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TELLES, Narciso (org). Pesquisa em artes cénicas. Ri: ©-papers, 2012 Paragens de um artista-docente-pesquisador Narciso Telles' todo texto é um prétogo (ou um esboco) no mo- mento em que se escreve, e uma mdscara mortu- tia alguns anos depois, quando nao é outra coisa a nao ser a figura jd sem vida desta tens0 que o animava. (LARROSA, 2002, p. 133) Como pesquisamos? Para quem escrevemos? Como escrevemos? Estas questées e outras tantas que podem surgir ao longo de uma pratica de pesquisa foi e tém sido objeto de reflexao em varios Congressos e reunides cientificas da Associagaio de Pesquisa e Pés-graduagdo em Artes Cénicas (ABRACE). Preocupados em construir um didlogo entre experiéncias diversas na pesquisa em Artes Cénicas como possibilidade de compreender melhor nos- 1. Ator e professor do Curso de Teatro ¢ do Programa de Pés-graduagao em Artes da Universidade Federal de Uberlandia (UFU), pesquisador do Nicleo de Crago e Pesquisa Teatral e membro do Coletivo Teatro da Margem. Dirigiu re- centemente o espetéculo “A Saga no Sertao da Farinha Podre” (2010). Autor do livro Pedagogia do teatro ¢ o teatro de rua (Mediagao, 2008) ¢ organizador (com Adilson Florentino) do livro Cartografia do Fnsino do Teatro (EDUFU, 2008). Pes- quisador Pq-CNPq. so compromisso intelectual e politico, os pesquisadores lagaram seu olhar para as pesquisas realizadas nas universidades e a re- cepcao destas pelo seu ptiblico-alvo, artistas e professores. Re- tomo aqui tal questéo como uma preocupacao que tenho como artista-docente-pesquisador, especialmente quando 0 objeto de minhas investigacdes se situa na area da pedagogia do tea- tro € processos criativos, num constante processo de pesquisa [e orientacdo] em que a relagdo entre pratica e teoria é recolocada ¢ problematizada. Primeira Paragem: o [nao] lugar da pesquisa Os projetos de pesquisa que desenvolvo estao localizados no Curso de Teatro (bacharelado e licenciatura) e no Programa de P6s-graduacao em Artes da Universidade Federal de Uberlandia. Este Ultimo, criado em 2007, constitui-se na classificagao da CA- PES como um programa misto, pois congrega pesquisadores das areas de Artes Cénicas (teatro e danga), Mtisica e Artes Visuais. Possui uma Unica area de concentra¢io ARTES e duas linhas de pesquisas: processos e praticas em Artes & Fundamentos e refle- x6es em Artes. Alinha de processos e praticas em Artes, A qual estou vincula- do, congrega pesquisas ligadas a visualidade, a plastica, ao corpo, a atuacao, ao texto e a misica, articulando reflexio, processos de ctiagao, ensino e aprendizagem. A minha trajetéria como pesquisador em Teatro, passou de investigagées sobre a histéria do espetdculo e da atuagdo para Pesquisas centradas em dois eixos: a) improvisagao: procedi- mentos ¢ conceitos e b) relacdes de [trans}formacio do artista cénico em varios espacos e préticas. Assim, meus projetos 540: Aprender a aprender: os viewpoints como procedimentos de atuagao e jogo Os viewpoints como procedimentos de criagao foram desenvol- vidos pela diretora norte-americana Anne Bogart, compostos 46 Pesquisa em artes cénicas por Pontos de Vista (Viewpoints), divididos em duas categorias (tempo e espaco), que o performer aciona para desenvolver seu trabalho. O presente projeto de pesquisa visa Verificar e analisar autilizagao destes procedimentos no jogo atorial e sua viabilida- de no processo de aquisicao de tepertério para a criagdo de es- petdculos e performances e para as praticas de ensino do teatro, A investigagao envolve processos teérico-prdticos por meio de estudo de fontes bibliogréficas ¢ de experimentagao pratica de- senvolvida através de exercfcios de improvisacao e composi¢io com alunos do Curso de Teatro (Licenciatura e Bacharelado) e em espetaculos do Coletivo Teatro da Margem. Artista-Docente: modos de formar, maneiras de agix Parte I: Praticas Latino Americanas O objeto desta investigacao sao as praticas de ensino do teatro desenvolvidas por artistas e professores nos diversos espacos de formacao formal e [in]formal. Nessa primeira etapa, a pesquisa estard centrada em experiéncias realizadas na América Latina na busca de compreender o processo de formagao do artista cénico latino americano a partir da experiéncia da Escola Internacio- nal da América Latina e Caribe (EITALC) e seus desdobramentos contemporaneos no campo da pedagogia do teatro. Estes projetos abrigam wm coletivo de pesquisadores em varios niveis de formagio: pesquisadores PIBIC-Junior (ensino médio); PIBIC (CNPq e FAPEMIG), PINA/PROEX (Iniciagaio Ar- tistica) e mestrandos junto ao Programa de Pés-graduacdo em Artes da UFU. A questao que alimenta estas pesquisas gira em torno do que podemos considerar Pesquisa EM Artes, seus modos de escrita e registro, suas passiveis fontes, seus métodos e teorias. Neste percurso podemos ja tecer alguns apontamentos: um primeiro seria um campo de tenso entre [ou didlogo] arte e ciéncia. Na area de artes, especialmente artes cénicas, uma primeira gera- cdo de pesquisadores veio de outros campos do conhecimento, ciéncias humanas, letras, filosofia entre outros. O olhar sobre 0 fer6meno artistico era formulado por estes campos em observa- Paragens de um artista-docente-peequisador 47 do a arte. Dai que os primeiros estudos estavam centrados nas areas de histéria e critica literdria. Estes pesquisadores tiveram decisive papel para o inicio e consolidacao dos estudos teatrais nas Universidades Brasileiras e na criacdo dos programas de Pés- graduagao em Artes (Cénicas]. Porém, os caénones da pesquisa cientifica e suas estruturas metodolégicas determinaram a forma de compreensdo do fen6- meno artistico aceito no “mundo académico”, seguindo modelos hegeménicos que balizam o sistema de producao do conheci- mento. Paralelamente, a prépria ciéncia, ao longo do século XX, também comecou a discutir os seus parametros de construcao do conhecimento. A ciéncia pés-moderma ao colocar “em xeque” al- guns elementos constituintes da ciéncia cldssica, oferece ao cam- po das Artes uma ampliacao de modos de pesquisa “académica’ Boaventura Souza Santos em seus escritos tem discutido a constituigéo de um novo paradigma em relacao 4 ciéncia mo- derna; segundo o autor, 0 paradigma emergente recoloca novas bases para o conhecimento cientifico, que nado pode ser apenas um paradigma cientifico, tem de ser um paradigma social. Nesta “nova” perspectiva epistemolégica, as principais carac- teristicas sao: a) Todo o conhecimento cientffico-natural e cientifico-so- cial: perde-se o sentido da oposigdo entre real e construi- do. Assim como, a distingao entre sujeito/objeto sofre uma transformagao; b) Todo o conhecimento € local e total: a ciéncia pés-moderna trabalha, nao sobre a dtica da especializacao e disciplinari- zagao, mas na perspectiva de pluralidade/transgressao meto- dolégica, na qual os acervos metodolégicos sao recolocades em diversos contextos de pesquisa; Todo conhecimento é autoconhecimento: ressalta-se a im- portancia do sujeito-pesquisador na produg’io