seminário
INTERNACIONAL
grotowski 2019:
uma cultura ativa
MARCA
ESCOLA DE TEATRO
ESTENDIDA
FUNDO CLARO
realização apoio
MARCA
ESCOLA DE TEATRO
ESTENDIDA
FUNDO ESCURO
O SEMINÁRIO INTERNACIONAL
GROTOWSKI 2019: UMA CULTURA ATIVA
OCORREU EM NOVEMBRO DE 2019.
CDD 792
CDU 792
SUMÁRIO
2
Apresentação
1
Professora Associada da Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), atuando no Departamento de Interpretação e no Programa de Pós Graduação em Artes
Cênicas (PPGAC); diretora do grupo Hanimais Hestranhos e atriz bissexta.
2
Doutorando no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); ator e professor de interpretação teatral.
3
mesa, convidamos, para escrever para esses anais, a recém doutora Priscilla Duarte e o
doutorando Luciano Mendes de Jesus.
É com alegria, então, que vemos aumentarem, desde 2009, também por conta
dessa rede de professores que esteve envolvida na construção desses e outros eventos
relacionados ao percurso de Grotowski, as pesquisas referentes ao trabalho do artista.
Nos últimos anos, também foram muitas as traduções para o português de livros
dedicados às investigações do artista polonês, sobretudo pelo esforço feito pela editora
É Realizações. Entre eles, livros escritos por companheiros de trabalho de Grotowski de
diferentes épocas, como Ludwik Flaszen3, James Slowiak e Jairo Cuesta4 e, mais
recentemente, François Kahn5. O aumento da publicação de obras em nosso idioma e,
também, o aumento das pesquisas universitárias - dissertações e teses - dedicadas à sua
obra não apenas mostram a importância que a obra de Grotowski continua tendo no
contexto brasileiro, mas também permitem que voltemos a ler, a estudar e a analisar os
textos do artista polonês e de seus colaboradores. Acreditamos ser necessário evitar
uma leitura mistificadora e/ou datada que, ao invés de contextualizar os conceitos e
práticas, revelando um Grotowski pesquisador, acaba por aplainar seus processos de
investigação, perdendo de vista perguntas e experiências que poderiam dialogar de
maneira intensa com o contexto da criação teatral e atoral brasileiras de hoje. A obra de
Grotowski faz parte de uma tradição que só pode existir enquanto transformação. Ela
3
FLASZEN, Ludwik. Grotowski & companhia: origens e legado. São Paulo: É Realizações, 2015.
4
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2013.
5
KAHN, François. O Jardim - Relatos e Reflexões sobre o Trabalho Parateatral de Jerzy Grotowski de
1973 a 1985. São Paulo: É Realizações, 2019.
4
se renova na medida em que é vista a partir de olhares e inquietações contemporâneas,
mas, por outro lado, pela radicalidade, profundidade e potencialidade dessa tradição
investigativa, ela também tem a capacidade de renovar esses mesmos olhares colocados
sobre ela. Traça-se, assim, uma via de mão dupla, onde não se sabe mais exatamente
quem sofre influência de quem. As leituras do trabalho de Grotowski serão tanto mais
ricas quanto buscarem seguir e compreender as transformações na pesquisa do artista
polonês, não querendo, a todo custo, encontrar uma unidade definitiva ou uma essência
para aquilo que esteve em permanente movimento. A aventura de Grotowski é tão mais
interessante quanto menos procuramos certezas, e quanto mais nos deixamos
interrogar (ao interrogá-lo).
***
5
Cosmo”6. O artista concebia, assim, o teatro como um “ato de conhecimento”, princípio
fundamental do teatro de Grotowski não só naquele período, mas, como propõe Sabino,
de “toda a sua prática”. Para Sabino, o ponto de encontro entre a filosofia e o ritual,
nesses primeiros anos da produção de Grotowski, está vinculado a uma determinada
noção de espiritualidade. Retomando Foucault7 e Hadot8, o pesquisador nos lembra que
boa parte daquilo que entendemos por filosofia antiga está, na realidade, fortemente
baseado nos exercícios espirituais. Esses que, para além do sentido religioso, integravam
toda uma cultura do “cultivo de si”. Enquanto prática de conhecimento, os exercícios
espirituais compunham um “modo de vida” que englobava princípios e práticas que,
hoje em dia, diriam respeito aos campos da filosofia, da ciência, do rito, da arte e da
política. Além de dedicar-se àqueles primeiros anos das investigações de Grotowski,
Sabino vai mostrar como, ao longo do tempo, as ideias de ritual e mistério foram
reavaliadas, retrabalhadas e, em alguns casos, até mesmo abandonadas por Grotowski.
O pesquisador considera, entretanto, que apesar das diferentes abordagens, a relação
entre teatro e ritual, para Grotowski, entende a arte não como um lugar de fruição
estética ou de mero entretenimento, mas como um meio de aproximação radical com
as “necessidades da vida” do homem;
6
GROTOWSKI, Jerzy. Il teatro e l’uomo cosmico. In: __________. Testi 1954-1998. Vol. 1 – La possibilità
del teatro (1954-1964). Florença: La casa Usher, 2015. p. 137.
7
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France. São Paulo: Editora
WMF - Martins Fontes, 2010.
8
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.
6
também teve um papel fundamental no desenvolvimento daquelas experiências atorais
que resultaram nas noções de Ato Total e organicidade: “toda a ação cênico-sonora
nascia do silêncio e a ele voltava, numa ordenação cíclica que colaborava com o princípio
da organicidade - presente não apenas no corpo do ator, mas também no corpo do
espetáculo”. E, nas fases pós-teatrais, o autor afirma que a dimensão da escuta e da
percepção teria ganho ainda maior protagonismo, citando, como exemplo, no final dos
anos 1970, o princípio gnóstico do “movimento que é repouso”, presente no evangelho
apócrifo de Tomé e em certos textos do yoga tibetano, que passou a ser para Grotowski
uma espécie de orientação prática de trabalho. Para Jesus, a relação aparentemente
paradoxal entre “movimento e repouso” inclui também a dimensão sonora, podendo
ser lida, nesse sentido, como “som e silêncio”. Jesus afirma, por fim, que embora o
artista polonês se nutrisse de princípios de diferentes tradições espirituais, sua
experimentação foi sempre muito pragmática, baseada na efetividade das técnicas
dessas tradições sobre os processos psicofísicos do atuante. Assim, para o autor, o
silêncio e a escuta podem ser vistos como “parte das tecnologias orgânicas” sobre as
quais Grotowski trabalhou, e cujo legado continua a mobilizar as investigações atuais do
Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, tanto no que tange ao trabalho do
ator, quanto na composição dos espetáculos – Jesus faz essa última constatação
também a partir da experiência que teve como integrante do Open Program, dirigido
por Mario Biagini;
7
(Open Program - Workcenter), destacou-se para a pesquisadora a importância de
detectar no comportamento do ator aquilo que bloqueia ou libera a sua
espontaneidade. Processo que, conforme observa Magalhães, aparecia no trabalho de
Grotowski, sob a perspectiva da “via negativa”, enquanto eliminação dos obstáculos que
impedem as reações vivas do ator. E foi, por fim, durante as práticas conduzidas pelo
professor André Magela (UFSJ), que a pesquisadora percebeu, diante de seus próprios
bloqueios, a necessidade de desafiar a si mesma, a fim de interromper o fluxo das ideias
e reações conhecidas, para um agir que se desse de modo mais espontâneo.
Posteriormente, a importância deste lugar de iminência da ação foi reforçada durante a
participação da pesquisadora na residência artística “Caminhos do silêncio”, conduzida
pelo ator e diretor francês François Kahn. Conforme relata, ali o silêncio lhe permitiu
perceber, de modo ainda mais evidente, que o trabalho sobre contatos, impulsos e
ações seria, antes de tudo, um trabalho sobre a percepção, principalmente no que diz
respeito à atenção e à escuta. A partir de tais experiências e do estudo das proposições
de Grotowski, Magalhães conclui que o nascimento do impulso passa pela permanência
do ator num certo lugar de liminaridade, uma zona de indeterminação que, baseada nos
desafios e tarefas que podem modificar suas qualidades de percepção, visa interromper
o automatismo de suas reações e dar espaço àquelas não antevistas e/ou não
padronizadas. Na contramão do espírito dos nossos tempos, a noção de “corpo limiar”,
segundo Magalhães, é um convite para habitar o corpo sem pressa, na dúvida e na
ambiguidade, para reencontrar sua própria sensibilidade e, através de tal processo,
empenhar-se num tipo de “refazimento de si mesmo”;
Silvana Baggio Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, relata seu
próprio processo de aprendizagem no “trabalho sobre as ações físicas”. A escrita da
experiência de Ávila ganha sentido a partir do relato das falhas e dificuldades
encontradas pela atriz e pesquisadora, bem como das estratégias que utilizou diante das
mesmas, ao longo de sua trajetória. Ela identifica, por exemplo, que já nas etapas iniciais
de sua formação, o apego à forma exterior de uma estrutura de ações lhe impedia de
direcionar sua atenção para as intenções, associações e contatos que permitiriam um
fluxo vivo de reações. O que decorria, conforme observa, de uma “dominação da mente
discursiva” sobre o processo de criação. Citando Richards9, a pesquisadora esclarece
que, através de tal mecanismo, o ator corre o risco de reduzir suas percepções aos
limites do já conhecido, deixando de perceber as coisas diretamente e condicionando
seus modos de agir aos sentidos antevistos. Foi a partir das experiências vividas em
workshops liderados por Mario Biagini, bem como da leitura de seus textos, que Ávila
percebeu, no seu próprio corpo, que o trabalho sobre uma estrutura de ações se
desenvolve sempre na relação entre “aquilo que é consciente e corresponde à vontade",
9
RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012.
8
como as intenções e os elementos de contato, e “aquilo que não está na esfera da
vontade consciente” e que diz respeito ao modo como essas intenções e contatos
atravessam o corpo, o espaço e os parceiros produzindo novas percepções e reações a
cada repetição da estrutura. Nesse sentido, Ávila compreende que o trabalho do/a
ator/atriz é também um processo de conscientização de sua “vida interior”, que deve
implicar, consequentemente, um esforço pessoal para lidar com os impedimentos que
se apresentam diante desse “território desconhecido”. Recuperando os relatos de
experiência de Toporkov, ela relembra que, desde Stanislavski, o “trabalho sobre si
mesmo” pressupõe uma educação interior do ator e uma coragem de apaixonar-se pela
ação – e, portanto, pelas leis da “natureza criadora” – que é “volitiva” e não apenas
racional. Assim, Ávila considera que a “disciplina interior e pessoal”, apontada sob
diferentes formas nos escritos de Stanislávski, Toporkov, Grotowski, Biagini e Richards,
é essencial não apenas ao desenvolvimento técnico do ator, mas também à liberação de
sua natureza criativa;
9
nos a uma leitura não “metodologizante” da questão da “memória” nas pesquisas do
artista;
10
GROTOWSKI, Jerzy. Projet d’Enseigment et de Recherches – Antropologie Théâtrale. (Arquivo de
Mario Biagini. Cedido à pesquisadora Tatiana Motta Lima). 1995
10
das aulas do Collège de France é a noção de corpo. Em sua dimensão não apenas física,
mas no complexo organismo que envolve a mente, o sensível, a memória e os
comportamentos, o corpo é abordado através das questões artesanais do ofício - seja
no teatro, ou no ritual – que concernem, segundo Grotowski, às duas extremidades da
cadeia das performing arts: as artes espetaculares e a arte como veículo;
***
11
HAN, Byung-Chul. O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Tradução de
Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2016.
12
mesma questão aos admiradores de Grotowski. Organizar esse seminário e seus anais é
parte do esforço de responder negativamente àquela pergunta, de avançar na
compreensão do pensamento-prática de Grotowski. Será preciso um gosto pelo estudo
continuado, pela crítica, pela análise, pela contextualização, pela percepção de que
existem múltiplos modos de experienciar o mundo; será necessária a capacidade de
assombrar-se com esse “outro” que foi Grotowski e que está presente também em seus
textos. Só poderemos chamar atenção para um Grotowski pesquisador se, estudiosos e
artistas, tivermos o gosto pelos processos criativos e não estivermos apenas em busca
de procedimentos produtivos. Assim, é com felicidade que apresentamos as conclusões
parciais de pesquisa desses mestres, doutorandos e recém doutora que estão fazendo
um esforço para sair das primeiras ideias e imagens, para sair do senso comum que
envolve a obra de Grotowski em uma aura dogmática, subjetivista e/ou religiosa.
Vamos, então, aos textos!
13
SABINO, Thiago Miguel. Do teatro filosófico ao Mistério: Apontamentos sobre relações
entre cena e ritual em Jerzy Grotowski. São Paulo: Instituto de Artes, UNESP. Programa
de Pós-Graduação em Artes. Doutorando. Orientadora: Profa. Dra. Marianna Monteiro.
RESUMO: O artigo analisa a relação entre teatro e ritual no início do trabalho artístico
de Jerzy Grotowski através do estudo dos textos do artista produzidos entre os anos de
1958 e 1960. Busca-se apresentar o modo como Grotowski compreendia o ritual e os
motivos da sua adesão a tal modelo para pensar a cena. Para compreender tais motivos,
enfatiza-se o período anterior a estreia de sua primeira peça junto ao Teatro das 13 Filas,
o espetáculo Orfeu. Se é verdade que diferentes perspectivas de ritual religioso
resultaram em práticas teatrais distintas, cabe destacar também que as concepções de
Grotowski sobre ritual foram influenciadas pelos modos como o artista pensava o fazer
teatral. Assim, busca-se compreender as práticas e projetos iniciais de Grotowski,
situando-as no encontro de diferentes campos, como arte, filosofia e religião.
ABSTRACT: This paper analyses the relationship between theater and ritual at the
beginning of Jerzy Grotowski’s artistic work. The study investigates texts by Grotowski,
produced between 1958 and 1960. The purpose is to present how Grotowski
understood ritual and the reasons for adopting this model to conceive his scene. In
order to comprehend these reasons, the paper emphasizes the period before the
premier of his first play with ‘Theater of Thirteen Rows’, Orpheus. If it is true that
different perspectives of religious rituals resulted in different theatrical practices, it is
also pertinent to highlight that Grotowski's conceptions about ritual were influenced by
his own views on theater practice. Thus, the present work seeks to understand
Grotowski's initial practices and projects, placing them in the encounter of different
fields such as art, philosophy and religion.
KEYWORDS: Jerzy Grotowski; ritual theater; spirituality.
Introdução
14
maneira laica; e a conjuntos de procedimentos marcados pela capacidade de agir de
modo transformador sobre as pessoas.
Ao longo das montagens criadas entre 1959 e 1969, as cenas do Teatro das 13
Filas - posteriormente, Teatro Laboratório - se configuraram de forma bastante diversa.
Um dos principais mobilizadores dessas mudanças foi a noção de rito, encarada pelo
artista sob múltiplas perspectivas. Devido a uma série de limites encontrados na
aproximação com a noção de rito, Grotowski chegará, num determinado momento, até
mesmo a abandonar essa referência explícita. Dessa forma, estudar a obra de Grotowski
nos permite pensar inúmeras possibilidades de aproximação entre rito e arte. Ademais,
o percurso de Grotowski é marcado por autocríticas do artista, por mudanças radicais
de rotas e de experimentos, por revisões, por sucessos e, sobretudo, por “fracassos” –
a partir dos quais se extraem reflexões sob variados pontos de vista sobre o mesmo
problema. Apresentaremos aqui apenas alguns apontamentos sobre as primeiras
noções e ideias de Grotowski acerca da relação cena/ritual, retomando alguns estudos
já realizados sobre o período do Teatro dos Espetáculos13. Busca-se entender, assim,
como e porque se deu o “surgimento” da noção de rito em sua obra, analisando alguns
textos anteriores às primeiras referências do artista a tal noção.
12
O longo período de trabalho de Grotowski pode ser dividido nas seguintes fases (ainda que com algumas
divergências de datas): “Teatro dos espetáculos” (1959-1969); “Parateatro” (1969- 1978); “Teatro das
Fontes” (1976-1982); “Objective Drama” (1983-1986); “Arte como Veículo” (1986-1999) (CUESTA;
SLOWIAK, 2013, p. 9)
13
Refiro-me ao trabalho de Tatiana Motta Lima (2012), Palavras Praticadas: o percurso artístico de Jerzy
Grotowski, 1959-1974, que tem servido como base para estudos dessa fase de Grotowski, e a minha
dissertação de mestrado, na qual estudei especificamente a relação do ritual e espiritualidade nas
encenações de Grotowski (SABINO, 2016).
15
formulações discursivas. O que significa que os textos do diretor polonês decorriam de
sua experiência concreta relativa ao ofício do teatro. Seus termos eram, conforme
propõe Motta Lima (2012), “palavras praticadas”. No entanto, no início das atividades
do Teatro Laboratório (nome que substituiu Teatro das 13 Filas e com o qual o grupo
ficou mundialmente conhecido), havia palavras-projeto, palavras-intento, que deveriam
mobilizar as práticas. E, no início, estava a palavra “mistério” (FLASZEN, 2007, p.20).
14
Evidentemente que se trata de uma aproximação e analogia para pensar o teatro, Grotowski jamais
propôs um retorno de fato a (ou a criação de) um ritual. Em todo caso, estudar esse tipo de performance
pode auxiliar no entendimento sobre as propostas de Grotowski e nos desdobramentos possíveis de sua
pesquisa.
16
superar o “eu apreendido”. Trata-se, portanto, de um ato de conhecimento e uma
transformação de si.
Assim, Grotowski intenta elaborar uma arte que funcione como uma
contraproposta laica à religião, identificando elementos comuns no teatro e no ritual
que deveriam ser explicitados e desenvolvidos: “o teatro como um cerimonial coletivo”;
“um sistema de signos”; “espectadores como coatores” (GROTOWSKI, 2007, p. 41).
Evidentemente que Grotowski não pretendia retornar aos ritos antigos, nem criar um
ritual religioso no sentido literal. Devido a isso, e à constatação de que no teatro deveria
operar não a crença, mas o jogo de imaginação, bem como devido ao trabalho estético
que jogava com uma dialética da forma (grotesco, sublime, alegre, triste), esse rito laico
deveria ser uma espécie de Farsa-Misterium. Mistério, pois, segundo Grotowski, assim
eram chamadas as formas teatrais da antiguidade grega que funcionavam na “fronteira
do culto aos deuses”. Farsa, pois este é o gênero marcado pelo jogo, pela “brincadeira”,
17
pelo não sério. Farsa e mistério constituiriam, portanto, dois opostos daquele jogo
dialético das formas.
Se Grotowski escolhe a ideia de ritual e mistério para pensar seu teatro, pode-
se cogitar que a própria concepção que ele faz de “rito” tem sua origem em
determinados aspectos de um certo teatro valorizado pelo artista polonês. Esse ponto
é importante pois, se os textos relativos aos primeiros trabalhos no Teatro das 13 Filas
apresentam implícita ou explicitamente a referência ao ritual, isso não ocorria, ao
menos não da mesma forma, em textos e reflexões anteriores a estreia da peça Orfeu.
