paulo
Machado de Carvalho), há um teto-jardim, projetado sob a in-
fluência do modernismo, no qual se encontra um pavilhão que
retoma características daqueles construídos para as feiras do Par-
que Antártica, em 1940 e 1941.
Esses elementos, tais como varandas, tetos-jardim, azulejos,
pastilhas, sancas com luz indireta, entre outros, marcaram os pro-
jetos de Jurado por todo o período em que ele construiu edifícios
e até mesmo algumas das casas levantadas ainda no bairro de
Perdizes.
Com isso temos uma amostra da megaalegoria, que logo de
saída tomou conta de sua arquitetura, estilo que, apesar de mis-
turado a elementos de modernismo, receberia mais tarde tanta
crítica falada e escrita dos adeptos dessa escola. Mas esses críticos
também estavam, naquele momento, projetando edifícios para o
Estudos para o hall de
mercado imobiliário de São Paulo e, dessa forma, participando entrada do Edifício Pacaembu.
Acervo Diva Jurado.
da história da verticalização paulistana, produzindo, assim como
Jurado, futuros marcos arquitetônicos.

21
Nádia Somekh, “A verticalização de São Paulo: um elemento de segregação urbana?”, em
Espaço & Debates, no 21, 1987, p. 81.

139
Para o lançamento do Edifício Pacaembu, várias perspectivas foram feitas, e, com o
objetivo de serem reproduzidas, foram fotografadas e, possivelmente, serviram de ma-
terial de promoção e de venda das unidades. “Se naquele momento profissionais pro-
curam aproximar a produção arquitetônica da indústria, Jurado projeta no sentido
inverso [...]”.22
Esses primeiros projetos de Jurado são muito semelhantes entre si e ainda não se
pautavam pelos princípios de conforto que viriam a surgir no Edifício Piauí. Portanto,
os halls de entrada no Edifício Pacaembu ainda são pequenos, e os térreos eram desti-
nados ao uso comercial. Assim, não possuem garagem e em nada lembrariam a gran-
diosidade dos futuros lançamentos no Centro paulistano, nos quais aqueles princípios
e recursos seriam adotados, como no Edifício Viadutos – que, além das lojas no térreo,
teria um salão de festas no topo – e nos edifícios Louvre e Pedro Américo (bem mais
tarde), com sua galeria de lojas comerciais.
O Pacaembu fica pronto em 1951 e, juntamente com seus companheiros de geração,
o General Jardim e o Duque de Caxias, tímidas produções que se assemelham muito
entre si, “com fachadas monocromáticas e com desenhos simples, que lembravam a
geometria do art déco”23 –, destoa do conjunto da obra de Jurado, principalmente no
quesito cor. Embora o Piauí seja dessa mesma “fornada”, escapa do trio, para fazer
carreira solo e destacar-se como o protoprojeto do estilo Jurado.
Ele, em breve, descartaria as soluções de comércio no térreo, assumindo o uso de
pilotis como partido arquitetônico quando seu projeto fosse destinado a bairros exclu-
sivamente residenciais, como Higienópolis (reduto modernista) em São Paulo, e Bo-
queirão e Ponta de Praia na cidade de Santos. Mas os edifícios Apracs e Dona Veridia-
na, empreendimentos que não puderam ser concluídos pela Monções, ainda têm os
térreos ocupados com comércio. No entanto, jamais abandonaria os tetos-jardim.

22
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 82.
23
Luiz Flávio Gagetti, “Verticalização e produção de edifícios residenciais no bairro de Higienópolis de 1933 a 1964”, cit., p. 84.

140
Fotografia da maquete do
Edifício General Jardim.
Acervo Diva Jurado.

141
Outros edifícios na cidade de São Paulo
EDIFÍCIOS(PIAUÍ(E(SABARÁ(

O Piauí, que nasceu entre os lançamentos do Pacaembu, Duque de Caxias e General


Jardim, localiza-se na rua Piauí, no 428, e não difere muito, em termos de acabamento,
de seus antecessores. Mas, em termos do programa, é, sim, bem diferente. Nota-se que
as cores das pastilhas ainda são discretas, porém novos elementos arquitetônicos, como
a rampa para acesso de pedestres e o conjunto de pilotis, entram em cena pela primeira
vez nos projetos de Jurado, para nunca mais sair. Segundo alguns autores,

[…] a fase de produção mais característica se inicia com o Piauí, na esquina das ruas
Piauí e Sabará, em Higienópolis. Projetado em 1949, é considerado pelo profissional
como a primeira obra em que aparecem os princípios de conforto que vão orientar sua
produção posterior. São nove andares, com dois apartamentos em cada um, mais uma
área ajardinada na cobertura.24

Assim, o que se dizia sobre o Piauí ter sido lançado depois dos prédios do Centro é
falso, o que ficou comprovado com base em algumas fotos datadas – fato raro, já que
poucas peças do imenso acervo são datadas de 1947 até 1952 – e que mostram as obras
desse edifício ainda no início.
As fotos não só mostram a construção, como também comprovam que o Piauí foi
construído pela Construtora Anhangüera e incorporado pela Imobiliária Monções Ltda.
Segundo Simonetti, a Construtora Monções nasceria logo a seguir, e se estabeleceria
em seu primeiro endereço na rua Xavier de Toledo, no 46, região central de São Paulo,
no ano de 1951, e, em breve, adotaria o lema, possivelmente criado por Aurélio, de
“Rota segura de bons negócios”, acompanhado da logomarca, uma rosa-dos-ventos.
24
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 84.

142
Edifício Piauí com a fachada,
o térreo e terraço prontos.
Acervo Diva Jurado.

143
Jardim-de-inverno do Edifício Piauí.
Acervo Diva Jurado.

144
Obras do Edifício Sabará em 1948.
Acervo Diva Jurado.

O Piauí, com dois apartamentos por andar, representa a guinada definitiva no estilo
de projetar de Jurado, pois foi durante seu planejamento que ele começou a perceber as
necessidades do morador de condomínio vertical e atender a elas. Conforme Diva
Jurado: “Em todas as plantas dele, ele sempre se preocupou muito com o conforto”. De
fato, ele passa a aproveitar os fatores que se manifestam no universo dos futuros mora-
dores e alia tudo ao marketing de vendas. Segundo José Marcelo do Espírito Santo:
“A experiência com estandes e feiras promocionais reflete-se na estratégia de marke-
ting de seus apartamentos, que, somada ao conhecimento da importância visual de
suas obras na cidade, o tornou um expert do setor imobiliário”.25

25
Ibid., p. 83.

145
O Piauí ainda sem o Edifício Sabará.
Acervo Diva Jurado.

146
Piauí e Sabará, marco inicial do uso dos pilotis por Jurado.
Acervo Diva Jurado.

147
O Edifício Sabará em construção.
Acervo Diva Jurado.

148
É ainda com esse edifício que Jurado passa a explorar a fachada acabada, deixando o
interior por fazer, como elemento de marketing para atrair compradores.
De acordo com Irineu Simonetti: “Aliás, a visão dele de marketing, você vendo os
projetos dele, você não sabe que a construção a preço de custo é uma construção com-
plicada, quando se constrói para quem não sabe. Ele quer ver o dinheiro aplicado, mas
a obra entra numa fase em que ele não vê o dinheiro. O dinheiro está sempre embuti-
do: instalações, alvenaria, nada disso cria um impacto favorável. A preocupação do
Jurado era a de fazer que as obras no comprimento crescessem... As fachadas eram
feitas antes, e depois fazia-se um apartamento-modelo para que fosse visitado por
todos...”.
Com a planta do térreo livre das lojas comerciais e de unidades habitacionais, Jura-
do devolve esse espaço ao condomínio, atribuindo-lhe, de forma pioneira, o uso para
lazer e convívio social, em boa parte, porque o bairro de Higienópolis apresentava um
viés amplamente residencial, diferentemente do Centro, que comportava edifícios de
apartamentos com lojas comerciais no térreo. Então, pela primeira vez em um empreen-
dimento vertical destinado exclusivamente a moradia, vê-se um programa arquitetô-
nico diferenciado, com halls de entrada grandiosos, salão de festas, bar e jardim-de-
inverno.
Sobre os empreendimentos imobiliários residenciais da época, José Marcelo do Es-
pírito Santo comenta:

No mercado imobiliário paulistano da década de 50, edifícios residenciais não competiam


com outros, como ocorre hoje. A grande concorrência do mercado se caracterizava pelo
fato de atrair moradores de casas para apartamentos. Por esse motivo, o profissional
dotava seus projetos com áreas comuns para compensar a perda de espaço com a mu-
dança.26

26
Ibid., p. 84.

149
Fotografia da maquete do Conjunto Sabará e Piauí.
Acervo Diva Jurado.

150
Houve, segundo relatos, uma pequena piscina no térreo, lo-
calizada no fundo do terreno e que certamente foi aterrada para
dar lugar a vagas para autos.
Na época, Jurado gostou tanto dessa sua nova realização que
resolveu mudar-se com a família da rua Ana Pimentel, onde até
então residia, para vir morar nesse que foi o primeiro edifício
totalmente projetado e construído por ele. Assim, sua filha Diva
completou seus 15 anos já como moradora do Piauí e, aos 18,
teve sua festa de casamento com Arthur Andrade Filho, realizada
no salão de festas do edifício.
A família Jurado ocupou o oitavo andar inteiro, unindo dois
apartamentos em um único. Ali, ele pôde ter seu pequeno ateliê,
onde trabalhava em sua prancheta e ouvia seus discos prediletos
de ópera.
Essa“invenção”do bem-morar de Jurado foi revelada em uma
única entrevista dada por ele ao jornal Diário de São Paulo, em
25 de outubro de 1953, por ocasião da exposição denominada
“Os investimentos imobiliários em São Paulo”.
Essa exposição foi organizada pela rede de jornais e emissoras
dos Diários Associados no saguão do seu edifício-sede, e dela
participaram como expositores, entre outros construtores da
época: Andraus, Otto Meinberg, CNI e Alfredo Matias.
É bom lembrar que a Construtora Monções patrocinava uma
Vista superior da maquete do
coluna chamada “Arquitetura e urbanismo” no Diário da Noite, Conjunto Sabará e Piauí.

órgão dos Diários Associados. Aproveitando a oportunidade, Acervo Diva Jurado.

Jurado projetou um pequeno display para expor e vender os seus


produtos. Um exercício tardio dos tempos das feiras do final dos
anos 1930 e início dos 1940. Sobre essa exposição, Irineu
151
Apartamento de Jurado no Edifício Piauí, entre 1949 e 1955.
Acervo Diva Jurado.

152
Ateliê de costura de Mercedes Jurado. Banheiro do apartamento de Jurado, na década de 1950.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

153
Escritório de Jurado, em 1955.
Acervo Diva Jurado.

154
Quarto de Diva Jurado, entre 1949 e 1955. Sala de estar do apartamento de Jurado, em 1951.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

155
O Piauí uniu-se em 1952 com o Sabará, e o conjunto passou a se chamar Piauí.
Acervo Diva Jurado.

156
Simonetti comenta: “Engraçado, eu lembro agora que nós participávamos de uma ex-
posição no hall do Associados, uma exposição imobiliária. E ele fez questão de dese-
nhar tudo. Nós montamos cubos [...] Ele desenhou uma coisa [...] tubular [...] três
tubos assim, e aí ele mandou fazer cubos fechados e alternou os cubos fechados e pôs
fotografias das obras nesses cubos todos”.
Por sua importância documental, transcrevemos, a seguir, a íntegra da entrevista de
Jurado:

A reportagem procurou ouvir o senhor João Artacho Jurado, diretor-superintendente


da Monções Construtora e Imobiliária S. A., responsável pelos empreendimentos que
mereceram consagrada aceitação pública e que representam um novo sentido de confor-
to residencial.Pronunciando-se, disse o senhor Jurado:“Nada há de excepcional em nossos
projetos, a não ser a preocupação de proporcionar aos moradores dos edifícios que cons-
truímos um conforto igual ou mesmo superior ao das luxuosas mansões”.
– Mas – perguntamos – notamos que as suas realizações fogem ao tradicional!
“Bem, a idéia consubstanciou-se em aniversário íntimo” – respondeu-nos o sr. Jurado –,
“num apartamento de amigos residentes em um dos mais luxuosos edifícios de São Paulo.
O confortabilíssimo apartamento tornou-se diminuto ante o conglomerado de crianças.
Comentavam sobre as insuficiências e limitações dos apartamentos. Queixavam-se pela
reclusão a que as crianças estão sujeitas, como se vivessem em torres de marfim!
Por que não reunir os interesses comuns dos moradores de um mesmo edifício, conside-
rando no projeto todas as justas aspirações de comodidade? Além das peças individuais
de cada apartamento, os condôminos desfrutariam de conforto adicional de utilidades
como salão de festas, jardins-de-inverno, salão de recreio, sala de ginástica, piscina, solá-
rio, parque e outras áreas de valorização. O apartamento passaria a ser, realmente, a
residência ideal, proporcionando um conforto extra a um preço muito acessível. Quem
com Cr$ 400.000,00 a Cr$ 500.000,00, individualmente, poderia obter tanto conforto?”
– E qual foi a primeira realização dentro dessa nova concepção?

157
“O Edifício Piauí, à rua Piauí, esquina de Sabará, representa, em pequena escala, uma
verdadeira experiência. Não obstante tratar-se de um condomínio relativamente peque-
no, com cinqüenta apartamentos, em confronto com as proporções das realizações que
se seguiram, ele demandou extraordinários esforços, como sucede acontecer com tudo o
que é precursor.”
– Qual a característica mais marcante nesse empreendimento?
“O andar térreo apresenta uma feição inteiramente nova, sem apartamentos, destinado
exclusivamente ao conforto dos condôminos e à valorização do conjunto. No lugar de
residências, há salões de festas, jardins-de-inverno e halls nobres. A cobertura foi apro-
veitada para um agradável jardim suspenso, descortinando vista deslumbrante.”
– E qual foi a aceitação por parte do público?
“Ultrapassou as nossas melhores expectativas, e assim surgiram os edifícios Bretagne, Hor-
tênsias, Veridiana Prado e as nossas outras realizações para cerca de 3 mil condôminos.”
– A Monções vem construindo somente na cidade de São Paulo?
“Em Santos existem dois grandes empreendimentos nossos: o condomínio Parque Verde
Mar e, na Ponta da Praia, o Enseada.”
– Também foram projetados dentro dessa concepção de conforto extra?
“Evidentemente, e ainda levando em consideração a localização à beira-mar.”
– A que atribui o sucesso da Monções?
“Única e exclusivamente à visão do público, que compreendeu o alcance dos nossos pro-
jetos e que emprestou decidido apoio a todas as nossas realizações.”
– Acredita que o condomínio seja a solução ideal para o problema da residência própria?
“Sim, desde que ele seja projetado para atender às justas aspirações de conforto dos con-
dôminos, porque, além das vantagens a que nos referimos, ele possibilita localizações
verdadeiramente privilegiadas a um preço individual muito acessível.”
Terminando, revelou o senhor Jurado que é com imensa satisfação que ele se associa ao
justo orgulho dos condôminos para quem a Monções constrói, por administração, edifí-
cios que fazem jus ao dinamismo e à operosidade de São Paulo.27

27
“Empreendimentos que representam um novo sentido de conforto residencial”, em Diário de São Paulo, 25-10-1953, p. 10.

158
O terraço-jardim ou praça suspensa.
Acervo Diva Jurado.
A Pampulha era uma referência
de Jurado.Aqui ele homenageia
Oscar Niemeyer.
Acervo Diva Jurado.
Saguão do Edifício Piauí: o estilo
pomposo do marketing de
Jurado começava na entrada.
Acervo Diva Jurado.

161
O bairro de Higienópolis visto do
Edifício Piauí, com o Edifício
Sabará em obras.
Acervo Diva Jurado.

162
Apesar de essa entrevista sobre a produção arquitetônica mostrar um Jurado já
amadurecido, ele não se dava por satisfeito, e segundo Irineu Simonetti: “Ele dizia: ‘O
térreo valoriza todo o prédio. Você pode ter um terno de segunda. Se você estiver com
um bom sapato e uma boa gravata, você está bem-vestido. Se você estiver com um
sapato vagabundo e um terno de primeira, você nunca estará bem vestido. Um prédio
é assim, o térreo tem que ser diferenciado’. Aí surgiu a idéia dos pilotis. Mas ele não
ficava contente de ter o térreo livre, ele queria ter salões definidos, salão de música,
salão de criança, salões de festas, etc., etc. Hoje se voltou a isto, mas durante trinta anos
ninguém fez”.
Corroborando essa entrevista ao Diário de São Paulo, Simonetti fez ainda uma reve-
lação surpreendente: “São Paulo tinha uma precipitação pluviométrica muito maior
do que hoje. No inverno nós tínhamos trinta dias de chuva. Eu vim para São Paulo, em
1939, a primeira vez, chovia sessenta dias corridos. Eu tinha 9 anos de idade. Em 1951
a garoa pegava uma semana. A criança não tinha o que fazer, ficar dentro do aparta-
mento era um inferno. Então, a idéia era ter um salão onde a criança se espalhasse. Ele
queria que a criança se sentisse bem no salão, aí surgiu a idéia; o Walt Disney estava no
auge, ele decalcou algumas coisas do Walt Disney e depois chamou o desenhista e man-
dou detalhar, colorir. Ele corrigiu as cores e aí mandou pintar. Quem pintou foi um
pintor, que tinha uma empresa de pintura, chamado Paulo Franco Camargo. Era um
excelente pintor. Porque não havia tinta misturada, tinha que fazer o pigmento”.
Jurado havia descoberto o filão. Desse período em diante, ele entra em ascensão
meteórica, tanto pessoal quanto profissional, experimentando grande sucesso, que vai
acompanhá-lo no lançamento do Edifício Viadutos, em 1951 (o primeiro dentro do
conceito de “edifício-cidade”, a exemplo do Conjunto Nacional, na esquina da avenida
Paulista com a rua Augusta, de 1955), e atingir o auge em 1958. Passada essa fase, a
Construtora Monções entra em declínio – acentuado até 1962 – até finalizar em 1967,
com o encerramento de suas atividades.

163
Rampa lateral de acesso ao
Edifício Piauí.
Acervo Diva Jurado.

164
Perspectiva mostrando os edifícios Piauí e Sabará.
Fotografia de desenho reproduzida para material de venda.
Acervo Diva Jurado.

165
EDIFÍCIO(CINDERELA(

O Edifício Cinderela acompanha a ocu-


pação do bairro de Higienópolis, e, segun-
do Irineu Simonetti, tratava-se de “uma
casa de boneca para ele, era um brinque-
do... o Cinderela é um prédio em que ele
se esmerou, e ele fez com muito carinho”.
O Cinderela foi implantado em dois
blocos na rua Maranhão, no 163, com dez
andares e dois apartamentos por andar,
totalizando quarenta apartamentos de
dois dormitórios, que, com amplas varan-
das, transmitem a idéia de haver um úni-
Apartamento de co apartamento por andar. Esse fake de
Diva Jurado
no Edifício Cinderela, Jurado acompanhou-o em vários outros projetos, como na fachada do Edifício Parque
em 1956.
Acervo Diva Jurado.
Verde Mar, no bairro do Boqueirão, em Santos. Até o final da década de 1940, os prédi-
os construídos em Higienópolis eram de dimensões modestas, não ultrapassando dez
andares. Nesse sentido, a implantação do Cinderela e do Bretagne, nos anos 1950, é o
marco inicial dos grandes edifícios no bairro.
O Cinderela foi o lar que sucedeu o Piauí para Jurado e a mulher, Mercedes. A filha,
Diva, já casada, mudou-se para lá também, ocupando, porém, outra unidade com sua
família.
O apartamento que ele ocupou foi composto por dois apartamentos que, unidos,
formaram um só. Dessa maneira, ali também um quarto foi transformado em sala de
música e, ao mesmo tempo, em ateliê.
Jurado, como dito antes, adorava música lírica, e seu escritório em casa seria o lugar
ideal para fazer alguns croquis, enquanto ouvia seus discos de ópera. A respeito desse

166
Terraço do Edifício Cinderela.
Acervo Diva Jurado.
Terraço do Cinderela tendo ao
fundo o Edifício Parque das
Hortênsias e o Bretagne à
esquerda (entre as colunas).
Acervo Diva Jurado.
Apartamento de Jurado
no Edifício Cinderela.
Acervo Diva Jurado.

hábito, sua filha Diva declara: “Depois, mais tarde, quando ele começou a projetar os
prédios, trabalhava em casa, ele projetava muito em casa. Praticamente todos os pré-
dios em casa. Tinha um escritório e projetava muito em casa, ouvindo música e à noite.
Trabalhava até altas horas e levantava um pouco mais tarde. Quer dizer, o mais tarde
dele era 9 da manhã...”.
E Diva continua: “Ele era fascinado por som, no tempo em que o som, a alta fideli-
dade chamava-se [...] era um princípio. Então, ele mandava montar o equipamento.
Raul Duarte tinha técnico que fazia isso. Havia três pessoas que trabalhavam em disco

169
Banheiro do apartamento de Jurado. Quarto de casal do apartamento de Jurado.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

170
Escritório de Jurado. Quarto de casal no Edifício Cinderela.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

171
Sala do apartamento de Jurado. Sala de Jurado com escritório ao fundo.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

172
O hall de entrada do Edifício Cinderela,
em foto publicitária.
Acervo Diva Jurado.

173
e som em São Paulo: era Breno Rossi, Raul Duarte e Bruno Blois. Havia a Casa Manon,
na rua Direita, que também tinha equipamento. Ele mandava montar o equipamento
com dois amplificadores pesados, com amplificador Mackintosh pesado, duas caixas
de som com dois metros de altura. [...] Ele desenhava a caixa e mandava fazer toda
forrada, pois a acústica tinha que ser impecável. Ele mudava a sala, se achasse que tinha
um rebatimento de som. Ele tinha um ouvido muito bom. Se tivesse rebatimento de
som, ele estudava, chamava o técnico, discutia acústica com o técnico de acústica e
adaptava a sala às condições ideais de acústica”.
Jurado, como morador do Cinderela, fazia questão de cumprimentar a todos que
encontrasse no hall social, lugar, segundo ele, de convergência e ponto de encontro dos
moradores. Conforme Diva, para ele, o prédio seria “uma família, uma comunidade.
Ele não queria que o prédio fosse como é hoje, clausura, fechado. Ele não, e no prédio
que morava, no Piauí primeiro e depois no Cinderela, ele fazia questão de cumprimen-
tar todo mundo”.
No Edifício Cinderela, o salão de festas não está no térreo, e sim na cobertura, que se
abre em um amplo terraço com jardins, sendo por meio desse espaço que se dá a co-
municação entre os dois blocos. Os jardins instalados na cobertura, uma proposta adap-
tada dos tetos-jardim que foi adotada por Jurado, trouxeram-lhe muita dor de cabeça
porque o sistema de impermeabilização era precário (feito com piche pintado) e não
oferecia muita resistência. Não raro, passado pouco tempo, os proprietários das unida-
des localizadas imediatamente abaixo do terraço sofriam com goteiras intermitentes, e
a solução geralmente proposta era a eliminação completa dos jardins, descaracterizan-
do o projeto original.
No Cinderela, a garagem localiza-se no subsolo, uma característica que começaria a
valorizar seus novos projetos. Esse edifício já apresentaria, porém, um clássico de Jura-
do, que seria o jardim-de-inverno e um amplo hall de entrada com sala de leitura e de
reunião. Sobre o cuidado com esse edifício, Simonetti relata: “A entrada, eu me lembro
dele discutindo a entrada. É feita em degraus de granito verde em blocos de 7 cm de
174
Edifício Cinderela em 1957.
Acervo Diva Jurado.