do conheci- mento. A presen¢a/voz — situacéo/posicao do pesquisador é algo significative para o conhecimento cientffico: ¢) 48 Pesquisa em artes cénicas d) Todo o conhecimento cientifico visa constituir-se em senso comum: a ciéncia pés-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento 6, em simesma, racional: s6 sua configuraciio. Assim, entende que existe um didlogo entre os saberes (coti- diano/pratico e o cientifico/analitico). As caracteristicas do paradigma emergente apontadas por Souza Santos (1998) podem nos auxiliar na discussao da pesqui- sa EM Artes, pois permitem um alargamento da compreensao e das qualidades da pesquisa artistica fundada no sujeito-criador- pesquisador, muitas vezes ancoradas nas suas questées éticas, estéticas e técnicas, mas também nas relagdes entre a producdo artistica de outros sujeitos, como é o caso das pesquisas em tea- tro aplicado. Florentino ao considerar 0 teatro “como objeto de conheci- mento” da a este campo artistico um estatuto epistemoldgico nao cientificista, mas na pluralidade de olhares/praticas/escri- tas que os pesquisadores podem ter. O discurso teatral, a fungao teatral e a pratica teatral se relacionarn de mods diferentes em cada uma das questées acima, porque as respostas produzem distintas vis6es sobre o teatro, ou seja, produzem diferentes concepgies de teatro. (2009, p. 10) Esta pluralidade de temas, métodos e enfoques pode ser ve- rificada nas publicagdes da Associacao Brasileira de Pesquisa e P6s-graduagado em Artes Cénicas (ABRACE) e j4 apresentam o alargamento da pesquisa em Artes Cénicas e seus didlogos e ten- sionamentos com a pesquisa cientifica. Segunda Paragem: a Pratica Pensamento na pesquisa em Artes [Cénicas] Nesta paragem focalizo meu olhar para o que tenho chamado de Prdtica Pensamento do pesquisador em Artes [Cénicas]. Tal ideia pode ser vista por dois aspectos: um da intrinseca relacéo Paragens de um artista-docente-pesquisador 49 entre o pesquisador e o material de andlise, sem distanciamento cientifico e de outro modo pelas pesquisas que tem na pratica artistica seu infcio e fim, muitas vezes, sem alusées explicitas ao campo teérico acionado. primeiro aspecto j4 foi por mim mencionado em texto anterior sob 0 titulo “A experiéncia como atitude metodolégi- ca” (TELLES, 2008, p. 19). Cito aqui alguns pontos do texto que considero relevantes para a compreensao do meu [nao] lugar de artista-pesquisador. Aexperiéncia como atitude de pesquisa poderd proporcionar ao pesquisador e pesquisados a possibilidade de pertencer-se uns aos outros e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros. © pedagogo Jorge Larrossa Bondfa define o termo experién- cia como, “o que nos passa, 0 que nos acontece, 0 que nos toca. N&o 0 que se passa, 0 que acontece, ou o que toca’. E continua: “a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (2002, p. 21). Para ele 0 sujeito moder- no encontra-se submerso no mundo da informagao, 0 excesso de opiniao, da falta de tempo e excesso de trabalho. Por sua vez, o sujeito da experiéncia [..1 se define nao por sua atividade, mas por sua passividade, por sua recepgao, por sua disponibili- dade, por sua abertura, Trata-se [...] de uma passi- vidade feita de paixio, de padecimento, de pacién- cia, de atengao, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. (BONDIA, 2002, p. 24) Neste sentido, este sujeito se expde a vulnerabilidade e ao ris- co na construcao de seu saber. Para Larrosa, o saber da experiéncia é aquele que se dé entre o conhecimento ea vida humana, ou seja, é o que adquirimos na medida em que respondemos ao que nos acontece ao longo da vida. Diz ele: O saber da experiéncia tem aver com a elaboracao do sentido ou sem-sentido do que nos acontece, 50 Pesquisa em artes cénicas trata-se de um saber finito, ligado a existéncia de um individuo ou de uma comunidade humana particular [...] Por isso, o saber da experiéncia 6 um saber particular, subjetivo, relativo, contingen- te, pessoal. [...] O saber da experiéncia é um saber que nao pode separar-se do individuo concreto em quem encama. Nao esté. como o saber cientifico, fora de n6s, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um carater, uma sensibilidade ou, em. definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que € por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) euma es- tética (um estilo). (Ibidem, p. 27) Esta noc&o também esta presente nas reflexdes do teatr6logo Marco De Marinis. De Marinis enuncia, pelo menos, trés tipos de experiéncia-compreensao no campo teatral: 1. aexperiéncia-compreensao do artista de teatro, eem particu- lar do ator, fundada sobre a competéncia ativa; 2. a experiéncia-compreensao do espectador comum, fundada sobre uma competéncia passiva e quase implicita, intuitiva; 3. a experiéncia-compreensao do teatrélogo, fundada princi- palmente sobre uma competéncia passiva mas fortemente explicita (te6rica). (MARINIS, 1995, p. 60) A tpologia da experiéncia-compreensao, apresentada pelo teatrélogo Marco De Marinis, apresenta-se como uma perspec- tiva de trabalho investigativo na drea da pedagogia do teatro, tomando-se como referéncia a experiéncia-compreensio do at- tista-docente fundada sobre a competéncia ativa, ou seja, pelos meandros do saber-fazer-ensinar teatro e suas dinamicas, Nes- te trabalho, nosso objeto de investiga¢ao se localiza no lugar da pratica, pois todos os processos de ensino-aprendizagem aqui analisados estao focados no trabalho Prdatico e técnico do ator. A experiéncia e o seu explicar s4o conceitos também aciona- dos pelo bilogo do conhecimento Humberto Maturana em seus estudos sobre 0 conhecimento ea linguagem. Maturana chama Paragens de um artista-docente-pesquisador 81 atengado para o fato de que frequentemerite juntamos o explicar com a experiéncia que queremos explicar: “explicar é sempre propor uma reformulacio da experiéncia a ser explicada de uma forma aceitavel para o observador” (2001, p. 40). Assim, a experi- éncia para ser explicada necessita de uma reformulagao que ga- ranta sua aceitagéio como tal. Para explicar a experiéncia, Matu- rana observa dois caminhos: o da objetividade-sem-parénteses € 0 da objetividade-entre-parénteses. No primeiro caminho explicativo agimos como se fosse vali- do em fungdo de uma referéncia a algo que existe independente de nés. Aceitamos que “existe uma realidade transcendente que valida nosso conhecer e nosso explicar, e que a universalidade do conhecimento se funda em tal objetividade” (p. 46). Osegundo caminho é defendido pelo autor como o mais indi- cado para explicar a experiéncia, pois “colocando a objetividade- entre-parénteses, eu dou conta de que nao posso pretender que eu tenha a capacidade de fazer referéncia a uma realidade inde- pendente de mim” (p. 47). Este percurso explicativo nao traba- Tha com a existéncia de uma verdade absoluta nem de verdades relativas, mas com a existéncia de muitas verdades em campos distintos. A explicagao da experiéncia sempre se ancora em praticas experienciais, na observacao de um dado fendmeno