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Revista da Faculdade de diReito


da univeRsidade de lisboa
Periodicidade semestral
vol. lXii (2021) 1

LISBON LAW REVIEW

COMISSÃO CIENTÍFICA

christian baldus (Professor da universidade de Heidelberg)


dinah shelton (Professora da universidade de Georgetown)
ingo Wolfgang sarlet (Professor da Pontifícia universidade católica do Rio Grande do sul)
Jean-louis Halpérin (Professor da escola normal superior de Paris)
José luis díez Ripollés (Professor da universidade de Málaga)
José luís García-Pita y lastres (Professor da universidade da corunha)
Judith Martins-costa (ex-Professora da universidade Federal do Rio Grande do sul)
Ken Pennington (Professor da universidade católica da américa)
Marc bungenberg (Professor da universidade do sarre)
Marco antonio Marques da silva (Professor da Pontifícia universidade católica de são Paulo)
Miodrag Jovanovic (Professor da universidade de belgrado)
Pedro ortego Gil (Professor da universidade de santiago de compostela)
Pierluigi chiassoni (Professor da universidade de Génova)

DIRETOR
M. Januário da costa Gomes

COMISSÃO DE REDAÇÃO
Pedro infante Mota
catarina Monteiro Pires
Rui tavares lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha

SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo

PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de direito da universidade de lisboa
alameda da universidade – 1649-014 lisboa – Portugal

EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO


LISBON LAW EDITIONS
alameda da universidade – cidade universitária – 1649-014 lisboa – Portugal

issn 0870-3116 depósito legal n.º 75611/95

data: agosto, 2021


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ÍNDICE 2021

TOMO 1

M. Januário da Costa Gomes


11-17 editorial

ESTUDOS DE ABERTURA

António Menezes Cordeiro


21-58 vulnerabilidades e direito civil
Vulnerabilities and Civil Law
Christian Baldus
59-69 Metáforas e procedimentos: vulnerabilidade no direito romano?
Metaphern und Verfahren: Vulnerabilität im römischen Recht?
José Tolentino de Mendonça
71-76 sobre o uso do termo vulnerabilidade
On the Use of the Word Vulnerability

ESTUDOS DOUTRINAIS

A. Dywyná Djabulá
79-112 a dinâmica do direito internacional do Mar em Resposta à crescente vulnerabilidade
da biodiversidade Marinha
The Dynamics of International Sea Law in Response to the Increasing Vulnerability of Marine
Biodiversity
Alfredo Calderale
113-143 vulnerabilità e immigrazione nei sistemi giuridici italiano e brasiliano
Vulnerability and immigration in the Italian and Brazilian legal systems

Aquilino Paulo Antunes


145-168 covid-19 e medicamentos: vulnerabilidade, escassez e desalinhamento de incentivos
Covid-19 and drugs: Vulnerability, scarcity and misalignment of incentives
Cláudio Brandão
169-183 o gênesis do conceito substancial de direitos Humanos: a proteção do vulnerável na
escolástica tardia ibérica
Genesis of the substantial concept of Human Rights: protection of the vulnerable person in Late Iberian
Scholastic
Eduardo Vera-Cruz Pinto
185-208 direito vulnerável: o combate jurídico pelo estado Republicano, democrático e social
de direito na europa pós-pandémica
Vulnerable Law: The Legal Combat for the Republican, Democratic and Social State of Law in the
post-pandemic Europe