175
Vista interna do salão de festas
na cobertura.
Acervo Diva Jurado.

176
Cobertura com salão de festas. Jardins do Edifício Cinderela.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

177
A porta principal do Edifício Cinderela.
Elementos vazados de concreto;
cobogó estilizado com flor-de-lis.
Acervo Diva Jurado.

178
Entrada lateral, posteriormente eliminada. Entrada eliminada vista por dentro.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

espessura. Bloco maciço de granito verde, granito Ubatuba. O salão foi muito cuidado,
com os pisos de mármore com desenhos e tudo. Aqueles elementos decorativos da
fachada. Ele se esmerou em tudo”.
Essa última afirmação de Simonetti evidencia o fôlego que a Construtora Monções
tinha nos anos 1950. Mais, o Edifício Cinderela é um projeto que vem antes do Bretagne,
e quase não antecipa nenhuma característica do partido desse último no aspecto for-
mal de fachada, sobretudo. Isso leva a crer que Jurado adotou um mesmo tipo de ar-
quitetura para os prédios que estão mais próximos, ou seja, o Piauí e o Cinderela, pois
ambos têm dois blocos, são de esquina e de baixa altura, diferindo um pouco no pro-
grama, mas assim mesmo com características muito semelhantes.
Conforme Simonetti: “Quando iniciou o Dona Veridiana [mais tarde renomeado
pelos empreendedores como Conjunto das Tradições Brasileiras], ele estava com as
fundações do Cinderela prontas, e o Dona Veridiana foi uma das últimas obras”.
179
EDIFÍCIO(VIADUTOS(

O Edifício Viadutos, de 1951, foi, pela ordem cronológica, o lançamento seguinte da


recém-criada Construtora e Incorporadora Monções,que já havia fixado seu slogan“Rota
segura de bons negócios”no Centro da cidade, para dali não sair tão cedo. É Irineu Simo-
netti quem relata: “É uma coisa interessante para você saber. Nessa época surgiram as
primeiras construtoras incorporadoras em São Paulo. Foram a Monções, a CNI do Roxo
Loureiro [pela CNI, Oscar Niemeyer projetou o Copan, o Torre Eiffel, o Montreal, o
Seguradoras, o edifício da Galeria Califórnia, na Barão de Itapetininga, e o Triângulo, na
rua Direita], a de Cipriano Marques Filho, cuja construtora se chamava CMF, a Otto
Meinberg [que entre 1954 e 1958 esteve em parceria com o escritório de Franz Heep] e a
Alfredo Matias. Estas foram as grandes incorporadoras dos anos 1950 e 1960”.
O Viadutos é considerado, junto com o Bretagne, uma das duas maiores realizações
paulistanas de Artacho Jurado, principalmente pelas tipologias de plantas e pelas im-
plantações. Na entrevista para este estudo, Giancarlo Gasperini faz uma avaliação des-
se edifício: “O Viadutos [...] é uma referência urbana fantástica! Se tivesse um pouco
mais de inteligência do pessoal que faz publicidade na cidade, teria que tirar fotografia
daquela avenida com aquele prédio lá e daria uma referência... de cartão-postal, etc.
Então, eu acho isso, toda cidade tem isso! Toda cidade que tem um certo caráter tem
referências desse tipo”.
Sobre os edifícios de Jurado, José Marcelo do Espírito Santo comenta: “Facilmente
identificada na paisagem devido ao uso livre de cores e formas, sua obra também apre-
senta inovações na implantação do prédio nos lotes, revelando compreensão do meio
urbano”.28
O Viadutos, com área total aproximada de 30.000 m2, foi projetado para um lote de
terreno localizado ao lado do Viaduto Jacareí, que, a seguir, desemboca na rua Maria

28
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 82.

180
O Edifício Viadutos na década de 1950.
Acervo Diva Jurado.
Planta do Edifício Viadutos.
Vetorização: Lourdes Valente.
Paula, pontuando como um vértice a pas-
sagem entre os bairros da República e da
Bela Vista, mais precisamente na praça
General Craveiro Lopes, no 19. Curiosa-
mente, o então presidente de Portugal, que
deu nome à praça, o general Francisco Hi-
gino Craveiro Lopes, esteve em visita ao
Condomínio Viadutos em junho de 1957,
acompanhado do ex-governador Jânio da
Silva Quadros, ocasião em que recebeu
cumprimentos da cantora Ângela Maria.
O projeto, obedecendo à tendência dos
“investidores privados que voltam seus ca-
pitais para a produção de habitações eco- General Craveiro Lopes, então
nômicas, modernas”,29 traria o diferencial do visionário Jurado, que, preocupado com presidente de Portugal, em
companhia de Jânio Quadros,
os altos custos das despesas de condomínio, criava alternativas de renda para o cumprimenta a cantora Ângela
Maria no interior do Edifício
prédio. Viadutos.

Artacho projetou no Viadutos um “megassuporte para a instalação de anúncios publi- Acervo Diva Jurado.
citários”,30 o que, por si só, “deixa claros seus objetivos mercadológicos”.31
O Viadutos compõe-se de 368 apartamentos, organizados em uma planta
simétrica.
Eles são divididos assim: quarto-e-sala, doze unidades por andar; dois dormitórios
com dependências de empregada, quatro unidades por andar; todos têm varanda, e
são distribuídos por 23 andares-tipo.
“Nesta obra, Jurado coloca em prática a intenção de facilitar a escolha dos
usuários,
projetando vários tamanhos e tipos de apartamentos”, afirma José Marcelo do
Espírito

29
Maria Ruth Amaral de Sampaio (org.), A promoção privada de habitação econômica e a arquitetura moderna 1930-1964, cit.,
p. 11.
30
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 83.
31
Ibidem.
Santo.32 E de acordo com Simonetti: “O cliente comprava dois apartamentos e queria
fazer uma fusão. Ia para o departamento de arquitetura, e vinha a sugestão em planta.
A obra tinha um mapa [...] com a planta de todos os apartamentos, com as modifica-
ções que iam ser feitas no local. Então foi lançado assim, e foi um sucesso de venda”.
Ao todo, são oito opções diferentes de plantas entre unidades com um ou dois dor-
mitórios. O edifício tem, ainda, três poços centrais que promovem a necessária ilumi-
nação e ventilação das escadarias, cozinhas e áreas de serviço, “liberando as fachadas
externas para os quartos e salas dos apartamentos”.33
Para atender o transporte vertical, Jurado projetou o Viadutos com doze elevadores
para servir os dezesseis apartamentos do andar-tipo com hall de entrada para cada
duas unidades. Segundo Irineu João Simonetti, em entrevista em dezembro de 2003:
“Era colocado elevador social, ele punha dois elevadores sociais, porque tinha 25 anda-
res. Dois elevadores sociais e um de serviço em cada prumada. Então pegava três eleva-
dores por prumada de quatro apartamentos. Com isso, você tinha doze. Os elevadores
sociais atendem ao hall social e o elevador de serviço ao hall de serviço, à forma clássica”.
Solução clássica, que, aliada a uma boa planta, mais uma localização e uma implan-
tação primorosas, fez desse empreendimento um sucesso de vendas e um marco na
paisagem do Centro da cidade de São Paulo.
Segundo Giancarlo Gasperini: “Ele faz parte de uma época na qual algumas inter-
venções dele que foram significativas nesse sentido, no sentido principalmente de re-
forçar o Centro da cidade, dar ao Centro e à parte mais nobre, vamos chamar assim, da
cidade naquela época, uma conotação de caráter burguês, mas de bom nível”.
Para a urbanista Raquel Rolnik, existe um paralelo entre o trabalho do paulistano
Jurado e o do catalão Antoni Gaudí, uma vez que ambos buscavam um estilo próprio.
Além dessas características,Simonetti afirma que havia a “utilização,porque a idéia lançada

32
Ibidem.
33
Ibidem.

184
Fotografia da maquete do
Edifício Viadutos.
Acervo Diva Jurado.

185
por ele era a de condomínio sem despesa.
Então, as áreas comuns locáveis deveriam
pagar as despesas de condomínio, custear a
despesa de condomínio; térreo (lojas), pri-
meiro pavimento (área econômica) e um
salão na cobertura que seria para festa [...]”,
também com o intuito de locação.
E Simonetti continua:“O Viadutos, por
acaso, quando foi escavado para abrir o
subsolo, deu em rocha bruta. Foi estoura-
da com dinamite, e o prédio está assenta-
do em uma rocha. Não foi estourada a ro-
Departamento de
vendas da Monções no
cha! Foi aberto o espaço para as sapatas e
lançamento do Edifício sobre as sapatas de concreto, sobre rocha pura nasceu o prédio. Os calculistas de con-
Viadutos, cerca de 1951.
Acervo Diva Jurado. creto eram João Birman e o Patella, que também calculava. Mas o principal foi o João
Birman. Bom [...] o Edifício Viadutos foi lançado a preço de custo e vendido em uma
semana. Trezentos e sessenta apartamentos. Nós vendemos, no Edifício Viadutos, ses-
senta apartamentos para moradores de São José do Rio Preto e Franca”.
Ainda no final da década de 1990, o Edifício Viadutos serviu de locação para um
filme, conforme matéria na Folha de S.Paulo:

O vasto terraço de outro prédio, o Viadutos [...] serviu para a criação cenográfica do
apartamento do personagem de Marco Ricca em Até que a vida nos separe (1999), de José
Zaragoza. Neste caso, o que o diretor de fato aproveitou não foi a divisão proposta para
os 368 apartamentos, mas sim sua ótima vista. O salão de festas no 25o andar também foi
usado como locação do filme.34

34
Celso Fioravante, “CD-ROM revê cenários de cimento de Artacho Jurado”, em Folha de S.Paulo, Ilustrada, 4-9-1999, p. 10.

186
EDIFÍCIO(PLANALTO(

Nesse momento de efervescência imobiliária, ocorre aos irmãos comprar outro ter-
reno, na rua Maria Paula, muito próximo ao Edifício Viadutos ainda em obras, para
lançar o Edifício Planalto. Segundo Simonetti: “O Edifício Planalto [...] ele tem mais
ou menos essa forma (desenhando), tem um corredor de circulação que serve a todos
os apartamentos para o serviço e os elevadores sociais servindo a cada dois apartamen-
tos [...] tem dez elevadores, dois de serviço, um em cada ponta”.

O Edifício Planalto em obras,


em abril de 1955.
Acervo Diva Jurado.

187
Edifício Planalto.
Acervo Diva Jurado.
O Planalto manteve as características do Viadutos, com apar-
tamentos de vários tamanhos e planta flexível. Sobre esse edifí-
cio, comenta José Marcelo do Espírito Santo:

No ano seguinte é projetado o Condomínio Planalto, com crono-


grama idêntico ao Viadutos, inclusive situado no mesmo trecho da
cidade. O prédio se divide em três blocos com 26 pavimentos, situ-
ados em frente à Câmara Municipal de São Paulo. Os apartamen-
tos possuem onze tamanhos diferentes, variando de 44 m² a 127
m² de área útil cada unidade.35

As unidades maiores constam como alterações, em planta,


pedidas por compradores durante a execução.
A área total do empreendimento é de 27.000 m². Comparado
ao Piauí, em estilo arquitetônico – no tocante às cores das facha-
das –, entendemos que Jurado começava a despontar nesse pe-
ríodo, entre a construção do Edifício Viadutos e a do Edifício
Planalto, pois, segundo Simonetti: “Ele foi umas duas vezes ao Fotografia da maquete
Rio e voltou e me disse: ‘Irineu, São Paulo é muito triste! A arquitetura do Rio é uma do Edifício Planalto.
Acervo Diva Jurado.
arquitetura alegre [...] Nós temos uma arquitetura muito triste! Nós vamos mudar a
arquitetura aqui em São Paulo!’. Aí, ele fez o Viadutos com terraços trabalhados, a
fachada trabalhada, moldura em pastilhas na fachada, que era um trabalho complica-
do, com uma mão-de-obra cara, porque era uma mão-de-obra linear, e não por metro
quadrado. O Planalto está dentro do mesmo conceito”.
Para José Marcelo do Espírito Santo:

35
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 85.

189
Edifício Planalto visto da
praça da Bandeira,
em meados da década de 1950.
Acervo Diva Jurado.

190
Sua linguagem se destaca pela utilização de revesti-
mentos coloridos (através do uso intensivo de pasti-
lhas“vidrotil”), sacadas ornamentadas com floreiras,
coberturas úteis e elementos vazados em cerâmica.
A decoração, freqüentemente empregada pelo pro-
fissional, organiza espacialmente seus ambientes: são
painéis de cobogós com função apenas cenográfica,
não separando funções diferentes [...]36

Assim, o Planalto, com seus setenta apartamentos,


foi sucesso de venda, pois também foi comercializado
a preço de custo. Visita às obras do Edifício
Planalto. Jurado (o terceiro
A respeito do grande número de projetos e lançamentos de Jurado, verificam-se à esquerda) em companhia
de condôminos e
vários pontos de vista, como o de Giancarlo Gasperini: “Ele esteve total [...] e funcionários da Monções,
por volta de 1954.
profundamente envolvido num processo de caráter imobiliário especulativo, e com Acervo Diva Jurado.
isso não quero [...] fazer uma crítica porque praticamente era [...] o que estava aconte-
cendo e continua sendo [...] grande atividade imobiliária e de construção”.
Sem dúvida, o mais “frank-loydiano” de seus edifícios, o Planalto é destaque no
Centro da cidade, podendo ser muito bem visto de vários pontos do vale do Anhanga-
baú, especialmente de cima dos viadutos do Chá e Santa Ifigênia. Configura-se tam-
bém como parte de mais um cartão-postal da cidade, tanto que, durante anos, em sua
frente, sobre uma edificação baixa do outro lado da rua Maria Paula, foi instalado um
gigantesco outdoor do açúcar União, que, precisamente, se aproveitava das visões susci-
tadas pelos olhos que se voltavam na direção do Planalto...
Ao final desse processo, no início de 1952, dois outros lançamentos simultâneos
ocorrem, sendo um em São Paulo (Bretagne) e outro em Santos (Parque Verde Mar).

36
Ibidem.

191
EDIFÍCIO(SAINT(HONORÉ(

Antes, porém, do lançamento do edifício que lhe trouxe notoriedade, o Bretagne,


Jurado faz importantes alterações dentro da empresa, nomeando Sílvio Brand Correia
presidente e porta-voz da Construtora e Imobiliária Monções S. A. Como é sabido, a
empresa não é de propriedade exclusiva dos irmãos Aurélio e Jurado, já que, além de
Brand, os irmãos Tibiriçá também faziam parte da sociedade, “porque a Monções ti-
nha outros sócios, não era só o papai e o tio Aurélio”, conforme Diva Jurado.
Mais tarde, quando estouraram os processos cíveis contra a Monções, a dupla pede
afastamento definitivo, e, com a saída de Correia e Tibiriçá, Irineu João Simonetti as-
sume os cargos de diretor-gerente da construtora e diretor de vendas da Imobiliária
Monções. O afastamento de Brand não se dá sem que antes ele
participasse, ao lado de Jurado e Aurélio, do lançamento, em ju-
nho de 1952, do Edifício Saint Honoré, no número 1.195 da ave-
nida Paulista.
Embora um pouco fora do estilo mais arrojado de Jurado,
esse prédio é chamado por alguns de“Higienópolis vertical”, uma
referência clara ao estilo clássico de Jurado, deixado em seus pré-
dios em Higienópolis, como o Cinderela, o Piauí e o Parque das
Hortênsias.
Em consulta aos jornais da época, verifica-se o impacto cau-
sado por esse lançamento, uma conseqüência da ocupação da
avenida Paulista por edifícios altos, que se iniciava. A atração da
Construtora Monções pela Paulista demonstra ainda o nível de
preocupação da empresa com os rumos que a cidade vinha to-
mando, em termos de novas áreas a serem exploradas. Esse senti-
do agudo de captação de tendências deve-se especialmente ao
homem das prospecções de mercado da Construtora Monções:
Edifício Saint Honoré em obras, em fevereiro de 1958.
Acervo Diva Jurado. Aurélio Jurado Artacho.
192
Edifício Saint Honoré em obras.
Acervo Diva Jurado.
Assim, o lançamento do Saint Honoré
mereceu destaque na imprensa, como
exemplificado no título da matéria do jor-
nal A Gazeta: “Abrem-se as portas da ave-
nida Paulista ao progresso”:

A avenida Paulista, tão rica de tradições, vem


ultimamente integrando-se no ritmo do di-
namismo construtivo da Paulicéia.
Já vão longe os tempos do tílburi, do lam-
pião a gás e da aristocrática cartola. Os ve-
O Centro visto do alto do lhos casarões senhoris vêm sendo paulatina-
Edifício Saint Honorè,
em 17 de fevereiro de 1958. mente substituídos por modernos palacetes. O pavilhão da Bienal iniciou uma alteração
Foto: Irineu João Simonetti.
panorâmica na tradicional avenida, englobando-a ao expansionismo progressivo da
cidade.
Iniciando hoje a demolição de um casarão cinqüentenário, a Monções introduz um novo
marco de renovação na aristocrática avenida, dando o primeiro passo para o início das
obras do Edifício Saint Honoré.37

O Saint Honoré teria suas obras iniciadas em 1955 e terminadas em meados de


1962. Trata-se de um prédio que chama a atenção, menos pelas cores e mais pela im-
plantação em “L” e com um programa sofisticado para a época.
Sobre os detalhes do projeto e as características dessa nova realização da Monções,
Sílvio Brand Correia declara em A Gazeta:

37
“Abrem-se as portas da avenida Paulista ao progresso”, em A Gazeta, 30-6-1952, p. 12.

194
As obras do Saint Honoré
vistas da rua Pamplona, ao
lado da mansão dos
Matarazzo, em setembro
de 1958.
Acervo Diva Jurado.

195
O Edifício Saint Honoré, concebido dentro dos mais avançados preceitos da moderna
arquitetura funcional, ocupará apenas a quarta parte do terreno, que será ornamentado
por jardins e lagos decorativos, apresentando uma belíssima piscina ao fundo e duas
avenidas laterais de circulação para os autos, com acesso direto para uma vastíssima ga-
ragem no subsolo, o terreno tem 3.600 m2 e faz frente para a avenida Paulista e para a
alameda Santos. As moderníssimas linhas da fachada, aproveitando um máximo de in-
solação, terão uma beleza sóbria e um primoroso acabamento. Condizentes com a beleza
exterior, as instalações internas serão luxuosas e magnificamente confortáveis.
Além de muitos outros detalhes de grande beleza, efeito decorativo e grande conforto,
esta jóia arquitetônica apresentará, para regalo de seus condôminos, amplo jardim-de-
inverno, playground, salão de festas e um aprazível jardim suspenso no último pavimen-
to, 100 m acima da cidade.38

Já na descrição de Simonetti são “25 pavimentos, seis apartamentos por andar. Tem
uma marquise em curva na entrada, na passarela, subsolo entrando pela alameda San-
tos, o terreno tem 100 por 40 metros, igual ao do Bretagne. Os apartamentos são muito
bons, não tivemos problemas, vendemos todos. Era um catálogo lindo: capa cinza em
papel canson, calandrado cinza com uma cartola e uma bengala estilizadas na capa.
Era uma coisa linda o catálogo, com todas as plantas e tudo. Um material muito bonito
produzido pela Hegui. Foi um sucesso de vendas, eram 120 apartamentos. De alguns
fizemos junção, hoje devem ser 110 apartamentos”.
Por fim, Brand enaltece o consagrado sistema criado por Jurado no passado:

Resolvendo um dos mais difíceis problemas dos condomínios, este sistema consegue
livrá-los das vultosas despesas que os condomínios em geral apresentam: administração,
manutenção, conservação, luz, água e muitas coisas que, reunidas, atingem cifras corres-

38
Sílvio Brand Correia, apud “Abrem-se as portas da avenida Paulista ao progresso”, cit., p. 12.

196
pondentes a um verdadeiro aluguel. Des-
tinando algumas partes do edifício para
renda em benefício exclusivo dos condô-
minos, consegue-se contrabalançar per-
feitamente o montante das despesas com
a renda auferida do aluguel dessas partes.39

De acordo com a reportagem de A Ga-


zeta, no caso do Saint Honoré, são inúme-
ras as vantagens oferecidas pelo sistema de
Ibirapuera visto do alto do
incorporação e vendas da Monções: Edifício Saint Honoré.
Foto: Irineu João Simonetti.

Tornando ainda maiores as vantagens do condomínio sem despesa, o preço de constru-


ção proporciona ao comprador as regalias de figurar como construtor e fiscalizador, pois
paga o terreno e fiscaliza todas as despesas da construção. Dessa forma, a Monções figura
como mandatária de seus condôminos e, graças aos seus departamentos técnicos, ao seu
numeroso pessoal especializado e ao sistema de compra de material em grande escala,
consegue oferecer ao cliente, o verdadeiro construtor, todas as vantagens para a aquisi-
ção de sua residência própria a baixo preço e com as facilidades referidas.40

Finalmente, o Edifício Saint Honoré desfruta de uma localização e implantação in-


vejada por muitos paulistanos. Sobre o edifício, Giancarlo Gasperini declarou: “Mas,
na parte de conceituação, a parte de presença do prédio, a parte de implantação, era
fortíssimo! [...] Isso me atraiu muito”. Esse prédio, como se viu, foi lançado a preço de
custo, com parcelas fixas a serem pagas pelos compradores. Mas, depois, eles tiveram

39
Ibidem.
40
“Abrem-se as portas da avenida Paulista ao progresso”, cit., p. 12.

197
A fachada do Saint Honoré
vista da avenida Paulista,
em julho de 1960.
Acervo Diva Jurado.

198
Edifício Saint Honoré com as
obras paralisadas na fase de
conclusão, em 1961.
Acervo Diva Jurado.

199
de terminar as obras por si próprios. “Ti-
vemos que fazer modificações por razões
de economia”, disse Jan Kiel, um dos pri-
meiros moradores do prédio.“No projeto,
por exemplo, ele era pastilhado com colu-
nas revestidas em granito. Isso não pude-
mos realizar. Mas posso dizer que poucos
prédios são tão confortáveis como aque-
le.”41
Em seguida, ocorrem dois lançamentos
quase simultâneos, nos quais ficará defini-
do para sempre o verdadeiro estilo de João
Artacho Jurado. Tudo o que fora feito an-
tes terá sido mero exercício, quando com-
parado aos efeitos causados por esses dois
prédios, não só na paisagem em que estão
inseridos, mas também no aspecto formal
de sua produção. Um é o Edifício Bretagne,
localizado no bairro de Higienópolis, na
cidade de São Paulo, e o outro é o Edifício
Fotografia da maquete do Parque Verde Mar, implantado no bairro
Edifício Saint Honoré.
Acervo Diva Jurado. do Boqueirão, na cidade de Santos. Am-
bos se tornaram marcos arquitetônicos!