e na nos- sa leitura deste ato, pois a experiéncia ocorre no fazer. “O que se faz, simplesmente acontece” (p. 57). Nesta explicagao, nniltiplos dominios de realidade so acionados, construindo um caminho explicativo a partir das cveréncias das préticas experienciais do observador, ou seja, a andlise de um processo no qual estamos inseridos como participes 6 demarcada pelo conjunto de ativi- dades vivenciadas por nés na experiéncia. Esta vivéncia é vinica para cada pessoa e possibilita que cada um possa fazer uma ex- plicagao diferenciada sobre uma dada experiéncia, Se ampliarmos esta ideia, podemos admitir que a experiéncia constitui um caminho vidvel para a pesquisa teatral a que nos propomos, na medida em que viabiliza a aquisicao corpéreo- sensorial dos procedimentos de atuagao propostos pelos grupos investigados. Pretendemos, ao procurar explicar um. conjunto de 82 Pesquisa em artes cénicas experiéncias vividas pelo pesquisador, contribuir com os pro- cessos de investiga¢ao teatral no qual o pesquisador se encontra corporalmente envolvido e cujos objetivos estejam vinculados a andlise das agées cotidianas existentes em processos de criagdo e/ou de ensino-aprendizagem. Cientes deste campo de tensao, operamos 0 conceito de ex- periéncia, na perspectiva de um trajeto de indissociabilidade en- tre pesquisa académica, pratica pedagégica e pratica artistica. Esta nocdo possibilita a compreensdo e a percepcio das di- namicas cotidianas engendradas nestes objetos de andlise, pois focalizam as relagGes existentes entre um experimentador/agen- te ¢ as zonas de experiéncia/acao, em seus aspectos espaciais, organizativos e de vivéncia corpéreo-sensorial. A experiéncia como atitude metodolégica do pesquisador EM Artes, se configura como uma posigao do sujeito-pesquisador frente ao fendmeno artistico que determina um olhar/escrita especifica sobre seu objeto de estudo, no qual elementos de sub- jetividade estao presentes na propria estruturacao da pesquisa e também no processo de andlise do material. A [IM] parcialidade do pesquisador é explicita durante o curso da pesquisa. So as escothas do artista-pesquisador que vdo configuré-lo como su- jeito da pesquisa. Nao defendo, com isto, que nas pesquisas EM Artes que objetivam a criacdo de um objeto artistico (espetaculo, figurino, cendrio etc.), como dissertagao ou tese, nao dialoguem com outros campos e/ou artistas, nao correndo o risco de ficar no ensimesmamento. Terceira Paragem: 9 processo colaborativo na pesquisa em Teatro No percurso como artista-pesquisador fiz a opgio por desen- volver minhas pesquisas no 4mbito de um grupo de pesquisa. Esta escolha definiu os procedimentos de trabalho e a rotina de pesquisa de que participo. Ao concluir meu doutoramento em Teatro (2007) e retornar, depois de quatro anos, para minhas ati- vidades docentes, resolvi criar um grupo de pesquisa a partir do Paragens de um artista-docente-pesquisador 53 Projeto docente. Naquele momento 11 alunos de graduacdo em ‘Teatro e um das Artes Visuais mostraram interesse em Ppartici- par de encontros semanais praticos-teéricos sobre os temas em questo. Surge af o Coletivo Teatro da Margem, grupo que agora abriga também estudantes de P6s-graduacio no exercicio cole- tivo de pesquisa. Nossa estrutura de trabalho esta organizada em dois mo- Mentos: 0 ateliés de criagdo, no qual as atividades praticas da Pesquisa sao colocadas, resultando espetaculos, demonstracdes de trabalho e exercicios abertos de improvisagao & encontros de discussao bibliogréfica, nos quais os textos (produzidos ou nao pelos pesquisadores) sio colocados em discussao e dialogam com as questées levantadas nos ateliés. Cada pesquisador tem. seu projeto préprio de pesquisa que estéo articulados ao projeto “guarda-chuva’” do professor orientador. Nos ateliés, muitas vezes, a coordenagao fica a cargo de um aluno de graduagao ou P6s-graduacao e, eu, participo na con- dicdo de artista das atividades Propostas. Tal postura — ética, polftica e estética — me coloca também em questo, pois todo 9 proceso de criagdo ou ensino/aprendizagem € composto por intimeras varidveis que tanto o artista quanto o professor nao determina a priori. Aqui aparece um outro ponto fundamental para minha trajetéria: a nao dissociabilidade entre criagdo, en- sino e pesquisa em teatro. Se colocar como pesquisador, neste caso, € correr riscos e néo pretender buscar a “verdade cientifi- ca’, ou mesmo comprovar hipsteses. Nossas pesquisas partem de questdes que podem ser resolvidas en-cena ou nao, nossas fontes sdo estes encontros, nosso repertério. El repertorio, por otro lado, tiene que ver com la meméria corporal que cixcula a través de perfor- mances, gestos, narracién oral, movimiento, dan- za, canto—em suma, a través de aquellos actos que se consideran com un saber efimero y no reprodu- cible. (TAYLOR, 2003, p. 3) Do processo de coleta e selegéio do material até a organiza- $40 dos proximos enconiros ¢ leituras passamos por um pro- Be Pesquisa em artes cénicas cesso de “selecidn, memorizacién o intenalizacién, y transmisi- on” (TAYLOR, 2003, p. 4). O exercicio do ser/estar na pesquisa realizada nos ateliés ¢ feita pelo pesquisador, quando este traz a consciéncia as vivéncias corpé6reo-vocais, que acontecem ape- nas no momento presente, em que este se enconira envolvido no fazer/ensinar do grupo de pesquisa. Mas como registrar EM TEXTO, este tipo de pesquisa? Esta é a questao para os pesquisadores que tém a [sual pratica artistica como lécus de investigacao. Como bem nos lembra Lévi-Strauss “L..] onde o observador é da mesma natureza que o objeto, 0 ab- servador, ele mesmo, é uma parte de sua observacao” (In: MI- NAYO, p. 14). A pesquisa etnogrdafica tem como caracteristica principal o contato direto e prolongado do pesquisador com as pessoas ou grupos selecionados para estudo. Tal metodologia coloca 0 pes- quisador como o principal instrumento de coleta e andlise dos dados. Uma outra caracteristica importante é a preocupagao do et- négrafo em dar énfase ao processo, aquilo que esta ocorrendo, e nao ao produto. Assim, 0 pesquisador deverd apreender este movimento por meio de um trabalho de campo intenso, minu- cioso e atento. A chamada etnografia pés-moderna aciona estes mesmos pressupostos re-formulando a escrita etnogrdafica cldssica numa gradativa diluigdo das fronteiras que separam o “sujeito” do “ob- jeto” de pesquisa, o que possibilita a construgao de um discurso dialégico e polifénico na anélise do objeto em questao, assim como uma mistura entre a escrita cientifica e literdria ou a pré- pria dissolugao entre eles. (GONCALVES, 2008, p. 155) Nessa perspectiva a pratica emogrdfica se aproxima dos pro- cessos de criacdo artistica, pois torna-se possivel a andlise de processos nos quais 0 pesquisador em artes pode se colocar ao mesmo tempo como artista e como investigador. Para Gong¢alves 9 texto etnogrifico faz “com que reflitam também a sombra das intimeras miios que no os escrevem, mas participam, em varios niveis, da sua construgio (p. 157). Daf seu uso por