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DE POUQUINHO EM POUQUINHO SE CHEGA A UM MONTE,

MAS QUÃO POUCO DE POUQUINHOS FORMA UM MONTE?

M. R. Pinheiro
(Po Box 12396, A'Beckett st, Melbourne, VIC, AU, 8006)

1. Introducão

Primeiro era o vazio.


Uma mulher veio e jogou um pouquinho de areia no vazio.
Acenderam-se as luzes e o homem viu que o vazio se tornara uma superfície que possuía
uma parte coberta por fina camada de areia.
A mulher então perguntou:
- Ô João, é a isto que chamam monte?
- Não, Maria, tenho certeza de que `monte’ é outra coisa.
A mulher, inconformada com a resposta, trouxe mais um pouquinho de areia e jogou a
porção sobre a fina camada que já lá estava. Olhou então, com olhar indagador, para o
homem.
- Não, Maria, ainda não é um monte!
A mulher, desta vez, vai em disparada pegar outro pouquinho de areia e joga a porção
sobre o resto que lá jazia.
- Não, Maria, ainda não é um monte, mas está quase lá!
A mulher pega um bocado mais de areia, armazena tudo num saco, senta de frente para a
superfície e para o homem, mira bem nos olhos do homem e começa a adicionar um grão
de areia por vez à quantidade de areia sobre a superfície.
- Ó Maria, o que estás fazendo?
- Disseste-me que estava quase virando um monte. Se eu acrescentar um grão de areia por
vez, tenho mais chance de não passar do ponto.
- Estás louca?
- Preciso saber quanto de areia forma um monte!

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- Como vou poder falar-te isto?
- Se eu for de grão em grão, saberás me dizer.
- Ai, Maria, estás me matando do coração. Não tenho a menor idéia de quantos grãos de
areia são necessários para dizermos `monte’ e, ainda se tivesse, tenho certeza de que outra
pessoa, diferente de mim, poderia te dizer outra coisa.
- Mas não existe definição para `monte’?
- Existe, Maria, mas a definição não é precisa a ponto de nos dizer qual é a quantidade
mínima de grãos de areia encontrada nos objetos que os estudiosos da língua portuguesa
classificaram como membros legítimos do conjunto semântico associado ao termo
'monte'.
- E isso, mesmo assim, pode ser chamado 'definição'?
- Sim, em um sentido... .
- Nesse caso, João, não consigo entender como é possível que os seres humanos usem o
termo 'monte' e a comunicação, ainda assim, ocorra.
- Simples: Todo mundo aceita o uso do termo feito por outras pessoas.
- Mas, nesse caso, fica muito difícil decidir se `isto é um monte’ é uma sentença
verdadeira ou falsa ainda que saibamos a qual objeto a mesma se refere.
- Exatamente. É isso. A língua humana em muito difere da língua matemática: Enquanto
a linguagem humana foi criada apenas para que os seres humanos pudessem comunicar
seus pensamentos uns para os outros de modo instantâneo, a linguagem matemática foi
criada para que os seres humanos pudessem comunicar seus progressos lógicos de
maneira universal, de modo que os seres humanos pudessem ler a comunicação de outros
seres humanos muitos anos mais tarde e, ainda assim, entender perfeitamente
('perfeitamente' no sentido humano da palavra) o conteúdo da mesma.

2. O Sorites

Os parágrafos anteriores explicam, em detalhes, o problema cuja criação é associada, na


literatura, a Eubulides de Mileto.

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Filósofos de todo o mundo discutem o problema há anos sem chegar a solução definitiva
alguma.
O problema já foi até alvo de prêmio em dinheiro... .
Foi denominado Sorites (do grego `soros’, `monte’ em português).
Um dos maiores estudiosos do problema encontra-se na Austrália e chama-se Dominic
Hyde.
O doutor Hyde foi meu professor na 'University of Queensland' no ano de dois mil na
Austrália e ele foi o primeiro pesquisador de renome a admitir que eu resolvi o Sorites de
fato.
O problema, com data de quatrocentos anos antes de Cristo, foi incluído na literatura
científica sob a denominação genérica 'paradoxo'.
Podemos começar a descrever o problema dizendo que temos um punhado de areia que

não pode, de maneira alguma, ser chamado 'monte'. Assumindo que adicionar um grão

de areia a qualquer quantidade de areia que não possa ser chamada monte não pode fazer

a nova quantidade de areia merecer o nome 'monte', ou seja, que 'adicionar um grão de

areia não faz diferença', acabamos concluindo que ainda não temos um monte quando a

existência do monte é inegável, o que é absurdo.

Podemos também começar a descrever o problema dizendo que temos um punhado de

areia que deve, de maneira absoluta, ser chamado 'monte'. Assumindo que subtrair um

grão de areia de qualquer quantidade de areia que deva, de maneira absoluta, ser chamada

monte não pode fazer a nova quantidade de areia parar de merecer o nome 'monte', ou

seja, que 'subtrair um grão de areia não faz diferença', acabamos concluindo que ainda

temos um monte quando a existência do monte é inaceitável, o que é absurdo.

Em linguagem matemática:

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A(n,p): Um conjunto com n grãos de areia e a propriedade p.
p: Ser um monte.
q: Adicionar um grão de areia não faz diferença.