41
Jan Kiel, apud Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”,
cit., p. 8.

200
EDIFÍCIO(BRETAGNE(

Artacho Jurado era um profissional


maduro e profundo conhecedor do mer-
cado imobiliário paulistano, quando, tam-
bém no bairro de Higienópolis, lançou o
Edifício Bretagne pela Construtora Mon-
ções. Naquele instante efervescente de sua
produção arquitetônica, procurava deixar
para trás as críticas e fincava o pé definiti-
vamente no reduto paulistano da arquite-
tura moderna, o bairro de Higienópolis,
para fazer, ao lado de nomes como Rino
Cobertura do
Levi,Vilanova Artigas,Pedro Paulo de Melo Edifício Bretagne.
Saraiva, Jacques Pilon, Franz Heep e outros, o projeto mais significativo e mais conhe- Acervo Diva Jurado.

cido de toda a sua carreira no início da década de 1950: o Edifício Bretagne, sem dúvi-
da, o empreendimento que mais fama deu a Jurado.
Antes de tudo, o Bretagne, com seus dezoito andares, tornou-se o prédio mais alto
do bairro e passou a ser um marco local, devido basicamente a três fatores: sua dispo-
sição em forma de “L” (que propicia iluminação constante a todos os apartamentos),
criando um pátio interno que encerra um jardim tropical equipado para lazer; sua
altura significativa e seu tratamento externo em cores vivas, rosa e azul-marinho.
O trabalho promocional era feito pela equipe de propaganda da empresa Hegui,
contratada pela Monções, que supervisionava toda a campanha por intermédio de Iri-
neu J. Simonetti. A Hegui cuidava da parte publicitária dos lançamentos da Monções,
procurando dar ênfase à arquitetura inovadora de Jurado. Segundo Simonetti: “A pu-
blicidade era feita pela empresa de Hélio Guimarães. Ele tinha agência de publicidade
e gráfica na rua Marquês de Itu. A nossa publicidade era muito bem cuidada. Lançava-

201
se um prédio num anúncio de página
dupla no Estado, o que não era hábito na
época, com o projeto e o detalhe do apar-
tamento, com itens, com memorial resu-
mido”. Aliado a isso, o prédio, pela exce-
lente implantação, era visível a distância,
demonstrando claramente a preocupação
que Jurado tinha com a situação do edifí-
cio na cidade, uma constante na seqüên-
cia de suas obras.“Situado na avenida Hi-
gienópolis, próximo do Condomínio
Louveira (de 1946), de Vilanova Artigas,
Inauguração do Edifício
esses dois prédios são considerados pelo
Bretagne. Jurado aparece arquiteto Silvio Soares Macedo como exceções na forma de implantação de edifícios
atrás do padre.
Acervo Diva Jurado. no lote daquele bairro.”42
O endereço do Edifício Bretagne é o número 938 da avenida Higienópolis. O terre-
no mede 40 m de frente por 100 m de fundo e fora ocupado anteriormente, como a
maioria deles, por palacetes. As dimensões do terreno sugeriam uma implantação em
“L” e a fuga da simetria e dos poços centrais de iluminação e ventilação, assimetria que
já havia sido buscada no Edifício Enseada, em Santos.
Atento aos anseios de sua clientela, Jurado, em seu primeiro estudo para o lote,
chegou a uma solução que logo em seguida seria rejeitada, após consulta prévia aos
possíveis compradores. Sobre isso, Simonetti esclarece: “Quando o prédio foi lançado,
ele foi lançado ao contrário, em que era melhor a insolação [...] mas foi feita uma
pesquisa com os compradores, e eles preferiram que se virasse o prédio, e o prédio
ficou face sul”.

42
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado; intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 86.

202
Edifício Bretagne em fase de
conclusão. Um “L” voltado
para a cidade.
Acervo Diva Jurado.

203
Planta do Edifício Bretagne.
Vetorização: Lourdes Valente.

Os condôminos preferiram olhar para o Centro da cidade a olhar para o Pacaembu.


O que, felizmente, acabou dando certo, pois o Colégio Rio Branco teria prejudicado
essa vista, se o prédio ficasse voltado para o outro lado.
Com essa opção, Jurado integra o prédio à cidade e dá a ela um jardim, com ótimo
resultado formal, acabando por fazer uma citação ao mestre da arquitetura moderna
em São Paulo, Vilanova Artigas, que anos antes integrara o Edifício Louveira à praça
Vilaboim.
O Bretagne e o Louveira – tal foi a leitura do arquiteto e professor Sílvio Soares
Macedo –, obedecendo a um novo tipo de organização no lote, constituem verdadeiras
exceções ao esquema tradicional de implantação, diferenciando-se ainda, em forma e
volume, dos demais edifícios na época.
204
A fachada contínua do
Bretagne. Os caixilhos
inclinados, fabricados pelo
Liceu de Artes e Ofícios, fazem
a integração com o jardim no
térreo.
Acervo Diva Jurado.
O Bretagne tem 180 apartamentos, sendo dez por andar, em dezoito andares, com
opções de planta com dois e três dormitórios, sendo o de três em maior quantidade e
tendo a área total construída de 25.000 m2.
Observando-se a fachada, percebe-se que o prédio não tem varanda, pois o conceito
aqui adotado é diferente dos prédios anteriores. Usando a fachada contínua – outro
preceito “corbusiano” – e envidraçada, o projeto faz com que as pessoas se sintam em
um jardim de dentro do apartamento.
Sobre os detalhes construtivos da caixilharia, Simonetti comenta: “Então, foi feito
um caixilhão do piso ao teto em vigas com janelas basculantes em plano inclinado,
com sistema de catraca para levantar. Porque as janelas eram muito pesadas, tinha a
manivela para projetar a janela. Porque ela não era com eixo central, ela era com eixo
acima, então, ela se projetava toda. E isso dava o peitoril a 70 cm do piso. Janelões
grandes e uma bandeira em cima”. Com isso, estabelecia-se um peitoril baixo e de vidro
também, “[...] aí o que tinha, ele dizia isso: ‘Aqui não vamos fazer terraço. Vamos inte-
grar o prédio com o jardim que vamos fazer lá embaixo’”.
Jurado, em seu projetar, usava da intuição como forma de inovar para causar sensa-
ção. Sergio Teperman, a propósito dessas fachadas contínuas, declara:

Mas esquecíamos, ou as fachadas encobriam, o fato de que os edifícios tinham aparta-


mentos bem projetados, com o defeito de acertar paredes e cantos para compor a modu-
lação das fachadas, o que era considerado um crime. Estranho que o Edifício Louveira,
um famoso (merecidamente) projeto de Artigas da mesma época, fazia a mesma coisa e
ninguém falava nada.43

O perfil natural do terreno tinha uma declividade muito grande, de aproximada-


mente 10 m. Assim para compor a construção foram feitos dois subsolos mais meio
subsolo embaixo. Dessa forma, verificou-se um espaço enorme que ficou perdido, e,

43
Sergio Teperman, “Brega e kitsch”, em A&U, no 26, out.-nov. de 1989, pp. 90-91.

206
O jardim no térreo. A praça
interna dá ao conjunto o
sentido urbano.
Acervo Diva Jurado.
conforme Simonetti,“porque as fundações
nasceram em pilotis e vieram alcançar o
térreo no nível da Higienópolis. Era um
declive de 10 a 11 m, se não me falha a me-
mória”.
O Bretagne foi um sucesso de vendas,
também vendido para pessoas de bom po-
der aquisitivo. Diva Artacho Jurado afir-
ma que seu pai ouviu, porém, de correto-
res “objeções de gente que dizia: não, eu
não vou comprar porque, com essa pisci-
na, com tudo isso aqui embaixo, filho meu
não vai estudar [...] não quero que meu fi-
lho more dentro do clube, quer dizer,é uma
Planta do andar-tipo
do Edifício Louveira.
mentalidade totalmente diferente [...]”.
Sacrifício da planta O pai do arquiteto Jaime Lerner – ex-governador do Paraná – comprou um aparta-
em prol da fachada.
Vetorização: Lourdes Valente. mento para os filhos morarem. Havia um público que vinha a São Paulo passar o fim
de semana, férias, etc. e também comprou para ter um apartamento à disposição em
Higienópolis.
Voltado totalmente para o lazer, sendo nisso pioneiro na cidade de São Paulo, o
Bretagne foi o primeiro prédio de Jurado a ter piscina. Nas palavras do arquiteto Cris-
tiano Stockler das Neves, o Bretagne tinha:

[…] amplo e gracioso jardim, piscinas para adultos e crianças, salão de chá, salões de
estar, sala de música, bar americano, sala de televisão, playground, salão de brinquedos,
amplos e repousantes terraços, à guisa dos decks dos transatlânticos de luxo, salão de
beauté, etc. No topo do edifício há um roof-garden pitoresco, de onde se descortina um

208
Salão do Edifício Bretagne, decorado ao gosto de Jurado.
Acervo Diva Jurado.
Salões do Bretagne, também decorados ao gosto de Jurado.
Acervo Diva Jurado.

210
dos mais belos panoramas de São Paulo. A Monções construiu o Edifício Bretagne para
o corpo e o espírito, acima do utilitarismo vulgar.44

Porém, revivia em Cristiano o velho combatente contra extremismos na arquitetu-


ra moderna, ao dizer:“Pena é que as linhas bizarras desse coroamento não se harmoni-
zem com o todo, formando a silhueta de uma outra propaganda da modernidade”.45
Com esse comentário, o ex-professor mostrava toda a sua revolta e o seu eterno protes-
to contra a falta de ornamentos na arquitetura contemporânea, que o modernismo
varreu.
O salão de festas, localizado em edifício fronteiro ao conjunto, havia sido definido
para ser um restaurante, mas poderia funcionar como salão de festas – e de fato funcio-
nou. Tudo para atender os“princípios do conforto”, previamente estabelecidos em pro-
gramas passados, que agora estavam no auge. É sabido que várias festas de formatura
foram realizadas nesse salão, além de cerimônias de casamento e aniversários. No salão
de música, havia um piano de cauda, e aí não raro aconteciam apresentações de canto-
ras líricas.
E prossegue o professor Cristiano Stockler das Neves, externando suas opiniões so-
bre o Bretagne:

Embora se trate de uma realização da indústria imobiliária, seus autores não pensa-
ram somente nesse utilitarismo vulgar, para fins lucrativos. Não! Proporcionaram um
ambiente que dará alegria de viver aos seus felizes ocupantes e prazer a todos os que o
visitam.46

44
Cristiano Stockler das Neves, apud A Gazeta, 27-11-1958, p. 35.
45
Ibidem.
46
Ibidem.

211
O coroamento em estilo moderno.
Acervo Diva Jurado.

212
No Bretagne, o professor Cristiano Stockler Flagrante fotográfico da comitiva de engenheiros e arquitetos norte-americanos
das Neves, ladeado por Aurélio e Jurado, em 1958. que fizeram declarações elogiosas à arquitetura do Edifício Bretagne, irritando
Acervo Diva Jurado. Eduardo Corona.
Acervo Diva Jurado.

213
A entrada do arquiteto Cristiano Stockler das Neves – funda-
dor em 1917 da Escola de Arquitetura Mackenzie, ex-prefeito de
São Paulo e dono de um currículo abrangente – no rol de ami-
zades de Jurado foi articulada por ele nos encontros casuais que
aconteciam no restaurante do quinto andar do Mappin. Segun-
do Simonetti,“o Jurado teve uma relação com o Cristiano, prin-
cipalmente, nos últimos prédios. Ele aproximou-se um pouco
da Monções no Hortênsias, Dona Veridiana, Acácias e Bretagne.
Ele era nosso convidado de vez em quando para os nossos almo-
ços no Mappin”.
A amizade e proximidade com Cristiano daria a Jurado segu-
rança e, sobretudo, o apoio que ele viria a precisar para atenuar
as críticas que começava a receber – notadamente do arquiteto
Artigo publicado por Jurado
Eduardo Corona. “O Corona era contrário à Monções”, afirma
após visita da delegação
norte-americana ao Bretagne, Simonetti. Essas críticas mais recentes, dentre as quais se destacavam as de Corona,
provavelmente em 1958.
Acervo Diva Jurado. relacionavam-se às opiniões de um arquiteto norte-americano e publicadas em vários
Fonte: Recorte avulso,
sem identificação. jornais do grupo Diários Associados com objetivos de publicidade. “Os redatores dos
Diários Associados eram todos nossos amigos. Nós éramos grandes anunciantes”, diz
Simonetti.
Cristiano faria tantos elogios ao trabalho de Jurado, e de maneira tão despretensio-
sa e desinteressada, que isso o tornaria um verdadeiro aliado da causa “artachiana”,
defensora de uma arquitetura voltada para o convívio social e de cunho personalista e
glamoroso. As palavras amistosas de Stockler das Neves, num contexto de hostilidade
emanada dos apologistas do modernismo, soariam como a mais absoluta verdade, para
Jurado. Ainda mais pelo fato de Cristiano ter sido o único arquiteto a aproximar-se
dele para conhecer e ajudar a divulgar seu trabalho e ao mesmo tempo lhe dar garantias
de que poderia continuar naquela direção. O peso do apoio vindo de um profissional e

214
homem público trouxe-lhe o necessário reconhecimento. Podia sentir-se agora dotado
de credibilidade para assim continuar com seu estilo megaalegórico.
Não há dúvidas de que Jurado, sendo um grande praticante do self-marketing, com
claras intenções de autopromoção, ao convidar o mestre para visitar o Bretagne, visa-
va, na verdade, colher as impressões do importante arquiteto, e mais, fazê-lo sob o foco
das Rolley Flex, provavelmente, de algum jornal. Mas havia admiração verdadeira de
Jurado por Cristiano. De acordo com Irineu Simonetti: “Ele trocava idéias com o Jura-
do. Conversavam, e o Jurado o respeitava”.
Conforme analisa o arquiteto Giancarlo Gasperini, Jurado “conseguiu convencer o
mercado imobiliário de que o bonito e o bom era morar em espaços amplos, espaços
bonitos, varandas, isso, aquilo, etc. Quando foi um precursor, aquilo que hoje em dia
acontece na..., você vê nos jornais, etc., todo o mundo fazendo varandonas, fazendo
não sei o quê, tal [...] mas o Artacho, nesse ponto, ele foi precursor, porque a arquitetu-
ra dele já era voltada para o sentido da sua [...] autopublicidade! Que ele se promovia,
através da própria arquitetura, não é? Daí o sucesso que ele teve, não é?”.
Giancarlo Gasperini corrobora o pensamento de Neves, quando afirma que, mes-
mo que os projetos de Jurado fossem destinados exclusivamente à especulação imobi-
liária, ainda assim eram honestos. Nas suas palavras: “[...] eu o estou defendendo, de
uma certa forma, porque eu sou um sujeito que aprecia certos valores, principalmente,
os valores do produto arquitetônico voltado para uma sociedade mais aberta, etc. E
com uma arquitetura mais limpa. Mas tem muita gente que detesta o Jurado, porque
dizem que ele só visava lucro. Mas ele visava lucro com produto! E aí está a diferença! E
não é como essa gente, que citei ainda há pouco, que visava lucro com produtos que
depois, ao longo do tempo, se deterioraram, desapareceram e ninguém mais conhece.
Há uma diferença muito grande!”.
E, em defesa de Jurado, Gasperini continua: “[...] por isso, quando eu falo que eu
acho que ele foi uma pessoa séria, e, nesse ponto, ele deixou um legado de que você
pode fazer uma arquitetura visando lucro, mas mantendo um gabarito, mantendo uma
215
qualidade [...] uma visão urbana, boa! Em
que pese o problema da arquitetura, diga-
mos assim, do gosto arquitetônico que
pode ser interpretado de uma maneira ou
de outra, mas, enfim, isso eu acho que vale,
porque senão nós deveríamos rejeitar tudo
o que à arquitetura ocorre [...] o próprio
art nouveau, né? É muito discutível. Hoje
em dia está muito apreciado, porque fica-
ram poucos exemplos, você vai dizer...‘Ah!
Ficar olhando para aquilo lá’. E dizer: ‘Oh!
Que maravilha!...’ Não, não, tem umas coi-
sas que são horrorosas!”.
Mariners em visita ao
Bretagne.
Apesar das críticas que Jurado recebia, o Bretagne fez parte, durante alguns anos, do
Acervo Diva Jurado. roteiro turístico da cidade de São Paulo, recebendo visitas de personalidades das altas
rodas, autoridades civis e militares e de artistas nacionais e internacionais, tudo devida-
mente divulgado pela imprensa, como no texto a seguir, extraído de reportagem local:

O Edifício Bretagne, arrojada realização arquitetônica, localizado à avenida Higienópo-


lis, em frente ao Colégio Sion, passou a constituir, há já algum tempo, um marco no
roteiro turístico de São Paulo. Delegações estrangeiras em visita a esta capital deman-
dam obrigatoriamente aquele ponto de atração, não apenas pelo ensejo de apreciar, do
alto do Edifício Bretagne, no belvedere localizado em seu último andar, um deslumbran-
te panorama da cidade que mais cresce no mundo, como pela oportunidade de conhe-
cer, em seus mínimos detalhes, uma das mais perfeitas obras de arquitetura já concebi-
das em matéria de habitação humana.47

47
Trecho extraído de recorte avulso de jornal da época contendo a reportagem “Edifício Bretagne: fabuloso exemplo da arqui-
tetura moderna”.

216
O Bretagne depois de pronto, aberto à
visitação pública. O edifício
transformou-se num cartão-postal da
cidade de São Paulo.
Acervo Diva Jurado.
Outra presença importante nos salões
do Bretagne foi, em 1958, a do ator-cantor
norte-americano nascido Leonard Frank-
lin Slye (1911-1998), que interpretava no
cinema o cowboy Roy Rogers. Nessa oca-
sião, ele passava por São Paulo para aten-
der a reinauguração do Cine Marrocos, na
rua Conselheiro Crispiniano.
Sabendo disso, Simonetti relata que
“Hélio Guimarães,que era um excelente re-
lações-públicas e que tinha uma retaguar-
da muito boa de criação, o trouxe ao Bre-
tagne [...]”. Depois foi a vez da belíssima
Recepção no salão de chá
do Bretagne, em 1958, com o
Miss Estados Unidos coroada em 1958, Eurlyne Howell (1935-), presente em muitas
ator e cantor norte- fotos nos salões do Bretagne e que, imediatamente após a conquista do título, se lançou
americano Leonard Franklin
Slye, o Roy Rogers. no cinema com o nome de Arlene Howell, participando de filmes e seriados de tevê,
Acervo Diva Jurado.
sem nunca ter atingido o estrelato e que, certamente, chegou ao Bretagne graças à
política nacional de boa vizinhança com nossos irmãos do Norte, promovida também
por Jurado e sua equipe de publicidade e marketing.
A vocação cinematográfica do Bretagne foi confirmada ainda no ano da inaugura-
ção, em 1958.

Os jardins do Bretagne serviram de cenário para Holiday for Lovers, de Henry Levin, que
tinha no elenco Clifton Webb e Jane Wyman, disse Alfredo Sternheim, diretor de Anjo loiro,
hoje morador do prédio. No Brasil, a comédia romântica chamou-se Amantes em férias.
Em 1989, o prédio serviu para ambientar Fogo de paixão, de Márcio Kogan e Isay Weinfeld.48

48
Celso Fioravante, “CD-ROM revê cenários de cimento de Artacho Jurado”, cit., p. 10.

218
A fama rondava Jurado naquele Brasil
dos anos 1950, quando, pela primeira vez,
em 1958, fomos campeões mundiais de
futebol na Suécia. É nessa década,mais pre-
cisamente em 1952, que acontece a promo-
ção, por parte da construtora, do Grande
Teatro Monções, na extinta TV Tupi. Con-
forme relata Simonetti:“A Monções patro-
cinou, na primeira televisão, o Teatro Tupy.
Chamava-se Teatro Monções, o grande
Teatro Monções! A TV Tupi era na Sete de
Abril antes de ser no Sumaré. Os estúdios
eram aqui no 230 da Sete de Abril. Então,
nós tínhamos muito contato com os artis-
tas, Procópio Ferreira, Cleide Iáconis e
também com os cronistas”. Jurado era um
profissional consagrado e, portanto, sen-
tia-se bem à vontade ao lado de personali-
dades como a família Procópio Ferreira e
cronistas do quilate de Ignácio de Loyola
Brandão e Helena Silveira.
A entrada da Monções na mídia teve o
propósito de defender a empresa. Essa foi
uma das estratégias encontradas por um
publicitário que havia sido contratado com
Fotografia da maquete do Bretagne.
o intuito de resgatar a confiança que a No projeto inicial, os carros

Monções começava a perder na praça. circulariam pela lateral.


Acervo Diva Jurado.
Em seu trabalho de relações públicas da
219
Eurlyne Howell, Miss Estados Ignácio de Loyola Brandão
Unidos em 1958, em visita ao (o primeiro à esquerda)
prédio de Jurado. observa Anselmo Duarte
Acervo Diva Jurado. distribuIndo autógrafos.
Acervo Diva Jurado.

220
Jurado (sentado, à esquerda) Modelos posando no
em companhia da troupe do corredor do Bretagne.
Grande Teatro Monções, Acervo Diva Jurado.
programa da TV Tupi. No
centro, Bibi e o pai Procópio
Ferreira.
Acervo Diva Jurado.

221
Construtora, aconselha a direção a patrocinar um programa de tevê e fazer uma série
de anúncios publicitários no jornal O Estado de S. Paulo.
Tais decisões são registradas por Irineu Simonetti:“Depois nós tivemos um publici-
tário, Fábio, ele tinha feito publicidade no Brasil, ficou um tempo nos Estados Unidos
e, ao voltar, nós o contratamos. Ele não tinha uma agência, ele era freelancer. E o Fábio
fazia as relações públicas do Estado, as campanhas de relações públicas [...] e o Fábio
nos introduziu no Estado [...] porque, quando começou a campanha contra a Mon-
ções, nós precisamos entrar na mídia, e aí o Fábio nos introduziu no Estado para nós
segurarmos as pontas na mídia [...]”.
Essa era uma forma sutil de abafar o falatório na imprensa, alimentado por parte de
alguns clientes descontentes com a falta de entendimento do que era inflação e dos
reajustes cobrados pela construtora. Isso havia originado um processo ainda hoje co-
nhecido como “preço de custo”. Houve até uma tentativa de invasão dos escritórios da
Monções feita por alguns condôminos, liderados pelo advogado Mário Carvalho de
Jesus, que atormentou a vida de Jurado.49
É Simonetti quem explica o que acontecia: “Ninguém entendia o que era preço de
custo, ninguém sabia o que era inflação, estavam sentindo na pele, mas não entendiam,
ou não queriam entender. À medida que se foi aumentando a prestação para poder
custear a obra, acharam que estavam sendo roubados. Foi aí que surgiu o boletim in-
formativo para tentar quebrar essa, mas não em todos os prédios. Isso aconteceu no
Viadutos. No Bretagne não tivemos dificuldades, no Verde Mar não tivemos dificulda-
des, e a obra fluiu muito bem, porque os condôminos tinham um poder aquisitivo. No
Hortênsias não tivemos dificuldades. Tivemos dificuldades sérias no Veridiana, que
acabamos vendendo, e no Acácias, no Parque das Acácias, que é o Apracs (que significa
‘Scarpa’ ao contrário)”.

49
A título de curiosidade, Mário Carvalho de Jesus foi um dos autores da idéia da fábrica autogerida Unilabor, fundada em
agosto de 1954 no terreno ao lado da Capela Cristo Operário, no bairro do Alto do Ipiranga, em São Paulo (SP). Para mais
informações, ver Mauro Claro, Unilabor: desenho industrial, arte moderna e autogestão operária (São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2004).

222
Salão das crianças no Edifício Bretagne.
Acervo Diva Jurado.

223
Terraço do apartamento de Jurado no Bretagne, com o Edifício Parque das Hortênsias em obras, ao fundo.
Acervo Diva Jurado.

224
Mesmo assim, como era de praxe, a Monções punha seus clientes a par da situação,
publicando o relatório anual num folheto de divulgação:

No seu relatório anual de 1953 a Monções, dirigindo-se aos seus acionistas, procurava
demonstrar que o processo de industrialização por que passava o país e a metrópole
paulista possuía, além dos elementos indiscutivelmente positivos, outros, geradores de
desequilíbrio e instabilidade. O mais radical destes elementos negativos era a inflação,
que se manifestava através da perda progressiva de substância da moeda. A aplicação em
bens de raiz, explicam os diretores da Monções no seu relatório, era o caminho da eco-
nomia particular na fuga à depreciação. Comprovando este movimento“preservador”, a
construtora exibe sua sólida expansão: entre 1947, data do primeiro empreendimento, e
1953, a Monções passou de um capital de 3,5 milhões para 29,4 milhões de cruzeiros.50

Passados o tempo e as controvérsias, o balanço que se faz é que até hoje o Edifício
Bretagne é valorizado, principalmente pelos seus moradores. Em depoimento ao jor-
nal Folha de S.Paulo, o arquiteto e artista gráfico Carlos Perrone declara:

Se, do lado de fora, o Bretagne tem um ar pitoresco, ornamental, do lado de dentro, há


uma planta muito correta e um tratamento construtivo.
Vai-se do pastiche mais absoluto à solução construtiva mais branca, mais “corbusiana”.
Muita gente do IAB que a atacava na época era menos “corbusiana” que ele.51

Perrone pergunta-se por que o Bretagne causou tanta celeuma:

Não entendo esses arquitetos que admiravam os Alagados de Recife e as favelas como
soluções arquitetônicas e metiam o pau no Artacho. Não sei se o Bretagne é uma boa

50
Regina Maria Prosperi Meyer, Metrópole e urbanismo: São Paulo anos 50, cit., p. 38.
51
Carlos Perrone, apud Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”, cit., p. 11.