diversos cam- Paragens de um artista-docente-pesquisador 86 pos de conhecimento, abarcando “o ‘significado’ que as pessoas dao as coisas e & sua vida.” (LODKE & ANDRE, 1986, p. 12) Na pesquisa que desenvolvi analisando as praticas pedagé- gicas teatrais, acompanhei ativamente oficinas de teatro de rua ministradas por cada agrupamento. Minha atividade nao foi constitufda apenas de observagdo de uma determinada relagdo de ensino-aprendizagem; tive uma participacao efetiva, na me- dida em que me coloquei na condicao de alumo em atividade, vivenciando com/em meu corpo os exercicios e atividades pro- postas em cada coletivo teatral para a formagao de atores. (TEL- LES, 2008) Apés a conclusao desta etapa de pesquisa, iniciei minhas ati- vidades no Programa de Pés-graduacdo em Artes da UFU, orien- tando dissertagées cujo percurso metodoldgico se dava pela prdtica artistica do discente-pesquisador. Ali propunha que a ex- periéncia como atitude metodolégica e a escrita etnografica con- duzissem o olhar sobre o objeto ou sujeites investigados. Nesse percurso de orientacao, ainda em andamento, tenho percebido que as relagées entre teoria e pratica esto sendo revistas, ao in- véz de serem campos separados e incomunicdveis na produgao do conhecimento em artes cénicas, tornam-se momentos corre- latos no movimento da pesquisa. Ora a teoria mobiliza a pratica, ora a pratica rever a teoria e assim sucessivamente. Paragem Final: [inJconclusées O percurso que fago como pesquisador e orientador tem me co- locado questées em torno da construgao do conhecimento na area de Artes Cénicas, especialmente em Teatro, me levando a propor re-vis6es nos métodos mais cldssicos da pesquisa acadé- mica e também entendendo este processe como um exercicio criativo em didlogo com 0 objeto de investigagiio. Uma delas 60 processo de escrita. Michel Foucault em A Ordem do Discurso levanta a hipotese que a producao discursiva 6 engendrada por uma gama de proce- dimentos que a localizam dentro de um corpo social e que torna esta produgao algo mediado por estratégias e taticas de poder. 88 Pesquisa em artes cénicas Nos procedimentos de exclusao sao destacados: a interdicaio que impede que o discurso seja “libertario” em seu enunciado, pois nao podemos dizer de tudo em qualquer circunstancia; a sepatacao e a rejeicdo que localiza os discursos em suas auto- rias garantindo ou ndo sua legitimidade perante o ouvinte. Te- ™mos ainda a vontade de verdade que “apoiada sobre um suporte e uma distribuicao institucional tende a exercer sobre os outros discursos uma espécie de pressio e como que um poder de co- ercao” (FOUCAULT, 1996, p. 18). O discurso verdadeiro deve se libertar do desejo e do poder nao podendo reconhecer esta von- tade de verdade que o atravessa. Nos procedimentos internos ao discurso, sao mencionados: 0 comentdrio que da visibilidade ao que estava escondido no texto primeizo, o autor e a organizacao das disciplinas cria os limites para a criacdo do discurso de forma em que estes e suas regras sejam sempre reatualizadas. Foucault aponta ainda um terceiro grupo de procedimentos que possibilitam 0 controle dos discursos, que “determinam as condigées de seu funcionamento, de impor aos individuos que os pronunciam certo mimero de regras e assim de nao permitir que todo mundo tenha acesso a eles” (p. 36). Ou seja, s6 com- preenderd o discurso aquele que dominar seus mecanismos de decifragao. A prépria escrita j4 determina tais mecanismos, pois estrutura-se com base em sistemas de coergao, ne qual cada in- dividuo deverd ser instrumentalizado para adentrar na ordem do discurso. Tal papel em nossa sociedade é realizado pelo sistema educacional que se fundamenta na “politica de manter ou de modificar a apropriagao dos discursos, com saberes ¢ os poderes que eles trazem consigo.” (p. 44). Mais do que levantar hipoteses para uma possivel comprova- Gao, me proponho a levantar problemas, perguntas que possam nortear minha pesquisa artfstico-académica e colocar os pres- supostos tedricos que utilizo nas andlises empreendidas, Assim. que re-conheo 0 meu trajeto artistico e de pesquisador. Proble- matizando as praticas e formas da Pesquisa EM Artes, podemos apresentar tanto as especificidades deste campo quanto suas aproximagées com outras dreas do conhecimento. Paragens de um artista-docente-pesquisador ar Referéncias bibliograficas ANDRE, Marli Eliza. A etnografia da prdtica escolar. Campinas: Papirus, 1996. BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre experiéncia e o saber de experién- cia, In: Revista Brasileira de Educag@o. 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Na tensa relacao entre ciéncias sociais e artes cénicas se dé a gestacao de um espaco inter e transdisci. plinar que ainda nao esta suficientemente expiorado, mas que permite suscitar diversas reflexoes. Neste ensaio reflexivo apresento uma visio Panoramica dos principais paradigmas, metodologias e orientagGes tedricas que inspiram a investigacao qualitativa no campo das artes cénicas. A pesquisa qualitativa abre um espaco nos diferentes modos de andlise dos problemas relativos ao campo das artes cénicas &. Professor, pesquisador, mestre em Educaedo (1992) pela Uerj e doutor em ‘Teatro (2008) pela Unirio. E professor no Departamento de Interpretagao Teatral da Escola de Teatro do Programa de Pés-graduacao em Artes Cénitas da One versidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uniti). numa perspectiva social e cultural e pela adociio de diversos pro- cedimentos como a andlise de contetido ea andlise do discurso. A abordagem qualitativa em artes cénicas parte do pressu- posto basico de que o universo cénico é construfdo de simbolos significados, Nesse sentido, a intersubjetividade constitui uma pega chave na investigagio qualitativa e o ponto de partida para captar de forma reflexiva os diferentes significados estéticos e sociais. A tealidade estética das artes cénicas pode ser percebida como estando repleta de significados compartilhados de modo intersubjetivo. O destaque € atribuido ao sentido intersubjetivo. A pesquisa qualitativa pode ser encarada com a intencao de ob- ter uma profunda compreensao dos significados das definigdes das situacdes-problemas apresentadas pelos sujeitos, mais do que a produ¢ao de uma medida quantitativa de suas caracteris- ticas basicas. Por esse motivo, a pesquisa qualitativa é interpretativa. Con- siste no estudo interpretativo de uma situagao-problema ne qual 0 pesquisador é responsdvel pela producao de sentidos. Todavia, hd de se levarem consideragdo que o problema prin- cipal enfrentado contemporaneamente pela pesquisa no campo das ciéncias sociais e das ciéncias humanas em geral e de suas metodologias tém sua génese na dimensao epistemoldgica, pois gravita em torno do conceito de “conhecimento” e de “ciéncia’, bem como da confiabilidade cientifica de seus produtos, ou seja, 0 conhecimento da verdade. Historicamente, essa situacao produziu, sobretudo na segun- da metade do século XX, 0 aparecimento das correntes pés-mo- dernas, pés-estruturalistas, 0 construcionismo, 0 desconstru- cionismo, a teoria critica, a andlise do discurso e as andlises que formulam a teoria do conhecimento. Essa heterogénea riqueza de Berspectivas exige do pesquisa- dor uma imensa sensibilidade quanto ao uso de procedimentos metodol6gicos aliada & perspicdcia para poder captd-los, bem como exige um profundo rigor, sistematicidade e criticidade, entendidos como critérios basicos da cientificidade exigida no campo académico. 