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Elsa Dias Oliveira


209-230 algumas considerações sobre a proteção do consumidor no mercado digital no âmbito
do direito da união europeia
Some considerations about the consumer protection in the digital market on the scope of the European
Union Law
Fernando Loureiro Bastos
231-258 a subida do nível do mar e a vulnerabilidade do território terrestre dos estados costeiros
Sea level rise and the vulnerability of the land territory of coastal states
Filipa Lira de Almeida
259-281 do envelhecimento à vulnerabilidade
From ageing to vulnerability
Francisco de Abreu Duarte | Rui Tavares Lanceiro
283-304 vulnerability and the algorithmic Public administration: administrative principles for
a public administration of the future
Vulnerabilidade e Administração Pública Algorítmica: princípios administrativos para uma
Administração Pública de futuro
Hugo Ramos Alves
305-339 vulnerabilidade e assimetria contratual
Vulnerability and contractual asymmetry
Isabel Graes
341-374 uma “solução” setecentista para a vulnerabilidade social: a intendência Geral da Polícia
A “solution” to the social vulnerability in the 18th century:The General Police Intendency
Jean-Louis Halpérin
375-404 la protection du contractant vulnérable en droit français du code napoléon à
aujourd’hui
A proteção do contraente vulnerável em Direito francês do Código Napoleão aos dias de hoje
João de Oliveira Geraldes
405-489 sobre a determinação da morte e a extração de órgãos: a reforma de 2013
On the Determination of Death and Organ Harvesting: the 2013 Reform
Jones Figueirêdo Alves
491-515 os pobres como sujeitos de desigualdades sociais e sua proteção reconstrutiva no pós
pandemia
The poor as subject to social inequalities and their reconstructive protection in the Post-Pandemic
Jorge Cesa Ferreira da Silva
517-552 a vulnerabilidade no direito contratual
Vulnerability in Contract Law
José Luís Bonifácio Ramos
553-564 Problemática animal: vulnerabilidades e desafios
Animal Issues: Vulnerabilities and Challenges

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Júlio Manuel Vieira Gomes


565-602 o trabalho temporário: um triângulo perigoso no direito do trabalho (ou a
vulnerabilidade acrescida dos trabalhadores temporários)
The temporary agency work: a dangerous triangle in Labour Law (or the increased vulnerability of
temporary agency workers)

TOMO 2

Mafalda Carmona
603-635 “Para o nosso próprio bem” – o caso do tabaco
“For our own good” – the tobacco matter

Marco Antonio Marques da Silva


637-654 vulnerabilidade e Mulher vítima de violência: aperfeiçoamento dos Mecanismos de
combate no sistema interamericano de direitos Humanos e no direito brasileiro
Vulnerability and Woman Victim of Violence: The improvement of the Fighting Mechanisms in the
Inter-American Human Rights System and Brazilian Law

Margarida Paz
655-679 a proteção das pessoas vulneráveis, em especial as pessoas idosas, nas relações de consumo
The protection of vulnerable people, especially the elderly, in consumer relations

Margarida Seixas
681-703 intervenção do estado em meados do século XiX: uma tutela para os trabalhadores
por conta de outrem
State intervention in the mid-19th century: a protection for salaried workers

Maria Clara Sottomayor


705-732 vulnerabilidade e discriminação
Vulnerability and discrimination

Maria Margarida Silva Pereira


733-769 o estigma do adultério no livro das sucessões e a consequente vulnerabilidade (quase
sempre feminina) dos inocentes. a propósito do acórdão do supremo tribunal de
Justiça de 28 de março de 2019
The adultery’s stigma in the Book of Succession Law and the consequent vulnerability (nearly always
feminine) of the innocents. With regard to the Portuguese Supreme Court of Justice Judgement of May
28, 2019

Míriam Afonso Brigas


771-791 a vulnerabilidade como pedra angular da formação cultural do direito da Família –
Primeiras reflexões
Vulnerability as the cornerstone of the cultural development of Family Law – First reflections

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Nuno Manuel Pinto Oliveira


793-837 em tema de renegociação – a vulnerabilidade dos equilíbrios contratuais no infinito
jogo dos acasos
On renegotiation – the vulnerability of contractual balance against the background of an infinite
game of chance

Pedro Infante Mota


839-870 de venerável a vulnerável: trumping o Órgão de Recurso da oMc
From venerable to vulnerable: trumping the WTO Appellate Body