225
solução arquitetônica, mas é uma boa solução habitacional.
Prédio de apartamentos é uma droga. Sempre foi, já na sua ori-
gem “corbusiana”. Artacho dá soluções para se evitar a redun-
dância, ele não se repete na estrutura do próprio prédio. A ar-
quitetura não é só uma questão de espaço, mas de tempo.52

Mesmo às portas do século XXI, o Bretagne continua a exer-


cer um misto de curiosidade e fascínio, voltando a ser notícia na
imprensa paulistana:

O pessoal da [revista] Wallpaper estacionou no Bretagne, do


arquiteto Artacho Jurado (1907-83), que fica na avenida Higie-
nópolis, ao lado do Colégio Rio Branco. “O beautiful people de
São Paulo ainda arranja muitas razões para fazer do Bretagne
sua casa”, diz o texto, que chama o prédio de “a casa da Barbie
projetada por Oscar Niemeyer”.
“O Artacho fez uma mistura de elementos aqui que é, no míni-
Um dos halls de entrada do Bretagne.
Acervo Diva Jurado. mo, kitsch. Tem pastilha colorida, azulejo, elemento vazado. Na
portaria, fica um biombo de flores-de-lis de gesso”, encanta-se
Cid Torquato, 36, diretor de comunicação de um portal da In-
ternet.53

52
Ibidem.
53
Paulo Sampaio, “Muito além dos Jardins”, em Revista da Folha, encarte da Folha de S.Paulo,
26-3-2000, pp. 6-13.

226
A piscina: a primeira na
história dos edifícios
residenciais de São Paulo.
O conceito de “prédio-clube”
chega aos condomínios.
Acervo Diva Jurado.
Sala de jantar do apartamento Banheiro do apartamento de
de Jurado no Edifício Bretagne. Jurado no Edifício Bretagne.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

228
Apartamento de Jurado no
Edifício Bretagne.
Vista interna do
jardim-de-inverno.
Acervo Diva Jurado.

229
Apartamento de Jurado no
Edifício Bretagne. Vista externa
do jardim-de-inverno.
Acervo Diva Jurado.

230
“CASA@PRÉDIO”(NO(BAIRRO(DO(PACAEMBU(

Durante o período mais criativo de Jurado – compreendido


entre os anos de 1950 e 1955 – ele projetou uma casa para o ir-
mão Aurélio, no bairro do Pacaembu, na rua Gustavo Teixeira,
no 221. Essa peça do acervo de Jurado, até então sem registro, é
uma “casa-prédio”, nas palavras de Simonetti. Não há como não
associá-la aos edifícios dele, principalmente pelos elementos mar-
cantes de sua obra arquitetônica.
Uma rampa lateral de acesso (infelizmente já demolida e tro-
cada por uma escada) dá em uma entrada grandiosa com pé-
direito duplo, ladeada por um imenso caixilho fixo, com pedras
do tipo “canjiquinha” e pastilhas, muitas pastilhas, nas mais va-
riadas cores, como as que foram empregadas nas obras do Verde
Mar e do Bretagne, além de azulejos de cor preta.
A fachada principal, em curva, fazendo uma empena – que
em muito lembra a fachada do Verde Mar –, termina em um bei- A “casa-prédio” leva a
marca dos empreendimentos
ral de um metro de largura. da Monções na época,
que eram os edifícios
É uma casa de quatro pavimentos. E, em entrevista concedida em dezembro de Verde Mar e Bretagne.
2003, Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.

Marco Aurélio de Moraes Artacho, filho de Aurélio, descreve essa casa, da qual foi
mo-
rador entre 1959 e 1964: “A nossa casa apresenta características claras do traço de Jura-
do. Ela tem hall de entrada, escritório com aproximadamente 35 m²; sala de estar, jar-
dim-de-inverno com 55 m² e jantar com 20 m². Depois, sala de almoço, lavabo, copa,
cozinha e área de serviço com banheiro de empregada. Escada de serviço, para baixo e
para cima, caixa de elevador” – que nunca chegou a ser instalado.
Prossegue Marco Aurélio: “No andar superior, em cima do escritório, meu quarto,
‘ponte’ sobre o hall e, à esquerda, a suíte master, meu banheiro, três quartos e mais um
banheiro completo. Cobertura: terraço, casa de máquinas do elevador e caixa-d’água.

231
Fachada em curva e grandes beirais.
O estilo “mega”, aplicado a uma
residência.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

232
Os caixilhos e vidros acompanham
a curvatura da fachada.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

233
Embaixo: salão de festas, com bar, com
60 m², lavabo, terraço sobre a piscina com
50 m² e quartos e banheiros de emprega-
das. Mais abaixo, garagem para quatro ou
cinco carros grandes e apartamento do mo-
torista, mais a piscina com vestiário e
lavabo”.
Com todo o esmero, Jurado fez para o
irmão um prédio em forma de casa, cujo
programa refletia um típico preceito “ar-
tachiano”, o consagrado“princípio do con-
forto”, pois tem todos os requintes dessa re-
ceita pessoal.
Na fachada lateral, observa-
Assim, a casa de Aurélio e o edifício da
se o solário com a casa de rua Afonso Celso de Paula Lima, na Ponta da Praia, em Santos, supostamente dele, são
máquinas (para o elevador,
que nunca existiu) e o os únicos exemplos – ainda existentes – de arquitetura de Jurado produzidos por enco-
elemento curvo da
caixa-d’água.
menda.
Foto: Ruy Eduardo Debs
Franco, 2003.
No conjunto de suas obras, pode-se afirmar, sem medo, que Jurado citava Jurado,
repetindo-se sem pudor em seus projetos, e investindo em idéias e intenções. Provoca-
va, especulando com programas, forçando novos usos e funções. Essa atitude irreve-
rente marcou o seu inconfundível estilo.

234
EDIFÍCIOS(PARQUE(DAS(HORTÊNSIAS(E(
PARQUE(DAS(ACÁCIAS((APRACS)(

Localizado na avenida Angélica, no 1.106, o Edifício Parque


das Hortênsias une-se pelos fundos ao Edifício Parque das Acá-
cias (Apracs), localizado na avenida Higienópolis, no 578, atra-
vés de uma marquise sinuosa, inferida após análise das fotos da
maquete.54 Não foram, porém, executados da maneira que estão
hoje (com os lotes unificados) por força da venda do Apracs,
cujo programa foi reformulado, dando-se a ele um viés mais co-
mercial. Ambos foram lançados a preço de custo, mas em épocas
diferentes.
O Hortênsias totaliza 20.000 m2, distribuídos em quinze an-
dares, mais terraço na cobertura, que são servidos por quatro
elevadores. Possui planta simétrica com vazio central, com apar-
tamentos de três dormitórios, mais dependências de empregada.
O térreo é bem inusitado, com pilotis e generosa área livre, Detalhe da maquete
do conjunto
fugindo do conceito social no que tange a salões de festas, que foram transferidos para Parque das Hortênsias e
Parque das Acácias.
o terraço na cobertura, o que o faz lembrar a “segunda versão do projeto vencedor do Acervo Diva Jurado.

concurso público nacional para a Sede da Administração Central da Viação Férrea do


Rio Grande do Sul”,55 desenvolvido por Afonso Eduardo Reidy, em Porto Alegre, no
ano de 1944, marcado pelas pequenas abóbadas, presentes nos dois prédios. Ali estão
os tetos-jardim, a marca de Jurado para esses empreendimentos de Higienópolis
também.
A respeito do projeto do Parque das Hortênsias, a reportagem da Folha de S.Paulo
traz o seguinte:

54
Análise feita com base em fotos publicadas na revista Habitat, no 7, 1951.
55
Nabil Bonduki & Carmen Portinho, Affonso Eduardo Reidy (São Paulo: Blau/Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, 2000), p. 72.

235
Edifícios Parque das Hortênsias e Parque das Acácias (Apracs).
Fotos: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

236
Planta do Edifício
Parque das Acácias.
Vetorização: Lourdes Valente.

Planta do Edifício
Parque das Hortênsias
(bloco da frente).
Vetorização: Lourdes Valente.

237
Mas não é só de Le Corbusier que vivem as soluções de Artacho. O
pastiche chega, entre várias outras “aberrações”, a montar uma verda-
deira mini-Pampulha de pastilhas no topo do edifício Parque das Hor-
tênsias, na avenida Angélica. Uma Pampulha sustentada pelos pilotis
em “V” que o mesmo Niemeyer havia concebido para o Ibirapuera, o
que costuma irritar os defensores da forma aliada à função. Artacho
capta e atira para todos os lados.56

Sobre o Parque das Hortênsias é interessante ressaltar que, por


uma alteração no projeto original, o edifício recebeu guarita, equi-
pamento inexistente em qualquer dos projetos de Jurado, e de
todos os arquitetos de então, por haver muito menos necessida-
de delas.
Já o Edifício Apracs, ou Parque das Acácias, com 16.000 m2
distribuídos em quinze andares, servidos por seis elevadores, é
um prédio que possui uma belíssima implantação em fachada
contínua a qual remete ao partido adotado no empreendimento
do Edifício Bretagne (cuja planta-tipo lembra muito a do Apracs).
O Parque das Hortênsias Diferentemente dos outros prédios de Jurado na região de Higie-
saiu ao estilo do Cinderela.
nópolis, tem comércio no térreo, mas apresenta a mesma solução do Parque das Hor-
Foto: Ruy Eduardo Debs
Franco, 2003. tênsias para o terraço. Pelo fato de a Monções ter vendido o prédio ainda na fase de
obras, ou seja, não lidou com ele durante a promoção e as vendas, pouco se sabe desse
edifício, pois ele tampouco teve a dedicação que foi dispensada a seus vizinhos de bairro.
Segundo Simonetti, a Monções teve dificuldade para vender o Parque das Acácias:
“Naquele tempo, veja, nós estávamos na dificuldade do preço de custo. Nós pegamos o
pico da inflação. Entre 1957 e 1961, a inflação foi cavalar. Quando o Jânio entrou, ele

56
Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”, cit., p. 11.

238
No Parque das Acácias (Apracs), a alameda A lateral do Apracs vista da
que leva aos jardins apresenta muita avenida Angélica.
semelhança com a do Bretagne, Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.
no aspecto da implantação.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

239
[...] foi à televisão e fez uma declaração de que pre-
cisava pôr o pé no chão e reduzir a inflação, senão
não dava para administrar o país, e mostrou, com
gráficos e tudo, a evolução da inflação, naquela al-
tura era uma loucura. E eu chegava à conclusão de
que nós,com o que recebíamos,aplicávamos na obra
e continuávamos com o saldo de obras a fazer maior,
cada dia maior, porque a inflação sobre o residual
era mais do que o que se aplicava.
“Era uma loucura aquilo que acontecia! [...] E
no Acácias, no Parque das Acácias, que é o Apracs,
também tivemos a liderança do [advogado] Mário
Carvalho de Jesus,que aliciou condôminos. Nós não
sabemos como a listagem chegou a ele.
“Um dia, na Monções, no 14o andar, chegou
Mário Carvalho de Jesus com um grupo de condô-
minos, desceu dos elevadores, eram quatro eleva-
Fotografia da maquete do
dores, eu vi aquela avalanche. Chamaram-me, eu
conjunto Parque das gritei para os funcionários: ‘Puxa uma mesa e vira aqui na porta!’. Pulei a mesa e fui lá
Hortênsias e Parque das
Acácias (Apracs). enfrentar o Mário.‘Você pode ir ao Fórum, aqui dentro não! Aqui é particular, só entra
Acervo Diva Jurado.
quem eu permita. Pode descer! Os condôminos, um a um, se quiserem conversar comi-
go podem entrar [...] Com reportagem junto, com reportagem da Folha’. Saiu publica-
do. Mas foi um período terrível! Bom, o Parque das Hortênsias foi um sucesso, aí,
lançamos o Acácias.”
Com todos esses problemas, os únicos prédios de Jurado que ainda seriam tocados
são esses dois. O Apracs, por motivos administrativos, escapou-lhe das mãos, porém
quem o construiu respeitou parte do projeto original, mantendo assim quase todas as
características marcantes do seu inconfundível traço.
240
O Edifício Parque das Hortênsias, Fachadas contínuas, que acentuam a
bem recuado, valoriza o jardim fronteiro. horizontalidade do Edifício Apracs.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003. Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

241
EDIFÍCIO(DONA(VERIDIANA(OU(CONJUNTO(DAS(TRADIÇÕES(BRASILEIRAS(

Esse projeto de Jurado, que compreende três blocos de apartamentos de três e dois
dormitórios, está situado na rua Maranhão, esquina com a rua Sabará, fazendo fundos
para a avenida Higienópolis. São os edifícios Brasil Colônia, Brasil Império e Brasil
República.
O terreno onde se implantou o projeto pertencia ao loteamento do bairro de Higie-
nópolis, cujo nome original era Boulevard Burchard, inaugurado em 1898 por inicia-
tiva de Martinho Burchard e Vítor Nothmann. Nesse período, o loteamento, então em
seus primórdios, tinha estilo europeu e com isso atraiu, aos poucos, várias famílias da
alta sociedade paulista, entre elas os Silva Prado, cujo clã teve origem em “Antônio
Prado, o fazendeiro-industrial por excelência, e também político influente no Império
e na Primeira República”.57
Fundador da dinastia e também conhecido como barão de Iguape, Antônio Prado
foi o pai daquela que seria“umas das personalidades mais marcantes do Brasil no sécu-
lo XIX, Veridiana Valéria da Silva Prado (1825-1910)”.58 Dona Veridiana Prado, como
ficou conhecida, era uma mulher de fibra e de personalidade forte, cujo comporta-
mento independente, muito à frente de sua época, por vezes escandalizava a provincia-
na sociedade paulista. Ainda muito jovem, casou-se com o tio, Martinho Prado, casa-
mento arranjado pelo pai, que via nesse matrimônio, muito mais que uma união afetiva,
uma forma de não diluir a fortuna da família. Veridiana teve com Martinho seis filhos
e“educou-os para que cuidassem dos interesses da família e, ao mesmo tempo, obtives-
sem grande destaque social”.59 Apesar de ter morado com o marido em uma fazenda no
interior de São Paulo, sua forte vocação urbana a atraiu de volta para a capital paulista,

57
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, portal Pioneiros & empreendedores,
disponível em http://www.usp.br/fea/apoio/Prado/apres/antonio_prado.ppt. Acesso em 6-8-2007.
58
Arnaldo Lorençato, “À frente de seu tempo”, em Invest News Online, São Paulo, 14-3-2004, disponível em http://
www.investnews.net/ultimasnoticias/imprimir.asp?id_editoria=2239&id_noticia=416995. Acesso em 6-8-2007.
59
Ibidem.

242
Fotografia da maquete do Conjunto das Tradições Brasileiras.
Acervo Diva Jurado.
voltando a residir na chácara que levou o
seu nome. A família chegou a possuir vá-
rios terrenos na região e, assim,

[…] em 1903, seu filho […] Caio Prado


foi residir na“VilaAntonieta”,no no 3 da
avenida Higienópolis, esquina com rua
Sabará.Essa casa,feita também por Car-
los Ekman (arquiteto sueco), possuía
forte tendência “art nouveau”. Na “Vila
Antonieta”nasceramoescritorCaioPra-
do Júnior e o pintor Carlos Prado.60
Vila Antonieta em 1903.
Acervo Caio da Silva Prado Jr.

No final dos anos 1920, a Vila Antonie-


ta foi demolida, e o casal Caio Prado

[…] fez edificar em seu lugar uma re-


sidência ao gosto dos modernistas, a
cargo da Cia. Comercial e Construto-
ra, e conforme projeto do arquiteto da
firma, Elisiário Bahiana, que foi tam-
bém autor dos projetos do atual Via-
duto do Chá e da Casa Mappin, e de
tantos outros de importância.61

60
Maria Cecília Naclério Homem, História dos bairros de São
Paulo, vol. 1: Higienópolis: grandeza e decadência de um bairro
paulistano (São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo,
A “nova” Vila Antonieta em 1920. Anos mais tarde nasceria aí o conjunto Dona Veridiana. 1980), p. 88.
Acervo Caio da Silva Prado Jr. 61
Ibid., p. 98.

244
Assim, João Artacho Jurado, sensível ao momento histórico recém-passado, proje-
tou o conjunto, que batizou de Dona Veridiana, em homenagem à grande feminista
nascida no século XIX. Jurado não conseguiu terminá-lo, é verdade, mas teve o cuida-
do de colocar no projeto todos os elementos de lazer e conforto por ele preconizados
em suas obras recentes. Entretanto, esses espaços tiveram uma nova destinação, sendo
ocupados por lojas quando o empreendimento passou à propriedade da Imobiliária
Paes de Barros, que contratou os arquitetos Alberto Botti e Marc Rubin, da Botti &
Rubin, para reformular o projeto.
Alberto Botti, em entrevista em junho de 2006, confessa que, há quarenta anos, ele,
então um jovem arquiteto, inquietava-se com aquela desordem, e conta: “O que a Paes
de Barros fez foi comprar o acervo! Levou um ano ou mais comprando de todo o
mundo, menos um apartamento [...] depois nos contratou para acertar o projeto! En-
tão, nós mantivemos a volumetria e mudamos as fachadas. Pegamos os prédios só com
estrutura e alvenaria, e nós desmanchamos praticamente toda a alvenaria e viemos
executando uma nova”.
Posteriormente, o empreendimento foi concluído com várias mudanças no projeto
original, sem que Jurado tenha sido consultado em qualquer circunstância, pois, se-
gundo Botti, para eles,“Jurado estava fora do mercado, tinha quebrado, não trabalhava
mais e, naquele momento, não iria criar problemas para uma mudança ou adaptação
de fachada em um empreendimento que não era mais seu”. Dessa forma, o processo de
aprovação, datado de 27 de novembro de 1951, dava conta de um amplo programa que
continha no térreo salão de bilhar, sala de reunião, jardim-de-inverno, área de recrea-
ção para crianças, biblioteca, além de amplos jardins que faziam frente para a rua Sa-
bará. Todos esses elementos previstos no projeto de Jurado foram relegados quando a
proposta racionalista, empreendida pela então jovem dupla de arquitetos, assumiu a
reforma.
Hoje, Botti acredita que teria agido de forma diferente, declarando que houve falta
de ética por parte deles, por não terem consultado Artacho Jurado. Alega que, atual-
245
mente, valoriza o que os outros fazem,
mesmo não gostando, e que, finalmente, o
teria respeitado mais: “Nós fizemos uma
fachada postiça, que de certa maneira [...]
ia de encontro à proposta do Artacho. Nós
fizemos uma fachada postiça de aço e con-
seguimos dar uma padronização de vãos
que deu uma ordem na fachada, o que na
época nós achamos fantástico. Hoje eu
acho extremamente criticável, o que prova
que eu evoluí pelo menos!”.
Ainda perseguindo esse espírito de me-
Os prédios vistos lhorias, sempre visando boas adequa-
da rua Maranhão.
Da proposta original,
ções e atendendo às necessidades do mercado imobiliário de então, a Paes de Barros
só a implantação resistiu. resolve ampliar o subsolo.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003. Sobre essa ampliação, Alberto Botti relata: “Nós escavamos o subsolo até encontrar
a sapata, posto que a garagem tinha 4,5 m de pé-direito! [...] e o Sigmund Golombek
foi comigo, naquele tempo eu era muito jovem, levamos um mestre-de-obras, e ele
levou uma picareta [...]: ‘Abra um buraco para mim!’. E ele não teve dúvida [...] de
repente, começou a sair faísca: ele já estava batendo no bloco de fundação. O Sig diz:
‘Pára, pára!’. Aí medimos e descobrimos que tinha um metro e pouco entre o piso
acabado da garagem e a cabeça da fundação [...] do bloco. Aí, nós demos uma cortadi-
nha na cabeça do bloco e deu [...] para encaixar com pilares intermediários, que nós
criamos [...] uma laje com 10 cm de espessura maciça e com isso deu dois pés-direitos
de 2,30 m, permitiu fazer duas garagens. Assim, fazendo dois níveis de garagem, nós
dobramos o número de vagas!”.
De fato, as mudanças foram tantas que até o nome do empreendimento (antes era
Dona Veridiana) mudou, e as alterações foram tão radicais que o transformaram total-
246
mente, quando comparado à proposta ini-
cial. Conforme Botti: “Os andares eram
completamente diferentes. Tinha alguns
apartamentos que a pessoa fazia um [...]
Então, nós descobrimos que o Artacho ia
fazendo isso! À medida, vamos dizer [...]
ele mudava um apartamento, tinha uma
sala com um quarto aqui [...] o proprietá-
rio tirava uma determinada parede, tirava
a coluna também!”.
Essa era uma das armas de venda da
Monções: proporcionar alternativas de
plantas. Só agora pode-se discutir de ma- Edifício Louveira, criação de
Vilanova Artigas, de 1946,
neira clara como Jurado podia realizá-las de uma forma coerente. Isso assustou os implantado na praça Vilaboim,
no bairro de Higienópolis.
jovens arquitetos e os levou a uma consulta com o então calculista da Monções, José Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
Birman. É Botti quem confirma: “Aí, eu fui falar com o Birman [...] ‘Ah, ele é assim 2003.

mesmo! (referindo-se ao Jurado). Eu já faço uma laje com a viga superdimensionada e


mudo mesmo’ [...]”.
E Botti continua: “[...] é, uniam [...] ou mudavam; tiravam um quarto, e, à medida
que iam mudando, o Artacho ia mudando a fachada do prédio! Então, nós demos uma
ordem. Outra coisa: só tinha um banheiro por apartamento! Mas o banheiro era tão
grande que permitiu a gente dividir em dois! Então, as unidades passaram a ter dois
banheiros, e mais ou menos nós padronizamos a unidade. Surgiu, porém, um problema!
Nós só tínhamos as plantas [...] Trabalhamos em cima das plantas e começamos a obra”.
Essa revelação surpreendente, feita por Botti quanto à audácia de Jurado em modi-
ficar a estrutura, e não o projeto, mostra que ele depositava total confiança em seu
calculista e, assim, de acordo com o que Botti apurou, ele “evidentemente reforçava a
estrutura de vigas [...] mas a coluna não tinha uma prumada!!!”.
247
Com tudo isso, Botti & Rubin tiveram
de pensar em alternativas para organizar
as prumadas de elétrica e de hidráulica, já
que a repetição, muitas vezes, fora posta de
lado em prol de uma melhoria para os cli-
entes, mesmo que, para tanto, o preço de
custo praticado pela Monções fosse eleva-
do e o retrabalho, desconsiderado. “Para
restabelecer um projeto básico, foi fácil”,
afirma Botti, “difícil foi criar condições de
A implantação recuada
garantiu a permanência da funcionamento de hidráulica e elétrica,
praça para os condôminos.
porque não tinha prumada junto às colunas! Tivemos que puxar tudo pra fachada, por
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003. conta de uma única solução, já que também a fachada tinha problemas. Por isso, [...]
aquela ordem que nós estabelecemos, ela veio restabelecer uma condição construtiva
importante, que foi a de permitir que a gente tivesse prumadas na fachada que atendes-
sem esgoto, águas pluviais, etc. No mais, era isso! Evidentemente, nós mudamos total-
mente os revestimentos e tudo o mais”.
Assim, o conjunto ganhou roupagem modernista, com janelas de correr de alumí-
nio. As varandas dos blocos da frente desapareceram e, provavelmente, foram incorpo-
radas às salas.
O edifício da rua Maranhão, no 192, chama-se Brasil Colônia, o da Sabará, no 210, é
Brasil Império e, por fim, o da avenida Higienópolis, no 195, Brasil República, juntos
formam o rebatizado Conjunto das Tradições Brasileiras, cujo nome original era Edi-
fício Dona Veridiana.
Na pesquisa para este estudo, foi possível resgatar um único elemento pertencente
ao projeto original, qual seja, a foto da maquete de vendas (certamente executada ain-
da pela Monções), que reflete o traço característico de Jurado.Vê-se claramente a preo-

248
cupação dele, nesse projeto datado de 1952, em fazer uma implantação não agressiva,
recuando o bloco maior para trás, fazendo uma rotunda, que, compondo com os dois
blocos menores da frente, nos dá a sensação de equilíbrio e simetria. Analisando cuida-
dosamente a foto, nota-se que não havia lojas no térreo, e sim, possivelmente, áreas de
lazer, como salões, etc.
Sobre a ocupação das áreas de pilotis, Simonetti afirma que Jurado “sempre traba-
lhou com pilotis! Só que, ao invés de deixar o pilotis totalmente aberto, ele trabalhava
o pilotis, botava alguma coisa dentro do pilotis [...] diga-se de passagem, num prédio
grande como esse, ele fazia, tem bom senso! Hoje nós fazemos isso. Nós não deixamos
[...] Botamos [...] se você for deixar o pilotis totalmente aberto, num prédio pequeno,
tudo bem; num prédio grande, não tem sentido! É uma área desperdiçada”.
Irineu Simonetti prossegue, não poupando críticas ao Código de Obras: “Na verda-
de, aquela visão, ainda da arquitetura modernista que levou ao Código. Até hoje o
Código, a lei nossa de edificação, lei de uso e de ocupação do solo, diz que, se o térreo
for totalmente aberto, não computa! Isso veio daquele tempo. Então, é a lei andando
atrás do mito da irrealidade e da burocracia. Mas é o que acontece hoje [...] o Artacho
fazia. Que é de bom senso. Não deixar aqueles imensos pilotis vazios [...] e [...] tanto é
de bom senso, que os prédios que tiveram andares inteiros de pilotis vazios, ao longo
dos anos, foram fechados! Se você pegar, para dar um exemplo clássico, esses prédios
da avenida Nove de Julho, quase todos, que eram sobre pilotis, que eram daquela época
e eram sobre pilotis, para não computar o térreo, hoje estão totalmente fechados, com
lojas!”.
Por conta do térreo fechado e pelo emprego de pilotis, foi possível fazer essa adapta-
ção de uso. Com isso, na época, na maioria de seus prédios, Jurado pagou um preço
alto por não ocupar os térreos de seus empreendimentos em Higienópolis com aparta-
mentos. Permitiu, assim, que, a qualquer tempo, fossem ocupados por comércio, como
de fato o foram.