1a Pesquisa em artes cénicas Seguindo as pegadas reflexivas de Gadamer (2007), no contex- to de circunscrigao da experiéncia humana total, uma vivéncia com certeza imediata, como a experiéncia da arte, do teatro e até mesmo da historia, expressa uma verdade que nao pode ser cons- tatada pelos meios disponiveis da metadologia cientifica tradicio- nal que requer o uso da racionalidade légica. Em contraposicao, a experiéncia total requer o uso de um processo afetivo. Do ponto de vista da psicologia das inteligéncias (Gardner, 1994), o sistema cognitivo e afetivo nao constitui dois sistemas totalmente distintos, eles formam um tinico sistema, a estru- tura cognitivo-afetiva. Por isso, torna-se compreensfvel a unio da estrutura l6gica e estética que sao responsaveis pela vivencia total da realidade experienciada. As vezes pode ocorrer a predo- minancia de uma estrutura sobre a outra conforme pode ser ve- rificado no cotidiano e no comportamento das pessoas. Os pressupostos fundamentais para a exitosa solucdo desse problema se da em Arist6teles (2005), na sua obra Metafisica, quando exorta que o ser nunca se dé a ninguém em sua totalida- de, senao somente segundo determinados aspectos e categorias. Portanto, todas as realidades, incluindo as realidades humanas, sao poliédricas e multifacetadas e algumas delas s6 podem ser capturadas em um dado momento especifico. O problema radical que aqui est4 em debate reside no fato de que 0 aparato conceitual classico da racionalidade cientifica de viés rigoroso pela sua objetividade, determinismo, légica formal e verificacao (Popper, 2000), resulta insuficiente e nao consegue dar conta das realidades, principalmente, surgidas ao longo do século XX, como o mundo subatémico da fisica, as ciéncias da vida e as ciéncias humanas. Para enfrentar os problemas produzidos por essas realidades ha que se trabalhar com conceitos inter-relacio- nados e capazes de gerar explicacdes globais e unificadas. Essa nova sensibilidade também se revela nas metodologias qualitativas de pesquisa e viria a significar 0 estado da cultura apés as transformacées que atingiram as regras do j jogo da cién- cia, da literatura e das artes que predorminaram durante a deno- minada “modernidade’, nos trés tiltimos séculos (Santos, 2000), A pesquisa qualitativa em artes cénicas 128 Os principais autores dessa nova sensibilidade no campo do conhecimento, tais como Foucault (2007) e Habermas (2002), diferem entre si em alguns eixos, porém, podem ser perspecti- vados nesses autores certos pontos de intersegao como a rup- tura com a hierarquia e valores tradicionais, o baixo apreco pela formagao de um sentido universal, a desvalorizagao pela ideia de modelo e sua valorizagao, em troca, & racionalidade critica, & verdade “local”, ao uso dos fragmentos e a énfase no primado da subjetividade e na experiéncia estética como modo de produgao de saberes, Faz-se mister, amitide, a internalizacéo de um pensamento sistémico-ecoldgico (Bertalanffy, 2008), ou seja, pensar em ter- mos de relagdes, processos e contextos, pensar em termos de um enfoque dialético, inter e tansdisciplinar no qual a rede de rela- g6es do conhecimento interatua com tudo e se define por aqui- lo que é em troca de um modo linear, causal e unidirecional de pensar. A natureza constitui um todo polissémico que se revolta quando 6 reduzida a seus elementos estruturantes no modo de pensamento cientifico tradicional, Essa revolta é produzida precisamente porque na redugao ocorre a perda das qualidades emergentes do todo e da sua agdo sobre cada uma das partes. O todo polissémico que constitui a natureza global impGe ao pesquisador contemporéneo a adotar uma metodologia inter ¢ transdisciplinar a fim de investigar a riqueza das interacoes esta- belecidas entre os diferentes subsistemas estudados pelos diver- sos campos disciplinares. A perspectiva inter e transdisciplinar exige o respeito da inte- ragao entre os sujeitos/objetos de estudo das diferentes discipli- nas e exige lograr na interlocugao de seus campos aconfiguragao de um espaco de intersegao Idgico e coerente. Isso implica para cada campo disciplinar a revisdo, reformulagao e redefinigao de suas préprias estruturas logicas. Esse itinerdrio j4 esté sendo per- corrido pelas metodologias que adotam um enfoque hermenéu- tico, etnografico e porque nao dizer qualitativo, cujo eixo frontei- rigo € 0 do tipo estrutural-sistémico. 126 Pesquisa em artes cénicas A pesquisa qualitativa em artes cénicas trata de investigar a natureza profunda dos fenémenos que constituem esse campo de estudos, a sua estrutura dinamica e suas diversas praticas de atuacao e de reflexio. Nao obstante, o conjunto de vertentes metodoldgicas e de pressupostos filosdficos que constitui o escopo da pesquisa qua- jitativa atualmente nao é suficiente para fazer frente a afirmativa de que essa abordagem investigativa esta atravessando uma cri- se de legitimidade e de respeitabilidade e, por isso, exige que os seus pesquisadores estejam submersos numa tarefa de autorre- flexdo permanentemente. Motivado pela tarefa de vir a contribuir com essa critica re- flexiva, problematizo no presente ensaic as questies relativas A pesquisa qualitativa em sua dimensdo polissémica. A pesquisa qualitativa n&o constitui uma unidade monolitica porque seu estatuto é resultante da construcao de diferentes matrizes filosé- ficas e epistemoldgicas, Assim sendo, sinto a necessidade de interrogar sobre os diver- sos modos com os quais a pesquisa qualitativa se manifesta nos diferentes campos das ciéncias humanas e sociais com 0 objeti- vo de tentar situar o espaco que ela ocupa nas artes cénicas. Para Bogdan & Biklen (2006), as divergéncias operadas nas perspectivas da pesquisa qualitativa ou investigacao qualitativa podem estar situadas em diferentes niveis de andlise, entre os quais: 1. Nivel epistemoldgico: nesse nivel se inserem as diferengas e contradicdes existentes entre as correntes utilizadas e os mo- dos pelos quais os pesquisadores assumem a sua relacdo com. a realidade investigada; 2. Nivel filos6fico: esse nivel abrange as diferentes concepgies que os pesquisadores sustentam em relacdo aos critérios de verdade, objetividade e validade; 3. Nivelmetodoldgico: aqui tomam lugar as polémicas produzidas em relacao aos procedimentos de coleta e andlise de dados; Apesquisa qualitativa em artes cénicas lez 4. Nfvel conceptual: refere-se aos diversos modos de conceber 0 problema da pesquisa; 5. Nivel teleolégico: aqui se acenam as discrepancias relativas as decisdes tomadas sobre os objetivos da pesquisa. Diante