Um teatro “filosófico”
15
Trata-se da peça “Os deuses da chuva”, de Jerzy Krzyszton, dirigida por Grotowski no Stary Teatr,
Cracóvia, 1958.
16
As traduções da edição italiana dos textos de Grotowski (2015) são minhas.
18
experimento formal fortuito. Ao tratar de um espetáculo do mímico Marcel Marceau17,
Grotowski deixa claro sua visão sobre o desenvolvimento da mise-en-scène. Se a
autonomia da encenação é ressaltada, isso ocorre tendo em vista sempre o objetivo de
um teatro “filosófico” e sempre obedecendo aquilo que, para Grotowski, consistiria no
eixo do fazer teatral. Esse eixo seria constituído pelo entendimento: 1- de que o teatro
é a arte realizada ao vivo, no encontro entre espectadores e atores e nas possibilidades
de diálogo entre eles (pode-se encontrar tal ideia antes mesmo de textos como
“Possibilidade do teatro” ou “Farsa-Mistério”, destacando-se, por exemplo, o texto
“Morte e reencarnação do teatro”, de 1959); 2- De que o teatro seria um “Jogo de ação”.
Dessa forma, a experimentação formal da encenação deveria se desenvolver sobre esses
dois fatores. Na crítica sobre o espetáculo de Marcel Marceau, Grotowski salienta a
“objetividade” do cenário utilizado, o que podia ser entendido como uma “tentativa de
resolver o conflito entre a cenografia criativa, antinaturalista, e a exigência da cena, que
é, antes de mais nada, um ‘jogo de ação’ e não uma obra de arte visual autônoma”
(GROTOWSKI, 2015, p. 129). Esta exploração formal do cenário, e dos demais elementos
da cena, não pela dimensão estética visual apenas, mas pelo jogo e ação, pode nos levar
a pensar na utilização de objetos como em determinadas cerimônias rituais (eles têm
um porquê que não é apenas estético ou “visual”, mas assumem funções e significados
de acordo com as ações dos “sacerdotes” ou performers). Ademais, apesar de dialogar
com elementos da vanguarda teatral e da encenação autônoma, Grotowski, com essa
afirmação, parece se preocupar em distinguir o teatro que almeja de outras formas de
arte e dos espetáculos em voga naquele momento.
17
No texto “O mimo e o mundo”, publicado em 1959, Grotowski discorre sobre os esquetes do espetáculo
de mímica de Marcel Marceau, ao qual assistiu em Paris.
19
de continuidade e de transcendência da morte, necessidade tradicionalmente
trabalhada pelas religiões. Essa ideia de Cosmo, apresentada por Grotowski em um
sentido amplo, como “realidade material infinita”, “totalidade da natureza”, mesmo que
em constante movimento e transformação, segundo o artista, não estaria sujeita a ação
da morte. Essas ideias se apresentam em entrevista do então jovem artista em 1958, e
em textos de 1959 como “O teatro e o homem cósmico” e “A propósito do teatro do
futuro”. O “ato de conhecimento” que o teatro deveria propor teria relação com essa
percepção: a consciência humana não está separada da existência do mundo, do
Cosmos, e o “eu” individual seria uma ilusão. Esse talvez seja o ponto fundamental dos
objetivos almejados pelo teatro de Grotowski no período (talvez em toda sua prática?).
É uma história longa, mas vou tentar explicar em poucas palavras. A nós
interessa (digo “a nós” porque toda a companhia concorda com esse ponto
de vista, de outro modo a colaboração seria muito difícil), pois bem, a nós
interessa retornar a aquele período da arte no qual não havia uma distinção
entre “teatro” e filosofia, quando o teatro tinha uma dimensão não apenas
estética. Disso deriva a escolha do repertório. O texto existente deve ser
somente uma tela sobre a qual pintamos nossa atitude em relação à vida. Se
trata de uma atitude sem dúvida laica de colocar em discussão o
“existencialismo caseiro”. Não queremos continuar a “absurdidade da vida”,
20
nós vemos e queremos encontrar a esperança18 (GROTOWSKI, 2015, p. 172-
173).
Essa resposta, com sua dimensão filosófica, deveria se dar no diálogo com a
plateia, meio pelo qual o teatro poderia reencontrar sua força na sociedade. Grotowski
acreditava que o teatro encarado como uma arte de reprodução de “eventos vivos”,
realistas, constituiria um anacronismo sem esperança, frente o desenvolvimento e
avanço do cinema e da televisão (GROTOWSKI, 2015, p. 146). A possibilidade de o teatro
renascer seria por meio de uma nova “encarnação”, centrada no diálogo com o público,
uma vez que é a presença viva que faz do teatro uma arte distinta daqueles outros
meios.
Esse diálogo não deve ser entendido no sentido necessariamente verbal, mas
por meio da materialidade da ação cênica. Uma vez estimulado por diferentes
elementos formais (como o choque de convenções opostas, proposto nas cenas), o
espectador reagiria ao espetáculo. Ao longo do período de quase dez anos, nos
diferentes espetáculos de Grotowski haverá uma transição desse “diálogo” mais
sensorial para uma participação mais direta do espectador na cena, até chegar ao
posterior abandono de qualquer tentativa de “manipulação” do público.
18
È una storia lunga, ma cercherò di spiegarla in poche parole. A noi interessa (dico a noi perché tutta la
compagnia concorda con questo punto di vista, altrimenti la collaborazione sarebbe molto difficile),
ebbene a noi interessa tornare a quel período dell’arte in cui non c’era distinzione tra “teatro” e filosofia,
quando il teatro aveva una dimensione non soltanto estetica. Da questo deriva la scelta del repertorio. Il
texto esistente deve essere solo una tela sulla quale dipingiamo la mostra attitudine verso la vita. Si trata
di un'attitudine senza dubbio laica che mette in discussione l’ “esistenzialismo casereccio”. Non vogliamo
continuare l’“assurdità della vita”, vediamo e vogliamo trovare una speranza (GROTOWSKI, 2015, p. 172-
173).
19
[...] in una incarnazione che si fondi su forme dirette di dialogo tra la scena e la platea, un dialogo
concentrato intorno ai problemi fontamentali del destino umano, della ricerca del senso, della speranza,
dela liberazione dalla paura della morte (GROTOWSKI, 2015, p. 153).
21
Teatro como retorno a uma dimensão não só estética (mas “filosófica”);
diálogo direto com a plateia (e consequente participação desta); apelo a forma
antinaturalista, não mimética, mas teatral. Essas são as noções que vão desembocar no
modelo ou inspiração de um teatro ritual, e este entendido, em um primeiro momento,
como mistério.
Filosofia e ritual
20
Sobre esse tema das práticas espirituais, espiritualidade e a relação com a filosofia antiga ver Michael
Foucault (2010) e Pierre Hadot (2014).
22
qual a ascese da alma teria se desenvolvido fortemente e se difundido pela Grécia,
inclusive nas filosofias da antiguidade (CASORETTI, 2014). Da mesma forma, a vida órfica
implica um abandono dos valores recebidos e da educação formal que até então
estruturava o entendimento do indivíduo sobre si mesmo. De forma alguma pretendo
afirmar que Grotowski tinha qualquer intenção de associar suas práticas ao orfismo só
por ter escolhido uma peça cujo personagem principal era Orfeu. Ocorre é que tanto em
Grotowski, quanto em algumas tradições rituais e na filosofia antiga (e na religião órfica
de modo muito particular), podemos encontrar essa dimensão de “espiritualidade”
entendida como uma forma de acesso ao conhecimento e a transformação de si (“ato
de conhecimento” e superar o “eu apreendido”).
21
Ho dedicato grande attenzione alle tradizioni della moralità medievale europea – la suddivisione
semantica della scena, la scena simultanea, il dialogo direto tra scena e platea. A seguire: il teatro
orientale, e in particolare il teatro clássico cinese e indiano – la sinteticità del gesto e l’uso metaforico degli
oggetti di scena, l’estrema convenzionalità nell’uso dello spazio scenico (GROTOWSKI, 2015, p. 111).
23
do estranhamento, mas porque essas são nossas premissas artísticas 22
(GROTOWSKI, 2015, p 173).
A peça foi preparada com menos de três semanas de ensaios, com a sua forma
já predefinida por Grotowski (KUMIEGA, 1987, p. 19). Embora houvesse uma ênfase na
encenação e pouca exploração do trabalho atoral, havia uma grande precisão nas ações
e nas cenas, que eram formuladas como uma partitura musical.
22
[...] Non vogliamo continuare l’ “assurdità della vita”, vediamo e vogliamo trovare una speranza. Per
usarei l linguaggio del teatro, questa speranza si trova tra le due estremità della realtà: tra l’estremità
trágica e quella grottesca. Questo richiede un adattamento dei testi [...] Nei nostri spettacoli il pulsare
della forma ha luogo non tanto in funzione della diversità e della stranezza, ma perché queste sono le
nostre premesse artistiche (GROTOWSKI, 2015, p.173).
23
Jean Cocteau (1889-1963) foi um dos grandes artistas franceses do século XX: importante dramaturgo,
poeta, pintor e diretor de cinema, bastante ligado à estética surrealista.
24
acompanhada de uma música de rock, a figura da Morte é retratada como uma
dançarina de cabaré. A personagem Orfeu, por exemplo, enquanto realiza um monólogo
sobre a grandeza da poesia, come cenoura ralada. Ao final, a personagem título propõe
um brinde e profere um discurso, escrito por Grotowski - o texto “Invocação” (2007) -,
que é uma espécie de oração de agradecimento ao mundo que ressalta a ambiguidade
e a unidade, uma espécie de oração panteísta, cósmica. Aquela identificação com o
Cosmo e a desidentificação com o ego, que permitiriam aos homens e mulheres superar
a sua finitude, pode ser encontrada na Invocação final do espetáculo (impresso também
no programa da peça):
Conclusão
25
parateatrais. Finalmente, ele retorna ao “ritual”, já numa abordagem bastante diversa,
com a investigação sobre técnicas tradicionais, nos períodos do Teatro das Fontes e da
Arte como Veículo – cujo estudo escapa ao escopo do presente artigo.
Referências
26
___________. Testi 1954-1998. Vol. 1 – La possibilità del teatro (1954-1964). Florença:
La casa Usher, 2015.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.
KUMIEGA, Jennifer. The theater of Grotowski. Londres, Nova York: Methuen: 1985.
MOTTA LIMA, Tatiana. Palavras Praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski,
1959-1974. São Paulo: Perspectiva, 2012.
SABINO, Thiago Miguel. O teatro para além do teatro: espiritualidade e ritual em
encenações de Jerzy Grotowski. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes, São Paulo, 2016.
27
JESUS, Luciano Mendes de. Silêncio: um valor nas composições cênicas de Jerzy
Grotowski. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes/Universidade de São Paulo.
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Doutorando. Orientadora: Sayonara
Sousa Pereira. Bolsista CAPES. Ator, diretor, músico e professor, leciona na Escola Livre
de Teatro de Santo André e coordena a ação artística Ponte Elemento Per.
RESUMO: Este texto propõe uma reflexão sobre o silêncio como um aspecto central na
obra de Jerzy Grotowski: um fenômeno sonológico especial que se perde em meio ao
impacto das questões vocais presentes na pesquisa do artista, quer seja no período dos
espetáculos, quer seja no trabalho com os cantos de tradição abordados com maior
ênfase a partir da década de 1970. Em um diálogo com as observações que Ludwik
Flaszen fez sobre o sentido do silêncio na pedagogia e na criação de Grotowski,
proponho um “ponto de escuta” alternativo para pensar a articulação sonoro-musical
nos processos criativos do diretor e pesquisador polonês, considerando, para tal, a
perspectiva do espectador como ouvinte. Dessa forma, busco salientar o silêncio como
aspecto fundamental na obra de Grotowski, tanto no que tange ao trabalho do ator
quanto na composição das suas encenações. Cuja importância se observa, ainda hoje,
nas atividades do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.
PALAVRAS-CHAVE: ator-sonante; espectador-ouvinte; som-música; ressonância; ponto
de escuta.
ABSTRACT: This text proposes a reflection on silence as a central aspect in the work of
Jerzy Grotowski: a special sonological phenomenon that is lost amid the impact of vocal
issues present in the artist's research, whether in the period of the performances or in
the work with the traditional songs approached with greater emphasis since the 1970s.
In a dialogue with the observations that Ludwik Flaszen made about the sense of silence
in Grotowski's pedagogy and creation, I propose an alternative “listening point” to think
about the sound-musical articulation in the creative processes of the Polish director and
researcher, considering, for this, the perspective of the spectator as a listener. In this
way, I seek to emphasize the silence as a fundamental aspect in Grotowski's work, both
in terms of the actor's work and in the composition of his “mise-en-scène”. This
importance can still be seen today in the activities of the Workcenter of Jerzy Grotowski
and Thomas Richards.
KEYWORDS: actor-sounder; spectator-listener; sound-music; resonance; listening point.
O tanque morto.
Ruído de rã
submergindo.
(Bashô)
28
O silêncio é um campo que sustenta a qualidade de todo o processo de
experimentalidade na relação essencial entre corpo e som no conjunto de obras de Jerzy
Grotowski, quer teatrais, quer pós-teatrais.
29
suas palestras24, levando em conta o tipo de audiência que tinha diante de si e a
natureza dessa relação. Ele também buscava esta mesma qualidade de silêncio e escuta
no contato entre atores e espectadores em suas obras teatrais. A relação com cada
indivíduo presente era um valor real, levado em conta desde o início do encontro, como
ouvinte em particular, mesmo que num espaço coletivo, não simplesmente como uma
massa atenta, com uma escuta padronizada.
Flaszen (ibid., p. 234) narra que no início o silêncio era uma imposição
autoritária para atores e público, antes de ser uma conquista pela busca consciente do
seu sentido.
24
Tenho vívida memória auditiva do ambiente sonoro das palestras que proferiu em São Paulo em 1996,
no Simpósio Internacional Arte como Veículo, no SESC Consolação, de como as reações do público iam do
mais solene silêncio às ruidosas reações coletivas diante das polêmicas que surgiram nos debates sobre o
que faziam no Workcenter naquela altura.
30
A proximidade com os elementos da cultura oriental, sobretudo a indiana, pela
qual Grotowski se interessou, desde criança, e se manteve próximo até o fim da vida
(suas cinzas, conforme seu pedido, foram dispersas no monte Arunachala 25) – através
de estudos e práticas corporais, como o hatha yoga, e através de viagens e trocas (como
o contato com os Bauls26) lhe trouxe uma noção clara do valor e da substância energética
do silêncio. Flaszen destaca que nas situações em que a presença e a ação deveriam,
segundo Grotowski, estar em primeiro plano, o diretor constantemente reivindicava, de
modo determinado, por uma ausência do som. Nessa atitude, Flaszen identifica um
reflexo da própria busca de Grotowski por um silêncio interior (ibid., p. 235).
Paradoxalmente, ainda na visão de Flaszen, a busca pelo silêncio interior contrastava
com o homem de intensa ação exterior que era Grotowski.
25
O monte Arunachala é considerado um dos lugares sagrados mais importantes para a religiosidade da
Índia, tido por alguns como o coração do mundo, local milenarmente consagrado ao deus Shiva. Nele
residiu Ramana Maharshi, um iogue que exerceu profunda influência sobre o pensamento de Grotowski
em relação à função da arte. A questão principal colocada pelo iogue era que a única pergunta realmente
importante a ser respondida era “Quem eu sou?”. Seus ensinamentos eram transmitidos aos seus
discípulos em absoluto silêncio. Seu conhecimento chegou ao Ocidente através do livro “A Índia Secreta”,
de Paul Brunton, publicado em 1934, o qual foi lido pelo diretor polonês em sua infância.
26
Os Bauls são identificados como pequenos grupos, que podem ser integrados por homens e mulheres,
que viajam constantemente entre diferentes cidades e vilarejos realizando “celebrações-show” ao ar livre.
Sua manifestação devocional se dá através da música, e se exprime pelo canto, acompanhado de
diferentes instrumentos. Este movimento surgiu há cerca de 200 anos e o repertório de suas canções data
do século XV. Estas canções são consideradas pela UNESCO uma das obras-primas da herança oral e
imaterial da humanidade. Não possuem templos. Concebem como único lugar de culto o corpo, único
local onde creem poder ser encontrado Deus. Por isso, entendem a relação do homem com o sagrado
como uma ação direta, não mediada, ativada pela música, pela poesia e pela dança devocional. Os cantos
transmitem suas concepções sobre o sagrado e são ao mesmo tempo os veículos da realização do seu
processo de ascese espiritual.
31
pensamento, visando sempre o empirismo e a técnica pragmática. Não era “mambo
jambo”, chute de aprendiz de feiticeiro ou diletantismo.
Nascido não da busca de “efeitos mediante o cálculo frio” (ibid., p. 42, tradução
nossa), mas de uma lógica irrepreensível do organismo, o som (por mais elementar que
seja) e o silêncio são compreendidos como formas evidentes de comunicação em um
nível vital direto, sem a intermediação de qualquer forma de conceituação racional ou
esteticismo de linguagem. Isto também para além do valor meramente semântico das
palavras que componham a obra literária sobre a qual o espetáculo esteja baseado,
ainda que não se compreenda a língua no qual é realizado. O som e sua aparente
ausência, seu contrário, o silêncio, são ações literais, em si, sem filtragem poética,
apenas ajustadas, após sua concepção pelo trabalho criativo do ator, à tessitura lógica
da encenação.
Apenas para resumir o fim a que chegou esta atenção, de origem juvenil, em
relação ao silêncio, não me perdendo do principal ponto de escuta sobre sua obra,
ressalto o preceito prático que apareceu durante o Teatro das Fontes e que se
condensou, posteriormente, no Workcenter: ser simultaneamente movimento e
repouso.
32
É uma dialética – princípio fundamental de sua vida artística – que tem origem
nos textos antigos, especialmente nas fontes judaico-cristãs, e que está presente no
evangelho apócrifo27 de Tomé. É um conceito retirado de uma passagem onde Jesus diz:
“Se lhes perguntarem: - Qual é a evidência de seu Pai em vocês?, digam-lhes: - É
movimento e repouso" (TOMÉ, [s. d.]).
Para conectar com a proposta deste artigo transcrio estes termos para som e
silêncio. Dinâmica-chave que constitui o pensamento sonoro-musical de Grotowski. Som
e silêncio articulados linearmente na ação, no espaço e nas composições desses, no
tempo onde se imprime a montagem de significados. Som e silêncio verticalmente
organizados como camadas de afetos para uma escuta profunda que gere uma
experiência autêntica de presença no aqui-agora da performance e do encontro.
Camadas sutis onde som pode ser lido como “ser” e silêncio como “vazio”. Ou também
o contrário, som o “vazio” e silêncio o “ser”. Aspectos cambiantes que dependem dos
efeitos variáveis destas duplas operações nas pessoas do ator-sonante e do espectador-
ouvinte.
O modo como Grotowski lidou com o silêncio como um princípio para a criação
de situações onde a escuta atenta e aprofundada – uma escuta imediata – fosse uma via
de acesso para uma experiência potente para o corpo, a psique e os sentidos do
auditório, foi radical. Para Flaszen (2015, p. 236) o diretor “é um espécime especial nessa
confraria de silêncio no teatro e em seus environs (arredores)”.