249
Como os prédios do Tradições Brasileiras têm nomes e entradas independentes, a
idéia de conjunto ficou só no título original. Como coroamento, os três blocos do
conjunto têm terraços, e as “mini-Pampulhas” que ornariam os blocos menores da
frente e que constavam da maquete original da Monções não foram construídas.
O bloco do fundo, o maior, possui quinze andares, com apartamentos de dois dormi-
tórios, todos de frente. Ressalte-se que Jurado nunca fez apartamento de fundos em
seus empreendimentos.
Já os blocos laterais apresentam três dormitórios com onze andares cada. De acordo
com o projeto inicial, são 134 unidades, totalizando 18.000 m2, atendidos por seis ele-
vadores, com a garagem localizada no subsolo e entradas comuns ao conjunto pela
Higienópolis e Maranhão.
Pouco se pôde colher de informações sobre o que a Monções pensava para esse
empreendimento, pois ele ficou pouco tempo sob sua responsabilidade.“O Dona Veri-
diana foi uma das últimas obras”, afirma Simonetti.
Com tudo isso, conclui-se que o preço de custo praticado pela Monções, na época,
fora alto demais, pois não estavam sendo considerados aspectos econômicos resultan-
tes de um processo inflacionário desindexado que traía e desordenava as previsões de
custo. E a inflação tornou-se um problema econômico sério exatamente nesse período
de auge da Monções: começou a crescer no governo Kubitschek (1956-1960), no go-
verno Jânio (que durou apenas sete meses, em 1961) deu uma trégua e tornou-se ace-
lerada no governo Goulart (1961-1964). Soma-se a isso o fato de o público, em geral,
desconhecer parcial ou totalmente o processo.
Jurado poderia ter amenizado ou talvez até invertido essa situação se não tivesse
onerado tanto seu preço fazendo uma arquitetura mais limpa e menos rebuscada, mas
aí não seria ele.

250
EDIFÍCIOS(LOUVRE(E(PEDRO(AMÉRICO(

O conjunto de edifícios Louvre e Pedro Américo, localizado


na avenida São Luís, no 192, no mais antigo trecho de importân-
cia cultural do Centro paulistano, entra para o currículo de Jura-
do como o último e maior de todos os prédios projetados por ele
e que ainda lhe deu projeção.
Para atender o projeto de alargamento da rua São Luís, de
1942, elaborado na primeira gestão de Francisco Prestes Maia,
que visava a melhoria da circulação de veículos no Centro, a chá-
cara do senador Sousa Queirós foi loteada, formando-se então
grandes terrenos.
Assim, de acordo com José Eduardo Lefèvre,

[…] a empresa Monções Construtora e Imobiliária S. A. adquiriu,


em julho de 1952 [...] um terreno de grandes dimensões, com pra-
ticamente 70 m de frente para a avenida São Luís. Em agosto se- Fachada do Louvre tendo à
frente a praça Dom José Gaspar,
guinte apresentou à Prefeitura projeto [assinado por Giunio Patella] para construção de ainda nos anos 1950.
Acervo Condomínio Louvre.
um prédio misto para uso residencial com lojas no térreo e na sobreloja [...].62

Lá estava Jurado novamente, com sua pragmática arquitetura em outro, não


menos
importante, reduto da arquitetura paulistana, ao qual se somaria a nomes de peso,
como o de Oscar Niemeyer, Franz Heep, Gregori Warchavchik, Álvaro Vital Brasil,
Ademar Marinho, além de Jacques Pilon. As importantes obras projetadas por esses
grandes arquitetos, naquele período de ebulição imobiliária, iriam compor o que al-
guns autores gostam de nomear o “quadrilátero moderno no Centro de São Paulo”.

62
José Eduardo de Assis Lefèvre, De beco a avenida: a história da rua São Luiz (São Paulo: Edusp, 2006), p. 227.

251
A fachada do Edifício Louvre
na década de 1960.
Acervo Diva Jurado.

252
A praça Dom José Gaspar,
com sua exuberante
vegetação, envolvendo o
Louvre.
Acervo Diva Jurado.

253
As obras do Conjunto Louvre no início, em 1953.
Acervo Condomínio Louvre.

254
Jurado atendia, assim como aqueles nomes respeitados, ao apelo de incorporadores e,
conseqüentemente, do mercado.
Trata-se de um conjunto com 53.000 m2 de área útil, dividida, não igualmente, em
dois edifícios distintos e sem comunicação, com catorze unidades no andar-tipo. A
tipologia baseia-se em planta recorrente, com apartamentos de quarto e sala e de dois
dormitórios, sendo estes com dependência de empregada, que era, na verdade, um
recurso engenhoso para obter-se mais um cômodo. “Nas plantas da Prefeitura, como
em outros projetos da mesma época, os quartos de empregada eram identificados como
despensas”.63
O programa é complexo e diversificado, mesclando unidades habitacionais com Capa do folder de
comércio, estando as áreas residenciais separadas em quatro blocos, cujos nomes são lançamento do
Conjunto Louvre.
“Da Vinci”, “Rembrandt”, “Renoir” e “Velásquez”, agrupados no maior e fronteiriço, o Acervo Diva Jurado.

Louvre, e ao fundo, separadamente, o Pedro Américo.


Conforme Lefèvre, são

[…] 374 apartamentos e 45 lojas e sobrelojas em dois blocos distintos, com térreo, so-
breloja e 23 pavimentos de uso residencial. Em razão da insuficiência do número de
vagas de garagem, ainda durante a construção, que se prolongou até 1966, foi reduzido o
número total de apartamentos, que no final caiu para 312, para transformação da parte
correspondente aos primeiros pavimentos, até o quinto, do bloco dos fundos, em gara-
gens com boxes individualizados para condôminos [...] O acesso às garagens é feito atra-
vés de dois elevadores apropriados instalados no recuo de fundos.64

A galeria de lojas comerciais no térreo e na sobreloja, que tem área para restaurante
no mezanino, está atendida por escada rolante, “para melhorar o desempenho comer-

63
Ibid., p. 232.
64
Ibid., p. 228.

255
cial, que, como se sabe, é altamente prejudicado por mudanças de nível de piso não
estritamente obrigatórias para os usuários”.65 A circulação é atendida, finalmente, por
dezoito elevadores, que servem os apartamentos e parte da sobreloja. Novamente Arta-
cho está preocupado com a cidade, na qual o espaço público e o privado retomam o
diálogo no térreo.“O Louvre e o Pedro Américo, implantados junto ao alinhamento da
avenida São Luís, destacam-se de seus vizinhos graças às varandas da fachada e ao
andar de sobreloja com grandes floreiras”.66
O terreno onde está o conjunto, que muito ganha em beleza, situado de frente para
a praça Dom José Gaspar, vizinha à Biblioteca Municipal Mário de Andrade, fora no
passado a residência de “dona Germaine Burchard, que havia se casado em novembro
de 1945 com o príncipe Roman Sanguszko”.67
O projeto arquitetônico de Jurado para esse edifício não fugiria do seu estilo, o já
consagrado de fachadas contínuas, varandas com gradis em ferro fundido e, logica-
mente, pastilhas coloridas, que, nesse caso, em especial, eram de um azul inigualável,
encomendadas à Vidrotil. De acordo com Irineu Simonetti: “A idéia foi criar aquele
balcão bonito no mezanino, foi idéia dele, de dar grandeza ao prédio e fazer um con-
traponto com o Três Marias, construído pelo Maia Lelo, na esquina da Ipiranga com a
São Luís”.
Mas o projeto foi também inovador, com a proposta do mezanino, pois se trata de
“uma galeria aberta, no nível das árvores da avenida”.68
Segundo a descrição de Lefèvre,

O conjunto apresenta junto às calçadas um aspecto relativamente vazado, com o aspecto


de um prédio sobre pilotis, pois as áreas fechadas do térreo e das sobrelojas se encontram

65
Ibid., p. 231.
66
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., p. 85.
67
José Eduardo de Assis Lefèvre, Entre o discurso e a realidade, tese de doutorado (São Paulo: FAU-USP, 1999), p. 59.
68
José Eduardo de Assis Lefèvre, De beco a avenida: a história da rua São Luiz, cit., p. 231.

256
A varanda debruçada
sobre a avenida São Luís
compõe a fachada.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.

257
Plantas dos edifícios Louvre e Pedro Américo.
Vetorização: Lourdes Valente.

258
bastante recuadas, e, com exceção das três colunas centrais que seguem sem interrupção
até a laje do segundo pavimento, as demais são secionadas pela laje da sobreloja, que
avança sobre o recuo, em balanço, criando o aspecto de uma marquise sobre a calçada.
Esta área em sombra sob o prédio minimiza o peso de seu grande volume.69

Jurado não se esqueceu de seu padrão de conforto ao projetar, na cobertura, uma


piscina e um playground – ainda que subdimensionados para o tamanho do empreen-
dimento, pois, conforme relata Simonetti,“como o térreo foi usado comercialmente, a
preocupação foi fazer alguma coisa especial na cobertura [...] É o único edifício nosso
que tem piscina na cobertura. A preocupação no Louvre – foi o extremo dele – foi dar
uma fachada muito alegre, foi feito um ensaio de cores, ele ia lá, olhava:‘Não, não é isso
o que eu quero’. Aí conseguiu que a Vidrotil fizesse a pastilha de vidro com o rosa que
ele queria e o azul que ele queria”. Incontestavelmente, Jurado já se havia esmerado nas
cores e poderia, como o fez, exigir padrões personalizados para atingir o seu objetivo.
“O revestimento externo do edifício, em pastilhas [...] dá ao prédio uma característica
sui generis, de gosto discutível, mas que o torna inconfundível na paisagem”.70
O Conjunto Louvre e Pedro Américo foi lançado em 1954, com o perfil de imóvel volta-
do para o mercado de locação. A obra levou anos para ser concluída, sobretudo porque,

[…] quando a construção atingiu a fase de erguimento das alvenarias internas, os


problemas financeiros e jurídicos que a Monções vinha enfrentando levaram a que a
administração da obra fosse entregue a uma comissão de obras do condomínio. Com
isso, a construção se prolongou por quinze anos, prazo agravado por problemas de recal-
que das fundações, de cerca de 12 cm.71

69
Ibid., pp. 229 e 231.
70
Ibid., p. 232.
71
Ibid., pp. 232 e 234.

259
A cobertura em dois momentos: o primeiro, ainda sem o
Copan, e o segundo já com o Copan ganhando as alturas, ao
fundo. O Louvre foi o segundo e último empreendimento a ter
piscina, dessa vez, porém, na cobertura. Foto de 1961.
Acervo Condomínio Louvre.

260
A cobertura já com a marquise.
Acervo Condomínio Louvre.
Fotografia da maquete do
Edifício Louvre.
Acervo Diva Jurado.

262
Menos tempo, porém, se comparado a seu concorrente mais próximo, o Edifício
Copan, da construtora CNI, projetado por Oscar Niemeyer,

[…] que compreendia dois blocos: um destinava-se a condomínio, com várias centenas
de apartamentos, em seus trinta andares, e outro a hotel para 3 mil pessoas, em cujo
lugar foi construído um edifício bancário, projeto de outro arquiteto. Estruturalmente,
caracteriza-se por uma laje de transição, tendo sua planta sofrido inúmeras modifica-
ções, sujeita que ficou, a construção, nos dezoito anos de obra, a variados tipos de
injunções.72

Segundo Simonetti, o Conjunto Louvre e Pedro Américo foi um sucesso de vendas,


pois “tínhamos gente querendo comprar e não tínhamos mais apartamento. Inclusive
do Pedro Américo, que eu teimei que não emplacasse fácil, por ser um prédio de fundo,
emplacou bem, vendemos muito bem [...] foi um sucesso absoluto de venda!”.
Entre o Pedro Américo e o Louvre, existe um espaço de oito metros separando os
dois edifícios, para onde se voltam as áreas úmidas e a circulação vertical de escadas e
alguns elevadores.
A respeito das dificuldades da obra,Simonetti relata:“A obra teve um problema.Quando
estava no segundo andar houve um incêndio no subsolo [...] Foram chamados os técni-
cos de fundação. Era o segundo incêndio em São Paulo em subsolo [...] usava-se muita
madeira e tudo [...] aí resolveu-se cintar os pilares no subsolo. Os pilares foram descasca-
dos, cintados e concretados com uma tela de ferro e reconcretamos. Aí começou nova-
mente a subir a estrutura”. O Conjunto de Edifícios Louvre e Pedro Américo fecha a era
Jurado de edifícios altos na cidade de São Paulo. Daí por diante, ocorrerá o processo de
encerramento da Monções, que dura, aproximadamente, sete anos.

72
Alberto Fernando Xavier, Arquitetura moderna paulistana (São Paulo: Pini, 1983), p. 28.

263
Vista lateral da obra, com o A fachada do Edifício Pedro Américo, Edifícios Louvre e Pedro Américo
Edifício Pedro Américo ao fundo. que foi construído voltado para os fundos. em ponto de alvenarias.
Acervo Condomínio Louvre. Acervo Condomínio Louvre. Acervo Condomínio Louvre.

264
O Louvre tendo como pano de fundo o Edifício Copan, em obras, projetado por Oscar Niemeyer.
Acervo Diva Jurado.
Edifícios na cidade de Santos
EDIFÍCIO(PARQUE(VERDE(MAR(

O projeto do Edifício Parque Verde Mar data de 1953, ano em que a cidade de San-
tos, sob a gestão de Antônio Ezequiel Feliciano, seria marcada por inúmeros projetos e
obras importantes “e fartas realizações, tanto da iniciativa privada como da Prefeitu-
ra”.73 Não se pode esquecer que, com a inauguração da via Anchieta, em 1947, os pau-
listanos chegavam e voltavam mais rápido da praia, o que tornaria realidade o sonho
“de se obter na praia o refúgio para esse lazer e o mar, antes visto apenas pelas suas
propriedades terapêuticas, era agora também parte desse lazer”.74
A cidade de Santos já vinha passando por transformações urbanas importantes, que
se iniciaram com o Plano de Saturnino de Brito, em fins do século XIX, e finalizado em
1911, que previa, além da solução do escoamento das águas de chuva, o planejamento
do sistema de esgoto daquele município. Os canais de Saturnino resolveram o proble-
ma das águas de chuva e, ao mesmo tempo, definiram o traçado urbano da cidade de
Santos – juntamente com a abertura de grandes avenidas, o que resultou em uma cida-
de agradável e cosmopolita.
Novos bairros nasceram, e o caminho para o serviço de bondes na cidade, que já
existia desde o começo do século, foi incrementado. Especialmente com a abertura da
avenida Conselheiro Nébias – uma linha reta no sentido norte–sul, desde o porto, nas
proximidades do qual ficava o centro da cidade, até a praia do Boqueirão.

Quando ainda tinha o nome de Otaviana, a Conselheiro Nébias não passava de um grande
charco, como em 1881 [...] No dia 30 de junho de 1914, o prefeito municipal, o sr. Carlos

73
Gegê Leme & Paulo Matos, Santos, Jurado: a ilha e o novo (Santos: Prodesan Gráfica, 1994), p. 5.
74
Luiz Antônio de Paula Nunes & Dawerson da Paixão Ramos, A proposta modernista de um edifício em Santos: Hélio Duarte e
o Conjunto Indaiá, comunicação apresentada no II Seminário do Grupo de Trabalho Vale do Paraíba, Alto Tietê, Taubaté,
Docomomo-SP, 6-9 de novembro de 2002; disponível em http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq031/bases/02tex.asp.
Acesso em 23-12-2003.

266
O Edifício Verde Mar compõe-se com o
equipamento urbano.
Foto: David G. Lopes, 2003.

267
Afonseca, comunicou à Câmara haver orde-
nado à Cia. Brasileira de Calçamentos Aper-
feiçoados a execução de obras de asfaltamen-
to na avenida Conselheiro Nébias.75

“Na ocupação do bairro do Boqueirão,


devemos registrar a chácara de Azurém
Costa, no final da avenida Conselheiro
Nébias, que foi comprada, no final do sé-
!
culo XIX, por Júlio Conceição”.76 Neste
No final da avenida bairro, já existia o famoso Cassino Mira-
Conselheiro Nébias ficava o
complexo Miramar. E no outro
mar, inaugurado em 1896, um centro de diversões que alcançara a dimensão de maior
lado, em frente, o Parque da América do Sul.
Indígena. A seta aponta para a
localização do Verde Mar. Sua presença ali era a justificativa para atrair o maior número possível de pessoas
Acervo José Carlos Silvares.
para aquele lado da cidade, que, naquela altura, já era servido por uma linha de bondes
puxados por burros. Além de cassino, o Miramar abrigava restaurantes, cinema e tea-
tro, sendo visitado por inúmeras celebridades da época, entre as quais Enrico Caruso e
Carlos Gardel.
Em suma, essa série de fatores somados, “inclusive a extensão dos meios de trans-
porte, com facilidades oferecidas pela antiga Cia. City”,77 contribuiu, sobremaneira,
para a expansão de Santos em direção à barra e, por conseguinte, ao Boqueirão, que,
por volta de 1910, era composto de chácaras e palacetes de veraneio dos barões do café.
Por essa época, Santos fica conhecida por ter excelentes pensões, que iam do bairro
José Menino até o Boqueirão, passando pelo Gonzaga.

75
Olao Rodrigues, Veja Santos! (Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1973), pp. 456-457.
76
Ruy Eduardo Debs Franco, A casa branca da praia, trabalho de graduação interdisciplinar (Santos: Faus, 1982), p. 5.
77
José Ribeiro de Araújo Filho, A Baixada Santista: aspectos geográficos, capítulo 11 (São Paulo: Edusp, 1965), p. 36.

268
O Parque Verde Mar visto da
praia, em 1956. A arquitetura
de Jurado vai a Santos.
Acervo Diva Jurado.

269
“Por sua vez, um certo surto hoteleiro deu lugar à construção de mais alguns prédios
para grandes hotéis, os quais, até depois da última guerra, constituíram, com as pen-
sões, o reduto dos veranistas paulistanos”.78 Por fim, entre aqueles imóveis, não ocupa-
dos por pensões, alguns são vendidos e outros loteados.
Um desses casos foi o Parque Indígena, uma imensa chácara criada por seu proprie-
tário na qual se viam animais silvestres, plantas raras e que era aberta à visitação públi-
ca. Tratava-se da propriedade de Júlio Conceição, tido como “o maior orquidófilo da
época”– ex-comerciante,vereador e presidente da Câmara em 1889 –, havida de Azurém
Costa, com 22.000 m² de área: “[...] era autêntico Museu da Natureza, onde as árvores
e plantas nacionais e estrangeiras se confundiam com as aves de variegados tipos, cores
e formas”.79 Essa propriedade formava um imenso quadrilátero entre as avenidas Vi-
cente de Carvalho e Conselheiro Nébias e as ruas Governador Pedro de Toledo e Ânge-
lo Guerra. Com a morte de Conceição em dezembro de 1933, os herdeiros transforma-
ram essa área, em 1938, em um desses loteamentos. Nessa gleba, especificamente no
lote número 6, com frente para a avenida Vicente de Carvalho, seria lançado, em 1953,
o primeiro empreendimento santista da Construtora Monções, o Edifício Parque Ver-
de Mar.
A família de Jurado e a de Aurélio, que chegaram a morar em Santos durante o
período da I Feira do Centenário da Cidade, há muito freqüentavam a cidade e suas
praias, desde os anos 1940, incentivadas, assim como grande parte dos paulistas, pela
inauguração da via Anchieta, em 1947. Apesar desse freqüente contato com a cidade, a
decisão de comprar o lote no bairro do Boqueirão aconteceu de maneira inusitada.
Foi por sugestão da “roda paulistana” de amigos – que freqüentava o restaurante do
Mappin – que Jurado é levado a comprar um terreno e construir o primeiro prédio no
litoral. Esse rol de amigos era composto de assíduos freqüentadores do Parque Balneá-
rio – no bairro do Gonzaga – na Santos de 1950.