Sandra Passinhas
871-898 a proteção do consumidor no mercado em linha
Consumers’ protection in digital markets

Sérgio Miguel José Correia


899-941 Maus-tratos Parentais – considerações sobre a vitimação e a vulnerabilização da
criança no contexto Parental-Filial
Parental Maltreatment – Considerations on Child Victimization and Vulnerability within the
Parental-Filial Context

Silvio Romero Beltrão | Maria Carla Moutinho Nery


943-962 o movimento de tutela dos vulneráveis na atual crise económica: a proteção dos
interesses dos consumidores e o princípio da conservação da empresa diante da
necessidade de proteção das empresas aéreas
The vulnerable protection movement in the current economic crisis: the protection of consumers interests
and the principle of conservation of the company in face of the protection of airline companies

Valentina Vincenza Cuocci


963-990 vulnerabilità, dati personali e mitigation measures. oltre la protezione dei minori
Vulnerability, personal data and mitigation measures. Beyond the protection of children

JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA

Maria Fernanda Palma


993-1002 o mito da liberdade das pessoas exploradas sexualmente na Jurisprudência do tribunal
constitucional e a utilização concetualista e retórica do critério do bem jurídico
The myth of the freedom of sexually exploited people in the Constitutional Court’s Jurisprudence and
the conceptual and rhetorical use of the criterion of the legal good

Pedro Caridade de Freitas


1003-1022 comentário à decisão da câmara Grande do tribunal europeu dos direitos do Homem
– caso Vavřička e Outros versus República Checa (Proc. 47621/13 e 5), 8 de abril de
2021
Commentary on the decision of the Grand Chamber of the European Court of Human Rights –
vavřička and others v. czech Republic case (Proc. 47621/13 and 5), 8th April 2021

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Rui Guerra da Fonseca


1023-1045 vacinação infantil compulsória – o ac. tedH Vavřička & Outros c. República Checa,
queixas n.ºs 47621/13 e outros, 08/04/2021
Compulsory childhood vaccination – ECHR Case of Vavřička and Others v. the Czech Republic, appls.
47621/13 and others, 08/04/2021

VIDA CIENTÍFICA DA FACULDADE

António Pedro Barbas Homem


1047-1052 doutoramentos e centros de investigação
Doctoral degrees and research centers
Christian Baldus
1053-1065 arguição da tese de doutoramento do Mestre Francisco Rodrigues Rocha sobre “da
contribuição por sacrifício no mar na experiência jurídica romana. século i a.c. ao
primeiro quartel do iv d.c.”
Soutenance de la thèse de doctorat du Maître Francisco Rodrigues Rocha sur “Da contribuição por
sacrifício no mar na experiência jurídica romana. Século I a.C. ao primeiro quartel do IV d.C.”
José A. A. Duarte Nogueira
1067-1078 Da contribuição por sacrifício no mar na experiência jurídica romana. Do Século I a. C.
ao primeiro quartel do IV d. C. (Francisco barros Rodrigues Rocha). arguição nas provas
de doutoramento (lisboa, 5 de Março de 2021)
the contribution by sacrifice on the sea in the Roman legal experience between the 1st century
bc. and the first quarter of 4th century ad, by Francisco Barros Rodrigues Rocha. Argument in
the Doctoral exams (Lisbon, March 5, 2021)

LIVROS & ARTIGOS

Antonio do Passo Cabral


1081-1083 Recensão à obra A prova em processo civil: ensaio sobre o direito probatório, de Miguel
teixeira de sousa
Dário Moura Vicente
1085-1090 Recensão à obra Conflict of Laws and the Internet, de Pedro de Miguel asensio
Maria Chiara Locchi
1091-1101 Recensão à obra Sistemas constitucionais comparados, de lucio Pegoraro e angelo Rinella

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Sobre o Uso do Termo Vulnerabilidade