27
Diferentemente dos evangelhos canônicos (Lucas, Marcos, Mateus e João) os apócrifos são os
evangelhos que não são reconhecidos pela Igreja Católica como fontes históricas e sacras oficiais sobre a
vida e obra de Jesus Cristo. O evangelho de Tomé consiste numa série de 114 aforismas ditos por Cristo e
a partir de reflexões sobre ele, com uma riqueza filosófica muito superior à doutrinária.
33
espetáculos. Buscava-se com isso isolar dois mundos: o das questões ordinárias
particulares e aquele onde o trabalho de investigação criativa era o centro. Com isso
buscava fazer emergir uma “higiene” sonora favorável à prática competente do ofício e
para a emersão do estado criador. Este ambiente de trabalho criativo seria
ecologicamente favorável, em termos acústicos, porque faria surgir, e destacaria, os
sons do diapasão potencial do atuante que fossem mais vibrantes de energia vital e
autenticidade, contra a domesticação social da natureza do corpo-voz e a imposição da
escuta rarefeita da urbanidade. Da mesma maneira, pela capacidade de se criar nesse
ambiente um espaço físico também vibratilmente vivo, não apenas pela exploração de
sua arquitetura, mas especialmente por suas possibilidades acústicas dentro dessa
arquitetura, capazes também de gerar reflexos no estado criador dos atores. Flaszen
(2015, p. 238) apresenta seu ponto de escuta sobre esta época: “O silêncio ali era
peculiar; não era apenas uma ausência de ruído, como em salas em que nada acontece.
Ao entrar naquele lugar, você podia escutar o silêncio – e os ruídos da cidade ao fundo
soavam como música concreta”.
Nada era contemplativo nesse silêncio, não tinha fundo ou fim místico, ainda
que se apropriasse de princípios de escolas do sagrado para tanto. Porém, era uma
apropriação de técnicas pragmáticas: escuta como ferramenta primária e silêncio como
ferramenta de precisão para se chegar o mais fundo possível na manifestação pura da
humanidade do ator em cena. Escuta e silêncio como parte das tecnologias orgânicas
que Grotowski operou.
28
Escuta coclear se refere ao processo natural da audição humana, que se opera dentro do sistema
auditivo, no ouvido interno, sendo a cóclea o local de conversão das ondas sonoras em impulsos elétricos
e por sua vez transformados pelo cérebro em cognição auditiva.
34
a partir destas suportado e criado, propagou-se aos espectadores-ouvintes, começando
em Akropolis. Flaszen notou que o fenômeno era latente nos trabalhos anteriores, mas
ainda indefinível. Tornou-se claro paulatinamente e com a montagem do texto de
Wyspianski manifestou-se de maneira impressionante. O impacto da experiência de
corporificação poética de Auschwitz gerou uma reação no auditório de desdomesticação
do comportamento naturalizado nos espetáculos. Alongar-me aqui nas memórias e
considerações de Flaszen é importante:
35
numa crítica ao comportamento institucionalizado das plateias de teatro ocidental das
grandes cidades, aponta que suas reações se mecanizaram como resultado de um teatro
moribundo. Ouvimos palmas imediatas e irrefletidas um segundo após o fim de
qualquer espetáculo. São como respostas automáticas. Um comportamento “bem
educado”, que muitas vezes reflete mais a impaciência com o que estava sendo
assistido, revelando-se, assim, a falta de uma relação real estabelecida entre cena e
audiência. As palmas, neste caso, são somente uma reação de liberação daquele
compromisso social/cultural enfadonho. O entretenimento termina e as palmas finais
corresponderiam ao apertar o botão off da televisão. O público raramente dá-se o
tempo para que um possível silêncio ocupe o espaço após o fim de uma obra teatral,
para que desse vácuo emerja uma reação instintual, sem polidez. Brook questiona o fato
de que o silêncio ou o bater dos pés no chão – ao invés das palmas formalizadas e dos
bravos institucionalizados - não surgem como respostas autênticas de um espectador
atravessado por aquilo que assistiu. Ele afirma que:
Experiências, como a que foi relatada acima, em Akropolis, geradas pelo visto e
escutado na zona liminar de cena e som da obra grotowskiana se adensaram nos
espetáculos seguintes, também estes cada vez mais sintetizados sobre os pressupostos
do “teatro pobre”. Qualidades muito fortes de silêncio e imobilidade também
aconteceram, segundo relatos de Flaszen, aos finais de O príncipe constante e
Apocalypsis cum figuris.
36
colaborador de Grotowski e pelas minhas próprias experiências de escuta e silêncio,
como (tele)espectador-ouvinte da sua obra performativa e ex-performer do Workcenter
of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, centro de pesquisa e criação onde deixou os
últimos ecos da sua prática, é que todos os possíveis silêncios se encontravam num
comum resultado. Este resultado era a catarse, a qual aludi no início deste texto. Uma
realocação imediata do nosso deslocamento do presente e da surdez de si mesmo
através da presença humana em performance viva, do corpo e sua interioridade, em
forma de imagens e sons arraigados no fundo do ser performante, e que pode se
arraigar, como experiência psico-corpórea integral, no espectador-ouvinte.
37
passado. O espírito hippie da época. Nas fases criativas seguintes de Grotowski, som e
silêncio continuarão sua movência. As acepções mudam, a escuta se transforma. Sua
postura diante do fenômeno sonoro-musical - da liberdade da voz ao silêncio eloquente
- destilada nos seus anos de trabalho como diretor, irá colaborar também na construção
da sua postura de “teacher of Performer” (GROTOWSKI, 2015, p. 2) e “espectador-
ouvinte de profissão”, nas novas etapas da sua trajetória artística.
Referências
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. São Paulo : Vozes Limitadas, 1970.
FLASZEN, Ludwik. Grotowski & companhia: origens e legados. São Paulo: É
Realizações, 2015.
GROTOWSKI, Jerzy. Hacia um teatro pobre. Cidade do México: Siglo XXI, 1970.
_________. Performer. [1988]. Revista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, p. 1-6, jul.
2015. ISSN: 2316-8102. Disponível em: https://performatus.net/traducoes/performer/
Acesso em: 10 mar. 2020.
JESUS, Luciano Mendes de. Quando até as paredes cantam: o som como experiência
na obra de Jerzy Grotowski. 2016. Dissertação (Mestrado em Processos de Criação
38
Musical) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2016. DOI: https://doi.org/10.11606/D.27.2017.tde-10032017-163729.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Ed. da Unesp, 1991.
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Publicações, 2013.
39
MAGALHÃES, Carolina de Pinho Barroso. Diálogos entre o Impulso, nas pesquisas de
Jerzy Grotowski, e a proposta de um corpo limiar, na busca por processos criativos
orgânicos e precisão cênica para além dos códigos. Ouro Preto. Universidade Federal
de Ouro Preto. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Mestrado. Orientador:
Ricardo Gomes. Bolsa FAPEMIG. Pesquisadora, preparadora corporal, atriz/dançarina e
performer, professora de expressão e técnica corporal do curso de Teatro do Centro de
Formação Artística e Tecnológica – CEFART, Fundação Clóvis Salgado29.
ABSTRACT: This article was written from memories that led me to the desire to conduct
a research on Jerzy Grotowski, as well as experiences, readings and questions that
followed this. Through these perceptions and the interest in experiencing this director's
experiences and discoveries in current creative processes, it seemed to me fundamental
to understand his notion of impulse. Based on it, I propose as a dialogue the idea of a
threshold body, which seems connected to the search for organic creative processes,
interested in a scenic precision beyond the codes. This article refers to my master's
research, carried out in the Postgraduate Program in Arts at the Federal University of
Ouro Preto, with support from the FAPEMIG scholarship, and therefore brings fragments
of it, reconfigured for this article.
KEYWORDS: impulse; body-memory; contact; threshold body; creative processes.
29
Atualmente, doutoranda na Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em
Artes, sob orientação de Fernando Mencarelli, bolsa FAPEMIG.
40
abismos, vivenciar o corpo em amor fati30, o inconsciente trazido à tona pela via da
corporeidade, a não segregação entre consciente e inconsciente, entre corpo e mente,
interessados na forma emergida do caos, com a precisão do que se faz necessário31,
imersos na sinceridade, no risco e na potência de vida em sua transitoriedade. É por
meio dessas vias que compreendo a necessidade e a existência política do fazer artístico,
e foram elas que me aproximaram da pesquisa desse diretor.
Inicialmente essa aproximação se deu por meio do contato com grupos, Cias e
pessoas que inspiravam seus trabalhos nas pesquisas de Jerzy Grotowski, como a Cia
Teatro Akrópolis, a Cia Zikizira Teatro Físico, a atriz/bailarina e Profª. Drª. Carla Andréa,
os criadores e Profs. Drs. Fernando Mencarelli (orientador de minha pesquisa de
doutorado, atualmente em processo), André Magela e Ricardo Gomes (orientador de
minha pesquisa de mestrado), e posteriormente com François Khan (ator e diretor que
trabalhou diretamente com Grotowski nas fases do Parateatro e do Teatro das Fontes)
e Graziele Sena (integrante do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, do
Open Program, núcleo dirigido por Mario Biagini, que foi colaborador e um dos
continuadores da pesquisa de Jerzy Grotowski).
A Cia Teatro Akropolis e a Cia Zikiria baseavam seus trabalhos nas pesquisas de
Grotowski e destacavam nele a noção de impulso como um elemento primordial. Deixar
passar os impulsos seria sair do automatismo dos gestos, entrar em desvelamento de si,
encontrar o desconhecido de si, e a repetição seria ali uma das vias para esse
aprofundamento.
30
Amor Fati refere-se a uma ideia do filósofo Friederich Nietzsche de amor ao destino trágico e entrega
ao presente da vida de modo a torná-lo o melhor possível. “Amor fati: seja este, doravante, o meu amor!
Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores.
Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas
alguém que diz Sim!” (NIETZSCHE, 2012, p. 276).
31
Ricardo Gomes, em uma de nossas orientações de Mestrado na qual conversávamos sobre minha busca
por uma precisão cênica para além dos códigos, me disse que a precisão, dentro das pesquisas de
Grotowski, vinha exatamente do que era preciso, no sentido de necessário.
41
sincera e precisa, sem excessos que não correspondessem às reais necessidades
daqueles contatos e das relações, que poderiam ou não se dar pelo toque. O trabalho
durou muitas horas e passou por algumas outras etapas, mas permanecia ao longo de
todo ele, a sugestão para que deixássemos o corpo agir a partir de suas reais
necessidades, sem premeditar ou racionalizar as intenções, sem camuflar, ou exagerar,
deixando-nos ser surpreendidos por nós mesmos e pelo outro a partir daqueles
contatos.
Algum tempo depois vivenciei uma oficina de Dança-teatro com a Profª. Drª. e
atriz/bailarina Carla Andrea Lima, onde, a meu ver, dialogavam princípios da dança
contemporânea, do Butoh e de suas pesquisas sobre o teatro de Jerzy Grotowski. Ao
realizá-la foi modificada em mim a percepção de algumas práticas que havia vivenciado
em aulas de dança contemporânea. Fui estimulada a estar presente nos mesmos
exercícios com um engajamento completo, que me levava a sentir uma maior intimidade
com as movimentações propostas e uma maior densidade de presença nas
experimentações. Deveriam estar presentes os impulsos, as ações corporais deveriam
ser precisas, espontâneas, e deveríamos envolver todo o corpo em cada ação. Lembro-
me da percepção de que “não era possível mentir ali”. Havia tido uma sensação de
desnudamento e revelação semelhante à que senti em uma disciplina de Expressão
Corporal direcionada ao curso de Comunicação Social, realizada em 2004, durante as
aulas do Prof. Dr. Fernando Mencarelli. Em uma de suas práticas, quase ao fim do curso,
o professor nos pediu que recordássemos de uma memória forte, dizendo que a mesma
não deveria ser representada, nem tampouco narrada, e que quem assistisse você
naquele momento não precisaria saber qual seria essa memória. Deveríamos recordar
com o corpo, deixar-nos ser afetados por aquela memória, perceber como o corpo
reagiu, e como reage hoje àquela memória, e dar passagem aos impulsos que surgiam
na relação com aquela memória.
Por meio daquela prática foi possível acessar revelações sobre nós mesmos e
sobre aquelas memórias, que pareciam encontrar-se até então inacessíveis. Nos
revelávamos um ao outro em um nível de profundidade que, até então, em um ano de
convívio cotidiano, ainda não havia sido possível naquele grupo.
42
Quando no teatro se diz: procurem recordar um momento importante da sua
vida e o ator se esforça por reconstruir uma recordação, então o corpo-vida
está como em letargia, morto, ainda que se mova e fale... É puramente
conceitual. Volta-se às recordações, mas o corpo-vida permanece nas trevas.
Se permitem que seu corpo procure o que é íntimo [...] nisso há sempre o
encontro [...] e então aparece o que nós chamamos de impulso
(GROTOWSKI, 2007, p.205-206, grifo meu).
43
sobre aquele “lugar de iminência”, espaço “intermediário”, ressaltado por André
Magela. Essa impressão era acentuada pela memória do texto de divulgação do
workshop da Companhia Teatro Akropolis, onde dizia que a Cia iria apresentar-nos sua
interpretação do treinamento físico do ator, por meio do “estudo do impulso como
origem de cada ação física, analisando a ação a partir do momento que precede sua
iniciação”32.
Estar atento(a) ao momento que precede cada ação, dar atenção aos lugares
de passagem entre elas, parecia, portanto, uma importante percepção a ser despertada
na busca pela escuta dos impulsos e pela organicidade. Essa impressão confirmou-se ao
longo das experiências vivenciadas durante a Residência Artística “Caminhos do
silêncio”, conduzida por François Kahn. Parecia nítida ali a importância dos impulsos, do
contato, da ação física, do corpo-memória, da organicidade e de outras “palavras
praticadas” – termo proposto por Motta Lima (2012a) – bem como importava
absolutamente o silêncio. O silêncio me parecia ser algo que trazia a percepção desse
espaço entre, dessa zona de liminaridade e de passagem, que facilitava o encontro com
as “palavras praticadas” e a experimentação das mesmas, para além das
superficialidades e de automatismos.
32
Texto presente no email de divulgação do workshop da Cia Teatro Akropolis.
44
A pesquisa acerca dos impulsos e de meios para desbloquear sua passagem foi
o marco inicial do interesse de Jerzy Grotowski por trabalhar sobre as subjetividades dos
atores e atrizes e para a busca por uma co-existência entre técnica e expressividade, ou
estrutura e espontaneidade. Conforme apontam Slowiak e Cuesta, “[...]impulso é um
dos conceitos mais importantes para o ator grotowskiano. Grotowski muitas vezes
afirmou que a maneira de perceber se o ator está trabalhando organicamente ou não é
determinar se está trabalhando no nível dos impulsos” (SLOWIAK; CUESTA, 2013, p. 102-
103).
45
talvez ainda desconhecidas, relacionadas à criação. Dessa maneira, para pensar em
processos criativos tendo como referência o trabalho de Grotowski se faz importante
realizar a seguinte pergunta: “[...] esse tipo de trabalho desenvolve os impulsos vivos do
corpo?” (GROTOWSKI, 2007, p. 164).
46
O ator apela para a própria vida, não procura no campo da “memória
emotiva”, nem do “se”. Dirige-se ao corpo-memória, não memória do corpo,
mas justamente ao corpo-memória. E ao corpo-vida. Então se dirige para as
experiências que foram para ele verdadeiramente importantes ou para
aquelas que ainda esperamos, que não vieram ainda. [...]. Estas recordações
(do passado e do futuro) são reconhecidas ou descobertas por aquilo que é
tangível na natureza do corpo e de todo o resto, ou seja, o corpo-vida. [...] E,
neste momento, se libera sempre o que não é fixado conscientemente, o
que é menos apreensível mas, de algum modo, mais essencial na ação física.
É ainda física e já pré-física. A isso eu chamo “impulso” (GROTOWSKI, 2001,
p.16, grifo meu).
Para tanto, torna-se importante descobrir o que é de fato necessário, não pelo
pensamento racional, mas por uma mente-corpo, que, como vimos anteriormente, é
capaz de ultrapassar os limites do já conhecido. Necessário não apenas ao personagem
(muitas vezes inexistente nessa via de trabalho), à obra, ao conceito ou à discussão, com
os quais se pretende trabalhar, mas às necessidades e afetos sinceros, que definem os
impulsos, do corpo-mente-espírito frente a elas. Grotowski procurava a ruptura com as
máscaras cotidianas: “O impulso do ator sem fingimento determinava imediatamente
47
aquilo que era preciso eliminar [...]” (GROTOWSKI, 2007, p. 191, grifo meu). Torna-se
possível, ao longo dessas práticas, aprender a diferenciar representações e
automatismos dos impulsos reais, que ocorrem a partir de sua verdade e necessidade:
“O teste de um impulso verdadeiro é se acredito nele ou não” (GROTOWSKI, 1992, p.
193, grifo meu).
A partir dessa entrega então abre-se a possibilidade de que ocorra “algo que
de tão pessoal se torna impessoal”, como comenta Ricardo Gomes em um de nossos
ensaios/orientações (diário de bordo da pesquisadora). “[...]Espero que fique bem claro
que é muito importante nunca fazer nada que não se harmonize com seu impulso vital,
nada de que não possam prestar contas” (GROTOWSKI, 1992, p. 162-163, grifo do
autor).
48
orgânicas. Desbloquear a passagem de seu fluxo de impulsos é um dos principais
aspectos de suas práticas.
Quais são os obstáculos que lhe impedem de realizar o ato total, que deve
engajar todos os seus recursos psicofísicos, do mais instintivo ao mais
racional? Devemos descobrir o que o atrapalha na respiração, no movimento
e – isto é o mais importante de tudo – no contato humano. Que resistências
existem? Como podem ser eliminadas? (GROTOWSKI, 1992, p. 180, grifo
meu).
49
bem como em estados e imagens, que surgem por meio delas. Grotowski acreditava que
a espontaneidade não seria possível sem a partitura, pois o processo de improvisação
constante poderia levar o(a) criador(a) a fugir das descobertas presentes nessas ações
e, sem essa definição e repetição, as mesmas poderiam perder-se no caos,
permanecendo, na criação, primordialmente momentos de superficialidade. “O ato do
ator compõe-se das reações vivas do seu organismo, da ‘corrente dos impulsos visíveis’
no corpo. Todavia, para que esse processo orgânico não se desvie no caos, é necessária
a estrutura que o canalize, a partitura composta do movimento e do som” (FLASZEN,
2007, p. 30).
50
Cada noite eu começo sem nada antecipar. É a coisa mais difícil de aprender.
Não me preparo para experimentar o que quer que seja. [...]. Quero somente
estar pronto para o que acontecerá. E eu me sinto pronto para aproveitar o
que acontecerá e me sinto seguro em minha partitura, se eu sei que, mesmo
quando não sinto quase nada, o vidro não se quebrará, que a estrutura
objetiva, trabalhada durante meses, me ajudará. Mas quando vem o
momento em que posso queimar, brilhar, viver, revelar, então estou pronto
porque não antecipei nada. A partitura permanece a mesma, mas cada coisa
é diferente, pois sou diferente (CIESLAK apud TAVIANI, 2015, p. 66).