78
Ibid., p. 38.
79
Olao Rodrigues, Veja Santos!, cit., p. 378.

270
O Verde Mar com a fachada
pronta, em outubro de 1956.
Acervo Diva Jurado.

271
“O prédio do Parque Balneário foi inaugurado em 1914 (substituindo pequena ins-
talação hoteleira que ali existia até essa época), sendo então considerado o hotel oficial
de Santos, com padrão de serviços digno de hospedar reis, príncipes, presidentes e
outras personalidades ilustres.”80
A esse respeito ainda comenta Irineu Simonetti: “Veja bem, Santos era a praia do
paulista, era o Guarujá mais sofisticado. Tinha o cassino no hotel, tinha o Balneário e o
pessoal ia para o Balneário, e o Balneário não era suficiente. Então vieram notícias. Por
que não faz alguma coisa em Santos para ter lugar? E quem comentou? Amigos. Nós
tínhamos uma roda muito grande de amigos e almoçávamos toda quinta-feira no res-
taurante do Mappin, no quinto andar. Quem ia? Seu pai [referindo-se a Marco Aurélio
Jurado Artacho, presente na entrevista e filho de Aurélio] nem sempre ia, porque era
muito caseiro. Mas ia eu, o Jurado, o Servenka e nos reuníamos. Encontramos o Chico
Lopes [da futura Lopes Consultoria de Imóveis], que era corretor, e outros corretores
grandes da época. Eles trouxeram a notícia: por que você não faz alguma coisa em
Santos, ninguém tem nada [...]”.
Segundo relato de familiares, Jurado negociava os terrenos da seguinte forma: loca-
lizava um lote à venda, e então fazia um projeto básico de viabilidade do empreendi-
mento. Ao mesmo tempo, confeccionava uma maquete de vendas em escala comercial,
tudo muito rápido.
Feito isso, era a vez de Aurélio Jurado Artacho, seu irmão, ser acionado para nego-
ciar a compra do terreno com o proprietário. Uma vez em contato com ele, Aurélio não
regateava no preço, porém pedia uma opção de compra por 90 a 120 dias para pagar o
lote.
Com o negócio fechado, um estande era montado em tempo recorde na frente da
futura obra, e corretores em São Paulo davam início às vendas.

80
“Fase final do antigo Parque Balneário Hotel”, em Santos de antigamente, disponível em http://www.novomilenio.inf.br/
santos/fotos076.htm. Acesso em 28-2-2004.

272
A venda do Verde Mar foi realizada fora da cidade de Santos,
pela equipe de corretores da Construtora Monções, conforme
relata Simonetti: “Não vendemos nada em Santos. Nós tínha-
mos uns dezesseis, vinte corretores, não mais do que isso; hoje,
as imobiliárias trabalham com cem, duzentos corretores. Nós
trabalhávamos com dezesseis, mas uma elite de corretores. Eu
tive um corretor que vendia apartamento por telefone. O Verde
Mar teve um catálogo muito bom, a capa era em cartão kro-
mekote, impressa em cores e toda em papel cuchê, com a planta
de todos os apartamentos; era um catálogo muito bem cuida-
do. Então, foi vender aquilo, foi muito fácil, não havia oferta
em Santos”.
O Edifício Parque Verde Mar foi projetado para catorze anda-
res no ano de 1953. Localizado em frente ao mar, na avenida Vi-
cente de Carvalho, no 6, no bairro do Boqueirão. Trata-se do pri-
meiro prédio santista da autoria de Jurado e foi concebido dentro
“dos princípios do conforto”, estilo estabelecido imediatamente Fotografia da maquete do
Edifício Verde Mar.
após a construção do Edifício Piauí em São Paulo, e que marcou suas produções poste- Acervo Diva Jurado.

riores.
O Verde Mar era o retrato de uma sociedade mais abastada. Próprio para o vera-
neio, tinha, entre seus recintos, imponentes salas de carteado e leitura, que eram rica-
mente revestidas e decoradas segundo o padrão do luxo da época e vistas como símbo-
lo de status e estilo de viver, agregando todo o requinte com que se podia sonhar. Nas
férias, esses salões ficavam lotados de pessoas que jogavam a dinheiro, bebendo ou
somente ostentando suas roupas e jóias. Jurado chegou a ter um apartamento nesse
edifício.
A chegada de Jurado com a Monções a Santos não foi exclusiva, sendo acompanhada
das construtoras paulistanas Andraus, Otto Meinberg, Luís Muzi, e de arquitetos fa-
273
mosos, tais como Lauro Lima, Osvaldo
Correia Gonçalves, que era santista, Hélio
Duarte e Ernest Mange. Esses dois últimos
projetaram o belo Condomínio Indaiá:

O Condomínio Indaiá, que compreen-


de três blocos residenciais e um res-
taurante, possui características da ar-
quitetura moderna brasileira, com
influência das obras de Lúcio Costa.
De propriedade do Banco Hipotecá-
rio Lar Brasileiro, foi projetado por
Hélio Duarte e Ernest Mange, e cons-
truído entre 1952 a 1956 pela empre-
sa Domingues Pinto, Passareli & Mer-
lin Ltda., de Santos. Situa-se em bairro
nobre da cidade, na avenida Vicente de
Carvalho, no 31, em frente à praia do
Boqueirão no meio da orla santista.81

A propósito da descrição do Edifício


Verde Mar,a seguir,é sabido que houve mo-
Modelos contratadas tomam o dificações no projeto original no que con-
espaço do Verde Mar antes da
sessão de fotos.
cerne ao andar-tipo e ao térreo.82 Alguns
Acervo Diva Jurado. apartamentos foram anexados, e outros
simplesmente deixaram de existir.
81
Luiz Antônio de Paula Nunes & Dawerson da Paixão Ramos,
A proposta modernista de um edifício em Santos, cit., p. 5.
82
A descrição adiante se baseia na planta publicada em A&U,
no 26, out.-nov. de 1989, p. 85.

274
Campanha publicitária no Visitantes paulistanos em O Verde Mar, assim como tantos
Verde Mar. confraternização. outros, tinha playground coberto.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

Trata-se de uma planta racionalista e funcionalista. E, quando se trata de forma e


função, compreende-se que paira sobre ela, como diria Baudelaire,“a admirável, a imor-
tal, a inevitável relação entre forma e função”.
Para José Marcelo do Espírito Santo:

Internamente os apartamentos da Monções não refletem a mesma ornamentação exter-


na. Além de bem distribuídos, surpreendem pela quantidade de luz nos ambientes. No
Verde Mar, os apartamentos são entregues em planta livre para os compradores, possibi-
litando-lhes liberdade de decisão em relação à distribuição do quarto, sala e varanda,
voltados para o mar.83

O atento Jurado fazia claras citações a Oscar Niemeyer (os pilares em “V” – desde a
rampa até o terraço –, rampa, espelho-d’água, os pilotis, pilares redondos e soltos nos
ambientes, grandes “panos” de vidro, etc.), a Frank Lloyd Wright, a fachada ornada em
83
José Marcelo do Espírito Santo, “João Artacho Jurado: intrigante desafio dos meios-tons”, cit., pp. 86-87.

275
pedra cortada, e, finalmente, a Gaudí, com
as curvas rocambolescas na laje de cober-
tura, associadas a uma grande profusão de
cores. Para Giancarlo Gasperini, tudo isso
“dava uma certa alegria na arquitetura dele.
E eu continuo achando isso, hoje em dia...”.
Artacho apropria-se do lote de forma
plena, dispondo doze apartamentos por
andar, o que totaliza 168 unidades. Divi-
dindo o prédio em duas alas, há um poço
central de ventilação e iluminação, bem tí-
pico dos edifícios de então e recurso ainda
largamente explorado.
Jurado e seus engenheiros
e mestres-de-obras
Os quatro apartamentos de frente (fa-
durante execução da chada sul) são quarto-e-sala; os seis laterais são quitinetes, cuja planta permite a rever-
cobertura do Verde Mar,
em 1955. Jurado é o são para quarto-e-sala, e, finalmente, os dois de fundos, não menos privilegiados, têm
quarto da esquerda para a
direita, e Aurélio Marazzi é
varanda contínua com vista para o mar. Outro efeito explorado por Jurado em seus
o oitavo; o arquiteto projetos, que no Verde Mar funcionou muito bem, são os amplos janelões na frente,
Fernando Costa é o
segundo da direita para a formando uma fachada única, dando a idéia, para quem vê de fora, de que se trata de
esquerda.
Acervo Diva Jurado.
apartamentos mais amplos. O fundo, porém, não recebia o mesmo tratamento da fa-
chada principal, ou seja, era deixado completamente nu. Vê-se, assim, quanto Artacho
Jurado era um grande projetista de cenários. “Abusou da ornamentação, do empilha-
mento, do fake, chegando a um notável surrealismo combinatório”.84
Isso consagraria o efeito Jurado de marketing: o fake. A respeito do marketing, dos
produtos feitos para o mercado, Giancarlo Gasperini comenta: “É, eu acho que ele é

84
Francesca Angiolillo & Eduardo Foresti, “Revisitando Artacho Jurado”, em Caramelo, no 2, Grêmio da FAU-USP, junho de
1991, p. 77.

276
alegre, tem umas aberturas, tem umas coi-
sas assim, que são muito agradáveis de você
ver e devia ser, não sei, porque nunca vivi
num prédio deles,mas devia ser muito bom
morar num prédio deles. As plantas eram
mais amplas, as fachadas eram maiores, os
quartos eram grandes, quando, na realida-
de, estava-se naquela época em que você
reduzia os quartos ao mínimo: ‘Que bes-
teira fazer quartos [...] banheiros pequeni-
ninhos [...] sabe?’. Aquelas pseudodoutri-
nas modernistas que, claro que tinham
uma razão de ser, mas num âmbito mais
amplo,num âmbito da arquitetura mais so-
O Verde Mar com seus
cial, voltada para um universo muito mais jardins no terraço.Vê-se
também a laje com formas
amplo, etc., mas, com relação ao lado, digamos assim, de produtos voltados para o insólitas, que “sangra”
mercado, eu acho que ele foi um gênio, foi! É, eu acho que foi”. na fachada.
Acervo Diva Jurado.
Tratando-se de um edifício para um público veranista, ele não poupa esforços e
coloca vários elevadores, oito no total, e, repetindo a receita paulistana, atende de for-
ma exclusiva os apartamentos, levando também ao bonito Edifício Parque Verde Mar
os “princípios de conforto”, sua marca registrada.
Com isso, os apartamentos têm duas entradas: uma social (somente dois aparta-
mentos por hall) e outra de serviço, pelo vazio central, para onde está voltada a maioria
das áreas de serviço e alguns banheiros. Aliás, a distribuição dos banheiros é feita à
proporção de um por apartamento, porém são todos equipados com banheira e bidê –
um luxo para os dias de hoje, mas equipamentos recorrentes, naquela época.
Um eixo de simetria corta o prédio longitudinalmente, passando pelo único blo-
co de escada em curva ladeada pelos dois elevadores de serviço ou de banhistas, ao
277
Vista noturna da orla santista do
terraço-jardim do Verde Mar.
Acervo Diva Jurado.

278
fundo. Esses elevadores tinham portas
para os dois lados – na garagem e no hall
dos pavimentos.
Partindo da garagem, Artacho desnive-
lou levemente o pavimento em relação à
avenida, com a clara intenção de fazer no
térreo uma enorme varanda ou mirante,
algo extremamente novo e jamais aplica-
do na orla santista até hoje, à exceção do
Edifício Enseada – outro feito de Jurado –,
localizado na Ponta da Praia. O destemor
de escavar em solo pobre e de lençol freáti-
co alto dá arrojo estrutural às fundações
diretas e resulta naquele formidável belve- A rampa de acesso do
dere acessado pela rampa. Verde Mar. Um convite para
ver o que há no interior.
Assim, tirando partido disso, as pessoas tinham a oportunidade de, sentadas à va- Acervo Diva Jurado.

randa, a pouco mais de dois metros de altura, apreciarem os jardins da praia, o mar, os
corsos e os carnavais de rua, que existiam naquela época.
Ainda no térreo, há um enorme salão de estar e leitura, outro de jogos e o playground
coberto – os brinquedos, que persistem até hoje, foram feitos com sobras de madeira
da obra –, que são separados longitudinalmente pela majestosa entrada social, dando
acesso aos oito elevadores. A construção previa, de acordo com Simonetti, facilidades
para o morador, pois “a preocupação é que Santos, dizia ele [...] chove em Santos! A
pessoa está lá, onde vai ficar? Dentro do apartamento? Então, o térreo precisa ser mais
cuidado, para que haja a oportunidade de lazer”. E, ainda, somente os elevadores de
serviço foram planejados para chegar à garagem no subsolo – um requinte para a época.
Há terraços nas laterais, contíguos aos salões de jogos e de estar e ao playground, que
também dão vista para o mar. As paredes que os separam são de vidro canelado, indo
279
do piso ao teto, e levam elementos vazados
de concreto em forma de flor-de-lis – ou-
tra fixação de Jurado – pelo lado de fora,
que dão visão para o nascente e o poente.
Não há piscina no Parque Verde Mar,
pois Jurado apostava na balneabilidade das
praias santistas, e esse equipamento pode-
ria vir a ser um transtorno sob o aspecto
de manutenção.
A cobertura do Edifício Parque Verde
Mar também é o coroamento estético do
projeto. Como não poderia deixar de ser,
o elemento surpresa acompanha o visitante
desde o térreo até o terraço. Lá estão tron-
cos de cones empastilhados em várias co-
res, toróides em meio a uma laje repleta de
furos, com formas variadas, que“sangram”
a fachada, tendo ao fundo a baía de Santos.
A esse respeito comenta Giancarlo Gas-
perini: “É uma referência que você está le-
vantando agora, e que eu estou achando
muito curiosa, porque a idéia dos furos [...]
sabe quem explorou muito? Oscar Nie-
meyer! [...] essas amebas,assim amebas [...]
A cobertura ultrapassa a fachada. esses furos lá em cima, etc. Oscar Niemeyer
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.
que introduziu isso [...] e o Artacho fez isso
aqui [...] de uma forma, evidentemente,
não tão rebuscada como o Niemeyer fazia,
280
Do terraço do Verde Mar
avista-se o Edifício Enseada.
Acervo Diva Jurado.
Os furos na laje. Um “fac-símile”
da obra de Oscar Niemeyer.
Foto: David G. Lopes, 2003.

282
Outro detalhe da laje vazada
na cobertura do Verde Mar.
Foto: David G. Lopes, 2003.

283
com relação à sua própria arquitetura, mas de forma mais espontânea [...] e às vezes até
um pouco forçada”.
Verifica-se, então, que cores, curvas e formas insólitas abundam na arquitetura de
Jurado: uma combinação alucinante de detalhes, estilos e materiais utilizados.
A cobertura foi projetada para ser usada como área de lazer e de contemplação,
seguindo um dos cinco princípios “corbusianos”, preconizando a inclusão dos tetos-
jardim. E ela também se prestava a recepções e festas, a exemplo do que acontecia no
Edifício Bretagne.
Esses projetos de Artacho Jurado eram classificados como brilhantes para a época e
por aquela elite que comprava, ou melhor, embarcava naquele sonho, conforme relata
Irineu Simonetti: “Nós vendemos o Verde Mar para um pessoal de bom poder aquisi-
tivo, comerciantes da 25 de Março, comerciantes do Brás. Naquele tempo, o Brás era
um centro de comércio muito forte, de gente que tinha fábrica de calçados, e coisas
assim, um pessoal de muito bom poder aquisitivo”.
Seus projetos eram complexos e executados com o que havia de melhor em termos
de materiais, e, além disso,“ele desenhava e mandava fazer os móveis pelo projeto dele.
E os móveis tinham projeto específico para cada prédio. Se você olhar aquele móvel foi
desenhado para ali, não era para adaptar”, diz Simonetti. Eram móveis do tipo pés de
palito – até hoje em uso no salão do Verde Mar –“que lembram a arquitetura de Morris
Lapidus, o arquiteto dos grandes cinemas e hotéis de Miami”.85
Por esse motivo, Artacho Jurado é considerado por alguns como o primeiro a fazer
uma arquitetura de cunho pós-moderno em São Paulo, sendo essa também a opinião
do professor e arquiteto Eduardo Corona: “Hoje, pelo menos, isso tem um nome. É
pós-moderno. Naquele tempo, não tinha nome nenhum”.86

85
Sérgio Teperman, “Brega e kitsch”, cit., p. 91.
86
Eduardo Corona, apud Bernardo Carvalho, “Cidadão Artacho”, cit., p. 10.

284
Edifício Verde Mar,
2o ao 15o pavimento.

Planta do Edifício Verde Mar.


Vetorização: Lourdes Valente.

285
Troncos de cones e toróides
coloridos, formas que Jurado
adota para o alto de um edifício.
Foto: David G. Lopes, 2003.

286
Matéria de O Estado de S. Paulo, em 10 de agosto de 1958. Matéria publicada em 13 julho de 1958.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.
Fonte: Recorte avulso, sem identificação.

Impressões deixadas pelos visitantes ilustres sobre o Verde Mar.


Acervo Diva Jurado.
Fonte: recorte avulso, sem identificação.

287
Na época de seu lançamento, o Verde Mar era um prédio de
apartamentos com apelo publicitário voltado para a emergente
burguesia paulista. Um edifício de luxo, como queriam alguns,
digno de destaque na imprensa local.
O Verde Mar, versão caiçara do Bretagne, chegou a fazer parte
do roteiro turístico da cidade de Santos. Foi também objeto de
uma visita – por conta de um coquetel realizado no prédio em
1958 – de elementos representativos da intelectualidade e do ce-
nário político de São Paulo: escritores, jornalistas, poetas, críti-
cos literários, ensaístas e senhoras da sociedade. Foi a ocasião de
receber os elogios desses visitantes seletos – prudentemente re-
gistrados no livro de visitas –, como o de Maria Cabral Prestes
Maia, esposa de Antônio Prestes Maia, ex-prefeito de São Paulo:
“Faltava o Edifício Verde Mar no Boqueirão para completar a
beleza sem igual desta maravilhosa praia”.
A própria representação política dos cidadãos santistas, con-
figurada na Câmara Municipal, houve por bem manifestar um
voto de satisfação, por meio do Requerimento no 833/58, pela
inauguração de tão notável projeto arquitetônico. Foi também
publicada uma matéria – a título de permuta – na revista Casa e
Jardim, intitulada “Todos falam do Verde Mar”.87 Entre todas es-
sas promoções da Construtora Monções, a que mais chamou a
Voto de satisfação aprovado
atenção, porém, foi uma excursão a Santos dos moradores do
pela Câmara Municipal de
Santos, em agosto de 1958. Bretagne, para conhecer e admirar o Verde Mar. Excursão am-
Acervo Diva Jurado.
plamente divulgada pela imprensa local.

87
“Todos falam do Verde Mar”, em Casa e Jardim, no 45, agosto de 1958.

288
Pessoas em excursão ao Verde Mar. Excursão de paulistanos ao Verde Mar.
Acervo Diva Jurado. Acervo Diva Jurado.

Todas essas iniciativas tinham como objetivo final o marketing, ao qual, muitas
vezes, se misturava o próprio Jurado, que fazia questão de que suas realizações profis-
sionais ficassem registradas e fossem divulgadas. E tudo isso lhe trazia dividendos,
sobretudo, pessoais. Ele exercia uma espécie de controle pessoal de qualidade. Algo da
máxima importância para alguém vaidoso e que almejava o topo!
Finalmente, o Edifício Parque Verde Mar traduziu em sua época um conceito de
beleza e adequação que ajudava a marcar o status da classe abastada, de tão luxuoso e
admirado que era, pelo modo inovador de expressar sua personalidade visual, numa só
palavra: seu estilo.
É difícil definir um estilo, mas pode-se dizer, sem dúvida, que suas formas seguem,
como resultante, uma tendência moderna, embora sua mistura de tendências arquite-
tônicas, presente nos muitos detalhes e elementos de sua composição plástica, nos re-
meta também a outras épocas.

289
Outra imagem da cobertura do Verde Mar. Ao fundo, à direita, vê-se o Edifício Enseada.
Acervo Diva Jurado.
EDIFÍCIO(ENSEADA(

De todos os projetos de Jurado, sem


dúvida, o Enseada tem a planta menos or-
todoxa. De uma assimetria e sinuosidade
desconcertantes, a planta reproduz, de
acordo com Manuel Felix Vila Asorey, en-
trevistado em maio de 2005, “o desenho
que a maré deixa sobre a areia depois de
recolher suas águas”.
Em seguida, Asorey relata como trans-
formou esse desenho em formas de con-
creto:“Então,nós tínhamos que fazer aque-
las curvas que tem no Enseada. Aquelas
O Edifício Enseada:
curvas, para se fazer uma coisa perfeita, como está lá, eu tive que ir riscando na areia localização privilegiada no
extremo leste da baía de
[...] Eu [...] tinha que fazer as cambotas e fui para a praia para começar a marcar e Santos.
Foto: David G. Lopes, 2003.
risquei no chão e, depois que tinha tudo marcado na praia, eu fui puxando as medidas
para a planta, porque a maior parte [...] das curvas não fechava. Então, eu tive que
armar as coisas na praia e formei as cambotas ali e montei a primeira laje. E aí foi
quando o Artacho Jurado chegou e falou: ‘Como que você fez isto aí?’. Então eu expli-
quei!”
Projetado por Jurado em 1950, na avenida Bartolomeu de Gusmão, no 180, o Ensea-
da teve seu cronograma de obra retardado, pois, sendo o bairro do Boqueirão muito
mais nobre do que o da Ponta da Praia naquela década, teve de esperar pelo lançamen-
to do Verde Mar, que logo foi eleito o abre-alas para a chegada da Monções a Santos.
Segundo informações, o terreno do Enseada foi permutado por sete apartamentos, e o
restante foi pago em dinheiro ao proprietário.

291
O Edifício Enseada visto da Ponta da Praia, em Santos.
Acervo Diva Jurado.
Planta do Edifício Enseada.
Vetorização: Lourdes Valente.

293
Asorey recorda que teve seu primeiro registro em carteira pela
Construtora Monções, na função de carpinteiro, e isso se deu no
dia que passou em frente à obra do Enseada. Pouco depois co-
meçou a trabalhar prestando serviço para a Monções, e lá ficou
de 1951 até 1957, um pouco antes do término das duas obras.
Logo após o início de sua jornada, conta que foi promovido a
encarregado da obra do Enseada e, após um tempo, passou a
vistoriar também a obra do Verde Mar, indo de bonde da Ponta
da Praia até o Boqueirão, todos os dias, para tratar de assuntos
referentes às obras. Destaca que a passagem do bonde 42 lhe era
paga pela Monções e que custava 200 réis.
Com Jurado o contato foi pequeno, já que quem estava mais
presente nas empreitadas santistas era o engenheiro Marazzi,
auxiliado por Luís Clemente. Lembra-se, no entanto, de que,
nas poucas vezes em que falou com ele, Jurado se interessava
em saber, além dos tratos da obra, da vida de Asorey, o que lhe
deixou a lembrança de um homem amigável e conversador.
Como em toda obra, muita coisa foi decidida fora do projeto,
gerando, muitas vezes, retrabalhos e desgastes, principalmente
quando determinada tarefa, já executada, tinha de ser desman-
Varandas laterais do
chada totalmente por causa de uma nova decisão. Manuel lem-
Edifício Enseada.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, bra-se de que as obras dos edifícios em Santos estenderam-se além do tempo previs-
2003.
to, atraso causado, sobretudo, pelas adaptações do preço de custo e pelas constantes
mudanças que ocorriam. Algumas vezes, alterações eram pedidas por compradores
que haviam negociado duas unidades contíguas e desejavam uni-las em planta úni-
ca. Essas modificações eram encaminhadas diretamente a ele, encarregado desses
assuntos também.

294
O Edifício Enseada foi projetado com catorze andares, sen-
do dezoito apartamentos por andar, atendidos por onze eleva-
dores, totalizando 252 unidades. De programa menos megaa-
legórico que o Verde Mar, foi destinado a um público que tinha
menor poder aquisitivo. Quando perguntado sobre as razões
de os prédios da Monções não terem sido destinados ao públi-
co santista, Simonetti responde que o “santista não era de praia,
o paulista é que era de praia, o paulistano, o interiorano. O
Enseada, ao ser lançado, foi lançado como um edifício de se-
gunda linha para um comprador de menor poder aquisitivo.
Nós vendemos muito o Enseada para gente do interior, Campi-
nas, Pinhal, Sorocaba, São José dos Campos e Jundiaí. Tínha-
mos muitos clientes ali”.
E, na mesma entrevista, quando indagado a respeito do fato
de não haver sido adotado o mesmo estilo pomposo na divulga-
ção do empreendimento, rebate: “[...] ele teve um catálogo mui-
to bom! A capa era em papel cartão kromekote, impressa em co-
res e toda em papel cuchê, com a planta de todos os apartamentos,
Pilotis coloridos soltam o
era um catálogo muito bem cuidado. Então, vender aquilo foi edifício do chão.

muito fácil, não havia oferta”. Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.