On the Use of the Word Vulnerability

José Tolentino de Mendonça*

Resumo: Reflecte-se no presente texto sobre Abstract: in the presente writing we reflect
o avanço e as hesitações em torno da palavra on the advances and hesitations about the
“vulnerabilidade” no discurso contemporâ- word “vulnerability” in the modern discourse,
neo, em particular nas encíclicas «laudatio in particular the encyclicals «laudatio si’»
si’» (2015) e «Fratelli tutti» (2020) do Papa (2015) and «Fratelli tutti» (2020) of the
Francisco. Pope Francis.
Palavras-chave: vulnerabilidade; pandemia; Keywords: vulnerability; pandemics; Pope
Papa Francisco; encíclica «laudatio si’»; en- Francis; encyclical «laudatio si’» (2015);
cíclica «Fratelli tutti». encyclical «Fratelli tutti» (2020).

Sumário: 1. introdução; 2. vulnerabilidade: um termo ainda instável?; 3. o mapeamento


das encíclicas; 4. a pandemia e o uso do termo vulnerabilidade.

1. Introdução

em «les mots et les choses», Foucault (1966) chamava a atenção para a im-
portância do subsolo epistémico da linguagem. de facto, como ajudou a ver, os
conceitos que moldam o espírito de uma época funcionam, no fundo, como «uma
grande rede», isto é, uma complexa engrenagem de representações, identidades,
ordenamentos, necessidades, desejos ou interesses1. nessa linha, ele sugeria uma
deslocação do foco de pesquisa, promovendo uma espécie de arqueologia desse
sistema de relações. quando uma palavra emerge ou desaparece do léxico de uma
época, quando ganha ou perde centralidade estamos perante um sintoma. nas
palavras podemos escavar, e Hamlet sabia-o, mais do que «words, words, words».

*
Poeta e escritor. cardeal da igreja católica. arquivista e bibliotecário da santa sé.
1
MicHel Foucault, Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines (Paris: Gallimard,
1966), 314.

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José tolentino de Mendonça

elas dão-nos acesso ao trabalho interno subjacente às várias estações da história e


às suas transições. uma única palavra, com os movimentos que lhe são inerentes,
pode dizer-nos tanto como uma inteira biblioteca.
este curto texto pretende realizar uma observação do avanço e das hesitações
que têm rodeado o uso do termo «vulnerabilidade» no discurso público con-
temporâneo, recorrendo ao exemplo das duas encíclicas do Papa Francisco, a
«laudato si’» (2015) e a «Fratelli tutti» (2020). neste caso concreto, a figura do
Papa pode ser de especial significado por se tratar de um protagonista reconhe-
cidamente empenhado em tornar visíveis e audíveis os temas que estão associados
à vulnerabilidade.

2. Vulnerabilidade: um termo ainda instável?

talvez seja de utilidade recordar que o termo vulnerabilidade tem uma origem
relativamente recente. Pertencentes àquilo que designaríamos como o campo
semântico de vulnerabilidade, a língua latina conhece o substantivo vulnus, o
adjetivo vulnerabilis e o verbo vulnerare. a palavra vulnerabilidade é-lhe desconhecida.
nas línguas modernas, as primeiras atestações datam apenas do século XiX e XX2
e, em vários casos, por contaminação com o discurso literário. Podemos assim
supor que, antes de existir como vocábulo, vulnerabilidade começou por descrever
uma experiência, sinalizando desse modo apenas casos concretos (os ditos vulneráveis
e as feridas correlativas), e só mais recentemente, por um processo de conceptualização,
se tem vindo gradualmente a fixar. com esta conceptualização ganhou uma
plasticidade e transversalidade maiores, que justificam, por exemplo, a evidente
fortuna do vocábulo em diversos âmbitos das ciências humanas. Mas o problema
da instabilidade terminológica não está resolvido. como recorda Marogna (2018),
«a noção, sujeita a várias tentativas de aferição por parte do debate filosófico, apre-
senta-se ainda fortemente indeterminada»3. as resistências à implementação do
termo são, podemos resumir, de duas orientações: uma que denuncia os efeitos
estigmatizantes que a designação pode fazer recair sobre os sujeitos, circunscre-
vendo-os a uma categoria centrada no problema e não na pessoa (daí a insistência
em que se distinga, por exemplo, a pessoa das situações de vulnerabilidade em que
se possa inscrever); e outra que vê na excessiva amplitude do termo uma declaração