Sorites no sentido negativo ( ~ p )

{ A ( n, ~ p ), q } → A ( n+1, ~ p )
{ A ( n+1, ~ p ), q } → A ( n+2, ~ p )
{ A ( n+2, ~ p ), q } → A ( n+3, ~ p )
.
.
.
{ A ( m, ~ p ), q } → A ( m+1, ~ p ) para todo número natural m.
(→←)

A(n,p): um conjunto com n grãos de areia e a propriedade p.


p: Ser um monte.
q: Subtrair um grão de areia não faz diferença.

Sorites no sentido positivo ( p )

{ A ( n, p ), q } → A ( n-1, p )
{ A ( n-1, p ), q } → A ( n-2, p )
{ A ( n-2, p ), q } → A ( n-3, p )
.
.
.
{ A ( 1, p ), q } → A ( 0, p ).
(→←)

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Eis o paradoxo: Podemos, fazendo uso da mesma sequência de etapas, somente mudando
a ação de natureza matemática envolvida no problema, provar que uma mesma imagem é,
e 'ao mesmo tempo' não é, um monte.

3. Análise científica do problema

Os cientistas se interessam pelo problema provavelmente por causa da inegável


associação, nas mentes humanas (o aspecto visual da tradução faz com que a mente
humana se reporte ao processo matemático 'indução'), de uma das suas 'traduções'
matemáticas (a tradução descrita neste artigo) com o processo de inferência da lógica
moderna Modus Ponens.
Por causa da aceitação dessa escrita do problema como tradução genuína do mesmo,
tradução que ignora a natureza linguística do problema, os pesquisadores se sentem
inclinados a utilizar as ferramentas da lógica ou da matemática para resolvê-lo.
Tanto a matemática quanto a lógica humanas têm natureza computacional, mas a
linguagem humana não tem natureza computacional (se dizemos que algo tem então
estamos dizendo que a totalidade do algo tem).
A linguagem humana envolve vários elementos que não são de natureza computacional.
Nada que seja de natureza personalíssima, por exemplo, pode ser visto como
computacional, considerando, aqui, o sentido universal do termo 'computacional'.
O Sorites parece existir para nos lembrar de que há termos na linguagem humana que são
de natureza personalíssima e que, portanto, há termos na linguagem humana que devem
ser analisados através de instrumentos que não tenham natureza computacional no que
diz respeito a pesquisa científica.
A linguagem humana é, por assim dizer, HUMANA. Não há, nem nunca vai haver
máquina que possa usar a linguagem humana, em todo e qualquer momento, como o ser
humano normal usaria (o termo 'normal' foi usado aqui para excluir os casos como aquele
do portador da síndrome de 'Down', nos quais talvez o uso da linguagem humana por
seres humanos possa ser imitado por máquinas).

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Evidência sobre a impossibilidade das máquinas imitarem o ser humano normal com
perfeição em termos do uso da linguagem humana não está faltando (por exemplo, o
concurso de Turing ou o teorema da completeza de Gödel).
A linguagem humana é tão rica e diversificada quanto nós, seres humanos, somos.
Não conseguimos admitir um mundo chato, sendo possível até provarmos que, em tal
mundo, pouco seria criado. É como se aplicando o determinismo matemático ao mundo
real, que é estatístico, estivéssemos destruindo `a graça’, levando embora `o prazer’ de
viver, de forma que também não interessa a nós, seres humanos normais, ter o uso da
nossa linguagem limitado, por força, ao padrão da máquina.
Tendo em vista o exposto neste artigo, o Sorites pode ser usado pela ciência como uma
ferramenta a mais para ajudar na identificação dos termos não-científicos, por exemplo,
uma vez que os termos científicos devem ter interpretação unívoca sempre que possível,
mas não deve ser usado para nos dar razões para limitar o nosso uso da linguagem
humana, através de regras, à capacidade da máquina.
O Sorites é a prova pura de que a igualdade entre os seres humanos e as máquinas não
pode ser interessante para os seres humanos.
O Sorites é, basicamente, um sinal de 'proibido avançar' para quem se preocupa com
estudar a tradução da linguagem humana para a linguagem computacional.

4. Conclusão

O Sorites parece ser mais uma ferramenta para a análise de problemas científicos do que
um problema científico.
O que fez o Sorites parecer um problema científico, ao invés de mais uma ferramenta
científica, foi a tradução inadequada do problema para o que poderia facilmente ser
chamado de linguagem computacional.

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5. Bibliografia

• Hyde, D., “Sorites Paradox” in Stanford Encyclopedia of Philosophy [acessado no

dia trinta e um de outubro do ano de dois mil no endereço

http://plato.standford.edu/entries/sorites-paradox/].

• Pinheiro, M. R. “A Solution to the Sorites” in Semiotica, v. 160, pp. 307-326, v.

June/2006.

• Smarandache, F., "Invisible Paradox" in "Neutrosophy. / Neutrosophic

Probability, Set, and Logic". American Research Press, Rehoboth, pp. 22-23,

1998.

• Smarandache, F., "Sorites Paradoxes", in "Definitions, Solved and Unsolved

Problems, Conjectures, and Theorems in Number Theory and Geometry". Xiquan

Publishing House, Phoenix, pp. 69-70, 2000.

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