Apesar de não ter contado com o glamour próprio de seus edifícios da época, o
Enseada foi atendido pelo padrão de conforto de Jurado, que o equipou no térreo com
salão de jogos, salão de festas, salão para recreio de crianças, jardim-de-inverno, res-
taurante (constou na planta, mas não foi executado) para atender os moradores e o
público em geral – a exemplo do que fizeram os arquitetos do Edifício Sobre as Ondas,
obra do mesmo período, na vizinha cidade de Guarujá, Osvaldo Correia Gonçalves e
Jaime Fonseca Rodrigues.

295
Elementos vazados de Pilares com pastilhas cor-de-rosa e paredes revestidas de azulejos pretos.
concreto. A versão artachiana Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.
para o muxarabi.
Foto: David G. Lopes, 2003.

296
Varandas laterais do Edifício Enseada voltadas para o poente. Varandas separadas por biombos com vidros fixos.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003. Herança do Edifício Duque de Caxias.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

297
Na extremidade do térreo, dando para um magnífico terraço que se lança em dire-
ção ao mar, de onde se vê toda a baía de Santos, os moradores poderiam ainda desfru-
tar de um bar, que foi o que restou do projeto do restaurante não executado.
A esse restaurante se teria acesso por escada, com entrada e saída independentes, o
que caracteriza a visão de Jurado, preocupado em manter baixas as despesas de condo-
mínio, por meio da exploração do aluguel de comércio, muito embora esse serviço, na
prática, nunca tenha funcionado para o público externo. Ainda no térreo, o projeto
contempla uma ampla sala para o escritório do condomínio, o que significa que a
administração das contas do prédio caberia a funcionários contratados pelo edifício, e
não a empresas do ramo, funcionando dessa forma até hoje.
Para a garagem, a solução adotada é a mesma proposta no Verde Mar, ficando no
subsolo. Assim, também no Enseada, Jurado levanta o térreo dois metros em relação à
avenida e ganha um belvedere, dando aos condôminos a chance de ver não só os desfi-
les de carnaval, mas também os navios que passam pelo estuário da Ponta da Praia.
Ainda com essa solução, cria um terraço lateral para o salão de festas. O uso de pilotis
é a solução encontrada no térreo para “soltar” o prédio, o que é feito com grandes
pilares redondos e pastilhados na cor rosa. Ele os destaca, fazendo-os contrastar com
paredes de elementos vazados de concreto e grandes painéis de vidro fixo canelado,
sendo outras colunas revestidas com pastilhas azuis ou azulejos na cor preta.
Nos andares superiores, varandas circundam toda a fachada, separando as unidades
com finas paredes, repetindo os elementos de vidro fixo canelado da parte de baixo.
Essas mesmas soluções foram vistas na fachada do Edifício Duque de Caxias, alguns
anos antes, transmitindo a noção de sua continuidade, enfatizando o marketing apli-
cado à arquitetura. De todos os edifícios projetados por Jurado que tiveram como so-
lução o poço central de ventilação, esse é o único que recebeu um jardim – que lembra
uma praça indoor –, o que demonstra claramente a preocupação dele em devolver ao
prédio parte do urbano. No entanto, em depoimento dado ao autor, o encarregado da

298
obra na época, Manuel Felix Vila Asorey,
revela que, outrora, essa praça não existia
e o que havia ali era um grande vazio por
onde se via a garagem no subsolo.
Como dito antes, o Enseada não tem o
glamour dos outros, mas reveste-se de um
caráter amplamente funcional.
Em todos os pavimentos, foi colocado,
ao lado do elevador de serviço, um com-
partimento suficientemente amplo para
receber um tanque e uma ducha. Isso pro-
vavelmente se destinava às empregadas, ou
diaristas, já que nem todos os apartamen-
O poço interno.
tos tinham chuveiro extra para elas. Aso- No térreo, a praça.
rey relata: “Pois é, como o apartamento era pequeno, era uma lavanderia comum. O Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.
lançamento da idéia da lavanderia comum e o sanitário era para empregadas também,
com corredor de circulação. O Enseada parece um navio, rodeado por dentro”.
Quem vinha da praia e entrava pelo subsolo para tomar os elevadores de serviço
dispunha de duchas separadas por sexo. Chegando à cobertura, vê-se que não está
presente o estilo “rocambolesco” do Verde Mar, mas não há dúvida de que também se
trata de um projeto com a marca de Jurado. Ali, vemos uma laje em arco abatido,
revestida com pastilha na cor azul e apoiada em quatro pilares excêntricos na cor rosa,
desafiando os momentos fletores e a compreensão dos leigos, e lembrando o vôo de
uma gaivota em direção à ilha de Santo Amaro – onde está a cidade de Guarujá – bem
à sua frente. Atrás dela, um pavilhão azul que abriga as caixas-d’água, com janelas que
são verdadeiras escotilhas de navio bordejadas por um conjunto de pequenas lajes com
furos, hoje comprometidas.

299
Do terraço, assim como no Edifício Verde Mar, a baía de Santos complementa a arquitetura.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

300
Sobre o Enseada, relatam-se histórias de
moradores que dizem que, em seus primei-
ros anos, os navios paravam na barra para
que os passageiros fotografassem o prédio.
Um exagero?
Nada é exagero quando o assunto é o
estilo pomposo de Jurado, sobretudo por-
que os moradores de seus prédios têm
orgulho de morar neles.
Sobre esse viés da obra de Jurado,
Giancarlo Gasperini comenta: “Não só se
sentir bem, mas se entrosar melhor com o
espaço que estava criando. E ele teve a sor-
te, sorte não, a esperteza, vamos chamar, O azul e o rosa
não é sorte, de escolher lugares muito importantes na cidade de São Paulo e nas outras criticados por Corona,
alternando-se nas paredes
cidades, Santos principalmente, lugares privilegiados pela sua situação, e aí ele fez real- dos corredores e nas
muretas do poço de
mente o que ele queria fazer”. ventilação.

Preocupado em sempre oferecer o melhor, Jurado também fazia apartamentos sob Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2003.

medida, deixando a distribuição dos cômodos à escolha dos que comprassem o imóvel
ainda na planta. Finalmente, o Enseada não teve matéria paga no jornal, tampouco
coquetel de lançamento, e muito menos excursão de visitantes. Ele ainda sobrevive,
todavia, como um marco significativo da ocupação do bairro da Ponta da Praia e ficou
registrado como o primeiro edifício alto lá construído.

301
EDIFÍCIO(NOSSO(MAR(

Durante a empreitada de Santos, que englobou os edifícios


Parque Verde Mar e, principalmente, o Enseada, Jurado cons-
truiu um pequeno edifício de três andares (térreo, mais dois
pavimentos) chamado Edifício Nosso Mar, localizado na Ponta
da Praia, na rua Professor Afonso Celso de Paula Lima, no 31, de
propriedade do engenheiro Aurélio Marazzi, que fora gerente
técnico da Construtora Monções por alguns anos. A primeira
fatura dessa obra data de agosto de 1954, o que não deixa dúvi-
das sobre esse prédio ter nascido junto com os outros prédios
santistas.
É uma edificação extremamente simples, com seis apartamen-
tos nos andares superiores de dois dormitórios, que variavam de
10 m² a 12 m², um banheiro com bidê, entre 3,60 m² a 3,85 m² –
Edifício Nosso Mar,
e uma sala-quitinete com pia, sem espaço para fogão e geladeira,
na Ponta da Praia. medindo, em média, 3,70 m². No apartamento térreo da frente, está a única vaga de
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003. garagem do condomínio. Hoje, porém, ela foi anexada à planta, provavelmente sendo
usada como sala, vindo a vaga para o recuo frontal. Por último, o térreo comporta mais
dois apartamentos no fundo, cujas plantas se repetem nos andares superiores, totali-
zando assim quinze unidades.
Na fachada principal, há quatro pilares falsos, isto é, sem função estrutural, revesti-
dos de pastilha rosa, servindo de elemento de composição e dando um leve ar de mo-
dernidade ao conjunto. O revestimento das fachadas é feito com a clássica pastilha
multicolorida, como não poderia deixar de ser.
Cabe lembrar que esse modelo de planta foi muito recorrente na cidade de Santos –
possivelmente“importado”de São Paulo, pela febre das quitinetes que assolou a capital
nos anos 1940, tendo o seu uso começado na década de 1950 e durado até os anos 1970.

302
Elementos horizontais e
verticais, simulando um brise
soleil, marcam a fachada.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco,
2003.

303
Há vários exemplos desse tipo de solução:
o Edifício São Nicolau, na rua da Paz, no 9,
no bairro do Boqueirão, assim como o
Edifício São Judas Tadeu, na avenida Con-
selheiro Nébias, no 826, cujas cozinhas são
enclausuradas, sem iluminação direta e lo-
calizadas na circulação.
O Edifício Nosso Mar pode ter sido da
autoria de Jurado – não há provas de que
seja ele de fato o autor, mas tudo leva a crer
que sim, sobretudo pelo fato de haver do-
cumentos com indicações do projeto jun-
O pequeno Edifício Nosso Mar:
uma arquitetura simples e de
to com o acervo em poder de sua sobri-
fácil execução, mas nha-neta, em São Paulo. Esses documentos
requintada.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, são uma cópia heliográfica da planta da
2003.
Prefeitura e um jogo de cópias de plantas
de pré-execução – também heliográficas –
de todos os pavimentos, até mesmo facha-
das e cortes. Além desses documentos, há
duas folhas originais em que estão datilo-
grafadas, de forma detalhada, as despesas
iniciais da obra.

OBRA À AV. REI ALBERTO I – SANTOS 1 - SALA


PROP. DR. AURÉLIO MARAZZI 2 - DORMITÓRIO
PLANTA DO 1o E 2o PAVIMENTO 3 - BANHO
4 - HALL

Planta do Edifício Nosso Mar.


Vetorização: Lourdes Valente.

304
Um prédio de acordo com o
programa, discreto, sem a
imponência de outros realizados
por Jurado.
Foto: Ruy Eduado Debs Franco,
2003.

305
Conjuntos residenciais
Maria Cecília em Rudge Ramos e
Diva Maria em São Bernardo
do Campo

Jurado projetou e construiu algumas


dezenas de casas em Rudge Ramos (bairro
relativamente autônomo de São Bernardo)
e São Bernardo do Campo, no início dos
anos 1970, distribuídas por três conjuntos,
mas tendo pouca relação com seu traço
característico. De fato, elas são bem aca-
Conjunto residencial
nhadas e nem de longe dão pista do que
Maria Cecília finalizado e foi sua pomposa arquitetura, mas acompanham o estilo da época, com azulejos deco-
com as casas à venda.
Por volta de 1974. rados até o teto nas áreas úmidas e em trechos de fachadas.
Acervo Diva Jurado.
Sua filha Diva afirma que“ele passou a não querer mais ouvir falar em Monções. Foi
então que ele comprou esse apartamento da Haddock Lobo, do lado de lá da Paulista.
Ele [...] morou anos ali [...]. Quando ele morreu, ele morava na Visconde de Ouro
Preto. Esse [apartamento] da Haddock Lobo ele vendeu pra começar [...] as casas de
São Bernardo [...] aí ele comprou uns imóveis pequenos de renda [...]”.
Não há registro algum desses projetos, a não ser algumas fotos, já que, naquela altu-
ra dos acontecimentos, a Construtora e a Imobiliária Monções não existiam mais, e ele,
Jurado, seria apenas mais um construtor, agora distante de seus admiradores e da capi-
tal que o consagrou.
Ele não mais faria marcos na paisagem, mas apenas essas modestas residências, sem
nenhuma expressão, para comercialização, com financiamento em até vinte anos pela
Caixa Econômica Federal e cuja responsabilidade técnica ficaria a cargo de um velho
306
Conjunto residencial Maria
Cecília, em construção no
início dos anos 1970.
Acervo Diva Jurado.

307
Obras do conjunto residencial Maria Cecília, em construção, no início dos anos 1970. Imagens de uma produção modesta e irreconhecível.
Acervo Diva Jurado.

308
Outra vista do conjunto
residencial Maria Cecília,
finalizado e com suas
unidades à venda.
Cerca de 1974.
Acervo Diva Jurado.

309
Conjunto Diva Maria, no bairro Petrópolis.
Fotos: Ruy Eduardo Debs Franco, 2005.

310
Conjunto Diva Maria, no bairro Petrópolis.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, 2005.
escudeiro, Luís Diógenes Zeppelini. Jura-
do, nesse momento, era um homem triste
e se recolheria, assim como fez a família,
para nunca mais tocar no assunto da Cons-
trutora e da Imobiliária Monções.
Ele já havia assistido ao fim de sua gló-
ria e agora brilhavam os últimos lampejos
de sua produção arquitetônica, que seriam
Conjunto Diva Maria,
tímidos e aparentemente sistemáticos, vi-
no bairro Petrópolis.
Foto: Ruy Eduardo Debs Franco, sando a lógica do mercado. Ao todo, foram três conjuntos residenciais executados em
2005.
São Bernardo do Campo: o Conjunto Luciana, no bairro Paulicéia, com 30 casas (sem
registro fotográfico); o Conjunto Maria Cecília, em Rudge Ramos (bairro), com 44
casas, e o Diva Maria, no bairro Petrópolis, na rua Giacomo Versolato, com aproxima-
damente 25 casas. Durante o projeto e o lançamento desses grupos de casas, ele e sua
equipe passaram a contar com a parceria de sua filha Diva na assessoria das obras. É
Diva quem declara: “Eu vim para São Bernardo trabalhar [...] foi aí que eu comecei a
entender um pouco de obra”.

312
Foto: Simone Iwai

EDIFÍCIO( Bretagne
Fotos: Simone Iwai
Foto: Claudio Zeiger
Foto: Simone Iwai
Fotos: Simone Iwai
Fotos: Simone Iwai
Fotos: Claudio Zeiger

Foto: Simone Iwai


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Fotos: Simone Iwai

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Fotos: Simone Iwai
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Foto: Claudio Zeiger
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Fotos: Simone Iwai


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Foto: Simone Iwai

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Foto: Simone Iwai
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Foto: Simone Iwai
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Foto: Simone Iwai
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Fotos: Simone Iwai


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Foto: Claudio Zeiger

Foto: Simone Iwai


Foto: Simone Iwai

EDIFÍCIO( Planalto
Foto: Claudio Zeiger
Fotos: Claudio Zeiger

Foto: Simone Iwai


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Foto: Simone Iwai


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Foto: Claudio Zeiger

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Fotos: Claudio Zeiger
Foto: Claudio Zeiger
Foto: Simone Iwai Fotos: Claudio Zeiger
Foto: Claudio Zeiger
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Jurado sai de cena

Jurado e o irmão Aurélio dedicaram-se, concomitantemente às construções em São


Bernardo do Campo, à administração de uma frota de táxis e ao financiamento da
compra e venda de automóveis. Em seguida, essa pequena sociedade é desfeita, e Auré-
lio vai se ocupar da compra e venda de terrenos, sobretudo na Vila Olímpia, em São
Paulo.
Jurado, por sua vez, retira-se definitivamente da cena da construção civil para nun-
ca mais voltar, e passa a viver da renda de aluguéis obtida graças à posse de pequenos
imóveis. Diva relembra essa fase: “Dessas casas de São Bernardo, aí, ele comprou uns
imoveizinhos de renda [...] porque ele dizia que sempre era melhor, porque quando
desaluga um, aluga outro [...]”.
Era como ter fechado um círculo que começou nas primeiras casas na Pompéia e na
Vila Romana, porém terminando diferentemente de como começou: de maneira dis-
creta e silenciosa.
Jurado ficou profundamente aborrecido com as acusações injustas que lhe foram
imputadas por parte da imprensa e, sobretudo, por alguns advogados, que não lhe
deram trégua, insatisfeitos com as explicações recebidas e obcecados em provar a falta
de lisura por eles atribuída à Monções durante as obras de alguns edifícios. Isso chegou
a custar um infarto a Jurado. “Eu acho que fez muito mal para ele toda aquela campa-
nha, fez muito mal para ele ter entregado os prédios”, relata Diva. A Construtora e a
Imobiliária Monções saem do mercado com seus responsáveis recebendo a pecha de
“caloteiros”, adjetivo esse que hoje está totalmente esquecido pelos seus críticos do pas-
sado!

313
CONCLUSÃO(
João Artacho Jurado atraiu a ira de seus ex-colegas por trabalhar para uma parcela
da população com bom poder aquisitivo, aparentemente pouco ou nada se preocu-
pando com a classe operária, cuja defesa e louvor faziam parte do discurso atrelado ao
movimento moderno. Assim sendo, não fez o que alguns de seus contemporâneos fize-
ram ou apregoaram: residências populares. Dessa maneira, postava-se, involuntaria-
mente, em evidente contradição ao modernismo, expondo-se a críticas e criando polê-
micas.
Não, Jurado, nunca trabalhou para a classe proletária, tampouco fez proselitismo
com sua arquitetura. Fez dela, sim, uma bem-sucedida ação de marketing imobiliário,
correndo os riscos do mercado, empregando mão-de-obra, gerando e distribuindo ri-
quezas, das quais, evidentemente, se beneficiou também, mas abriu caminho para ou-
tros empreendedores, muitas vezes, seus próprios detratores, mostrando que era possí-
vel fazer grandes condomínios. Afinal, a cidade assim o pedia, visto que, na esteira de
seus megaempreendimentos, surgiram outros de iguais ou maiores proporções, como
ressalta Regina Meyer, ao citar o surgimento do Conjunto Nacional (edifício-conjun-
to) na avenida Paulista, de David Liebeskind, em 1955, “e o Conjunto Metropolitano
(1960), projeto de Salvador Candia e Giancarlo Gasperini, situado na avenida São Luís
com a praça Dom José Gaspar”.1
Neste trabalho, colhemos depoimentos de arquitetos e jornalistas que dão conta da
significação de Jurado para a cidade de São Paulo naquele período e ainda hoje tam-
bém, não só pelos edifícios. Ele sempre mereceu, e merece, destaque igualmente pelas
grandes feiras que realizou.
Mais que isso, alguns chegam a comparar o Edifício Bretagne, por exemplo, à famo-
sa Unidade de Habitação de Le Corbusier, em Marselha, opinião que é compartilhada
por Regina Meyer:

É possível, guardadas todas as diferenças já mencionadas diante do programa e da escala


do Bretagne, pensar na Unidade de Habitação de Marseille, projetada por Le Corbusier a
partir de 1947 e inaugurada em 1952. Pensada desde os anos 1920, em concomitância
com o projeto de “cidade contemporânea de 3 milhões de habitantes”, que Le Corbusier
apresentou no salão de outono em Paris, em 1926, o “Edifício-Cidade” (immeubles vi-
llas) tornou-se o emblema dos programas para habitação de massa. Abrigar e assimilar
funções urbanas, trazendo-as para dentro do edifício, é um princípio claro do “Edifício-
Cidade” de Le Corbusier, e de certa forma do Bretagne.2

Outros revelam a seriedade de Jurado na execução de seus prédios. Alguns desses


depoimentos são de arquitetos paulistanos, profissionais como ele, que agora reconhe-

1
Regina Maria Prosperi Meyer, Metrópole e urbanismo: São Paulo anos 50, tese de doutorado (São Paulo: FAU-USP, 1991), p. 42.
2
Ibid., p. 41.

316
cem, ou já no passado reconheciam, o verdadeiro e positivo empenho de Jurado na
causa da arquitetura contemporânea. Outros, porém, por razões de obediência cega à
ostensiva patrulha modernista, preferiram não se expor.
Longe das conotações sociais que permearam o movimento moderno como um
todo e da arquitetura moderna dos anos 1930 até fins da década de 1970 aqui no Brasil,
Jurado antecipou-se ao tempo nos programas de edifícios residenciais. E isso se deu,
sobretudo, com relação ao conforto dos usuários, mas com qualidades que revertiam
em espetáculo graças à adoção da plasticidade, deixada de lado por seus contemporâ-
neos por conta da imposição da escola racionalista e funcionalista do moderno.

O fenômeno “Monções” nos interessa sob vários pontos de vista. Em primeiro lugar,
pelas suas proporções, pois até então os edifícios de apartamentos não haviam ousado
abrigar 360 famílias, portanto, uma média de 1.800 pessoas reunidas num só edifício.
Em segundo lugar, pela relação que existia entre as propostas e o mercado consumidor,
que mostrou-se inteiramente “convencido” das vantagens oferecidas. E, em terceiro lu-
gar, pelo caráter contraditório que tal produção representou no que diz respeito às suas
pretensões de aproximar-se das doutrinas e exemplos que o Movimento Moderno divul-
gava naquele momento. Muito longe de considerar que o“ornamento é crime”, A. Jurado
partia nos seus projetos para um uso exaustivo de materiais diversos de acabamento,
assim como para a utilização de técnicas construtivas inteiramente arcaicas para atender
a pretendida inovação formal. A insistência em não reconhecer a obra da Monções, e
conseqüentemente de A. Jurado, rivaliza com a atual iniciativa de erguê-lo à posição de
antimodernista e, de certa forma, de lhe oferecer o posto de precursor do pós-modernis-
mo paulistano, ao longo de suas manifestações na década de 50.3

3
Ibid., p. 40.

317
Tais preocupações, sabemos hoje, estão totalmente inseridas nos ensinamentos dos
bons arquitetos em todos os tempos, tidas agora como legítimas, mas que foram viven-
ciadas há mais de cinqüenta anos pelo artista-empreendedor João Artacho Jurado.
Por outro lado, Jurado fez o que tinha de ser feito. Usou sua arquitetura como mar-
keting para vender seu produto, e aqui fica a pergunta:
E quem não o faz?
Mais, teve, sim, a ousadia de, mesmo não sendo um erudito e tampouco formado
em arquitetura, atuar de forma marcante no reduto dos modernistas em Higienópo-
lis –, para lá implantar sete de seus quinze edifícios altos, sendo, com isso, alvo de com-
parações elogiosas com a obra de outros consagrados nomes da arquitetura paulista
que ali tiveram implantados seus prédios.
Cometeu, porém, outro deslize ao não usar o concreto aparente em suas obras –
concreto que era o traje obrigatório no protocolo modernista –, o que provocou seu
afastamento definitivo de qualquer reconhecimento oficial.
Mas, acima de tudo, conquistou, com esse feito, a admiração do público e de vários
estudantes e profissionais da área, fossem da cidade de São Paulo ou de Santos, que até
hoje reverenciam suas obras, preservando-as. Atualmente, parte da classe dos arquite-
tos, apesar de ainda um pouco reticente, começa a reconhecer a qualidade de sua ar-
quitetura e a ver nela a verdadeira vontade de seu criador, ou seja, a inserção da plástica
como um valor a ser buscado nos projetos arquitetônicos e a preocupação com o con-
forto das pessoas. Por fim, começa-se a perceber que Jurado fez exatamente o que deve-
ria ser feito.