[...] havia confundido a agitação dos nervos com emoções verdadeiras; havia
evitado o verdadeiro trabalho prático e havia tentado “bombear” um estado
emocional. Na sua conferência de Liége (1986), Grotowski disse:
Normalmente, quando um ator pensa nas intenções, pensa que se trata de
“bombear” um estado emocional dentro de si. Não é isso. O estado emocional
é muito importante, porém não depende da vontade. Não quero estar triste:
estou triste. Quero amar a essa pessoa: odeio essa pessoa, porque as
emoções não dependem da vontade. De maneira que quem tenta
condicionar as ações através dos estados emocionais cria confusão
(RICHARDS, 2005, p. 66).
51
subjetividades que surgem a partir deles? Pareceu-me, então, que a atenção àquele
espaço intervalar ressaltado por André Magela, estado entre “o que foi” e “o que pode
vir a ser pode ser”, que traz em si características do passado, e esboços do que ainda é
latente, do que está por vir, em suas possibilidades de dissolução de identidades e
condicionamentos, poderia ser um ponto importante de reflexão em tais processos de
criação. Grotowski diz: “O que eu poderia dizer eu já disse. O impulso vem antes da ação,
uma micro-ação, quando a ação, ainda, não é visível, mas já começou no interno do
corpo, está sob a pele” (GROTOWSKI apud MORAES, 2008, p. 94).
52
Porque muitas vezes o que chamamos de nossa reação, de nosso fazer mais
espontâneo, está misturado com a rapidez do pensamento-ação-mecânico.
Uma resposta rápida, primeira, aos estímulos, não significa necessariamente
uma resposta livre, ela pode ser exatamente a resposta habitual, padronizada
e muitas vezes romantizada. Então interromperíamos essa mecanicidade
percebendo que ela sim poderia operar outra interrupção não desejada ao
correr do fluxo. Essa mecanicidade também teria a ver com aquela rapidez
em ler e em nomear a experiência segundo certos padrões, como diz Quilici
“[…] no nascer de uma sensação e na maneira como ela é rapidamente
nomeada, classificada, trazida para o campo do já conhecido”. É por isso que
requer um gesto de interrupção: alguma coisa precisa se interromper para
esse mecanismo não acontecer inteiramente de forma desacordada,
dormindo 33 (MOTTA LIMA, 2012b).
[...] do mergulho nessa ausência, nesse “não querer agarrar nem rejeitar”,
brota uma singular disposição. A ‘presença’ pauta-se então numa atitude
desarmada, num corpo que não se defende dos fluxos que o atravessam,
surgindo e desaparecendo incessantemente [...]. Ao mesmo tempo, ele
deverá ser o mediador, aquele capaz de moldar a forma que acolhe o puro
fluir silencioso. Ao ator cabe descobrir os modos do agir e estar junto às coisas
a partir da intimidade com as dimensões profundas que se abrem também no
seu próprio corpo (QUILICI, 2006, p. 4).
33
Palestra realizada por Tatiana Motta Lima no Simpósio internacional corpo-em-arte terra, realizada
pelo grupo LUME, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no ano de
2012.
53
fronteira em fronteira ou prendendo-se nos limiares. Segundo Gagnebin, nessa
dinâmica não se ousa experimentar nem a intensidade da vida e nem a dor da morte,
segue-se “vivendo num limiar de indiferenciação e de indiferença, como se essa
existência administrada fosse a vida verdadeira” (GAGNEBIN, 2010, p. 23). Para
Gagnebin (2010, p.16) “atravessar” um limiar seria “deixar um território estável e
penetrar num outro”, e a possibilidade de vivenciá-lo refere-se à potência de
“reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do intermediário,
da suspensão e da hesitação, e isso contra as tentações de taxinomia apressada, que se
disfarçam sob o ideal de clareza” (idem, p. 16-17). Trata-se, portanto, de “ousar pensar
devagar, por desvio, sem pressupor a necessidade de um resultado ao qual levaria uma
linha reta” (idem). A autora afirma que a duração do limiar é variável: “[…] aponta para
um lugar e um tempo intermediários e, nesse sentido, indeterminados, que podem,
portanto, ter uma extensão variável, mesmo indefinida” (idem, p.14-15).
Então, o que seria a ideia de um corpo limiar? O corpo limiar não é o vazio, mas
refere-se à possibilidade de “esvaziar”. O corpo limiar não é apenas um elemento que
antecede a ação, mas também se manifesta na ação. É criar o espaço da dúvida, é habitar
a ambiguidade, que permeia a dissolução da identidade anterior e o adentrar em algo
desconhecido, é criar abertura para o novo. É a possibilidade de desfazer fronteiras,
torná-las permeáveis, de realizar criações como ritos de passagem. É a abertura para
inúmeras possibilidades. Assim, entendo que a passagem do impulso necessita da
vivência do período de liminaridade, ultrapassando o automatismo e a superficialidade.
Da mesma maneira, faz-se necessário o impulso para ultrapassar a zona de liminaridade
e adentrar ao novo, ao desconhecido, que se mostra através dela.
54
O impulso e o corpo limiar de fato parecem potencializar as criações e serem
fundamentais para a construção de uma precisão orgânica. Ao percebê-los,
interdependentes e quase unificados, nosso olhar para a cena começa a notar como sua
ausência, mesmo em segundos, nos distancia como espectadores. Essas “palavras
praticadas” parecem borrar as fronteiras entre criador e espectador.
Admitir o fluxo, o devir, o “quem sou? ”, o “não ser”, o “não sei”, os hiatos de
ideias, o mutismo, a gagueira, as ausências de opinião, a impermanência de
posição, o silêncio, enfim, experimentar o vazio abre portas desconhecidas,
acessos a dimensões insuspeitadas de ser e criar. Permitir o esfacelamento
de estratos enrijecidos e vencidos é adubar o ser poético e o ser político. A
cada nova atualização ética e estética, saber escutar os silêncios ecoando nos
espaços do corpo, para nutrir o germe do vazio no seio do pleno, revela
disposição não apenas de manter-se vivo, mas de ser-em-vida (CURI, 2015, p.
134).
Não procuramos aqui por respostas, nem tampouco metodologias, mas pela
investigação de caminhos que possam contribuir na busca por processos criativos
relacionados ao trabalho sobre si e à construção de precisão cênica por uma via
orgânica.
Referências
CURI, Alice Stefânia. Traços e devires de um corpo cênico. 1ª edição. Brasília: Editora
Dulcina, 2013.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Entre a vida e a morte. In: OTTE, Georg; SELDMAYER,
Sabrina; CORNELSEN, Elcio (org.). Limiares e passagens em Walter Benjamin. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.
55
GROTOWSKI, Jerzy; FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O Teatro Laboratório
de Jerzy Grotowski 1959- 1969. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT:
Fondazione Pontedera de Teatro, 2007.
RICHARDS, Thomas. Trabajar com Grotoski sobre las acciones físicas. Barcelona: Alba,
2005.
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2007.
56
ÁVILA, Silvana Baggio. A experiência do aprendiz no trabalho sobre as ações físicas.
Porto Alegre: UFRGS. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Doutoranda.
Orientador: Walter Lima Torres. Atriz, professora do Departamento de Artes Cênicas da
UFSM.
RESUMO: Neste artigo, proponho refletir sobre o que está envolvido no ato de aprender
a trabalhar sobre as ações físicas, na perspectiva do aprendiz que descobre como fazer
na prática. Partindo do relato da minha própria experiência em trabalhar sobre as ações
físicas com Mario Biagini, por meio da participação em workshops conduzidos por ele
em tempos e lugares diferentes, busquei apoio nas experiências daqueles que vieram
antes de mim e refletiram sobre seus próprios processos de aprendizagem desta
“premissa necessária” para aqueles que agem no campo das performing arts. Diante das
palavras de Constantin Stanislávski, Vassíli Toporkov, Jerzy Grotowski, Mario Biagini e
Thomas Richards, exercito o pensamento sobre a aprendizagem do trabalho técnico e
artesanal na qual a “disciplina interior e pessoal” é imprescindível ao desenvolvimento
da qualidade artística do ator.
PALAVRAS-CHAVE: ação física; experiência; aprendizagem; ator.
ABSTRACT: I propose to reflect on the act of learning based on work on physical actions,
from the perspective of the apprentice who discovers how to do it in practice. I started
by the account of my working on physical activities, achieved through participation in
workshops conducted by Mario Biagini, in different times and places. I sought support
in the experiences of those who preceded me, reflecting on their learning processes
about the "necessary premise" for those who act in the field of performing arts. Faced
with the words of Constantin Stanislavsky, Vassíli Toporkov, Jerzy Grotowski, Mario
Biagini, and Thomas Richards, I exercise my thinking about learning technical and
craftwork in which "inner and personal discipline" is essential for the development of
the actor's artistic quality.
1. A escrita da experiência
Impactada pela experiência – que revira o sujeito, que deforma, que esfacela,
que desmancha e mancha, que o transforma – desejo que, através da minha escrita, se
mostre a cara viva e estremecida de quem encara o que lhe acontece com a
correspondente “voz viva, trêmula, balbuciante” (LARROSA, 2016, p. 76) da experiência
humana. O que impele a escrita aqui é o impacto, que produz no sujeito uma estranha
necessidade de traçar as palavras deste lugar de sujeito impactado, acreditando que:
57
A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura. Digamos com
Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para
transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade
de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita
liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para
ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo (LARROSA; KOHAN, 2016, p.5).
[...] percebo que em muitos casos tais descrições são de certa forma
idealizadas, higienizadas: relata-se o que “deu certo” nesses processos,
porém a presença de dificuldades é rara. Um aspecto interessante nesse
sentido está associado às estratégias utilizadas nessas situações de
dificuldade. Vejo esses momentos como cruciais nos processos criativos. Ao
lidar com as dificuldades, em seus diferentes níveis e tipos, o artista pode
fazer opções que o lançam para territórios desconhecidos por ele até então.
Talvez sejam eles os momentos mais cruciais, em que a descrição do já sabido
encontra os próprios limites. [...] Contudo, o lidar com as dificuldades e com
o não saber nos processos criativos envolve vários aspectos artísticos e extra-
artísticos (BONFITTO, 2019, p. 65).
58
Stanislávski, “[...] os homens se recusam a aceitar a experiência do outro que os adverte
amorosamente contra erros e ilusões” (apud CRUCIANI; FALLETTI, 2004, p. 52).
34
Magda Złotowska é formada em História da Arte pela Universidade de Wroclaw e em Antropologia
Cultural pela Universidade de Warsaw, ambas na Polônia. Trabalhou com Jerzy Grotowski na Polônia,
Itália e EUA, no Parateatro, Teatro das fontes e no Objective Drama Project. Traduziu para várias línguas
conferências e textos de Grotowski.
35
O encontro teórico aconteceu no dia 22 de novembro durante a programação do Seminário
Internacional Grotowski 2019 – Uma Cultura Ativa, promovido pela Unirio, na cidade do Rio de Janeiro.
36
Baseado no conto do escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, sob orientação da Profª Adriana Dal
Forno, o espetáculo estreou no Theatro Treze de Maio durante o Festival de Teatro Santa Cena, na cidade
de Santa Maria.
59
ações físicas como uma “premissa necessária para quem é ativo no campo das
performing arts” (GROTOWSKI, 2012, p. XI), após a conclusão do curso, me deparava
com a obviedade encarnada de que estar com um diploma na mão não garantia o
domínio, na prática, dos elementos indispensáveis ao ofício do ator. Deparava-me,
assim, com a urgência de reencontrar o caminho de reconexão com o processo vivo do
qual havia me distanciado.
Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente
discursiva. Essa parte da mente divide, reparte, etiqueta – empacota o mundo
e o envolve como se ele fosse “entendido”. É essa máquina dentro de nós que
reduz o misterioso objeto que oscila e ondeia a uma simples “árvore”. Como
essa parte da mente comanda nossa formação interior, à medida que
crescemos a vida perde seu sabor. Nossas experiências vão se tornando cada
vez mais rasas, e deixamos de perceber as “coisas” diretamente, como fazem
as crianças, para percebê-las como se fossem signos de um catálogo que já
nos é familiar. O “desconhecido”, então reduzido e petrificado, passa a ser o
“conhecido”. Entre o indivíduo e a vida surge um filtro. A mente discursiva,
assim como ela é, tem dificuldade de tolerar um processo vivo de
desenvolvimento. Como um cachorrinho que tenta reter um rio
comprimindo-o com seus dentes, essa mente etiqueta as coisas ao nosso
redor, e afirma: “Eu entendo”. Através desse tipo de “entendimento” criamos
mal-entendidos, e reduzimos o que é percebido aos limites e às
características da mente discursiva (RICHARDS, 2012, p. 4).
60
estratégias para solucionar esse problema, mas não percebia evolução. A necessidade
de seguir desenvolvendo o trabalho sustentado pela prática com as ações físicas
requeria a tentativa de trabalhar com alguém em quem pudesse confiar, alguém com
conhecimento profundo sobre o ofício do ator que pudesse contribuir para a
continuidade de meu processo de aprendizado sobre as ações físicas.
Na época, nada sabia sobre o trabalho de Biagini e das então atuais atividades
no Workcenter, mas como estudante, leitora apaixonada de Grotowski, sabia da
existência desse centro de pesquisa concebido pelo mestre polonês e mantido em
atividade pelo seu herdeiro, Thomas Richards. Ao deparar-me com a possibilidade de
entrar em contato com a prática do Workcenter, intuía fortemente que ali encontraria
uma experiência que pudesse me reconduzir ao caminho da organicidade, do fazer vivo
do ator.
Talvez ele não estivesse intencionado a agir naquele momento como o teacher,
já que estava ali em uma sessão de seleção onde escolheria os colaboradores com quem
futuramente trabalharia, compondo o novo team dentro do Workcenter, mas meu olhar
urgente o reconhecia naquele momento como tal, pois os ensinamentos eram visíveis
para quem buscava o conhecimento na prática sobre o ofício do ator. Ao ouvir as
palavras de Antonio Attisani38, proferidas em sua palestra durante o Seminário
37
Mario Biagini é diretor associado do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards. Trabalhou na
equipe liderada por Thomas Richards tornando-se um colaborador central na pesquisa prática no campo
da arte como veículo. Desde 2007, lidera a equipe do Open Program dentro do Workcenter, tendo dirigido
os espetáculos I Am America, Not History’s Bones – A Poetry Concert e Eletric Party.
38
Antonio Attisani é professor aposentado de História do Teatro na Universidade de Veneza (1992-2005)
e de Culturas Teatrais na Universidade de Turim (2005-2018). Attisani publicou “Un teatro apocrifo: il
potenziale dell’arte teatrale nel Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards” (2006); “Smisurato
cantabile: note sul lavoro del teatro dopo Jerzy Grotowski” (2009) e editou, entre outros, “The Grotowski’s
collection Opere e Sentieri” (com Mario Biagini, em 3 volumes, 2007-2008).
61
Internacional Grotowski 2019 – Uma Cultura Ativa, considerei-as afinadas com aquele
momento de reconhecimento e escolha: “se você se coloca ao lado de alguém que você
admira, esse é o critério. Mesmo que ele não se coloque como mestre para você.
Escolher os próprios mestres é se colocar em trabalho39”. Diante da oportunidade do
encontro, posicionei-me como aprendiz, colocando-me em trabalho para aprender
observando o mestre que tinha eleito.
Para a sessão de seleção, os participantes deveriam levar, cada um, duas acting
propositions para serem mostradas nos momentos dedicados a este trabalho. Elas
deveriam ser estruturadas e repetíveis, legíveis e compreensíveis para um observador.
Ao analisá-las, Biagini observava rigorosamente e fazia suas avaliações sobre as
questões ligadas aos elementos técnicos e artísticos do ator. Ao mostrar minhas acting
propositions, Mario apontou imediatamente para a ausência de ações em uma delas. Na
outra, apontou uma forma catatônica e patológica de agir. Fez-me perguntas precisas
como: “O que esta mulher faz?”; “Onde ela está?” – pois não se podia ver isso, na cena,
através do que eu fazia e de como eu fazia. Em suas observações, ressaltava a
necessidade de o ator ser concreto e específico em cena. Quando o ator ouve algo, por
exemplo, deve saber o que exatamente está ouvindo para poder responder a isso
verdadeiramente. Na sua análise sobre meu trabalho, confirmava-se o desmanche da
minha técnica. Geralmente, ao analisar as cenas dos participantes, Biagini pedia que
fizéssemos simplesmente “ações reais, nada abstrato!”.
Na análise que Biagini fez de meu trabalho, assim como na análise dos outros
participantes, eu percebia seu conhecimento profundo sobre o ofício do ator. Na sessão
de trabalho com os cantos, ou no momento dedicado aos exercícios físicos, não havia
espaço para o fingimento ou a passividade; via-se a ação real, viva no corpo e na voz de
Biagini e de outros membros do Workcenter.
39
A palestra “Antes, durante e depois do teatro (pensando em Grotowski e além)” foi proferida no dia 21
de novembro de 2019 como parte integrante da programação do Seminário Internacional Grotowski 2019
– Uma Cultura Ativa, promovido pela Unirio, na cidade do Rio de Janeiro.
62
ator. Movida pelo desejo de conquistar o conhecimento na prática, continuava a
trabalhar com a criação das ações físicas, investigando e investindo em tentativas,
buscando descobrir o como fazer na prática.
Lembro-me de que, ao levantar para mostrar a cena que havia preparado, fui
invadida pela sensação de confiança por pisar em algo seguro e preparado com o
40
O espetáculo estreou no Teatro Caixa Preta da UFSM em 2001. Dirigido por Andréa M.Bolzon e sob
orientação da Profª Cândice Lorenzoni, teve no elenco os estudantes de Interpretação Teatral, Jader
Guterres de Mello e Silvana Baggio.
63
conhecimento prático dos elementos do ofício, o que permitia catapultar uma coragem
quase esquecida de acessar através da estrutura a sua potência de vida.
O ator está consciente das suas intenções e das suas ações, que se orientam
para fora, mas como exatamente a intenção atravessa o corpo no fazer,
atravessa a voz, atravessa o espaço, atravessa o parceiro – todo esse processo
não é totalmente consciente. No momento em que se torna consciente,
corremos o risco de termos nas mãos uma forma vazia. Quando mantenho o
nível de minhas ações exclusivamente no plano consciente, eu me movo, falo,
ajo, estritamente de acordo com o que já conheço, com o que já está
registrado na minha bagagem de know-how técnico, profissional ou humano.
Mas o terreno do real, da vida, é mais vasto e mais misterioso do que esse
pequeno enquadramento. Uma das aventuras, das tentações próprias ao
ofício do ator, é sair da área familiar, é aproximar-se de um território
desconhecido que inspira medo. Também por isso há a necessidade de uma
estrutura, porque, pelo menos você sabe, de qualquer forma, a próxima coisa
a fazer (BIAGINI, 2013, p. 328).
