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FÓRUM FORUM 1411

A integralidade na prática
(ou sobre a prática da integralidade)

Comprehensiveness in practice
(or, on the practice of comprehensiveness)

Ruben Araujo de Mattos 1

Abstract Introdução

1 Instituto de Medicina This article reflects on the manifestations or O termo integralidade tem sido usado para de-
Social, Universidade do
signs of comprehensiveness in health practice, signar um dos princípios do Sistema Único de
Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil. seeking to facilitate recognition of experiences Saúde (SUS). Mais do que isso, ele expressa uma
that are advancing in this direction and allow- das bandeiras de luta do chamado movimento
Correspondência
ing them to be analyzed subsequently. The arti- sanitário. De certo modo, ele tem funcionado
R. A. Mattos
Instituto de Medicina Social, cle is also intended to spawn increasing involve- como uma imagem-objetivo, ou seja, como uma
Universidade do Estado ment by actors in practices based on compre- forma de indicar (ainda que de modo sintético)
do Rio de Janeiro.
hensiveness. The point of departure is the prin- características desejáveis do sistema de saúde
Rua São Francisco Xavier
524, 7 o andar, ciple that what characterizes comprehensive- e das práticas que nele são exercidas, contras-
Rio de Janeiro, RJ ness is an expanded grasp of the needs and abil- tando-as com características vigentes (ou pre-
20559-900, Brasil.
ruben@ims.uerj.br
ity to recognize the adequacy of the health care dominantes). Mas caberia perguntar: integrali-
supply in the specific context where the subject dade segue sendo uma noção (ou um conjunto
meets the health team; in addition, to foster de noções) útil para identificar certos valores e
comprehensiveness means defending the notion características que julgamos desejáveis no nos-
that health actions be attuned to the specific so sistema de saúde? Ele ainda segue sendo um
context of each encounter. bom indicador da direção que desejamos im-
primir ao sistema e às suas práticas? Ele segue
Comprehensive Health Care; Professional Prac- sendo útil como indicador, por contraste, das ca-
tice; Health Services racterísticas que criticamos no sistema de saú-
de e nas suas práticas?
Partindo da hipótese de que podemos dar
uma resposta afirmativa a estas perguntas, em
trabalho anterior 1 realizamos uma investiga-
ção sobre os diversos sentidos do termo inte-
gralidade no contexto da luta pela reforma sa-
nitária no Brasil. Identificamos pelo menos três
conjuntos de sentidos. Um primeiro aplicado a
características de políticas de saúde ou de res-
postas governamentais a certos problemas de
saúde. Aqui, a integralidade se referia sobretu-

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do à abrangência dessas respostas governamen- Integralidade e o acesso