das divergéncias apresentadas, por que se torna perti- nente problematizar o enfoque qualitativo da pesquisa no campo das artes cénicas? Entre as razdes argumentativas que poderiam. defender a emergéncia da abordagem qualitativa no campo das artes cénicas se encontra o pressuposto da insuficiéncia do mé- todo experimental classico (hipotético-dedutivo), apropriado as ciéncias fisicas e naturais, ao estudo do contexto especifico tanto das ciéncias sociais quanto das artes em geral. Aconstituigdo dos campos das ciéncias sociais e das artes cé- nicas possui multiplas dimensdes que nao conseguem ser explo- radas pelo modelo classico de pesquisa cientifica. Jé.a abordagem qualitativa € capaz de refletir tanto a realidade social como a tea- lidade cénico-dramaturgica na extensdc de sua complexidade. Independentemente do modo de sua abordagem (qualitativa ‘ou quantitativa), toda pesquisa gravita em torno de dois pontos basicos de atividades e que estado relacionados com a consecu- Gao de seus objetivos; consistem: 1. coletar toda a informacao necesséria e suficiente para alcan- gar os objetivos ou solucionar o problema em questo; 2. estruturar toda a informagao em um todo coerente e légico, ou seja, construir uma estrutura I6gica, uma perspectiva ou uma teoria que organize a informacao. Uma questio de grande relevancia se destaca nessa conside- tacdo, a saber, esses dois pontos basicos de (1) coletar dads e (2) categorizé-los e interpretd-los nao acontecem sempre de modo sucessivo, mas se entrelagam continuamente no tempo de sua produgao. Com efeito, 0 método basico de toda ciéncia consiste na ob- servagiio dos dados ou fatos e a interpretagao de seus significados. Todavia, a observagao e a interpretacaio sao procedimentos inse- 128 Pesquisa em artes cénicas pardveis; torna-se inconcebivel que um procedimento ocorra sem © outro de maneira isolada. Toda investigacao cientifica trata de produzir um conjunto especifico de métodos e técnicas para efe- tuar observagées sistematicas e garantir a sua interpretacao. Geralmente, no come¢o de todo processo investigativo ha o predominio da coleta de dados sobre os procedimentos de catego- rizagio e interpretagao; porém, & medida que esse processo atin- ge um determinado estdgio, os procedimentos de categorizagao e interpretacaéo ganham forca e a coleta de dados se torna mais escassa por ter atingido o seu objetivo no contexto da pesquisa. A abordagem qualitativa da pesquisa caracteriza-se por um enfoque dialético e sistémico, bem como esta fundamentado em um marco epistemolégico. A existéncia de um pressuposto epis- temol6gico constitui uma exigéncia necessdria a proporcdo que atribui sentido ao uso da metodologia, das técnicas e dos crité- rios de interpretacao. A abordagem qualitativa de pesquisa est4, portanto, funda- mentada na teoria do conhecimenio e na filosofia da ciéncia que refuta o modelo especulativo de investigacao, de cunho positi- vista, no qual 0 sujeito cognoscente é visto como um espelho e totalmente passivo, assim com uma camera fotogréfica. Em contraposi¢ao, a abordagem qualitativa esté apontada para a perspectiva dialética que considera o conhecimento como resultante entre 0 sujeito (interesses, valores, crencas) e 0 objeto de investigagao. Se nao fosse desse modo inexistiria a questao da objetividade da pesquisa. O objeto de estudo, especificamente no campo das artes cé- nicas, é visto e avaliado pelo nivel de complexidade estrutural ou sistémica produzido pelo conjunto de varidveis estéticas que lhe dao configuracéio. No entanto, torna-se importante a observacaio de que a pre- senca do marco epistemolégico nao deve delimitar a busca do investigador; ele constitui apenas um referencial cujo objetivo é demonsirar até 0 presente momento tudo 0 que se tem feito para tornar nitido o fenémeno que é 0 objeto da pesquisa. A existén- cia do marco epistemoldgico na pesquisa qualitativa serve para A pesquisa qualitativa em artes cénicas 129 evidenciar o estado da arte do objeto de estudo no campo ou na area de conhecimento a ser investigado. Assim sendo, a circunscricéo do marco epistemoldgico deve fazer referéncia ao estatuto da pesquisa no campo das artes cé- nicas ¢ de seus principais modos de produgao de conhecimento, tais como autores, tedricos, Perspectivas cenceituais, métodos empregados, conclusdes, recomendagées, interpretagées, prati- cas e reflexes a que chegaram. Os usos do marco epistemoldgico na pesquisa qualitativa nao devem ser determinantes e nem devem impor ou defini, a principio, uma visao teérica, conceitual e interpretativa que sir- va para enquadrar o abjeto de estudo em questo. Seu uso deve servir para estabelecer um conjunto de possiveis interpretagoes que fundem as bases para a construgao de um saber elaborado e relacionado as necessidades, interesses e valores em jogo no espaco-tempo da pesquisa. Segundo a perspectiva de Geertz (1997), no entrecruzamento das culturas se verifica toda a construgao de um saber local cujo marco epistemoldgico orienta o percurso etnogrdfico no sentido do entendimento das diferencas pelo uso de uma hermenéutica da cultura. Nessa mesma perspectiva, a nogao de conhecimento emanci- pat6rio em Habermas (1987), que contrapde a investigacao-acao ao conhecimento instrumental de cunho dominador, coincide com 6 ponto de vista que estou a afirmar de que 0s usos do mar- co epistemoldgico na pesquisa qualitativa devem emergir sob a forma de conhecimento crftico-reflexivo e nao como teoria da ciéncia. A perspectiva do conhecimento emancipatério visa estabele- cer una relacao interativa, critica e socialmente construida entre sujeito-objeto, bem como produzir uma profunda reflexiio arti- culada com a praxis ¢ com a negociagio coletiva que tecem as malhas da pesquisa. Moscovici (1978), ao considerar o estudo das representacoes sociais como um modo de conhecimento social especifico, na- tural, de sentido comum e pratico que se constitui a partir de 130 Pesquisa em artes cénicas nossas experiéncias, saberes ¢ formas de pensar que recebenos e transmitimos pela tradigao (processos de educacao e comuni- caciio social), lhe dé uma dimensio epistemolégica em oposicao ao conhecimento cientifico classico. Corroborando a afirmativa de que todo processo investiga- tivo (quantitative ou qualitativo) é constituido por duas etapas basicas: “a coleta de dados” e “a estruturagdo das informagées”, no que diz respeito 4 pesquisa qualitativa, a sua primeira parte é orientada por varios conceitos que passarei a examinar adiante. No que concere aos objetivos da pesquisa, alguns podem ser gerais ¢ outros especificos, mas todos eles devem ser importantes para 0 estudo em questo. As vezes torna-se mais conveniente formular somente objetivos gerais e formular os mais especificos durante a démarche investigativa. Os objetivos hao de determi- nar, em parte, as escolhas das estratégias e dos procedimentos metodolégicos. Na abordagem qualitativa de pesquisa a hipdtese assume uma certa especificidade. Nao ha necessidade de se formular uma nica hip6tese, porque