2
veja-se a resenha histórica apresentada em GioRGia MaRoGna, “Alle origine (terminologiche) della
vulnerabilità: vulnerabilis, vulnus, vulnerare” in orsetta Giolo – baldassare Pastore, Vulnerabilità.
Analisi multidisciplinare de in concetto (Roma: carocci, 2018), 13-14.
3
MaRoGna, “Alle origine (terminologiche) della vulnerabilità: vulnerabilis, vulnus, vulnerare”, 14.

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sobre o uso do termo vulnerabilidade

de inutilidade para responder às necessidades concretas de grupos particulares, no


interior de contextos específicos4.

3. O mapeamento das encíclicas

a pesquisa lexicográfica aplicada às duas encíclicas do Papa Francisco permite,


é um facto, confirmar esta indeterminação. Mas não só: abre também perspetivas
de evolução que devem ser ponderadas. debrucemo-nos sobre o primeiro dos do-
cumentos. a «laudato si’» integra a linha das chamadas encíclicas sociais, remon-
tando-se assim à genealogia inaugurada pelo papa leão Xiii com a «Rerum
novarum» (1891), consensualmente considerada como o embrião da moderna
doutrina social da igreja. o século XX conheceu depois algumas encíclicas sociais
marcantes, como a «Pacem in terris» (1963) de João XXiii, a «Populorum Progressio»
(1967) de Paulo vi ou a «centesimus annus» (1991), de João Paulo ii. e o mesmo
papel histórico parece reservado a esta encíclica. Howard (2015) fala dela como
de um «evento sísmico»5 capaz não só de formular uma nova síntese da teologia
católica face à problemática ecológica, mas de contribuir para uma mudança de
mentalidade política e social. auspício que sai reforçado pela intensa receção crítica
que continua6. é curioso o aceno ao making of da encíclica «laudato si’» feito pelo
próprio pontífice, pois bastante revelador do potencial de viragem que lhe está
implícito. conta o Papa bergoglio:
«em 2007 teve lugar a conferência do episcopado latino-americano no
brasil, em aparecida. Fiz parte do grupo de redatores do documento final, e
chegavam propostas sobre a amazónia. eu disse: “Mas estes brasileiros, como
aborrecem com esta amazónia! o que tem a amazónia a ver com a evangelização?”.
eu era assim em 2007. depois, em 2015, saiu a Laudato Si’. Percorri um caminho
de conversão, de compreensão do problema ecológico. antes eu não entendia nada!
[...] quando comecei a pensar nesta encíclica, chamei os cientistas – um bom
grupo – e disse-lhes: “dizei-me coisas claras e comprovadas, não hipóteses, mas
realidades”. e eles trouxeram o que hoje vós ledes aqui. em seguida, chamei um

4
cf. elena PaRiotti, “Vulnerabilità e qualificazione del soggetto: implicazioni per il paradigma dei
diritti umani” in orsetta Giolo – baldassare Pastore, Vulnerabilità. Analisi multidisciplinare de in
concetto (Roma: carocci, 2018), 155.
5
daMian HoWaRd, sJ, “Laudato Si’: A Seismic Event in Dialogue between the Catholic Church and
Ecology” in thinking Faith (June 18, 2015).
6
cf. u.M. yañeZ (ed.), Laudato si’. Linee di lettura interdisciplinari per la cura della casa comune
(Roma: Gregorian & biblical Press, 2017); PeteR tuRKson, “La ricezione dell’Enciclica Laudato
si’ da parte delle differenti Conferenze episcopali” in antonianum 91 (2016), 1091-1096.