tais, no sentido de articular ações de alcance universal e igualitário às ações
preventivo com as assistenciais. Um segundo e serviços de saúde
conjunto de sentidos era relativo a aspectos da
organização dos serviços de saúde. Um tercei- Na literatura, encontramos alguns textos que
ro era voltado para atributos das práticas de saú- tratam a noção de integralidade como se a mes-
de. Ocupo-me neste texto fundamentalmen- ma fosse sinônima da garantia de acesso a to-
te desse último conjunto de sentidos, embora dos os níveis do sistema de serviços de saúde.
também tangenciaremos alguns dos sentidos Talvez essa leitura da integralidade seja um
relativos à organização dos serviços. bom ponto de partida de nossa reflexão.
Dentre os princípios e diretrizes do SUS, O texto da Constituição brasileira afirma ser
talvez o da integralidade seja o que é menos vi- dever do Estado garantir “o acesso universal e
sível na trajetória do sistema e de suas práticas. igualitário aos serviços de saúde para sua pro-
Com efeito, são evidentes as mudanças do sis- moção, proteção e recuperação”. Nesse mesmo
tema tanto no eixo da descentralização quanto texto, o que chamamos de integralidade apare-
no do controle social. No que diz respeito ao ce como um dos princípios do SUS: “atendi-
acesso universal, no SUS atualmente já não há mento integral, com prioridade para as ativida-
as barreiras formais que limitavam o acesso des preventivas, sem prejuízo dos serviços assis-
apenas aos que contribuíam para a previdên- tenciais”. Ambos os trechos têm em comum o
cia social. É claro que são ainda inúmeras as fato de articularem diversas dimensões ou lógi-
barreiras de acesso que privam brasileiros das cas das ações e dos serviços de saúde: promo-
ações e serviços de saúde que necessitam, de ção, proteção e recuperação, no primeiro, e ati-
modo que ainda temos muito de caminhar no vidades preventivas e assistenciais, no segundo.
sentido da igualdade do acesso. O SUS pode ser visto como um dispositivo
Mas no que diz respeito à integralidade, as institucional criado pelo governo para dar con-
mudanças não têm sido tão evidentes. Elas acon- ta do seu dever de garantir o acesso universal e
tecem aqui e acolá, mas ainda não ganharam a igualitário nos termos da Constituição. Ele foi
generalização nem a visibilidade que almeja- concebido como abarcando todas as ações e
mos. Exatamente por isso, talvez seja oportuno serviços públicos de saúde (assim como alguns
dedicar maior atenção ao exame dessas experi- serviços privados). Estes deveriam estar orga-
ências, em sua maioria localizada, que trans- nizados como uma rede regionalizada e hierar-
formam as práticas na direção da integralida- quizada. A noção de hierarquização pressupõe
de. Há que reconhecê-las, analisar as condições o estabelecimento de certos níveis de atenção
que tornaram possível sua emergência, refletir (chamemos assim). Para delimitar esses níveis
sobre os potenciais e os limites de sua difusão. de atenção, é necessário dispor os diferentes
Analisar as experiências que se pautam pela in- recursos tecnológicos existentes para a promo-
tegralidade é uma importante agenda de pes- ção, a proteção ou a recuperação da saúde (ou
quisa. as tecnologias voltadas para a prevenção) nos
Este texto pretende oferecer subsídios para diversos tipos de serviços de saúde. É desses
essa agenda de investigação, ao refletir sobre níveis de atenção que falamos quando defende-
as diversas dimensões que a integralidade po- mos que todos os brasileiros possam ter asse-
de assumir (e talvez esteja assumindo) nas prá- gurado seu acesso a todos os níveis.
ticas em saúde. Não se trata ainda de um tra- É claro que existem várias possibilidades
balho empírico, no sentido que aqui nenhuma para os critérios utilizados nessa disposição
experiência concreta é analisada. Trata-se an- das tecnologias nos diferentes níveis de aten-
tes, de uma reflexão sobre as manifestações ou ção. No Brasil, por exemplo, adotou-se uma de-
os signos da integralidade na prática em saúde, finição de atenção básica bastante centrada
feita com um duplo propósito: o de facilitar o nas necessidades dos diversos grupos popula-
reconhecimento de experiências que estejam cionais: “a atenção básica pode ser compreendi-
avançando no que diz respeito à integralidade, da como um conjunto de ações, de caráter indi-
permitindo que elas sejam posteriormente ana- vidual ou coletivo, situadas no primeiro nível
lisadas; o de contribuir para que cada vez mais de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para
atores se engajem na construção de práticas a promoção da saúde, prevenção de agravos,
pautadas pela integralidade. tratamento e reabilitação...” 2 (p. 5).
Note-se que nessa definição, a atenção bá-
sica se ocupa tanto de ações preventivas como
assistenciais. O seu conteúdo, dinâmico, é di-
tado pelo conjunto de situações e problemas