esse tipo de investigacao est aberto a todas as hipéteses potenciais e a expectativa € a de que a melhor hip6tese emerja do proprio estudo dos dados e naturaimente vai impondo sua forga persuasiva. Ha necessidade de uma ampla adesdo a todas as hipdteses que vo ganhando consisténcia no percurso da investigacao. As hipdéteses assumem um carter provisdrio e vao se transforman- do durante 0 processo da pesquisa para nao estreitar 0 campo de visdo do estudo em andlise. Todavia, diante do desiderato conceitual até aqui problema- tizado em torno da pesquisa qualitativa, uma indagacdo se faz mister: “Qual seria a unidade de andlise ou 0 objeto especifico de estudo de uma investigacdo qualitativa?” Seria a nova realidade emergente da interacao das partes constituintes de um dado fendmeno? Ou seria a busca dessa es- trutura com sua fungao e significado? A tesposta estaria enredada no pressuposto que defende que nao seria légico estudar as varidveis de um fenémeno isolada- A pesquisa qualitativa em artes cénicas 131 mente, definindo-as inicialmente e tratando logo de encontré-las. Na investigacao qualitativa ha necessidade de compreender ini- cialmente ¢ ao mesmo tempo a sistema de relag6es no qual as va- ridveis ou propriedades se encontram inseridas, circunscritas ou encaixadas e da qual produzem o seu préprio sentido c fungao. Por isso, se considera improcedente definir as varidveis de modo operacional, pois as agdes em si dos fendmenos, fora de seus contextos, no teriam significado algum ou poderiam ter muitos significados. As varidveis necessitam estar situadas em seus contextos historicos e culturais espectficos. As atividades em si podem nao ser fenémenos humanos. O que as torna atividades humanas é a intengao que as animam, inspiram e orientam, é 0 significado que possui para o ator, 60 Propésito que abriga, a meta que persegue. Desse modo, na investigacao qualitativa nao ha categorias prévias, nem dimensoes, varidveis ou indicadores a priori. Se o pesquisador possui essas categorias em sua mente é ‘porque ele as formulou da transposicao de outros estudos investigativos. J4 as verdadeiras categorias dos estudos sob a abordagem qualitativa emergem no prdprio processo de recolhimento das informacoes. O trabalho de campo da pesquisa qualitativa é trilhado por alguns critérios que merecem ser sublinhados porque diferem notadamente de outros modos de investigac4o. 1, Oprimeiro critério se refere ao lugar no qual o pesquisador ha de buscar a informagao e os dados de que necessita; 0s dados fecessitam ser capturados no seu ambiente natural e deve ser nesse lugar que 0 pesquisador toma a decisao de escolher com quem ha de falar, por exemplo. 2, O segundo critério exorta que a observacao nfo deve defor- mar, distorcer ou perturbar a verdadeira realidade do fend- meno investigado. Também nao deve descontextualizar as informagées e os dados coletados a fim de isold-los de seu contorno natural. Ha aqui a exigéncia de que a informagao seja coletada de modo mais completo possivel com énfase nos detalhes, matizes e aspectos peculiares sobre linguagens, costumes, rotinas etc. Uma questao importante que aqui se 132 Pesquisa em artes cénicas deslinda é 0 fato do pesquisador qualitative nao entrar no es- tudo de campo possuindo um conjunto explicito de hipéteses para serem verificadas; essa situagao o coloca na posigao de nao saber previamente quais os dados que serao mais impor- tantes daqueles que nao serao. 3. Come terceiro critério esta a énfase de que os procedimentos utilizados necessitam ser repetidos frequente e sistematica- mente. Todo esse processo necesita ser minuciosamente re- gistrado pelo uso de diferentes recursos que garantam a pre- cisdo no registro dos dados. 4. Em quarto lugar esté a énfase de que como a pesquisa qua- litativa trabalha com diversos tipos de informacdo, cabe ao pesquisador selecionar aquela informagao que maior relacdo esiabelece com o problema em questdo e que possa contri- buir para a construgao das estruturas significativas que moti- vam as condutas dos sujeitos da pesquisa. 5. Finalmente, convém assinalar que o observador interage com o contexto observado e, portanto, afeta a realidade observada, diminuindo sua apreciagao objetiva. O pesquisador qualitati- vo nao tem medo de ser parte integrante da situacdo estuda- da e de que sua presenga possa “contaminar” os dados, pois ele considera impossfvel recolher dados absolutos ou neu- tros. Ele é consciente de que constitui um dos atores da cena; ele nao segue o modelo cientifico das ciéncias naturais cl4s- sicas, mas sim o modelo da fisica moderna que leva em conta a relatividade dos fenémenos e o princfpio da incerteza, nos quais o efeito perturbador da observagao sobre aquilo que é observado se integra no processo de investigagao, estudo ena reflexdo tedrica que é produzida. Na abordagem qualitativa, o método especffico a ser escolhi- do e empregado depende da estrutura do que vai ser estudado. Ha nessa abordagem a existéncia de diversos métodos. No que concerne ao campo das artes cénicas, o levantamento feito na pesquisa, sob a minha coordenacao, intitulada “O conhecimento teatral em cena — a andlise de dissertagées de mestrado e teses A pesquisa qualitativa em artes cénicas 133 de doutorado (2004-2006)’, revelou que no Programa de Pés- graduacao em Artes Cénicas (PPGAC), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), quase todas as pesquisas de vertente qualitativa empregaram dois tipos de método, 0 méto- do etnografico e 0 método de investigacao-acao. O método etnografico é o preferido pelos pesquisadores que querem conhecer um grupo espectfico cuja visio de mundo esta dotada de um significado peculiar. O método de investigacdo-acao é aquele indicado quando o pesquisador quer conhecer uma determinada realidade, mas, sobretudo, quer intervir, participando como coinvestigador em todas as etapas do processo da pesquisa. Ainda fazendo referencia 4 pesquisa acima mencionada, os instrumentos mais utilizados da pesquisa qualitativa nas disser- tagées ¢ teses de doutorado do PPGAC da Unirio gravitam em torno da observagao participante e da entrevista semiestrutura- da. Eu pude analisar que a maioria desses estudos levaram em conta duas técnicas muito valiosas: a triangulagdo de diferentes fontes de dados, de diversas perspectivas tedricas, de varios ob- servadores e de diferentes procedimentos metodolégicos, bem como, as gravacdes de video e de audio. O uso dessas técnicas permitiu observar e analisar os dados repetidas vezes e com a colaboragao de diferentes sujeitos da pesquisa. O que concretamente 0 pesquisador deve fazer para submer- gir e fazer revelar em um processo de observagao participante? A resposta a essa indagacao pode ser assim sintetizada: 0 pesqui- sador qualitativo deve tratar de responder as perguntas “quem’, “oque'’, ‘onde’, “quando”, “como” e “por qué” alguém realiza algo. Esse conjunto de indagagdes converge suas atividades para situ- arem os dados mais significativos que fornecerao a interpretagdo dos fatos e acontecimentos circunscritos no estudo investigado. Aanilise dos fatos e acontecimentos revela e anuncia a estru- tura ou padrao sociocultural de um sistema mais amplo no qual se insere porque podem ser considerados como imagens que re- fletem as estruturas dos grupos, como permanecem existindo e porque perpetuam a sua existéncia. 