A natureza da estrutura de ações físicas vai exigir do ator que lide com um
paradoxo em seu ofício, fazendo-o lutar para que a vida se manifeste entre duas forças
opostas – o palpável e o impalpável. Na manutenção do processo vivo, em que não há
mais um “dentro” ou um “fora”, o contato aparece como elemento que permite a
manutenção do fluxo de reações, impulsos e associações “firmemente atados à
64
‘corporeidade’, ao ‘outro’, e ao ‘espaço’” (MOTTA LIMA, 2005, p. 57). A pesquisadora
Tatiana Motta Lima (2005) explica que, para Grotowski:
O livro de Thomas Richards possui um valor notável para o jovem ator que
deseja dedicar sua vida à batalha na arte, pois fala de certos elementos
indispensáveis do ofício que, quando aprendidos, ou seja, dominados na
prática, podem ajudá-lo a sair do diletantismo. Neste livro, o leitor poderá
obter várias informações sobre como se desenvolver na prática. [...] Em cada
um desses episódios esconde-se um alarme ou uma indicação que diz
41
Thomas Richards após tornar-se líder de uma das equipes do Workcenter, passou a ser o “colaborador
essencial” de Grotowski, mostrando-se uma força fundamental no desenvolvimento das pesquisas no
campo da arte como veículo. Em 1996, Grotowski acrescentou o nome de Richards no Workcenter of Jerzy
Grotowski. Desde 2008, lidera a equipe Focused Research Team in Art as Vehicle.
65
respeito a essa disciplina interior e pessoal da qual não podemos falar apenas
em termos técnicos, mas sem a qual toda vocação é sufocada e não são
possíveis nem aprendizagem nem técnica (GROTOWSKI, 2012, p. XIII).
No livro de Toporkov, o ator russo nos traz o relato de seu trabalho sobre as
ações físicas com Stanislávski, durante os últimos anos de suas investigações sobre seu
novo método. Em um dos trechos do livro, traz a advertência do mestre em relação aos
“perigos de uma abordagem criativa racional, fria”, exigindo dos aprendizes que se
voltassem para a realização da ação e não se submetessem aos domínios da razão.
– Quando um ator tem medo de mostrar sua força de vontade, quando não
quer criar, entrega-se à racionalização. Então, é como se fosse um cavalo que
bate as patas em desespero, sem conseguir sair do lugar ao tentar puxar uma
carroça pesada demais. Para agir corajosamente é preciso parar de bater as
patas no mesmo lugar, e educar em si mesmo a capacidade de apaixonar-se
pela ação. Desejo fazer e faço com coragem. A ação é volitiva, intuitiva. A
razão, cerebral (STANISLÁVSKI apud TOPORKOV, 2016, p. 181).
66
amorosa à premissa fundamental sobre a qual apoia a sua arte. Ao realizar a ação física
mais simples, o ator exercita a capacidade de “agir audaciosamente, sem usar demais a
razão. Assim que se começa a agir, sente-se de imediato a necessidade de justificar essas
ações” (STANISLÁVSKI apud TOPORKOV, 2016, p. 184). No ato de sua ação, a educação
do ator e a autodisciplina devem estar no mesmo patamar de importância que o seu
amor pela arte.
Nas palavras de Grotowski, sobre o fazer do atuante, penso no ator, aquele que
faz no âmbito da arte como apresentação e que, diante de seu fazer, responsabiliza-se
sobre aquilo que faz, primando pela maestria em sua arte. Os termos ator/perfomer vão
se diluindo para fazer aparecer uma mesma imagem daquele que embasa sua arte no
conhecimento prático das ações físicas. Dessa forma, o trabalho do artista ruma para
distintos caminhos, segue objetivos artísticos específicos e perspectivas particulares de
criação, e o que vemos é a maestria da arte de fazer.
67
refletindo sobre o comentário que costuma ouvir das pessoas que olham de fora para o
Workcenter: “trabalham muito”, dizem. Ao concordar com essa percepção de que sim,
trabalham muito, porque é necessário para que algo se desenvolva, acrescenta que
gostaria de que as pessoas não colhessem somente isso deles, já que trabalhar muito,
apenas por trabalhar, não seria assim tão importante. Para ele,
Referências
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Alegre, v. 3, n. 1, p. 176-197, jan./abr. 2013. ISSN 2237-2660. Disponível em:
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68
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das Cebolas. Revista Brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 287-
332, jan./abr. 2013. ISSN 2237-2660. Disponível em:
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BONFITTO, Matteo. Descartes e a Espessura do Impalpável. In: ICLE, Gilberto.
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João Wanderley Geraldi. – 1.ed., 2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
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TOPORKOV, Vassíli. Stanislávski Ensaia: memórias. SP: É Realizações, 2016.
69
REGINALDO, Evelin. “O corpo não tem memória, o corpo é memória”. Rio de Janeiro:
UNIRIO. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Doutoranda. Orientadora:
Tatiana Motta Lima.
70
ficariam para uma próxima pesquisa. Então, tudo que direi nas próximas páginas faz
parte de uma pesquisa que está longe do fim.
Analisei o termo buscando entender, primeiramente, o que Grotowski queria
dizer com ele, depois o coloquei em relação com alguns argumentos sobre a memória,
a partir de pesquisadores que não estão necessariamente no âmbito do teatro, com o
objetivo de criar um diálogo entre esses pensadores. Não tenho a pretensão de expor
aqui todo o pensamento de cada autor, vou apenas apontar alguns argumentos.
Assim, cheguei à hipótese de que o corpo-memória é um corpo em estado de
presença, que se revela a partir de um trabalho árduo de autoconhecimento. A partir
daí, surgiram algumas questões que vão nortear este artigo: Como e quando surgiu o
termo corpo-memória? O que é um estado de presença? O que significa fazer um
trabalho de autoconhecimento?
Ao ler Grotowski é necessário ficar atento ao fato de que, em certos momentos,
ele mantém termos já utilizados, mas altera o seu sentido. Em outros momentos
mantém o sentido, mas muda o nome dado ao termo. E em outros muda tanto o sentido
quanto o nome, pois aquele nome não abarca todo o sentido do termo42. Deste modo,
é preciso questionar: como Grotowski opera com o termo corpo-memória em diferentes
momentos do seu trabalho? Grotowski utiliza diferentes nomenclaturas referentes à
memória durante seu percurso. São elas: associações, corpo-memória, corpo-vida,
corpo-e-essência e corpo da essência.
A questão da memória esteve presente na pesquisa de Grotowski desde muito
cedo, pois descende de Stanislavski. No entanto, o artista polonês se afasta do “se” e
das “circunstancias dadas” – conforme proposto por Stanislavski -, se distanciando
completamente da ideia de “memória emotiva”. Inicialmente, Grotowski falava sobre
associações. A premissa era de que a memória acontece no corpo e não só na mente. E
quando se refere às associações as vê como reações físicas, e não como pensamentos.
O que é uma associação na nossa profissão? É algo que brota não apenas da
mente, mas também do corpo. É um retorno á uma memória precisa. Não
analise isso intelectualmente. As memórias são sempre reações físicas. É a
nossa pele que não se esqueceu, são nossos olhos que não se esqueceram. O
que ouvimos ainda pode ressoar dentro de nós. Trata-se de executar um ato
concreto (GROTOWSKI, [1966] 2011, p. 176).
42
É Tatiana Motta Lima (2012) quem aponta para tal necessidade quando se lê Grotowski, ela explicita
esse argumento no livro “Palavras praticadas: O percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959-1974”.
71
A palavra “associações” é encontrada nos textos referentes aos primeiros anos
do Teatro Laboratório e depois, em textos posteriores, ela é substituída. A partir de 1969
começa a parecer o termo corpo-memória.
Todo o papel foi estruturado sobre um tempo muito preciso de sua memória
pessoal (podemos dizer ações físicas no sentido de Stanislavski) relativo ao
período em que era adolescente, e quando teve sua primeira grande, enorme
experiência amorosa. Tudo estava ligado a essa experiência. Ela se referia a
este tipo de amor que, só pode acontecer na adolescência, traz toda a sua
sensualidade, tudo o que é carnal, mas, ao mesmo tempo, por trás disso, algo
totalmente diferente do carnal, ou que é carnal de outra maneira, e que é
muito mais como uma prece. É como se, entre estes dois aspectos, tenha se
criado uma ponte que é uma prece carnal (GROTOWSKI, 1990, p. 23-24).
72
Serge Ouaknine, artista plástico que acompanhou as apresentações de Príncipe
Constante, chamava os atores que trabalhavam com Grotowski de “l’acteur Proust”,
pois os atores trabalhavam com suas associações e memórias pessoais. E, para
Ouaknine, isso corresponderia à “memória involuntária” de Proust.
Na obra Em busca do tempo perdido, Marcel Proust concede à memória uma
importância até então não observada em nenhum romancista no sec. XX. Seus principais
temas são o tempo e a memória. No decorrer do romance, ele conceitua o que seria
“memória voluntária” e “memória involuntária”.
Segundo Proust a “memória involuntária” não depende do nosso esforço de
recordar. Ela está adormecida e não pode ser acessada pela vontade. Ela depende do
acaso, um fato qualquer pode fazê-la subir a consciência despertando sensações que
antes estavam como que perdidas. Um episódio que explica claramente o que é
memória involuntária é:
“De onde vinha?” Como tocar tais memórias se elas aparecem ao acaso?
Segundo Grotowski, a memória não está separada do resto do corpo, o “corpo é
memória”, e ela se presentifica, ou se atualiza, na ação. É interessante pensar o corpo
com uma totalidade, e não uma dualidade entre corpo e mente. Para Grotowski, as
memórias aparecem porque estão gravadas no corpo.
O que é “desbloquear o corpo”? O que isso significa? Talvez seja encontrar uma
liberdade corporal, onde o corpo não está “domesticado” ou “colonizado”. “O que
precisa fazer é liberar o corpo, não simplesmente treinar certas zonas. Mas dar ao corpo
73
uma possibilidade. Dar-lhe a possibilidade de viver e de ser irradiante, de ser pessoal”
(GROTOWSKI, [1969] 2010, p. 170).
Depois de algum tempo estudando os textos de Grotowski, comecei a levantar
a hipótese de que um caminho para esse tal desbloqueio, para dar uma possibilidade ao
corpo, poderia ser um trabalho de autoconhecimento. Assim seria possível que o corpo
se transformasse em canal por onde passam as associações, as quais Grotowski
mencionava desde o início de sua pesquisa. Quando o corpo-memória é desbloqueado,
as associações encarnam em impulsos.
74
passado, pelo qual todos os presentes passam, não para de ser” (DELEUZE, 1999, p. 45).
O corpo em presença pode sustentar uma relação intrínseca com o tempo. Não
é necessário buscar uma memória, basta fazer ações concretas que as lembranças se
revelam, por que o corpo é um acumulador de passados que sobrevivem a cada instante
no presente.
Conforme propõe Bergson, “o passado está inscrito no corpo, que se
presentifica na ação. O presente consiste na consciência que tenho do meu corpo”
(BERGSON, 1999, p. 114). Nesse sentido, através de uma aproximação com as reflexões
de Bergson, compreendemos a importância do trabalho sobre o autoconhecimento e a
“percepção de si”, na pesquisa de Grotowski.
Para Bergson, existem dois tipos de memória. Uma consiste nos mecanismos
motores, adquirida através do hábito e da repetição. Essa memória-hábito faz com que
o corpo se adeque à sociedade e se situe no cotidiano como um ser adaptado. A segunda
memória é o que ele chama de memória pura ou memória verdadeira, seriam as
lembranças acumuladas da existência e todos os elementos que nos constroem.
Mas, essa memória pura não está fixada em um tempo passado, pelo contrário,
ela é presente e interfere com imagens no momento vivido, “o que sentimos, pensamos,
quisemos desde nossa primeira infância está aí debruçado sobre o presente que a ele
irá se juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo de fora”
(BERGSON, 2006, p. 47).
Nesse sentido, memória e consciência estão intrincadas. Se a consciência
estiver voltada somente para as ações cotidianas e memórias-hábito, é como se ela
estivesse fechada, restrita, tensa. Mas é possível trabalhar a consciência para dilatá-la,
afrouxá-la ou relaxá-la. Bergson usa a imagem de tensão e relaxamento para explicar
esta atividade psicofísica (BERGSON, 1999).
Joice Brondani faz uma reflexão sobre a memória pessoal e coletiva na criação
artística. Ela defende, partindo de pensamento bergsoniano, que “dilatar a consciência
significa dilatar a memória que deixa de ter uma atividade apenas utilitária. E é
justamente nesse momento de dilatação que aconteceria o encontro entre experiência,
memória e arte” (BRONDANI, 2015, p.18).
Outro pensador que utiliza essa imagem de tensão e relaxamento é Wilhelm
Reich. Em 2015, em uma conversa com Ludwik Flaszen, co-fundador do Teatro
Laboratório e amigo de Gotowski, ele disse que eu precisava ler Reich para entender o
que Grotowski dizia sobre a memória.
Além disso, Motta Lima, em uma nota de pé de página no livro “Palavras
Praticadas”, diz que Serge Ouknine fez menção à “Função do orgasmo” de Reich. Na
75
mesma citação diz que Flaszen confirmou o interesse de Grotowski pelo livro e pelo
conceito de couraças.
Sergue Ouaknine afirmou (em uma palestra realizada em Buenos Aires no ano
de 2000) que os gráficos apresentados em seu livro sobre o espetáculo
Príncipe Constante, gráficos que buscam representar o percurso realizado
sobretudo nos três monólogos de Cieslak, protagonista de Príncipe
Constante, seguiam – Grotowski o teria dito – a formula de Reich da curva
orgástica. A formula ou curva de Reich é assim expressa: 1. Tensão mecânica;
2. Carga bioelétrica; 3. Descarga bioeletrica; 4. Relaxamento. [...] Flaszen, por
exemplo, discordou da análise de Ouaknine ainda que tenha confirmado o
interesse do diretor pelo conceito de couraças e pelos livros A Função do
Orgasmo e o Assassinato de Cristo, de Reich (MOTTA LIMA, 2012, p. 143).
Assim, mesmo Grotowski nunca tendo citado Wilhelm Reich, resolvi seguir o
conselho de Flaszen. Reich, conta no início do livro “A Função do Orgasmo”, que ele
seguiu as pesquisas de Freud e se tornou psicanalista, mas não tinha paciência para
esperar que as questões psicológicas dos pacientes se desfizessem no processo de
análise, ele acreditava que poderia ter outro caminho para alcançar a memória
inconsciente dos pacientes. Durante as sessões de psicanálise, ele percebeu que a vida
social cria um corpo mascarado, os pacientes criavam uma espécie de máscara para se
defender, tanto do mundo exterior como do seu processo interno. E para desfazer essa
máscara, que Reich denomina de couraça, era necessário trabalhar sobre as tensões
musculares (REICH, [1940] 2004).
Aí se encontra, a meu ver, o ponto de interseção entre Grotowski e Reich. Era
necessário para ambos, dadas as distinções dos seus campos de pesquisa, bem como de
seus objetivos, criar um corpo sem tensões para que o indivíduo (paciente ou ator)
pudesse reviver uma memória. Toda experiência pessoal é inscrita dentro do corpo e
particularmente dentro dos músculos. Então, é também trabalhando sobre os músculos,
sobre as tensões – seja no processo terapêutico, ou no contexto criativo -, que se pode
reencontrar a memória.
Ainda analisando o livro, Reich descreve sua teoria sobre a couraça e as
tensões musculares. O surgimento da noção de couraça, na teoria reichiana, se deu na
discussão sobre a formação do caráter. Para ele, os desenvolvimentos do ego, do caráter
e da couraça estão intimamente ligados43. Quando o ego entra em choque com o mundo
43
Para entender melhor a teoria reichiana é necessário dominar alguns conceitos psicanalíticos, pois Reich
esteve vinculado às teorias psicanalíticas freudianas durante muito tempo. De acordo com a premissa
psicanalítica, existe o Id, que Freud esclareceu como um reservatório de energia psíquica, onde se
localizam as pulsões de vida e de morte. A ele são atribuídas as características do inconsciente. E o ego é
76
social cria-se uma forma rígida. Isto configura o desenvolvimento do caráter, ou seja,
criam-se maneiras especificas de se estar no mundo que definem cada sujeito. O caráter
pode enrijecer o ego com intuito de protegê-lo. Assim, a presença do caráter significa
que foi formada uma couraça.
Reich desenvolveu uma prática que denominou de análise do caráter. O
objetivo era analisar e interpretar as resistências e diminuir a couraça logo no início do
tratamento. Essas resistências não eram só psíquicas, mas também físicas. No decorrer
dos primeiros quinze anos de pesquisa a investigação partiu do psiquismo para a esfera
somática.
o sistema que estabelece o equilíbrio entre o Id e a realidade. Freud chamava o ego de ich, traduzido para
o inglês como I (“Eu”, em português).
77
se, assim, o trabalho clínico, ao evitar o rodeio psíquico e atingir diretamente os afetos
a partir de uma análise somática.
É possível fazer uma analogia desse processo com o trabalho do ator, pois a
dissolução da couraça faz com que o corpo esteja livre e sem bloqueios, assim o ator
pode tocar em lembranças que estavam inconscientes. Os músculos são uma espécie de
biografia interior, todas as experiências estão registradas neles.
Até então, as memórias, das quais Reich fala, são pertencentes ao indivíduo.
Mas acredito que um corpo sem tensão se torna canal para que passe um fluxo de
memória seja ela qual for. Assim, é possível um trabalho que vai além da memória
pessoal, em direção à memória ancestral, como um arquétipo, por exemplo.
A citação acima faz parte de uma entrevista com Zygmunt Molik, que foi um
importante companheiro de Grotowski durante a fase teatral. E já naquele período a
ideia de arquétipo se fazia presente. Foi durante a criação da peça Kordian, uma das
peças iniciais do Teatro Laboratório, que Grotowski começou a pensar em arquétipo.
O termo, arquétipo, foi desenvolvido por Carl Gustav Jung - outro
psicoterapeuta e pesquisador de influência freudiana. No entanto, Grotowski diz que
suas terminologias não são estritamente baseadas nas ciências humanas. Isso significa
que ele não estava preso a uma exposição científica dos termos, mas que trabalhava
sobre os seus significados de modo dinâmico, a partir das experiências vividas na lida
com o ator, articulando-os, assim também, em suas falas públicas, à medida que se fazia
necessário iluminar a reflexão sobre a natureza de suas investigações.
78
Quando falo sobre raízes ou alma mítica, perguntam-me sobre Nietzsche; se
mencionar imaginação de grupo, surge Durkheim; se uso o termo arquétipo,
Jung. Mas as minhas formulações não vêm de disciplinas humanísticas,
embora eu as utilize em análises [...] (GROTOWSKI, [1965] 2011, p. 19).
79
quais os espectadores ficavam tão impactados com os espetáculos, porque estavam
mexendo com o inconsciente de cada um.
A perspectiva do arquétipo, na relação ator-espectador, apareceu em alguns
textos de Grotowski, dentre eles: Em busca de um teatro pobre (1965), O novo
testamento do teatro (1964) e A possibilidade do teatro (1962). É possível perceber,
assim, que esta relação está presente nos primeiros anos de sua pesquisa. O que
acontece depois, no entanto, com a noção de arquétipo, no percurso de Grotowski?