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de saúde mais freqüentes numa certa popula- sistência vincula-se a uma experiência indivi-
ção. Analogamente, os outros níveis de atenção dual de sofrimento.
também se ocupam (ou devem se ocupar) tan- Já as ações preventivas se antecipam à ex-
to da prevenção como da assistência. periência individual de sofrimento. Elas atuam
Portanto, uma coisa é defender o acesso uni- ainda no silêncio dos órgãos. Elas são possíveis
versal e igualitário às ações e serviços de saúde porque nosso conhecimento sobre as doenças
que se façam necessários, o que, numa rede re- (que causam alguns sofrimentos) permitiu an-
gionalizada e hierarquizada, pode assumir a tever riscos ou mesmo reconhecer precocemen-
forma da defesa ao acesso a todos os níveis de te a doença antes mesmo que ela gere qualquer
atenção do sistema de saúde. Outra coisa, igual- sofrimento. Portanto, a necessidade de uma ação
mente importante, é defender que em qual- preventiva é ditada a partir do conhecimento
quer nível haja uma articulação entre a lógica dos profissionais. Ela é de certo modo ofertada
da prevenção (chamemos por hora assim) e da pelos profissionais de saúde.
assistência, de modo que haja sempre uma apre- Uma primeira dimensão da integralidade,
ensão ampliada das necessidades de saúde. na prática se expressa exatamente na capaci-
É por esta razão que talvez seja útil não con- dade dos profissionais para responder ao sofri-
siderar integralidade como sinônimo do aces- mento manifesto, que resultou na demanda es-
so a todos os níveis do sistema. O que nos re- pontânea, de um modo articulado à oferta re-
mete a aprofundar a reflexão sobre as caracte- lativa a ações ou procedimentos preventivos.
rísticas das práticas que se pautam pela inte- Para os profissionais, isso significa incluir no
gralidade. seu cotidiano de trabalho rotinas ou processos
de busca sistemática daquelas necessidades
mais silenciosas, posto que menos vinculadas
Sobre a articulação entre à experiência individual do sofrimento. Para os
a assistência e prevenção serviços, isso significa criar dispositivos e adotar
processos coletivos de trabalho que permitam
Uma das críticas mais recorrentes ao arranjo oferecer, para além das ações demandadas pe-
das práticas de saúde predominantes diz res- la própria população a partir de experiências
peito à ênfase à assistência. De fato, nos anos individuais de sofrimento, ações voltadas para
setenta, o antigo sistema de saúde se estruturou a prevenção.
de modo polar: de um lado, o Instituto Nacio- Aprofundemos um pouco mais essa ques-
nal de Assistência Médica da Previdência Social tão: não se trata de simplesmente desenvolver
(INAMPS) se ocupou das ações assistenciais, protocolos ou rotinas capazes de identificar e
organizando os serviços para responder a de- oferecer ações preventivas não demandadas di-
manda espontânea; de outro, o Ministério da retamente pelas pessoas que procuram os ser-
Saúde naquele arranjo deveria se ocupar da- viços de saúde. Há que se compreender o con-
quelas outras necessidades de saúde pública. texto específico de cada encontro entre mem-
Indiscutivelmente tal arranjo não favorece a bros da equipe de saúde e as pessoas. Há que
melhoria da saúde da população. A criação do se adotar uma postura que identifica a partir
SUS modificou esse arranjo institucional, mas do conhecimento técnico as necessidades de
não necessariamente transformou as práticas prevenção e as assistenciais, e que seleciona as
dos serviços, de modo a articular a prevenção e intervenções a serem ofertadas no contexto de
a assistência, como diz o texto constitucional. cada encontro.
Em que a lógica assistencial se distancia da Por exemplo, imaginemos um homem obe-
lógica da prevenção? Se tomarmos por um mo- so, com vida sedentária, fumante inveterado,
mento a perspectiva da atenção às pessoas, po- que procura ser prontamente atendido por apre-
demos constatar que a assistência é demanda- sentar forte dor lombar provocada por um cál-
da a partir de uma experiência de sofrimento e culo renal. É claro que no momento em que pro-
de uma leitura de ser possível encontrar alento cura o serviço de saúde, nem ele nem os profis-
para tal sofrimento num serviço de saúde. Isso sionais sabem que seu sofrimento se deve a li-
resulta no que chamamos de “demanda espon- tíase renal. A equipe que o atende, na perspec-
tânea”. Obviamente, tanto a experiência de so- tiva da integralidade, deve ser capaz de identi-
frimento como essa expectativa frente aos ser- ficar a doença que causa o sofrimento manifes-
viços de saúde são construídas socialmente, to, dar uma resposta imediata à dor, e reconhe-
embora experimentadas individualmente, o cer a necessidade de uma conversa sobre os fa-
que nos leva à conclusão de que essa demanda tores de risco de doenças cardiovasculares e
que parece ser espontânea de fato é construída pulmonares que o paciente apresenta. Mas no-
socialmente. Mas aqui o que importa é que a as- te-se que, nessa situação hipotética, não é acei-