318
ANEXO(
Depoimentos(e(textos(sobre(João(Artacho(Jurado(
Eu sinto que ele tinha uma alma anarquista, eu acho que a educação, a origem catalã
dele, a educação dos pais, nada governava os pensamentos dele. Ele tinha total liberdade
de pensamento e de sentimento.
Ele é tão assumidamente cenográfico, tão ornado, que as costas do edifício praticamente
não têm um ornamento. Era para você ver de frente.
Maria Eugênia França Leme

Uma arquitetura cênica

A arquitetura de João Artacho Jurado reflete a visão de uma época atravessada


pelos filmes hollywoodianos. Uma visão de mundo que possibilitou uma arquitetura
319
cenográfica, uma arquitetura cênica. Na década de 1950, a figura principal dos fil-
mes de Hollywood, mais que os diretores e os produtores, era indubitavelmente a
estrela de cinema. Seu glamour sensibilizava e encantava na tela e fora dela. A indús-
tria cinematográfica que a fabricou também teve de produzir o mundo que lhe cor-
respondia. Este mundo era o mundo cênico. O público passava a ter contato com um
luxo e uma grandiosidade com os quais até então não estava acostumado. Luxo ilu-
sório, grandiosidade imaginária, mas que geravam os desejos mais ocultos num pú-
blico cinéfilo. O sonho de conforto, de beleza e de prazer tinha desta maneira seu
correspondente na tela de cinema. Esta a noção de cenário ligada ao cinema que João
Artacho Jurado incorporava em suas construções, fosse por uma necessidade intrín-
seco-estética, fosse por uma necessidade meramente mercadológica. A arquitetura se
tornava cênica se diversos fatores existissem: o décor é um deles; se faz necessário
então enfeitá-la de uma roupagem lúdica e inusitada, ela tem que ser colorida, tem
que ser brilhante como nas telas de cinema; ela tem que ser luxuosa, a qualidade e
diversidade de materiais tem que se associar à beleza, e outro fator é a simultaneida-
de dos seus elementos incompatíveis, seja pela época ou pelo estilo, uma espécie de
combinatória histórica, ou de um rizoma enlouquecido; por fim, o outro fator, a
grandiosidade, ela aparece pela exacerbação e pela dimensão dos elementos. Estes
fatores, no entanto, não podiam ser isolados. A grandiosidade, entretanto, era utili-
zada no sentido errado, de empolamento, e a afetação podia dar este ar teatral ou
seja, cinematográfico. Não se tratava mais do ser da arquitetura, mas do aparecer
nela, do aparecer como uma estrela... O que é mais evidente, pela constatação in loco
ou empírica, nas construções e nos prédios edifícados por João Artacho Jurado é a
pluralidade. A diferença se faz presente e assusta um pouco. A pluralidade de lingua-
gens sempre foi criticada e rejeitada pela arquitetura moderna. A assepsia era sua lei.
Forma e função seu objetivo. O ocaso da modernidade, porém, a partir do pós-guer-
ra é um fato. A arquitetura mais contemporânea começou a se libertar do dogmatis-
mo racionalista e teleológico da arquitetura moderna, começando pesquisa na inter-
320
relação de linguagens, fossem elas passadas ou presentes; assim como na interferên-
cia através de elementos não funcionais, mas meramente decorativos, o que vem
gerando toda uma discussão no uso heteróclito das diferenças. Se formos procurar
os motivos e as razões para tais polêmicas, verificaremos que há uma crise no modo
de ver as teorias do progresso histórico. O tempo linear e sucessivo, fosse ele casual
ou dialético, entrou em crise, e com ele a própria noção de modernidade. A crítica
mundial começou a colocar em questão esta visão temporal, a crença num futuro
cujos projetos orientavam ou determinavam o presente. A crença num tempo, cujo
antecedente determina um conseqüente orientado por um plano, por uma idéia, dá
lugar a uma reflexão nova sobre a imagem do tempo, que não leva mais em conta a
identidade, a sucessividade e a homogeneidade. A preocupação crítica enfatiza, por
outro lado, a simultaneidade, a pluralidade e a diferença. Octavio Paz nos fala de
simultaneidade de vários passados e vários futuros convergindo num presente. A
noção de simultaneidade e pluralidade passa a ser conceito-chave na reflexão con-
temporânea, influenciando artistas e arquitetos, porém, em plena modernidade, em
plena imagem de um processo infinito, o construtor Artacho Jurado, fossem quais
fossem os motivos, já trabalhava com reflexões que ultrapassavam a teleologia uni-
formizante. Em seus prédios, assim como em seus desenhos, há uma coexistência de
diversos estilos. Ao lado de um estilo “moderno” se juntam o nouveau, o déco, o clás-
sico e o rococó, assim como também habitam elementos étnicos (astecas, chineses,
árabes), além de maneirismos de toda espécie. A diferença não fica apenas no nível
estilístico, mas também no uso e emprego dos materiais, sejam eles construtivos ou
decorativos. É o caso do uso abusivo de pastilhas e azulejos, do emprego de borracha
no revestimento de colunas; mármores, madeiras, cerâmicas, ferro, pedras, e vidros
coabitam juntos em vários cantos e recantos destas construções, gerando muitas ve-
zes uma visão onírica da realidade. A pluralidade não tem limites. Ao lado de ele-
mentos modernos, tal qual um quadro que enfeita uma sala, se inter-relacionam cas-
tiçais barrocos, cortinas estampadas, máscaras clássicas, colunas astecas, painéis com
321
motivos ilustrativos, mesas de vidro déco, relógios com signos do zodíaco, tapetes
vermelhos, assim como uma infinidade de elementos heteróclitos. A utilização das
formas também é plural. Neste caso, o contraste é o tema, pois, ao lado de formas
duras e construtivas, justapõem-se formas orgânicas e arredondadas; ao lado de li-
nhas retas e da serialização excessiva de colunas, sobrepõem-se formas de ameba,
paredes abauladas e portas arredondadas. Se nos prédios modernos a cor é proibiti-
va, ou, quando usada, é de modo tímido e primário, para João Artacho Jurado ela era
fundamental, e o que dava o sex appeal a todo o conjunto arquitetônico, quer no seu
uso externo, quer no interno. Todos os matizes eram usados sem restrições. Em al-
guns prédios há uma dominante cromática na fachada, e quase sempre neste caso a
cor usada é rosa, em tom pastel; outras vezes, a explosão cromática predomina. Além
de todas estas pluralidades estilísticas, formais e cromáticas, João Artacho Jurado
também vai ter uma preocupação com a natureza. Ironia? Não, pois introduz arbus-
tos e flores em seus prédios, não apenas no sentido decorativo, mas no sentido do
lazer. Daí a existência desses verdadeiros jardins suspensos. Entre um andar e outro,
uma viga, um terraço e muitas flores. João Artacho Jurado tinha claustrofobia de
lugares apertados, apartamentos escuros. Quando projetava vigas, terraços, jardins,
tentava passar a idéia de casa térrea, que também ganhava sua expansão máxima nas
coberturas. Para ele, vista e amplitude eram fundamentais. Em alguns prédios, como
o Edifício Viadutos, com terraços em todos os andares, a cobertura tem um andar
vazado e em cima um grande salão com paredes de vidro; em outros, como no Edifí-
cio Bretagne, os apartamentos ou têm terraços ou são inteiros com janelões, e na
cobertura um jardim. Fundamental que a vista alcançasse, mas também ultrapassas-
se a cidade, através de plantas, arbustos e flores. Se a ousadia de João Artacho Jurado
com toda essa pluralidade, criando verdadeiros monumentos da diferença, nos sur-
preende, ele, no entanto, vai mais além, se apropriando do objeto comum, como fez
Marcel Duchamp no início do século. João Artacho Jurado decora uma luminária,
que está no Edifício Bretagne, com bolas de gude, utilizando a translucidez deste
322
elemento, inventando assim um objeto único e exclusivo. Há também uma preocu-
pação diferenciativa na ocupação espacial de cada prédio, refletida nas variações de
tamanhos dos apartamentos, assim como de prédio para prédio. Os edifícios eram
vendidos na planta, o que possibilitava que o cliente escolhesse o tamanho e a divisão
interna das paredes de seu apartamento. O que era novidade, pois outros construto-
res vendiam seus prédios já prontos. No térreo, que sempre foi ocupado por aparta-
mentos, João Artacho Jurado iniciou uma nova proposta habitacional, instituindo
áreas de lazer, tais como salas de música, bar, playground, piscina, etc. A preocupação
era proporcionar à classe média um luxo e um lazer que antes não possuía. Os prédios
eram vistos por João Artacho Jurado como grandes empreendimentos que deveriam
receber cuidados especiais em todos os detalhes. Da venda na planta aos cuidados
com a fachada e a decoração, até a propaganda feita com folhetos e anúncios de
páginas inteiras de jornais, com uma linguagem inovadora para a época. Se havia
um certo pudor, para sermos eufemísticos, dos arquitetos modernos no uso da pro-
paganda, para João Artacho Jurado o prédio construído, principalmente se bem lo-
calizado, no sentido de ser bem visto, poderia ser utilizado na função de mass media;
daí a cobertura do Edifício Viadutos ter propaganda, já pensada no projeto. O objeto
prédio era suporte para a mídia, e ao mesmo tempo a incorporava como elemento
arquitetônico. Se a arquitetura geralmente foi pensada ao lado do saber erudito, em
contraposição à cultura de massa, traçando uma linha divisória muito clara e nítida,
para João Artacho Jurado esta não tinha sentido. Tanto o saber erudito como a cultu-
ra de massa podiam coexistir pari passu, e uma poderia tirar proveito da outra. Além
de toda essa pluralidade, que é o conceito que nos interessa, João Artacho Jurado
possuía diversas idiossincrasias, tais como: em primeiro lugar, as incongruências ar-
quitetônicas. Na construção de cada prédio valia qualquer possibilidade de combi-
nação ou inadequação. Neste último caso, encontramos no Edifício Cinderela uma
janela dentro da outra. Uma parede de vidro com uma janela de vidro no meio. Em
outro caso, nos edifícios Bretagne e Parque Verde Mar, em algumas das marquises
323
que serviriam para proteger da chuva, coexistem elementos vazados com formas cir-
culares de diferentes tamanhos. Em segundo lugar, a invasão do limite da constru-
ção. Não satisfeito em ocupar o espaço do terreno, o Edifício Viadutos, erguido sobre
colunas, invade a calçada, extrapolando o limite da área a ele destinada. Entretanto,
isso nem sempre acontecia, muito pelo contrário. O Edifício Bretagne ocupa a lateral
e a frente do terreno e o restante da área foi ocupado por jardins e piscinas. Em
terceiro lugar, a noção de cenário. A qualquer momento, um filme de Hollywood
com o glamour das fitas das décadas de 1930 e 1940 poderia ser rodado nos edifícios
Verde Mar, em Santos, ou, em São Paulo, no Bretagne. Os cenários compostos pelos
excessos e também pela diversidade de materiais, com detalhes como tapetes verme-
lhos nos corredores, dão sempre a impressão de um filme com alta produção. Um
filme para ser vivido no dia-a-dia, sempre, como se fosse um dia especial. A idéia era
essa: o cotidiano deveria ser agradável e glamoroso, e a arquitetura cênica era o pano
de fundo para a realização dos sonhos hollywoodianos.
Ricardo Barreto, “Uma arquitetura cênica”,
texto transcrito do CD-ROM Artacho Jurado:
uma arquitetura cênica, São Paulo, Satmundi, 1999.

Depoimentos

SERGIO(TEPERMAN(

Mas naquela época eu me lembro de ter olhado os prédios do Artacho Jurado, e eu


achava super! Claro que eu não tinha esse conhecimento depurado do modernismo,
mas eu achava os prédios [...] quer dizer, eu achava espalhafatoso, mas eu gostava! Eu
me lembro disso aí. Eles chamavam a atenção como [...] eles se diferenciavam dos
outros, eu me lembro disso aí, então [...] agora, é claro [...] você entra na faculdade,

324
você leva uma lavagem cerebral [...] e então você começa [...] aí todo o mundo metia
o pau [...] mas eu acho que a gente está acostumado a falar, acho, mas, na verdade,
quando eu falo “acho”, eu afirmo. Que em face do monte de coisas que se fazem hoje,
o dele era muito melhor, não tem nem comparação! [...] em face dos pseudos, neo-
gótico, mesgolóides [sic], sei lá o quê [...] Post-que-não-é post-modern coisa nenhu-
ma [...] em face disso aí, o trabalho do Artacho era muito mais interessante [...]
comparado com isso aí, é infinitamente melhor. Eu tenho certeza que ele considera-
va a boa arquitetura o que ele fazia. Tenho certeza [...] não que ele dizia: “Vou fazer
essa porcaria, só porque isso aqui vende!”. Não, tenho certeza que ele [...] e não estou
chamando mais de porcaria, estou dizendo [...] que ele poderia dizer: “Estou fazendo
uma coisa que eu não gosto, porque isso vende” (?) [...] Eu tenho certeza que não [...]
ele fazia, consciente.
Depoimento concedido em dezembro de 2003.

JOÃO(KON(

Mas ele era mais decorativo mesmo, ele gostava [...] mas a planta dele não era má,
não! Nem a implantação era má! Ele implantava bem. Ele tinha mais ou menos o mes-
mo objetivo [...] que era de criar jardins, espaço [...] Você falar do Artacho Jurado [...]
Os objetivos, da própria postura, era completamente diferente [...] ele era muito deco-
rativo! Ele adorava aqueles elementos de cimento pré-fabricados. A turma de escola
acha se você faz para comercializar [...] não deve ser bom! Eu vou dizer: eu acho [...]
que era um público que queria status! Porque o moderno não dava esse status! Não dá
[...] mas um prédio todo pomposo [...] bastante decorativo, dava!
É, eu acho assim: era uma concorrência forte. O preço dele não era barato, mesmo
pelo próprio tipo de opção de prédio; de áreas generosas, mesmo de planta. Então, eu
acho que eles não se adaptaram a essa mudança. Eu acho que eles não se adaptaram a
325
esse [...] eu não conheço os projetos [...] os últimos, mas acho que não se adequaram a
essas transformações. Eu acho que eles não se adaptaram a essa simplificação! Você
tinha que concorrer [...] e isso é uma das coisas que eu acho que a Monções não fez. É,
eles tinham um nome e aproveitaram.
Depoimento concedido em fevereiro de 2006.

GIANCARLO(GASPERINI(

Ele faz parte de uma época na qual algumas intervenções dele, que foram significa-
tivas nesse sentido, no sentido principalmente de reforçar o Centro da cidade, dar ao
Centro e à parte mais nobre, vamos chamar assim, da [...] cidade naquela época [...]
uma conotação de caráter burguês, mas de bom nível. Quando eu falo “conotação de
burguês”, porque isso preocupou ou pelo menos na atividade que a gente conhece com
[...] uma arquitetura mais [...] de caráter [...] popular, caráter mais social e voltado
para um público menos favorecido e [...] de periferia de outras coisas.
Ele estava total [...] profundamente envolvido num processo de caráter imobiliá-
rio-especulativo e com isso não quero [...] Não quero fazer uma crítica porque pratica-
mente era [...] o que estava acontecendo e continua sendo [...] grande atividade imobi-
liária e de construção,está voltada para o lucro de caráter imobiliário, e ele [...] enveredou
por um caminho que foi [...] de uma certa forma [...] bastante inovador. Por causa da
sua [...] arquitetura e por causa das suas tipologias. Fugindo um pouco dos parâmetros
tradicionais, ele introduziu alguma coisa de caráter puramente pessoal da sensibilida-
de dele. Como arquiteto e como pessoa vivida, digamos assim, no mundo [...] no mun-
do da própria arquitetura. Ele [...] extravasou um pouco da [...] daquilo que era [...] os
parâmetros normais da arquitetura daquela época, introduzindo [...] uma arquitetura
inovadora. Se essa [...] se a arquitetura do ponto de vista crítico de hoje em dia é con-
326
siderada boa, ou não [...] não vem ao caso. Estamos aqui para criticar um apaixonado
do ponto de vista da sua criatividade e da sua [...] e da sua [...] mais ou menos [...]
tendências, digamos assim [...] modernistas, ou não modernistas, ou neoclássicas, ou
seja o que for. O que eu me refiro é o fato de que ele criou um impacto. Ele criou um
impacto, eu me lembro porque convivi com esse impacto durante alguns anos, e era
um impacto que de uma certa forma causava simpatia e causava reações antagônicas.
A simpatia era por parte do público em geral!
As pessoas gostavam daqueles prédios, mais enfeitados, com aquelas varandas, com
aquele verde, abrindo-se para espaços mais abertos, etc., isso e aquilo, mostrando que
realmente a arquitetura era voltada mais para a cidade nos lugares onde as pessoas
pudessem usufruir um pouco mais da qualidade de vida, contra aquele edifício inteira-
mente fechado de janelas planas, sem varandas, sem nenhuma vida, digamos assim,
aparente pelo menos nos aspectos das próprias fachadas e um certo antagonismo por
parte dos [...] resguardados arquitetos, principalmente jovens mais radicais que acha-
vam que isso não era arquitetura, era uma forma [...] uma forma de [...] de [...] fazer
alguma [...] algum exercício de caráter puramente formal. Mas que não ficava bem
com a própria essência da arquitetura, principalmente dentro dos conceitos do mo-
dernismo, que eram naquela época bastante enraizados dentro da formação dos arqui-
tetos, dos jovens arquitetos.
E eu sempre tomei uma atitude, eu sempre [...] bastante imparcial nesse sentido,
achava que a modernidade não era uma, uma forma de você se [...] radicalizar em
termos de parâmetros arquitetônicos. O concreto armado, fachadas bonitas, não sei o
quê, isso e aquilo, eu acho que a modernidade não estava exclusivamente voltada para
isso, todos nós éramos muito admiradores da obra modernista, principalmente Le
Corbusier, etc., Warchavchik e companhia, que estavam introduzindo, Lúcio Costa,
que estava introduzindo, então, realmente com grande esforço, estes conceitos no Brasil.

327
Eu achava que isso não era um parâmetro para você rejeitar outras idéias. Isso por-
que eu vinha de uma escola diferente, eu vinha de uma escola mais racionalista, vinha
da Europa, onde tinha uma formação mais aberta, menos radicalizada, sei lá! Apesar
de ter seguido uma doutrina muito rígida que era a que vinha de Bruno Zevi, pessoal
que realmente criou uma arquitetura racionalista, bastante significativa, na Europa, na
Itália e no mundo inteiro. Portanto, eu, com relação ao próprio Artacho Jurado, que eu
nunca conheci pessoalmente, achava aquilo realmente diferente, não é? O que dava
uma certa alegria na arquitetura dele. E eu continuo achando isso, hoje em dia [...]
É, eu acho que ele é alegre, tem umas aberturas, tem umas coisas assim que são
muito agradáveis de você ver e devia ser, não sei por que nunca vivi num prédio dele,
mas devia ser muito bom morar num prédio dele. As plantas eram mais amplas, as
fachadas eram maiores, os quartos eram grandes, quando na realidade estava-se na-
quela época em que você reduzia os quartos ao mínimo: que besteira fazer quartos [...]
banheiros você faz pequenininhos [...] Sabe? Aquelas pseudodoutrinas modernistas
que, claro, tinham uma razão de ser, mas num âmbito mais amplo, num âmbito da
arquitetura mais social, voltada para um universo muito mais amplo, etc. Mas, com
relação ao lado, digamos assim, de produtos voltados para o mercado, eu acho que ele
foi um gênio, foi!
Não, eu acho que o público de um modo geral é muito ignorante. Eles seguem mo-
dismos. Entendeu? Haja vista hoje essa proliferação de estilos neoclássicos, não sei o
quê, disso e daquilo [...] Isso não tem nada a ver. Pelo menos o Artacho Jurado é bem
mais espontâneo! Ele não estava copiando modelos de outros e trazendo para cá, aque-
las tais fachadas que não têm nada a ver com nada, que fazem hoje em dia.
Então, eu acho que o Artacho Jurado nesse ponto, ele se [...] redime como arquiteto,
no sentido que ele não pode ser considerado de segunda categoria, porque ele não foi
de segunda categoria. Ele, como arquiteto, coerente com os tempos dele, inovador com
relação à arquitetura dele, mas dotado de um gosto mais ou menos...

328
A arquitetura dele, eu considero precursora em termos também de, digamos assim,
de [...] mercado! Entendeu? Ele conseguiu convencer o mercado imobiliário que o
bonito e o bom era morar em espaços amplos, espaços bonitos, varandas, isso, aquilo,
etc. Quando foi um precursor, aquilo que hoje em dia acontece na, você vê nos jornais,
etc., todo o mundo fazendo varandonas, fazendo não sei o quê, tal [...]. Mas o Artacho,
nesse ponto, ele foi precursor, porque a arquitetura dele já era voltada para o sentido da
sua [...] autopublicidade!
Depoimento concedido em dezembro de 2003.

329
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Entrevistados
ARTACHO, Marco Aurélio de Moraes. Filho de Aurélio Jurado Artacho e sobrinho de João Artacho
Jurado. Entrevista em dezembro de 2003.
ASOREY, Manuel Felix Vila. Ex-funcionário e ex-encarregado de obras da Construtora Monções.
Entrevista em maio de 2005.

333
BOTTI, Alberto. Arquiteto. Entrevista em junho de 2006.
GASPERINI, Giancarlo. Arquiteto. Entrevista em 3 de dezembro de 2003.
JURADO, Diva Artacho. Filha de João Artacho Jurado. Entrevista em dezembro de 2005.
KON, João. Arquiteto. Entrevista em fevereiro de 2006.
LEME, Maria Eugênia França. Arquiteta. Entrevista em 22 de janeiro de 2004.
SIMONETTI, Irineu João. Ex-diretor de vendas da Imobiliária Monções e ex-diretor-gerente da Cons-
trutora Monções. Entrevista em 3 e 10 de dezembro de 2003.
TEPERMAN, Sergio. Arquiteto. Entrevista em 2 de dezembro de 2003.

334
ÍNDICE(GERAL(
Agradecimentos, 15
Aix-en-Provence: o IX Ciam, 43
Anexo, 319
Apresentação, 9
Bauhaus (1919-1933), 36
“Casa-prédio” no bairro do Pacaembu, 231
Cidade Monções, 109
Conclusão, 315
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – Ciams (Congrès Internationaux d’Architecture
Moderne) a partir de 1928, 40
Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, 46
Conjuntos residenciais Maria Cecília em Rudge Ramos e Diva Maria em São Bernardo do Campo, 306
Considerações, 71
Considerações sobre os Ciams, 46
Edifício Bretagne, 201
Edifício Cinderela, 167

335
Edifício Dona Veridiana ou Conjunto das Tradições Brasileiras, 242
Edifício Enseada, 291
Edifício Nosso Mar, 302
Edifício Parque Verde Mar, 266
Edifício Planalto, 187
Edifício Saint Honoré, 192
Edifício Viadutos, 180
Edifícios Louvre e Pedro Américo, 251
Edifícios na cidade de Santos, 266
Edifícios Parque das Hortênsias e Parque das Acácias (Apracs), 235
Edifícios Piauí e Sabará, 142
Falta de diploma e os desprezo dos arquitetos, A, 77
Feiras de amostras e exposições, 82
Guinada definitiva para a construção civil, A, 95
Introdução, 19
Jurado, 73
Jurado sai de cena, 313
Le Corbusier, 47
Modernismo em São Paulo, O, 61
Modernismo no Brasil: Semana de Arte Moderna de 1922, O, 55
Modernismo no Rio de Janeiro, O, 67
Modulador, de Ernst Neufert, O, 44
Movimento De Stijl (O estilo), 33
Movimento moderno na Europa: nascimento de uma nova arquitetura, O, 23
Nota do editor, 7
Outros edifícios na cidade de São Paulo, 142
Paris: o V Ciam, 41
Planejamento de Chandigarh por Le Corbusier, O, 44
Plano Piloto de Brasília, O, 45
Primeiras obras – sobrados e prédios na Vila Romana e em Perdizes, 99
Primeiros lançamentos da Monções no Centro de São Paulo – os edifícios Pacaembu, General Jardim e
Duque de Caxias, 128
Projetos inspirados nos ideais dos Ciams, 44
Referências bibliográficas, 331
X Ciam, ou Team 10, O, 43

336 (

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