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José tolentino de Mendonça

grupo de filósofos e teólogos [e disse-lhes]: “Gostaria de fazer uma reflexão sobre


isto. trabalhai vós e dialogai comigo”. e eles realizaram o primeiro trabalho, depois
eu intervim. e, no final, fiz a redação conclusiva. essa é a origem...temos que
trabalhar para que todos percorram este caminho de conversão ecológica»7.
a conversão ecológica que Francisco propõe é bem mais do que um pragmático
«new green deal». trata-se de ultrapassar o modelo de pensamento antropocêntrico
e de compreender que tudo na criação está em sistémica relação. a situação do ser
humano não pode ser perspectivada sem ter em conta a vulnerabilidade do planeta.
«tudo está interligado. Por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente,
unida ao amor sincero pelos seres humanos»8. ora, propondo-se o Papa traçar um
diagnóstico das patologias do presente, no que a este binómio diz respeito, poder-se-ia
esperar que um dos termos mais frequentes fosse «vulnerabilidade». de facto, o
campo semântico da vulnerabilidade está amplamente representado, seja na
recorrência dos termos débeis/debilidade (18x), «ferido/feridos» (6x), «frágil/frágeis/
fragilidade» (15x) e, sobretudo, na designação «pobre(s)/pobreza» (58x).
«vulnerabilidade» não comparece. apenas, por uma vez, mas citando um documento
dos bispos norte-americanos, aparece o termo «vulneráveis», emparelhado com
pobres e fracos: «como disseram os bispos dos estados unidos, é oportuno con-
centrar-se “especialmente sobre as necessidades dos pobres, fracos e vulneráveis,
num debate muitas vezes dominado pelos interesses mais poderosos”»9.
cinco anos depois, quando o mundo está dramaticamente a braços com a
emergência da pandemia, o Papa volta a publicar uma encíclica e é, de novo, uma
encíclica social. a «Fratelli tutti» (2020) oferece a Francisco a oportunidade para
revisitar, em chave de atualidade e de maneira incisiva, temas centrais da doutrina
social da igreja: os direitos da pessoa humana, a cidadania, o bem comum, o
trabalho, os modelos de desenvolvimento, a destinação universal dos bens, a
construção da justiça e da paz, as migrações, o impacto da globalização, a regulação
económica, a reabilitação da política, a condenação do racismo, o avanço tecnológico,
os reptos que se colocam à informação na era digital, etc. como eixo agregador
da proposta da encíclica, bergoglio recupera uma categoria (ainda) sem estatuto
político e que vem sendo sistematicamente relegada. efetivamente, da tríade
liberdade, igualdade e fraternidade, as nossas sociedades integraram as duas primeiras,
mas deixaram de fora a fraternidade como se fosse uma questão estritamente

7
FRancesco, Discorso a un gruppo di esperti che collaborano con la conferenza dei vescovi di Francia
sul tema della Laudato Si’  (3 settembre 2020).
8
FRancesco, Lettera Enciclica Laudato Si’ sulla cura della casa comune (2015), n.91.
9
FRancesco, Lettera Enciclica Laudato Si’, n.52.

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sobre o uso do termo vulnerabilidade

privada, sobre o qual não é possível construir um consenso social. Mas, como diz
o Papa Francisco, sem a fraternidade e a amizade social, a visão da liberdade e da
igualdade correm o risco de se tornar inconclusivas e abstratas. o reconhecimento
da fraternidade é, por isso, uma das tarefas atuais mais prementes: «sonhemos
como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como
filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua
fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos»10. este
sonho pede um realista exercício de consciencialização dos obstáculos hodiernos
ao desenvolvimento da fraternidade universal. não admira que, também nesta
encíclica, o campo semântico da vulnerabilidade jogue um papel axial. Podemos
encontrar registos lexicográficos paralelos àqueles elencados na «laudato si’»:
débeis/debilidade (21x), «ferido(s)/ferida(s)» (35x), «frágil/frágeis» (16x), «pobre(s)/po-
breza» (57x). a novidade é que nesta encíclica, encontramos de forma mais explícita,
mesmo se não dominante, os vocábulos «vulneráveis» (3x) e «vulnerabilidade»
(1x).