Quero aprofundar a pesquisa do arquétipo relacionada ao corpo-memória, mais
precisamente ao corpo-vida.
O arquétipo pode representar o comportamento instintivo, e transformar o
instinto em uma forma, sendo assim um “equivalente psíquico”. No domínio da mente
o instinto é percebido como imagem. O princípio que organiza as imagens e dá à
realidade psíquica seus padrões específicos e suas formas para se expressarem no
mundo é chamado de arquétipo.
80
consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente
coletivo é constituído essencialmente de arquétipos (JUNG, [1936] 2000, p.
53).
Grotowski chegou a mencionar que a memória que fluía do corpo não era
somente uma memória pessoal, existia algo além. Ainda em 1969, é possível encontrar
textos em que Grotowski se refere ao corpo-vida. Podemos inferir que o termo corpo-
vida surge para abranger a questão da memória, no sentido de abarcar uma memória
que vai além do indivíduo, a memória que pertence à ancestralidade.
Um dos caminhos para que o corpo-vida não permaneça nas trevas é trabalhar
para que o corpo esteja presente. Não é necessário tentar relembrar algo, pois a
memória surge do inconsciente a partir de uma ação ou reação física. “Por isso não se
cria a projeção: ela já existe de antemão” (JUNG, 1983, p. 7).
O corpo-vida só é possível, no contexto criativo, sobretudo, através do trabalho
com o contato. É também o contato com o outro, e com o aqui e agora, que faz com que
o ator esteja presente e, assim, o corpo-vida se revela. Segundo Jung, as projeções só
podem ser reconhecidas pelo outro, nunca pela própria pessoa, já que é o inconsciente
81
dela que as projeta. Então, faz-se necessário a presença do outro para que o corpo-vida
surja.
E quando digo corpo, digo vida, digo eu mesmo, você, você inteiro, digo.
Algumas vezes a associação se refere a um momento da vida importante
demais para nós para tornar-se objeto de monólogo na taverna, mas antes de
qualquer associação – mesmo uma do gênero – é essencial o encontro aqui e
agora com o outro, em grupo, essa presença viva: a volta do corpo-vida exigirá
o desarmamento, a nudez extrema, total, quase inverossímil, impossível na
sua inteireza. Perante um tal agir toda a nossa natureza se desperta. Portanto
o que é necessário? Algo que não seja barato. Uma doação (GROTOWSKI,
[1970] 2010, p.206).
82
Então, a personalidade que compreende tanto o consciente como o inconsciente é
chamada, por Jung, de Self (si mesmo).
No trabalho com o corpo-vida, pode se dizer que o “self” está presente, pois
ele faz surgir memórias pessoais e coletivas, que estavam inconscientes. O “self” é o ser
inteiro, integro. É o Ato Total. “Por fim estamos falando da impossibilidade de separar o
espiritual do físico. O ator não deve usar seu organismo para ilustrar um ato da alma,
ele deve executar este ato com seu organismo” (GROTOWSKI, [1967] 2011, p. 88).
Aqui, chegamos a uma questão fundamental: como se aproximar do “self”?
Tanto para Jung quanto para Grotowski, o ser humano possui uma compreensão
limitada de si. E por isso é indispensável um trabalho de autoconhecimento, para atingir
as camadas psíquicas que estão por trás das máscaras sociais.
Quando Jung se refere à ciência do desconhecido, implica em conhecer
aspectos obscuros da personalidade, aquilo que por vezes a consciência tratou de
esconder. Esses aspectos são denominados de sombra. E tomar consciência das sombras
é a base do autoconhecimento.
O autoconhecimento não está relacionado somente ao trabalho com a
memória. Mas sim ao trabalho com a arte, Stanislavski já havia apontado para o
“trabalho do ator sobre si mesmo” anos antes. O autoconhecimento foi um trabalho
essencial no percurso de Grotowski desde muito cedo.
O caminho do autoconhecimento nos leva a outro pensador que foi
extremamente importante para que Grotowski chegasse às reflexões sobre “corpo-e-
essência” e “corpo da essência”. Este pensador foi Gurdjieff. Grotowski diz que Gurdjieff
foi capaz de passar do corpo-e-essência para o corpo da essência: “Isso que podemos
reconhecer na foto de Gurdjieff velho sentado num banco em Paris” (GROTOWSKI,
[1987] 1997, p.378).
Gurdjieff acreditava que o homem vive com um nível de consciência muito
abaixo da sua capacidade potencial, essa condição ele chamou de “estar adormecido”,
e a busca para transformar esse estado tornou-se o cerne do seu trabalho. Gurdjieff
criou uma espécie de treinamento que deve ser praticado dia a dia, conduzindo o
aprendiz a olhar para si mesmo, sem máscaras, sem mentiras, só assim o aprendiz
poderá atuar sob sua verdadeira condição.
Ele acreditava que é possível ter consciência total de si, mas continuamos
presos a uma visão limitada e distorcida da realidade. E para mudar essa atitude, o
primeiro passo é aprender a ver. Esse é o caminho para a tomada de consciência.
83
coisas em si mesmo que não tinha visto antes, ver realmente. E para que ele
veja, é preciso que ele aprenda a ver: é a primeira iniciação de um homem ao
conhecimento de si (GURDJIEFF, 1941).
Podemos ler nos textos antigos: Nós somos dois. O pássaro que bica e o
pássaro que olha. Um morrerá, um viverá. Embriagados de estar dentro do
tempo, preocupados em bicar, nós esquecemos de fazer viver a parte de nós
mesmos que olha. Existe então o perigo de se existir somente dentro do
tempo e nulamente fora do tempo. Se sentir olhado pela outra parte de si
mesmo, esta que está como que fora do tempo, dá uma outra dimensão.
Existe um Eu-Eu. O segundo Eu é quase virtual; não está em nós o olhar dos
outros, nem o julgamento, é como um olhar imóvel: presença silenciosa,
como o sol que ilumina as coisas e é tudo. O processo de cada um pode se
completar somente no contexto desta presença imóvel. Eu-Eu: na experiência
a dupla não aparece separada, mas como plena, única (GROTOWSKI, [1987]
1997, p.378).
Flaszen disse que esse EU que observa é de outra dimensão, esse EU não é
social, não é histórico, não é individual. Para ele, quando esse EU se apresenta então
surge o corpo-e-essência. É dentro do corpo-e-essência que há o duplo.
A essência é aquilo que possuímos independente de códigos sociais, de
educação, ou religião. A essência trata-se de ser. Trata-se de descobrir quem você é.
Nesse sentido, o autoconhecimento é imprescindível ao trabalho com o corpo-e-
essência.
84
Para Grotowski é necessário um processo de desnudamento, uma tentativa de
retirar máscaras e aquilo que foi imposto ao corpo. Isto leva ao encontro com uma
corporeidade ancestral. Primeiro, pode parecer a corporeidade de alguém conhecido,
mas quanto mais escavar, é possível encontrar a corporalidade de um antepassado,
completamente desconhecido.
Mas não é uma construção. O corpo-e-essência não é criação, é uma
lembrança. Esta corporeidade volta como se já tivesse sido desta forma algum dia.
Você pode chegar muito longe para trás como se a memória despertasse. É
um fenômeno de reminiscência, como se nos lembrássemos do Performer do
ritual primário. Cada vez que eu descubro alguma coisa tenho o sentimento
de que é aquilo do qual me lembro. As descobertas estão atrás de nós e é
preciso fazer uma viagem para trás para chegar até elas. Com a travessia -
como na volta de um exilado - podemos tocar alguma coisa que não é mais
ligada às origens, mas - se ouso dizer - à origem? Eu acredito. A essência está
no fundo da memória? Eu não sei nada (GROTOWSKI [1987] 1997, p.379).
Quero terminar aqui com esta fala de Grotowski: “Eu não sei nada”. Durante
todo o texto fiz referência a autores e pensadores tentando criar um diálogo sobre
questões levantadas a partir do termo corpo-memória. No entanto, a memória flerta
com o desconhecido, com algo que está inconsciente. É como se eu quisesse dar luz a
algo que não quer aparecer.
Prefiro terminar o texto sem uma resposta, sem verdades absolutas. Neste
processo aprendi que quando se fala sobre o ator ou sobre o homem, a maioria das
afirmações são relativas. O que é possível perceber é que desde o início, quando ainda
se falava sobre associações, até a conceituação do corpo-e-essência, se enfatiza que a
memória é algo que se revela, e o trabalho é conhecer a si mesmo. Então, prefiro
concluir esse artigo com algumas palavras que ficaram muito fortes durante a pesquisa.
Palavras que não definem o corpo-memória, mas apontam um caminho e criam novas
perguntas. São elas:
PRESENÇA
AUTOCONHECIMENTO
CONTATO
DESBLOQUEAR
DESCONHECIDO
VIDA ESSÊNCIA
85
Referências
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(não publicado).
86
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MOLIK, Zygmunt; CAMPO, Giuliano. Trabalho de voz e corpo de Zygmunt Molik. São
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em: 9 de julho de 2020.
___________. Palavras praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959-1974.
São Paulo: Perspectiva, 2012.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Ediouro publicações,
2004.
REICH, Wilhelm. A função do orgasmo: problemas econômico-sociais da energia
biológica [1940]. Tradução de Maria de Gloria Novak. São Paulo: Brasiliense, 2004.
87
ANDRADE, Ilda. Grotowski: Percursos de pesquisa. São Paulo: Instituto de Artes, Unesp.
Programa de Pós-Graduação em Artes. Doutoranda. Orientadora: Marianna Monteiro.
Atriz e educadora.
RESUMO: Neste artigo, apresento alguns dos caminhos percorridos durante a pesquisa
de mestrado que culminaram na dissertação Grotowski no Collège de France, focada,
principalmente, na aula inaugural do artista naquela instituição. Compartilho eventuais
perguntas que surgiram nesse processo, as quais têm estimulado e alimentado a
continuidade das minhas pesquisas sobre Grotowski no período da Arte como Veículo,
sua fase final de trabalho.
ABSTRACT: In this article, I present some of the paths taken during the master's
research that culminated in the dissertation Grotowski at the Collège de France focused
mainly on the artist's inaugural class at that institution. I share questions that have arisen
in this process, which have stimulated and fed the continuity of my research on
Grotowski in the period of Art as a Vehicle, his final phase of work.
Em meus estudos acerca do artista polonês, soube que suas últimas falas
públicas haviam sido um conjunto de aulas ministradas no Collège de France, cujo único
registro oficial eram gravações de áudio, em Francês. Então, ao ingressar no mestrado,
busquei compreender, através de estudo e análise dos materiais disponíveis, a questão
da organicidade e o estabelecimento do que Grotowski chamou de linha orgânica do
teatro e do ritual no decorrer dessas aulas.
Ao lidar com esse material emergiu, para mim, uma nova percepção de
Grotowski, principalmente no que se refere ao percurso por ele percorrido. Visto
comumente como carregado de rupturas, salta aos olhos a unidade que ele percebia
nesse percurso. Essa percepção talvez seja um dos aspectos mais relevantes na pesquisa
empreendida.
88
Em seu projeto para a candidatura, Grotowski se faz duas perguntas que serão
guias para o curso:
89
orgânica, trazendo elementos de suas experiências concretas, ao destacar diversos
exemplos de como seus apontamentos sobre as linhas atravessaram suas práticas e de
seus companheiros.
Havia no planejamento inicial de Grotowski mais uma aula neste bloco, sobre a
qual ele falaria do Haiti. Infelizmente, essa aula não chegou a ocorrer devido à piora do
estado de saúde de Grotowski.
Devido aos temas levantados e as respectivas abordagens nas aulas, fica claro
que a escolha desses conceitos e o modo de abordá-los: menção, posterior retorno e
aprofundamento, foram programados e calculados por Grotowski, com o objetivo de
que a comunicação se desenrolasse da maneira que, para ele, parecia ser a mais
conveniente.
44
Mestre Eckhart (1260-1328), frade dominicano, reconhecido por sua obra como teólogo, filósofo e
por seu misticismo. É considerado um dos grandes símbolos do espírito intelectual da Idade Média
90
aqui um Grotowski em estado bruto e, ainda assim, em busca da polidez advinda da
precisão do discurso.
A aula inaugural
Será que eu sou um artista? Provavelmente, de uma certa maneira, sim, mas
eu diria que, mais precisamente, meu campo natural é o artesanato, que eu
sou um artesão, num domínio bastante particular, quer dizer, o do
comportamento humano dentro de condições metacotidianas (GROTOWSKI,
2014, p. 20).
45
Peter Brook (1925) diretor de teatro inglês, conhecido pelas pesquisas e pelos trabalhos marcantes
em teatro e cinema. Um grande expoente das revoluções nas artes da cena no século XX e XXI.
91
habilidades técnicas não seria somente um processo de apreensão mecânica, pois ainda
dependeria de uma atitude ligada a um meio social e culturalmente composto.
ainda que se encontre no seu discurso a busca por elementos universais e por
procedimentos técnicos eficazes a partir do estudo de diferentes
manifestações culturais, o seu modo de aproximar-se dessas questões é
singular. O trabalho de Grotowski passa pelo indivíduo e por suas
particularidades, de modo que sua busca não está centrada na definição de
uma metodologia geral, aplicável a qualquer contexto ou pessoa. Isso não
significa que não existam procedimentos definidos em seu trabalho, mas
estes nunca são maiores que a relação que se estabelece entre o ator, seus
companheiros e seu ofício (PLÁ, 2013, p. 147).
Deste modo, a atitude apontada por Grotowski seria a de buscar a visão que
determinada cultura teria de si, mantendo, na mesma medida, a atenção à artesania e
às relações que vão se estabelecendo nesse contexto.
Sennett (2008, p. 19) define habilidade artesanal como “um impulso humano
básico e permanente, o desejo de um trabalho benfeito por si mesmo”. E o
entendimento de Grotowski, ao analisar, por exemplo, os rituais de cura da Taranta46
no sul da Itália, chega bem próximo dessa ideia. Ele ressalta que a eficiência da cura,
conforme se busca naquela prática, depende da execução dos ritos de modo preciso e
bem-feito por parte dos músicos. Nesse sentido, embora a habilidade artesanal do rito
não se destine à apreciação estética, o rito deve ser executado, em todos os seus
aspectos formais, na sua plenitude.
46
A Taranta constitui-se num ritual estruturado com música e dança, cujo objetivo é curar o tarantismo,
condição psicológica atribuída a picadas de tarântulas e que ocorria em mulheres púberes, mas que se
prolongava ao longo de suas vidas.
92
partir da técnica que possui/desenvolve? A resposta vem no final do excerto: o trabalho
sobre os comportamentos humanos dentro de condições metacotidianas.
Isso quer dizer, que é suposto que estas condições se coloquem um pouco
além, no mínimo, do comportamento humano cotidiano. Este
comportamento metacotidiano é alguma coisa que nós poderíamos,
exatamente, chamar de Antropologia Teatral, porque este é um vasto campo
que engloba, ao mesmo tempo, os fenômenos do teatro e os fenômenos do
ritual (GROTOWSKI,2014, p. 20).
Esse ponto nos interessa por explicitar que Grotowski não se coloca como
pesquisador dos comportamentos humanos de modo geral, e sim desses
comportamentos em condições específicas, no caso, na metacotidianidade,
enxergando-os como seu material de trabalho, sua matéria prima.
93
prática. Perspectiva que reforça sua discussão anterior sobre a artesania, na qual ele
afirma: “eu sou um prático”.
Ainda de acordo com ele, aquele curso no Collège de France lhe permitiria
“englobar todos os diferentes aspectos da minha vida, da minha pesquisa, que sempre
estiveram (...) como que separados (...) por causa de certos hábitos mentais: isto é o
teatro, isto é o ritual, isto são as tradições culturais” (GROTOWSKI, 2014, p. 20). Ou seja,
podemos entender que, a despeito das especificidades de cada uma dessas áreas, o
artista polonês enxergava vasos comunicantes entre elas e, portanto, iria analisá-las nas
aulas seguintes em contato e de modo interrelacionado.
Embora Grotowski por vezes afirmasse que o seu uso das terminologias era
pouco científico, o modo como as próprias terminologias vão sendo revistas e alteradas
pelo artista é, na verdade, muito próximo ao estilo científico. Com tais modificações,
Grotowski busca sempre maior clareza e exatidão, elas refletem o desenvolvimento do
pensamento de um artista em contínua pesquisa, como é evidenciado por Tatiana Motta
Lima (2012) em Palavras Praticadas: O Percurso Artístico de Jerzy Grotowski, 1959 -
1974. Em seu livro, a autora trata de algumas das inúmeras revisões terminológicas e
semânticas das noções abordadas por Grotowski, principalmente no período teatral, e
identifica, inclusive, como novos sentidos foram sendo atribuídos a palavras/conceitos
anteriores. Assim, estaria ele no entre lugar do artesão e do cientista?
94
De acordo com Grotowski esses termos demarcam diferentes territórios de
pesquisa. Por artes performativas ele compreende a noção que aborda diretamente a
experiência do agente da ação, do atuante que realiza a ação. Por sua vez, artes
espetaculares, para ele, referem-se mais a um trabalho voltado à percepção de quem
vê, os espectadores.
Nas artes performativas, nas quais ele se inclui a partir de 1962, o foco é o
trabalho interior, a ação do atuante sobre si. Em suas palavras: “quando dizemos
performing arts isto fala daquele que faz, do fazer: é um ser humano que está em ação”
(GROTOWSKI, 2014, p. 23). Posteriormente, ao já ter algo estruturado concretamente
e, caso o atuante queira que o que ele tem seja visto, inicia-se a elaboração da
montagem que possa ser vista por outras pessoas, ainda que este não tenha sido o foco
desde o começo. “É a expressão que aparece e depois ela pode ser percebida”
(GROTOWSKI, 2014, p. 24). Assim, podemos dizer que no trabalho de Grotowski, na
década de 1960, há tanto aspectos das artes performativas, quanto das artes
espetaculares.
Eu acho que existem certos tipos de artes performativas, que foram criadas
para serem olhadas, mas, existem outros tipos de artes performativas, outras
abordagens, em que um processo se forma, se articula, é um tipo de batalha
de um ser humano consigo mesmo, para se tornar lúcido, transparente,
limpo, ligado às raízes de uma experiência direta da vida e que encontra
depois, podemos dizer, na montagem, nos elementos de composição, a
capacidade, a possibilidade, de ser compreendido por alguma outra pessoa
que olha (...) são muito próximas, na aparência, estas duas abordagens, mas
são diferentes (GROTOWSKI, 2014, p. 23).
95
As artes espetaculares caracterizam-se por um vetor que busca a necessária
comunicação com o público, ainda que exista algum tipo de trabalho interno por parte
do atuante. Enquanto nas artes performativas o vetor principal é para o trabalho interno
do atuante, o trabalho sobre si, e, somente após esse trabalho interno ser de fato
realizado, caberia que alguém o visse, não como público – já que aquele trabalho não
foi feito para esse fim – mas sim como testemunha do trabalho que o atuante realiza
em si.