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tável que a conversa sobre a vida sedentária pe de saúde. A possibilidade de articular ações
ocorra antes que as medicações capazes de eli- preventivas e assistenciais envolve um duplo
minar a dor surtam seu efeito. A integralidade movimento por parte dos profissionais. De um
se manifesta aqui na postura de não aceitar a lado, apreender de modo ampliado as necessi-
redução da necessidade de ações e serviços de dades de saúde. De outro, analisar o significa-
saúde à necessidade de identificar e dar res- do para o outro das demandas manifestas e das
posta para a doença que suscita o sofrimento ofertas que podem ser feitas para responder as
manifesto (e, nesse caso, a procura ao serviço necessidades apreendidas, tendo em vista tan-
de saúde). Isso envolve duas coisas: uma apre- to o contexto imediato do encontro como o
ensão ampliada das necessidades do sujeito, contexto da própria vida do outro, de modo a
que englobe tanto as ações de assistência co- selecionar aquilo que deve ser feito de imedia-
mo as voltadas para a prevenção de sofrimen- to e gerar estratégias de produzir novos encon-
tos futuros; e uma capacidade de contextuali- tros em contextos mais adequados àquelas
zar adequadamente as ofertas a serem feitas ofertas impertinentes no contexto específico
àquele sujeito, de modo a identificar os mo- daquele encontro. O que nos remete à questão
mentos propícios a tal oferta. da contextualização.
Um outro exemplo: se uma mulher de vinte
anos procura um serviço de saúde por ter sido
vítima de estupro na véspera, obviamente ela Integralidade como uma apreensão
precisa antes de mais nada ser acolhida. A con- ampliada e prudente das necessidades
versa deverá necessariamente tratar da oferta da de ações e serviços de saúde
contracepção de emergência, assim como das
medidas de intervenção frente à possibilidade Do que dissemos antes, emerge uma compre-
de adquirir doenças sexualmente transmissíveis ensão que perpassa os diversos sentidos da in-
como a infecção por HIV. Mas seria absurdo que tegralidade que se referem aos encontros entre
os profissionais começassem uma conversa so- equipe de saúde e as pessoas. Defender a inte-
bre a necessidade das práticas de sexo seguro. gralidade é defender antes de tudo que as prá-
Ou seja, o que caracteriza a integralidade é ob- ticas em saúde no SUS sejam sempre intersub-
viamente a apreensão ampliada das necessida- jetivas, nas quais profissionais de saúde se re-
des, mas principalmente essa habilidade de re- lacionem com sujeitos, e não com objetos. Prá-
conhecer a adequação de nossas ofertas ao con- ticas intersubjetivas envolvem necessariamen-
texto específico da situação no qual se dá o en- te uma dimensão dialógica. Isso confere às prá-
contro do sujeito com a equipe de saúde. ticas de saúde um caráter de prática de conver-
Um outro exemplo, esse real: uma agente sação 4, na qual nós, profissionais de saúde,
comunitária que fazia visitas domiciliares com utilizamos nossos conhecimentos para identi-
a finalidade de acompanhar a evolução do pe- ficar as necessidades de ações e serviços de saú-
so das crianças menores de dois anos, inscritas de de cada sujeito com o qual nos relaciona-
num programa de distribuição de leite (trata- mos, para reconhecer amplamente os conjun-
va-se do antigo Incentivo às Carências Nutri- tos de ações que podemos pôr em prática (in-
cionais), e que tinha uma rotina a ser cumpri- cluindo ações como o aconselhamento e as
da em cada visita, ao entrar num casebre, vê de chamadas práticas de educação em saúde) pa-
imediato um homem “jogado” dormindo nu- ra responder as necessidades que apreende-
ma velha poltrona e as marcas da fivela de um mos. Mais do que isso, defender a integralida-
cinto nos braços de uma das crianças da casa. de nas práticas é defender que nossa oferta de
Imediatamente, a agente abandona sua rotina ações deve estar sintonizada com o contexto
e, conversando em voz baixa para não acordar específico de cada encontro. Analisemos com
o homem, estabelece uma conversa (na verda- mais cuidado cada um desses pontos.
de uma negociação) com a mãe das crianças Sujeitos têm modos de andar a vida, para
sobre as providências que deveriam ser toma- usar a expressão de Canguilhem 5, modos de
das para proteger mãe e crianças da violência andar a vida que se modificam (Canguilhem
do marido e pai 3. Trata-se de um exemplo de diria talvez, que se estreitam) pela ocorrência
uma postura de integralidade. Aqui, como nos de uma doença. É claro que os modos de andar
demais exemplos, o princípio da integralidade a vida não são escolhas das pessoas, mas emer-
é exercido por meio de um olhar atento, capaz gem do próprio modo como a vida se produz
de apreender as necessidades de ações de saú- coletivamente. O modo de andar a vida de um
de no próprio contexto de cada encontro. sujeito não pode ser compreendido como dis-
Não importa em que contexto ocorre o en- sociado do modo como a vida anda num certo
contro entre as pessoas e os membros da equi- lugar, aonde ele vive. Mas cada sujeito apresen-