134 Pesquisa em artes cénicas Como as anotagées de campo nunca conseguem ser porme- norizadas, elas devem ser abreviadas € esquematizadas. Portan- to, convém aplicar o detalhe e a ampliagdo no mesmo dia ou no dia seguinte a fim de que nao perca a sua capacidade informati- va. Um modo pratico desse fazer consiste em gravar um amplo comentario, bem pensado, das anotagGes feitas. Essas anotacoes concretas ¢ situacionais se converterao em um testemunho real da honestidade e objetividade do estudo pesquisado. Assim sendo, a observacao constitui um procedimento empi- rico por exceléncia; consiste basicamente em fazer uso dos sen- tidos para observar os fatos, a realidade social e as pessoas nos seus referidos contextos cotidianos. Para que a observagao tenha validez no processo de pesquisa, ha necessidade de que tenha uma intengao precisa, seja ilustra- da com um objetivo determinado e seja orientada por um corpo de conhecimento. ‘Todavia, também ha limites que podem comprometer a ob- servagao e sao decorrentes da prépria projecaéo do pesquisador observador, principalmente em trés situagdes: 1. quando 0 observador confunde os fatos observados com a in- terpretacdo desses fatos; 2. quando ha influéncia do observador sobre a situagao obser- vada; 3. quando ha o perigo do observador elaborar generalizagées nio validas a partir de observagées parciais. No que diz respeito a entrevista na abordagem qualitativa, ela deve adotar 0 modo de um didlogo coloquial ou entrevista semiestruturada e deve ser complementada com outros proce- dimentos escolhidos em fungao da especificidade do objeto in- vestigado. A grande relevancia, as possibilidades e a significacao do di- dlogo como método de conhecimento dos sujeitos da pesquisa estao fundamentadas, principalmente, na natureza ¢ qualidade do processo de investigagao. A medida que o encontro avanga, a estrutura da personalidade do interlocutor comega a tormar for- A pesquisa qualitativa em artes cénicas 138 ma na mente do investigador; adquirem-se as primeiras impres- sdes com a observacado de seus movimentos; segue a audicdo de sua voz e depois a comunicagao nao verbal que € direta, imedia- tae de grande vigor na interagao face a face. Tudo isso conduz a uma ampla gama de contextos verbais por meio dos quais é possivel tornar nitido os termos, descobrir as ambiguidades, definir os problemas, evidenciar a irracionalida- de de uma proposicao, eleger os critérios de juizo e recordar os fatos necessérios. O contexto verbal permite motivar o interlocutor, elevar o seu nivel de interesse e colaboracao, reduzir os formalismos, os exageros € as distorgdes da realidade, estimular a sua meméria e dar-lhe a ajuda necesséria para explorar, reconhecer e aceitar as suas préprias vivéncias inconscientes. Em cada uma dessas possiveis interagdes pode se tomar a decisao da amplitude ou do estreitamento de como o problema deve ser pontuado; se uma questéo de estudo deve estar estrutu- radana sua totalidade ou permanecer aberta, bem como até que ponto uma possivel resposta ou solugao ha de ser insinuada. Nessa perspectiva, a entrevista passa a set uma arte; logica- mente, as atitudes que intervém nessa arte que constitui a entre- vista sao suscetiveis de serem aprendidas e ensinadas. O propésito da entrevista, na abordagem qualitativa, é obter descrigées do mundo vivido pelas pessoas entrevistadas a fir de se chegar a lograr interpretagées fidedignas do significado que os fenédmenos descritos assumem no contexto em que estado inscritos. Retomando uma questao reflexiva, a epistemologia qualitati- va esté fundamentada em um conjunto de princfpios que se arti- cula com as seguintes consequéncias metodolégicas: 1, Oconhecimento éresultante de uma produgao construtiva e interpretativa e nao constitui um somatério de fatos defini- dos pela verificagao imediata do momento empfrico. 0 seu cardter interpretativo é produzido pela necessidade de atri- buir sentido as express6es do sujeito estudado. A interpreta- gao € um processo no qual o pesquisador integra, reconstréi e 136 Pesquisa em artes cénicas apresenta em construgées interpretativas varios indicadores obtidos durante a investigagao que nao teriam sentido se fos- sem vistos apenas de modo isolado como simples constatagao empfrica. A interpretagao é um processo diferenciado que d4 sentido as manifestagdes do objeto de estudo e as relaciona com momentos especfficos do processo geral orientado para aconstrucao tedrica. 2, O processo de produgao do conhecimento nas ciéncias hu- manas e sociais é interativo. As relacdes investigador-inves- tigado em wm determinado contexto sao a condigao para o desenvolvimento do processo de pesquisa. A interagao é uma dimensio relevante para a efetivagao dos processos de pro- ducao de conhecimentos. A consideracao da interagdéo na produgao de conhecimentos autentica valor especial aos did- logos nos quais eles se estabelecem e€ nos quais os sujeitos da pesquisa se implicam emocionalmente e compromentem a reflexéo em direcao a um processo que produz informagoes de grande significado para a investigacao. 3. A significacdo da singularidade assume um cardter legitimo na produgao de conhecimentos. O conhecimento cientifico na abordagem qualitativa nao se legitima pela quantidade de sujeitos pesquisados, mas pela qualidade de sua expressdo. A informagao dita por um sujeito concreto pode converter-se em um momento significativo para a produgao de conheci- mento, sem que tenha de repetir necessariamente em outro sujeito, O ntimero de casos a ser considerado na pesquisa qualitativa tem a ver, sobretudo, com as necessidades de in- formaciio que vao sendo definidas no curso da investigagao. Esses trés pontos podem ser sintetizados em um tinico ponto que diz respeito & centralidade da ética na pesquisa que conver- ge para 0 sujeito. O sujeito é dimensionado como o eixo central da agao investigadora. Esse é 0 ponto que sintetiza a complexi- dade particular da pesquisa qualitativa. Se o campo do teatro e das artes cénicas constitui um campo de formagao de profissionais, de professores e de pesquisadores, e, portanto, envida esforcos em produzir os seus prdprios conhe- A pesquisa qualitativa em artes cénicas 137 cimentos pela intervengao do processo de pesquisa, bem como construir uma realidade a partir de seu proprio ponto de vista, torna-se imprescindivel a mediagao de um tipo de investigacao cuja visio h4 de permitir a aproximagao de um modo mais sig- nificativo da compreensao e explicagao da relagao sujeito-objeto que esteja na centralidade e fronteira de seu interesse. Referéncias bibliogrdaficas ARISTOTELES. Metafisica, S40 Paulo: EDIPRO, 2005. BERTALANFY, Ludwig von. 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