Trabalho sobre si
47
George Ivanovich Gurdjieff (1877-1949) foi um filósofo espiritualista armênio com influência
importante sobre Grotowski, conforme apontam Peter Brook (2011, p. 74) e Ludwik Flaszen (2015 p.
371-372).
48
Constantin Stanislavski (1863 - 1938) ator, diretor, pedagogo e escritor russo - destaque entre os
séculos XIX e XX. Stanislavski é mundialmente conhecido pelo seu ‘sistema’ de atuação para atores e
atrizes, suas técnicas de treinamento, preparação e procedimentos de ensaios.
96
O que promoveria não só modificações na atuação, mas, principalmente,
transformações nos estados de ser do sujeito (QUILICI, 2012, p. 16).
97
Para Stanislavski, o orgânico é uma qualidade do ator, para Grotowski o
conceito expande-se: além de ser uma qualidade do ator converte-se em campo de
trabalho, mais amplo, toda uma linha de pesquisa.
49
Ryszard Cièslak (1937-1990) foi um ator e diretor de teatro polonês. Ingressou na companhia de
Grotowski desde o início desta, tornando-se um dos principais nomes do grupo.
98
devido a uma constatação pragmática advinda da própria experiência criativa e
pedagógica” (OLINTO, 2016, p. 55).
99
organicidade se referia às leis da vida corrente, compostas para a cena; para Grotowski,
conforme aponta Richards, a “organicidade indica algo como a potencialidade de uma
corrente de impulsos, uma corrente quase biológica que vem de ‘dentro’ e que vai
terminar numa ação precisa” (RICHARDS, 2012, p. 1 07).
100
Segundo Grotowski (2014), a passagem da energia livre pelos impulsos é que
vai constituir as pequenas ações que compõem, juntas, a estrutura. No contraste entre
a linha artificial e a orgânica, no campo teatral, poderíamos deduzir que, no caso da linha
orgânica, o fluxo dos impulsos estaria necessariamente relacionado ao trabalho com as
associações. Ou seja, por meio das associações pessoais, os impulsos desembocam em
pequenas ações de modo fluído, sem paradas.
Ação Física
Impulsos
101
‘Mas, o que é que tem, nesta sabedoria de Stanislavski velho, a ver com como
abordar a vida emotiva, sem deixar ela escapar, sem bombear, através do
comportamento, o que é que tem que ultrapassa a situação realista?’ E, eu
encontrei: são os impulsos! E, de novo, nós estamos diante de um termo cuja
definição é impossível. Porque... será que... sim, eu sei que os impulsos são
alguma coisa que nascem sempre dentro do corpo e que apenas chegam à
periferia. Eu sei que é como alguma coisa que nasce atrás da pele (...) mas,
antes da ação física, tem uma pequena coisa, exatamente, que a precede e
que é todo o segredo de um ator orgânico como, aliás, dentro de alguém
como esta mulher no filme de Maya Deren 50: são os pequenos impulsos que
são contínuos, que formam um fluxo, que são... que são... que não para, que
rola. E, então, eu me disse: ‘Sim, isto quer dizer, que podemos trabalhar sobre
os impulsos’ (GROTOWSKI, 2014, p. 36-37).
Motta Lima (2012, p. 94) verifica que há relação entre a noção de signo,
utilizada por Grotowski no início da década de sessenta, e impulso. Signo teria ligação
com construção de uma imagem que se queria visível pelos espectadores;
paulatinamente, ocorreu a alteração desse termo para impulso, principalmente a partir
do trabalho no espetáculo O Príncipe Constante ao lado de Ryszard Cieślak.
Sendo assim, talvez a noção de signo estivesse inicialmente, num certo sentido,
mais próxima do uso stanislavskiano da noção de impulso, já que fala mais sobre
aspectos externos e da periferia do corpo. Ainda assim, percebemos que há um
desenvolvimento e um caminho da noção de impulso por Grotowski, inicialmente signo,
signo-impulso, impulsos interiores e, por fim, somente impulso. Signo mantém-se como
referência somente externa, como afirma Grotowski na aula: “Nós podemos dizer que
quando estamos cortados dos impulsos o que domina são os gestos, então, eu diria que
50
Grotowski refere-se ao filme exibido nessa primeira aula, filmado por Maya Deren (1917 - 1961), no
Haiti, nos anos 40. Deren foi uma pesquisadora de cinema, dança e vodu haitiano, que se debruçou
durante bastante tempo sobre o ritual. O documentário póstumo Divine Horseman: The living gods of
Haiti foi feito por seu ex-marido, em 1981, e reúne imagens feitas por ela e narrações de trechos de seus
diários.
102
são as reações, ou os signos periféricos do corpo: as mãos, o rosto, as pernas”
(GROTOWSKI, 2014, p. 26).
Nessa aula, especificamente, ele não faz referência exata à localização em que
se originam os impulsos, mas ele vai dizer que o impulso daquele movimento nasce
dentro do corpo e, então, reverbera pelas extremidades e que esse é um dos sintomas
da organicidade.
Associações Pessoais
103
No excerto, é interessante pensar no termo percepção de si. Nesse sentido, o
trabalho com a memória, em Grotowski, permitiria alterações de estados do atuante, as
quais poderiam resultar em mudanças, na percepção do atuante sobre si, e desbloquear,
num certo sentido, novas possibilidades de ser/estar como sujeito. Ou, ainda,
distensionar leituras mais rígidas ou estáveis de si. Seria esse distensionamento que
promoveria esse relaxamento das percepções e talvez certezas de/sobre si? Nesse
desbloqueio específico, não estaria o trabalho sobre si, como alterações do sujeito tal
qual também aponta Cassiano Quilici?
104
memória. Além disso, fica evidente que essas associações não são somente do atuante,
mas também do diretor/orientador daquele trabalho.
Para Motta Lima (2009), Grotowski explicita, dessa forma, que o trabalho com
as associações não se dá somente no âmbito interno do atuante, não é um simples
exercício mental, mas concretiza-se numa pesquisa prática. E é, nesse sentido, que a
noção de corpo-memória é forjada. Grotowski entende que o corpo não “tem memória,
ele é memória” (GROTOWSKI, 2007, p. 173).
51
Mariane Ahrne (1940) diretora e roteirista de cinema nascida na Suécia. Dirigiu um dos episódios da
série Os cinco sentidos do teatro, produzida pela Radiotelevisione Italiana (RAI).
105
apontamos anteriormente, o ponto de partida, o objetivo inicial, do atuante, faz toda a
diferença. Como reforçado por Grotowski, “é a diferença das fases iniciais, [...] é sempre
isto que eu repito, que a diferença entre o caminho orgânico e o artificial, no sentido da
composição, é, na verdade, a diferença entre aquilo que está no primeiro plano e no
segundo plano” (2014, p. 34).
Essa afirmação de Grotowski sobre uma não pureza das linhas, artificial e
orgânica, sobre contaminações e deslocamentos, é interessante, pois demonstra um
olhar transcultural. Segundo Olinto e Vieira (2016), no artigo A perspectiva transcultural
dos conceitos de linha orgânica e linha artificial de Jerzy Grotowski, esse olhar “permite
reconhecer certos princípios estruturais de manifestações culturais bem diferentes
entre si, certos modus operandi que transpassam as muitas singularidades regionais”
(OLINTO; VIEIRA, 2016, p. 6). Olhar esse que se coaduna com o entendimento de
Grotowski sobre o que seria a Antropologia Teatral e também conversa diretamente
com o binômio Conjunctio Oppositorum.
Essas múltiplas possibilidades parecem se relacionar com algo tocado por ele
na parte final da aula, quando aborda a questão do temperamento e sua influência sobre
as escolhas pessoais, ao falar de projetos e pesquisas (recentes à época), realizados no
Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards acerca dos cantos da tradição afro-
caribenha, segundo ele, seu temperamento (e o de seus companheiros de Workcenter,
em alguma medida) conduziu-o para o trabalho sobre os cantos (GROTOWSKI, 2014, p.
44).
106
Grotowski fala desse trabalho sobre os cantos como instrumento que permite
a verticalidade no deslocamento das energias, do nível biológico às energias mais sutis.
Ele explica que esse trabalho foi possível, principalmente, com os cantos de origem
haitiana, “porque ali a participação da organicidade do corpo é total”. E afirma que,
nesses cantos antigos, há um componente vibratório que lhe pareceu ser o “ponto de
partida ideal” para a realização de um trabalho orgânico (GROTOWSKI, 2014, p. 46).
Grotowski afirma que o objetivo desse trabalho sobre esses cantos é decolar,
pois o mesmo pode ser altamente desencadeador de associações e vôos, em mais uma
referência de verticalidade, de subida. Em uma aula aberta sobre a questão da
organicidade, Motta Lima (2016) ressalta que, a partir desse trabalho orgânico, o corpo
se tornaria “uma pista de decolagem para a transcendência”52, o que complementa a
afirmação e a imagem de Grotowski:
[...] isto resultou nesta abordagem muito particular através dos cantos
vibratórios de antigos rituais. Que não é, evidentemente, a reconstrução de
um ritual africano ou caribenho, não, não, é apenas como os instrumentos de
trabalho sobre os corpos... sobre os cantos que se enraízam nos corpos, sobre
os impulsos que se prolongam nos cantos, como tudo isto pode ser
organizado do ponto de vista dos diferentes níveis da energia (GROTOWSKI,
2014, p. 46).
52
Registro do caderno de campo da pesquisadora, oriundo de uma aula aberta ministrada por Tatiana
Motta Lima em 2016, na Escola Superior de Artes Célia Helena (SP).
107
de ferramenta, de “ioga”, entre muitos outros assuntos que serão revisitados nas
próximas aulas, como a concepção e a existência de um caminho orgânico e um caminho
artificial.
No decorrer das aulas, é perceptível que elas versam, de modo teórico, acerca
de uma prática relativa ao corpo - o corpo, seus comportamentos e suas dimensões além
físicas - são o assunto principal. Ele vai estabelecer conceitos (linha orgânica, linha
artificial e afins) que se configuram como instrumentos para o conhecimento dos
objetos, como ocorre em toda ciência, mas aqui, o objeto é o corpo íntegro em suas
dimensões. Segundo ele: a arte como veículo – sua última fase de pesquisa, na qual se
destaca o trabalho sobre os cantos africanos e afro-caribenhos - põe em prática
questões ligadas ao ofício enquanto tal, legítimas nas duas extremidades da cadeia das
performing arts; questões ligadas ao artesanato (GROTOWSKI, 2012, p. 150).
Referências
108
em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57399. Acesso em: 9 mar.
2020.
PLÁ, Daniel Reis. Tornar-se Filho de Alguém: reflexões sobre organon, técnica e
tradição em Grotowski. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 3,
n. 1, p. 144-163, jan./abr. 2013. e-ISSN: 2237-2660. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/presenca/article/view/33291. Acesso em: 11 mar. 2020.
RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo:
Perspectiva, 2012.
109
SAMPAIO, Daniele. Grotowski estrategista: a desconstrução do ermitão. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas. Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena.
Mestrado. Orientadora: Tatiana Motta Lima. Produtora e gestora cultural, fundadora da
SIM! Cultura. Atua em colaboração permanente com o ator Eduardo Okamoto desde
2006. Integra as equipes de docência e coordenação do Curso de Especialização em
Gestão, Política e Produção Cultural da Unicamp.
ABSTRACT: This article is part of the Master’s Dissertation “Invisible agents and
production ways on the first years of the Workcenter Of Jerzy Grotowski”, which was
defended in 2018 at Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena of the Unicamp,
with orientation of Profa. Dra. Tatiana Motta Lima. The study had as central proposition
to investigate the production ways of the first years of consolidation of the Workcenter
of Jerzy Grotowski, when although there were no performances, there were at least
three agents in charge of the institute production and management. In this article, I
share the reflections regarding the third chapter of the research, in which It has been
sought to verify, through of bibliography and interviews with agents who worked
directly with Grotowski, if / how the artist would have acted in the production of his
artistic investigations and of his trajectory.
110
pautadas em pesquisas e que não têm, necessariamente, resultados alinhados ao
mercado da arte. Tomando como ponto de partida os desafios como produtora de um
artista da cena53 atuante no chamado teatro de pesquisa e cansada de ouvir que a
função de produtoras/es seria a de “vender” espetáculos, dediquei-me a uma pesquisa
a partir de 2011 por meio de livros que me foram dados ou emprestados por
parceiras/os profissionais à época, sobretudo o ator Eduardo Okamoto e a diretora
Maria Thais54, da Cia Teatro Balagan.
Talvez seja importante dizer que essa primeira leitura foi feita de modo
bastante natural e orgânica. Eu não pensava, à época, em pesquisa. Mas fui pouco a
pouco sendo fisgada por uma história que me parecia muito instigante. Claro, refiro-me
aos aspectos criativos do percurso de Grotowski, mas também e sobretudo, aos
aspectos da produção e gestão de sua trajetória. Conforme fui ampliando a bibliografia
sobre o artista polonês e conhecendo melhor as especificidades de suas fases de
trabalho, interessar-me-ia especialmente pelo seu último periodo de pesquisa,
denominado “Arte como Veículo” (1986 – atual), principalmente pelo fato de se tratar
de um período sem a produção de espetáculos. Até aquele momento, tudo o que eu
sabia é que em meados dos anos 1980 Grotowski havia se transferido para uma
cidadezinha nada extraordinária na Região Toscana da Itália, chamada Pontedera. Ali,
um grupo de jovens italianos – artistas e produtores – havia criado um centro de
pesquisa permanente para o polonês, conhecido como Workcenter of Jerzy Grotowski
(desde 1996, Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards) – cujos trabalhos se
desenvolvem até hoje. Chamava-me especialmente a atenção o fato de que, a despeito
de não se produzir espetáculos – pelo menos na primeira fase deste empreendimento –
, existiram agentes envolvidos na produção e gestão do projeto.
Perguntava-me: quem teriam sido as/os agentes que teriam estado ao lado de
Grotowski ao longo de sua vida? Essas e esses que talvez não saibamos os nomes, mas
que teriam sido fundamentais para a construção da trajetória desse importante nome
do teatro. Como produtora, interessava-me especialmente pensar quem teriam sido
as/os agentes envolvidas/os no trabalho da produção e gestão desse percurso artístico.
Reconhecer e iluminar alguns dessas/es agentes tornou-se, assim, um primeiro objeto
de interesse.
53
Refiro-me ao ator Eduardo Okamoto, com quem atuo em colaboração permanente desde 2006.
Okamoto é Bacharel em Artes Cênicas (2001), Mestre (2004) e Doutor (2009) em Artes pela
Universidade Estadual de Campinas, onde leciona. Realizou estágio de pós-doutorado no Theatre and
Performance Department of Goldsmiths University of London (2019).
54
Maria Thais é pedagoga teatral, diretora e pesquisadora. Professora aposentada do Departamento de
Artes Cênicas da ECA/ USP — na área de atuação e direção — e do Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas (PPGAC) e diretora da Cia Teatro Balagan.
111
Anos mais tarde, em 2015, meu estudo se estruturou em pesquisa acadêmica
e resultou na Dissertação de Mestrado55 desenvolvida na Universidade Estadual de
Campinas com orientação da pesquisadora e Profa. Tatiana Motta Lima.
55
A pesquisa foi publicada como livro pela Editora Javali em março de 2020, integrando a programação
da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
112
várias/os pesquisadoras/es que investiram seriamente na análise de seu percurso
artístico, a exemplo do polonês Zbigniew Osinski56, da inglesa Jennifer Kumiega57 ou da
brasileira Tatiana Motta Lima58, pouco se discorreu sobre os mecanismos de
consolidação desse percurso, no sentido da estruturação da sua produção e das táticas
e estratégias assumidas — de forma consciente ou não — para a constituição de sua
obra. O interesse aqui foi iluminar determinadas passagens na vida do criador polonês
que nos ajudassem a entrever, ainda que parcialmente, os bastidores de sua trajetória,
contemplando alguns dos desafios e insucessos que determinaram os contornos de seu
percurso e as condições favoráveis e adversas que permitiram sua emergência. Assim,
esperamos contribuir para uma desromantização em torno de trajetórias artísticas
tomadas como referência e sobre as quais normalmente crê-se que as condições
materiais sempre estiveram asseguradas, salvaguardando essas/es criadoras/es de
enfrentarem percalços e desafios.
56
Nascido na Polônia em 1939, Osinski foi um teórico e historiador de teatro que acompanhou de
maneira constante o trabalho do Teatro Laboratório na Polônia. Foi também diretor do Centre of Studies
on Jerzy Grotowski’s Work and Cultural and Theatrical Research, localizado na antiga sede do Teatro
Laboratório, em Wroclaw. Autor de três livros e de inúmeros artigos sobre Grotowski. Faleceu em 1o de
janeiro de 2018 (MOTTA LIMA, 2012, p. 17).
57
Jennifer Kumiega é pesquisadora nascida na Inglaterra. Visitou a Polônia pela primeira vez em 1972
enquanto estudava na Manchester University. Trabalhou com o Teatro Laboratório entre 1975 e 1981. É
autora de The theatre of Jerzy Grotowski considerada uma das mais importantes análises sobre o
percurso do artista entre 1959 e o “Teatro das Fontes” (MOTTA LIMA, 2012, pp. XXXI e XXXV).
58
Tatiana Motta Lima é professora da UNIRIO, no Departamento de Interpretação e no Programa de
Pós-Graduação (PPGAC). Estuda, há mais de 20 anos, a obra de Grotowski. Escreveu o livro Palavras
Praticadas: o percurso de Jerzy Grotowski (Perspectiva, 2102), além de ter orientado diversas
dissertações e teses e escrito inúmeros artigos em revistas nacionais e internacionais sobre o tema.
59
Em setembro de 2016 viajei a Pontedera e pude entrevistar a tradutora e produtora Carla Pollastrelli e
os dois diretores do Workcenter, Mario Biagini e Thomas Richards. Em novembro do mesmo ano
entrevistei via Skype os dois gestores do instituto, Luca Dini e Roberto Bacci. Em 2017, também foram
entrevistados o diretor italiano Eugenio Barba e a dramaturga Renata Molinari, também oriunda da
Itália.
60
Diretor do Odin Teatret, fundado em Oslo, na Noruega, em 1964, e estabelecido em Holstebro, na
Dinamarca, desde 1966. Entre 1961 e 1964, Barba foi assistente de direção de Jerzy Grotowski,
acompanhando o desenvolvimento do método de trabalho do artista polonês em seu Teatro das 13
Fileiras, em Opole, na Polônia.
61
Ludwik Flaszen (1930) é crítico, escritor, diretor e pedagogo teatral polonês. Foi cofundador do Teatro
Laboratório, atuando como diretor literário até 1980, quando assumiu sua direção artística. Escreveu
inúmeros artigos, principalmente nos anos 1960, sobre as experiências que estavam em curso no Teatro
Laboratório, sendo responsável pelos textos que apareciam nos programas de espetáculos da
113
vestígios sobre como o artista agiu frente às inúmeras dificuldades que marcariam o seu
percurso, como dialogava com a produção de seus projetos e de que modo teria, no final
da vida, se comprometido com o que iria deixar para as novas gerações.