4. A pandemia e o uso do termo vulnerabilidade

vale a pena reportar o passo da «Fratelli tutti» em que comparece o termo


«vulnerabilidade»:
«é verdade que uma tragédia global como a pandemia do covid-19 despertou,
por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja
no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que
ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos. Por isso, “a tempestade
– dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e
supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos,
os nossos hábitos e prioridades”»11.
não será um acaso, que o uso da palavra na encíclica retome o texto da homilia
do Papa num dos momentos mais dramáticos e simbólicos da experiência da
pandemia que nos assola e como que universaliza a perceção de vulnerabilidade.
Francisco pronunciou essa homilia na praça de são Pedro vazia, naquele março
que os contemporâneos não esquecerão. o Papa Francisco ousou aí habitar a vul-
nerabilidade. não ficou a falar da vulnerabilidade do mundo, como se estivesse
isento dela. na medida em que aceitou expor-se como mais um, emergiu com ca-

10
FRancesco, Lettera Enciclica sulla Fraternità e l’amicizia sociale (2020), n.8.
11
FRancesco, Lettera Enciclica sulla Fraternità, n.32.

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José tolentino de Mendonça

pacidade simbólica de representar a todos. escreve Rufini (2021), responsável pelo


dicastério da comunicação da santa sé, reportando-se a esse evento:
«o vazio da Praça e a oração do Papa. a sua chegada. o seu caminho sob a
chuva. o crucifixo que parece chorar. as nuvens no céu. os farrapos de luz. o
papa que reza. o som das sirenes que rompe o silêncio. o mundo inteiro que vê.
[...] a extraordinariedade do 27 de março está exatamente nisto. a sua capacidade
comunicativa nasce da verdade. o Papa estava só como qualquer um de nós. todos
sós diante de deus. todos unidos diante de deus. todos frágeis e nas suas mãos.»12.
a pandemia implodiu fronteiras geográficas, políticas, económicas e obri-
gou-nos a pensar a partir de referentes de totalidade. é verdade que a vulnerabilidade
é, antes de tudo, a nossa condição ontológica. como explica lévinas (1972), a
razão da nossa vulnerabilidade assenta no facto de não nos ser possível fecharmo-nos
por dentro: o ser humano é abertura. logo, a nossa pele está exposta à ferida (ao
vulnus). logo, a nossa abertura representa a nossa comum vulnerabilidade13.
contudo, esta vulnerabilidade é (ou era), como diz o Papa, mascarada de modos
muito desiguais.
em resumo, o uso do termo vulnerabilidade, mesmo por um ator fortemente
empenhado nesse domínio, como é reconhecidamente o Papa bergoglio, continua
a servir mais o enunciado fenomenológico14 da realidade que uma precisão lexical.
Mas, também por isso, será interessante verificar o impacto da pandemia no destino
do vocábulo «vulnerabilidade» e como continuará este a história da sua aplicação.

12
Paulo RuFini, “Cosa è successo il 27 marzo a Piazza San Pietro” in FRancesco, Perché avete paura?
Non avete ancora fede? (città del vaticano: libreria editrice vaticana, 2021), 19.21.
13
cf. eMManuel lévinas, Humanisme de l’autre homme (Montpellier: Fata Morgana, 1972).
14
cf. lauRa caPantini – MauRiZio GRoncHi, La vulnerabilità. I semi teologici di Francesco
(Milano: san Paolo, 2018), 8.

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