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ta singularidades que se expressam no seu mo- desse diálogo é a capacidade de compreender


do de andar a vida. o contexto específico dos diferentes encontros.
Nós, os profissionais de saúde, detemos um Compreensão que envolve por parte dos pro-
vasto conhecimento sobre as doenças e os so- fissionais o esforço de selecionar num encon-
frimentos por elas causados, bem como sobre tro os elementos relevantes para a elaboração
um certo número de ações capazes de interfe- do projeto terapêutico, tanto os evocados por
rir em algum grau sobre o modo de andar a vi- ele com base em seus conhecimentos, quanto
da estreitado pela doença. É esse conhecimen- os trazidos pelo outro a partir de seus sofri-
to que nos permite atuar diante de um sofri- mentos, de suas expectativas, de seus temores
mento assistencial. Mas, na perspectiva da in- e de seus desejos.
tegralidade, não devemos reduzir um sujeito à Note-se que não se trata de apreender tu-
doença que lhe provoca sofrimento. Ao contrá- do; não se trata de uma postura holística. Tra-
rio, manter a perspectiva da intersubjetividade ta-se mais de um exercício de seleção negocia-
significa que devemos levar em conta, além dos da do que é relevante para a construção de um
nossos conhecimentos sobre as doenças, o co- projeto de intervenção (ou melhor, de um pro-
nhecimento (que não necessariamente temos) jeto terapêutico) capaz de dar oportunamente
sobre os modos de andar a vida daqueles com respostas ao conjunto de necessidades de ações
quem interagimos nos serviços de saúde. Isso e serviços de saúde 6.
implica a busca de construir, a partir do diálo- Alguns podem considerar que tal visão é
go com o outro, projetos terapêuticos indivi- utópica. Contudo, aqui e acolá uma série de
dualizados. propostas de mudança nas práticas e nos ar-
Mas nossos conhecimentos das doenças ranjos dos serviços caminham no sentido de
nos permitem em algumas situações intervir concretização da integralidade. E uma série de
mesmo antes que ela suscite um sofrimento experiências já concretizam essa aparente uto-
manifesto. Tais conhecimentos nos possibili- pia. A idéia de que nenhuma pessoa que entra
tam identificar necessidades de ações e servi- num serviço de saúde deve sair dele sem algu-
ços não necessariamente demandadas pelos ma resposta concreta desse serviço, idéia cha-
sujeitos. É claro que, na perspectiva da integra- ve nas propostas de acolhimento, as teses que
lidade, não podemos deixar de levar em conta enfatizam a necessidade de uma escuta atenta
o significado que nossas recomendações de cu- por parte de todos os profissionais que atuam
nho preventivo podem ter no modo de andar a nos serviços de saúde (do segurança ao médi-
vida dos sujeitos. Ou seja, os projetos terapêu- co), as flexibilizações das rotinas sobre os flu-
ticos individuados, na perspectiva da integrali- xos dos usuários nos serviços de saúde de mo-
dade, levam em conta também as ações volta- do a permitir o desenho de um fluxo negociado
das para a prevenção. para cada pessoa, as idéias de clínica amplia-
Os projetos terapêuticos assim entendidos da, enfim, uma série de idéias e propostas têm
não são produto da simples aplicação dos co- sido formuladas e experimentadas em vários
nhecimentos sobre a doença. Na perspectiva locais. Como também há muitos profissionais
da integralidade, eles emergem do diálogo (e que, mesmo sem uma formulação teórica da
porque não falar, da negociação) entre profis- proposta, ou mesmo sem utilizar o termo, pra-
sionais de saúde e os usuários dos serviços de ticam a integralidade no seu cotidiano.
saúde. A característica chave para a existência

Resumo

O artigo faz uma reflexão sobre as manifestações ou os conhecer a adequação da oferta ao contexto específico
signos da integralidade na prática em saúde, buscan- da situação no qual se dá o encontro do sujeito com a
do facilitar o reconhecimento de experiências que es- equipe de saúde; e defender a integralidade nas práti-
tejam avançando e permitir que elas sejam posterior- cas é defender que a oferta de ações de saúde deva es-
mente analisadas. Pretende também contribuir para tar sintonizada com o contexto específico de cada en-
que cada vez mais atores se engajem na construção de contro.
práticas pautadas pela integralidade. Parte-se do prin-
cípio de que o que caracteriza a integralidade é a apre- Atenção Integral à Saúde; Prática Profissional; Ser-
ensão ampliada das necessidades e a habilidade de re- viços de Saúde

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1411-1416, set-out, 2004


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Referências

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Janeiro/ABRASCO; 2001, p. 39-64. neiro/ABRASCO; 2003. p. 89-112.
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práticas de saúde [Tese de Doutorado]. Rio de Ja- gralidade. Cotidiano, saberes e práticas em saú-
neiro: Instituto de Medicina Social, Universidade de. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social,
do Estado do Rio de Janeiro; 2002. Universidade do Estado do Rio de Janeiro/ABRAS-
CO; 2003. p. 113-28.

Recebido em 14/Jun/2004
Aprovado em 15/Jun/2004

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1411-1416, set-out, 2004

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