114
de forma significativa a projeção de sua imagem enquanto artista isolado. De acordo
com os entrevistados, Grotowski chegou com problemas de saúde na Itália e mostrava-
se realmente preocupado quanto ao seu tempo de vida. Por isso, sabia que era preciso
canalizar racionalmente a sua energia àquilo que considerava essencial. Dessa forma,
durante os primeiros anos na Itália, o artista se poupou de forma sistemática, não
participando de qualquer atividade nem travando qualquer contato que o distraísse de
seu propósito, garantindo que não somente o trabalho permanecesse protegido, como
ele, sendo pessoalmente preservado, pudesse ter tempo disponível e energia para
construir o que sabia ser a fase final de sua obra. Segundo Renata Molinari62 (2018), que
testemunhou a criação do Workcenter na Itália dos anos 1980, mesmo a comunidade
italiana não sabia exatamente o que era desenvolvido no interior do instituto. O
trabalho, lembra a dramaturga, era feito de forma absolutamente discreta, sem clamor.
O que se sabia é que havia pessoas trabalhando à procura de algo claramente precioso,
o que, a seus olhos, era como sementes lançadas ao solo.
62
Escritora, dramaturga e professora universitária de reconhecimento internacional que acompanhou o
trabalho de Jerzy Grotowski a partir da fase parateatral.
63
Tradutora e produtora italiana e diretor e gestor italiano, Carla Pollastrelli e Roberto Bacci,
respectivamente, foram dois dos três agentes responsáveis pela idealização, produção e gestão junto à
Grotowski de seu Workcenter na Itália.
115
Califórnia, de Irvine, para as suas pesquisas no “Objective Drama Program”, o plano era
que Irvine mantivesse o apoio econômico na etapa estadunidense do projeto. No
entanto, diante da exigência da instituição para que fossem previstas aberturas públicas
do trabalho e frente à recusa de Grotowski ao pedido, a universidade decide sair do
projeto dois meses depois de seu início. É nesse delicado contexto que Grotowski decide
contactar a Fundação Rockefeller64 para negociar o redirecionamento do aporte que já
recebia da instituição ao novo projeto na Itália, uma vez que a instituição podia investir
recursos em projetos fora do território estadunidense. Aqui o que nos interessa destacar
é que embora Grotowski contasse com parceiros habilitados para o trabalho de relações
institucionais, é o artista quem decide ir à Rockefeller. A decisão não teria sido forçada,
mas fruto de uma decisão política e deliberada do próprio Grotowski, que demonstrava
clareza e pleno domínio no uso do seu capital simbólico em favor de seus interesses,
não demonstrando qualquer pudor — sendo ele um artista — em empreender, se
preciso fosse, uma negociação sobre o aspecto econômico do seu trabalho. E a noção
de capital simbólico que reconhecemos aqui, vale dizer, é análoga àquela defendida pelo
filósofo francês Pierre Bourdieu, enquanto capital de reconhecimento ou consagração
acumulado no decorrer de lutas anteriores, ao preço de um trabalho e de estratégias
específicas (BOURDIEU, 1990, p. 170).
Isso parece digno de reflexão. Ao se ressaltar que foi o próprio criador quem
decidiu assumir as tratativas daquela crise, envolvendo aí a negociação de rubricas
orçamentárias, tem-se problematizada a ideia de artista imaculado, ocupado
unicamente com o processo artístico e que, portanto, não quer e não pode se envolver
com dinheiro — sob o risco de, entre outras coisas, sua obra não ser reconhecida como
pura. Como se uma/um artista não fosse uma/um profissional que, como outra/o,
depende tanto da remuneração de seu trabalho para viver quanto de financiamentos
para realizá-lo. Como se a lida com o dinheiro de alguma forma “sujasse” a sua imagem
e a de sua obra. Sabendo que negociações econômicas normalmente aterrorizam
algumas/alguns artistas, sendo, sempre que possível, delegadas ou evitadas
sistematicamente, nos perguntamos: até que ponto a atitude de Grotowski não
demonstra que o problema não está em se relacionar com o dinheiro, mas em “como”
se relacionar? Não seria mais inteligente e mesmo sensato reconhecer a dimensão
econômica do ofício para, inclusive, estabelecer com segurança os limites justos de uma
negociação?
64
A Fundação Rockefeller é uma associação beneficente e não governamental criada em 1913 nos
Estados Unidos da América. Define sua missão como sendo a de promover o estímulo à saúde pública,
ao ensino, à pesquisa e à filantropia.
116
pudores em abordar a questão orçamentária, porque claramente é apenas um aspecto
do projeto. O que está envolvido nisso é justamente o encontro com maneiras de
realização, com estratégias que possam viabilizar o seu projeto artístico. O aspecto
econômico, pois, materializa a proposta, confere ao financiador a capacidade de
reconhecer a sua realização, além de, objetivamente, informar quanto ele precisará
investir. Grotowski não aborda a instituição propondo exclusivamente um aporte
financeiro para o seu projeto, ele propõe uma parceria. Para tanto, se vale dos valores
simbólicos da iniciativa para sensibilizar — e por que não dizer seduzir — o seu
interlocutor. É um estrategista.
Mas, para além disso, Grotowski parece ser um amplo conhecedor dos códigos
sociais. Neste sentido, Flaszen (2015) e Biagini (2016) corroboram essa impressão, ao
afirmarem que Grotowski era realmente interessado nas pessoas, sendo capaz de
destinar horas observando-as silenciosamente, enquanto radiografava os seus modos
de pensar, falar e andar. Era, segundo Flaszen, o seu trabalho de campo favorito, por
meio do qual recolhia o precioso material que lhe daria suporte para encarar
posteriormente seus interlocutores, fossem eles políticos, censores, público, críticos ou
financiadores. Quando em diálogo com alguém, seu principal exercício residia em ouvir
a/o interlocutora/or com todo o corpo, de forma a se conectar inteiramente com ela ou
ele. Ainda segundo o crítico literário, Grotowski era capaz de jogar com as emoções do
ouvinte como o faz um excelente ator, conduzindo-o facilmente do riso à seriedade
(FLASZEN, 2015, p. 234). Talvez, por essa razão, Flaszen ateste sem embaraço que, ao
longo da vida, Grotowski teria se empenhado na “produção” de muitos Grotowsks
(FLASZEN, 2015, p. 286). Ora para o mundo, ora para o seu próprio uso.
117
versão, todos os distintos públicos que almejava: às/aos chamadas/os espectadoras/es
comuns, às/aos críticas/os, às/aos formadoras/es de opinião, às/aos profissionais do
teatro e também às autoridades locais. Tratava-se, portanto, de encontrar o equilíbrio
justo para informar, atrair e proteger o trabalho. Embora as habilidades de Grotowski
enquanto negociador se façam notar em diferentes momentos da sua trajetória, é
interessante perceber como o regime político da Polônia dos anos 1950 e 1960 parece
ter sido, por um lado, uma importante escola para o artista. A pressão do ambiente
externo, o fato de ser subvencionado pelo Estado — autoritário — e a necessidade de
manter a salvo a sua firma — como ele denominava o Teatro das 13 Fileiras65 — parece
ter gerado no artista a necessidade de se metamorfosear em muitos, sob o risco de ter
seu trabalho interrompido. Como relata Barba (2006), naquela época, na Polônia, havia
uma forte censura a todos os tipos de expressão. Um teatro recebia a autorização do
texto que queria apresentar e depois, um pouco antes da estreia, a censura verificava
se no espetáculo havia aspectos que poderiam desagradar o regime político. O ambiente
habitual era de apreensão. Nos momentos mais tensos, segundo Flaszen, Grotowski,
desconfiando que os telefones podiam estar grampeados, realizava suas conversas em
código. Era preciso, pois, circular entre diferentes tipos de pessoas e instituições. Daí
que Grotowski precisou inventar diferentes tipos de personas para transitar por esses
ambientes, de forma a manter resguardados a empresa, as pessoas, o Teatro
Laboratório e as investigações que ali se realizavam.
Diante das pressões externas, o diretor fazia o que fosse preciso para manter
as autoridades distantes do seu Teatro Laboratório, sendo capaz, como lembram
Slowiak e Cuesta (2013, p. 40), por exemplo, de cantar canções natalinas polonesas
junto a um censor por uma noite inteira, ou de compartilhar uma garrafa de vodka com
65
Essa denominação está presente em vários textos de Grotowski e aparece também como “empresa” e
“Pleroma”. Especificamente aqui, refiro-me à nota de rodapé à página 79 do livro de Flaszen, Grotowski
& companhia: origens e legado, de 2015.
118
um oficial da imigração ao ser detido no aeroporto de Miami. Barba (2006, p. 38) relata
que, à época de seu estágio junto ao Teatro Laboratório, Grotowski falava em
“movimentos estratégicos para defender o 'essencial’”. Como aconteceu no inverno do
início dos anos 1960, quando Grotowski deu férias para a companhia inteira a fim de
despistar as autoridades que ameaçavam fechar o teatro, uma vez que na Polônia, à
época, ninguém podia ser demitido quando em férias. Em outro momento, diante da
real ameaça de fechamento do Teatro Laboratório, Grotowski teria criado dentro da
própria sede do grupo uma célula do Partido Comunista, de forma que não seria fácil
justificar seu fechamento (BARBA, 2006). Nesse sentido, Barba rememora que
Grotowski teria criado um diário em que se registravam as supostas discussões da
companhia nas “tais” reuniões do partido comunista. Mas o fato é que essas reuniões
não aconteciam. Tudo não passava de uma estratégia. Uma estratégia de sobrevivência.
Outro exemplo remete ao momento em que o Teatro das 13 Fileiras mudou seu nome
para Teatro Laboratório. De acordo com o diretor italiano (2006, p. 38-39), em janeiro
de 1962 o Ministério da Cultura polonês enviou a todos os teatros subvencionados um
formulário no qual, entre outras coisas, deveriam indicar o gênero teatral praticado. Na
ausência de uma opção realmente válida, Grotowski teria indicado a última
denominação: “Laboratório”. Ao fazê-lo, o encenador polonês ao mesmo tempo
legitimava a longa duração dos seus processos criativos e justificava o número reduzido
de espectadores. E não menos estratégico, o novo nome fazia referência à experiência
dos Laboratórios de Stanislavski, que, não bastasse a ascendência russa, era tido como
artista modelo para o bloco socialista, de forma que não pareceria razoável ao regime
fechar um teatro cujos “princípios ideológicos” supostamente se afinavam com os do
sistema.
119
com o mundo, atuando sempre de forma tática. Luca Dini66, em entrevista cedida em
novembro de 2016, dizia que todas as ações de Grotowski eram políticas, que para o
artista era tudo muito simples: “Vamos fazer X para chegar a Z”. Cada passo, cada ação,
toda conduta eram estratégicos. Em consonância, Flaszen discorre sobre a preocupação
do artista até mesmo nos cuidados com sua imagem pessoal. Neste escopo, um dos
cuidados de Grotowski passou pelo seu modo de se vestir. Flaszen relembra que antes
do Teatro Laboratório o jovem diretor podia ser visto sempre com calças surradas azul-
marinho, uma camisa parcialmente desbotada, gravata precariamente atada, com
meias disformes e sandálias marrons. Visto desse modo, Grotowski parecia a Flaszen —
que já era um crítico literário renomado na época — um sujeito totalmente desprovido
de qualquer elegância. No entanto, quando Grotowski aceitou o convite para ser o
diretor artístico do teatro de Opole, teria imediatamente entendido que era preciso
mudar a “roupagem”, pedindo ajuda à esposa de Flaszen para a compra de novas
roupas.
66
Ator e gestor italiano, terceiro agente responsável pela co-gestão do Workcenter of Jerzy Grotowski
junto ao criador polonês, Carla Pollastrelli e Roberto Bacci.
120
sobre os meios necessários para realizar o que ele considerava sua vocação e realização.
Sabendo da influência da imprensa, por exemplo, Flaszen descreve um procedimento
padrão nos primeiros anos do Teatro Laboratório, em que Grotowski conversava nos
bastidores com os críticos após as sessões dos espetáculos a fim de explicar-lhes o que
tinham acabado de assistir. Isso porque, se o resultado fosse o de críticas desfavoráveis
publicadas nos jornais locais, o futuro da companhia, pelo menos em Opole, estaria em
jogo. Não satisfeito, também organizava encontros periódicos com o público, com o
mesmo fim (FLASZEN, 2015, p. 77). E aqui é interessante perceber que Grotowski de
algum modo sabia que sua obra era pouco compreendida. No entanto, no lugar da
indiferença ou do ressentimento, punha-se a falar diretamente com aquelas/es que lhes
despertasse interesse, fossem críticas/os ou público. E, obviamente, de formas distintas.
Era um diplomata.
122
conversas informais com as/os atuantes mais antigos dos dois times67 do Workcenter.
Durante o mês de estadia em Pontedera, tive a oportunidade de participar de um
encontro com as/os atuantes dos dois times e que, segundo me informaram, é algo que
acontece com raridade. Foi justamente nessa ocasião que pude conversar com
representantes dos dois grupos e confirmou-se que todas e todos, sem exceção,
dedicam de duas a quatro horas de trabalho diários à produção. Ainda que nem todas
as pessoas ali se mostrarem contentes com isso — lembremos que são muitas as
nacionalidades das/os participantes, tão diversas quanto suas referências de modos de
produção —, pareciam ter clareza de que eram elas e eles, as/os atuantes e os dois
diretores — Richards e Biagini —, os responsáveis por viabilizar a circulação dos seus
projetos.
67
Refiro-me aos dois times que integram atualmente o Workcenter, o “Focused Research Team in Art as
Vehicle”, dirigido por Thomas Richards, e o “Open Program”, dirigido por Mario Biagini.
68
Luciano Mendes de Jesus é ator, diretor, músico, professor e pesquisador. Graduado em
Interpretação Teatral (IA-UNICAMP) e mestre em música (ECA-USP). Integrou a equipe do Open
Program do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards entre 2012 e 2015. Quando da escrita
desta pes- quisa, desenvolvia doutorado em Artes Cênicas na ECA-USP, investigando elementos de
africanidades em cenas contemporâneas. Desenvolve, ainda, criações, pedagogias e pesquisas em torno
das relações entre som/cena e tradição/contemporaneidade no teatro e na dança.
123
progressiva que indicava uma morte precoce, ocorrida em 14 de janeiro de 1999, aos 65
anos, em sua casa em Pontedera — como da morte artística. Tanto na Polônia, onde
opunha-se ao regime e à Igreja, quanto nos EUA, onde poderia ter ficado milionário
vendendo um “método Grotowski”. Foi um diplomata e um hábil estrategista. E na
mesma medida que se notabilizou como um grande artista, para nós, Grotowski foi
igualmente um grande produtor. Como nos disse Renata Molinari (2018), se Grotowski
foi um ermitão, o foi como um ativista da ação, no sentido de não se deixar adaptar ao
espírito deste mundo.
Referências
BACCI, Roberto. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.
DINI, Luca. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.
FLASZEN, Ludwik. Grotowski & companhia: origens e legado. São Paulo: É Realizações,
2015.
MOLINARI, Renata. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2018.
POLLASTRELLI, Carla. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.
RICHARDS, Thomas. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.
124
SCHECHNER, Richard; WOLFORD, Lisa (orgs). The Grotowski sourcebook.
Londres/Nova York: Routledge, 1997.
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2013.
125
DUARTE, Priscilla. O amor possível ou em busca do aroma na maturidade artística. Belo
Horizonte: EBA/UFMG. Doutorado. Orientador: Fernando Mencarelli. Bolsa
FAPEMIG/PDSE Capes. Atriz do Teatro Diadokai, professora na UFOP, pesquisadora.
RESUMO: Este artigo apresenta reflexões sobre o processo de trabalho da autora como
atriz criadora do espetáculo solo O amor possível – que se encontra em elaboração, em
colaboração artística com François Kahn –, traçando uma análise comparativa entre os
métodos de trabalho com o texto teatral desenvolvidos pelo Teatro Tascabile di
Bergamo e por François Kahn. O artigo destaca ainda as qualidades do silêncio e do
sentimento no trabalho do ator como “aromas do tempo” (de acordo com Byug-Chul
Han), nas questões que emergem da “maturidade artística” (segundo Konstantin
Stanislávski). Pretende-se assim contribuir para a discussão sobre diferentes abordagens
do texto teatral, no que diz respeito à sua forma e sentido, no âmbito da montagem de
um espetáculo solo a partir de um texto literário.
ABSTRACT: This article presents reflections on the work process of the author as a
creative actress in the solo performance The Possible Love – which is under elaboration,
in artistic collaboration with François Kahn –, outlining a comparative analysis between
the methods developed by Teatro Tascabile di Bergamo and by Kahn of working with
the theatrical text. The article also highlights the qualities of silence and feeling in the
actor's work as “scents of time” (according to Byug-Chul Han), in the issues that emerge
from “artistic maturity” (according to Konstantin Stanislavski). It is thus intended to
contribute to the discussion around the different approaches to the theatrical text,
regarding its form and meaning, in the context of assembling a solo performance based
on a literary text.
KEYWORDS: artistic maturity; scent of time; theatrical text; memory; solo performance.
126
ofício e cultivo de si (DUARTE, 2019), na qual a trajetória de François Kahn foi um dos
temas69. Pretendo compartilhar aqui algumas reflexões surgidas no processo de criação
do espetáculo, desde sua origem até seu estado atual.
Minha parceria com François Kahn na criação de O amor possível é fruto de uma
relação que vem se desenvolvendo desde os anos 1990. Nosso primeiro encontro deu-
se no Rio de Janeiro, em 1996, quando fui sua aluna na oficina Crianças da rua principal.
Desde então, seguiram-se outros encontros entre Brasil e Itália70, nos quais pude assistir
ensaios e apresentações de seus espetáculos, participar de suas oficinas, além de ser
uma das organizadoras de suas turnês ao Brasil (a partir de 2017) e de acompanhar os
ensaios de seus espetáculos em português. Traduzi para o português diversos textos de
divulgação dos espetáculos de Kahn, além de um artigo seu, bem como seu livro71.
Destaco também minha contribuição na organização de todas as edições do laboratório
Caminhos do Silêncio72 conduzido por Kahn: em 2017 e 2018 (em Ravena, MG) e 2019
(em Entre Rios de Minas, MG), em que fui também uma das participantes.
69
A tese foi defendida em abril de 2019, no PPGArtes da EBA/UFMG, tendo como orientador o Prof.
Fernando Mencarelli e co-orientadora a Profa. Tatiana Motta Lima. Além de François Kahn, foram tema
da tese as trajetórias artísticas de Iben Nagel Rasmussen (atriz do Odin Teatret, da Dinamarca), Luigia
Calcaterra e Beppe Chierichetti (atriz e ator, respectivamente, do Teatro Tascabile di Bergamo, da Itália).
70
No fim dos anos 1990, eu morava em Bergamo, trabalhando como atriz do Teatro Tascabile di
Bergamo, e François Kahn morava em Cremona, onde se dedicava ao projeto TEATROdaCAMERA.
71
Trata-se do artigo A prática do silêncio na trabalho teatral e parateatral, no Dossiê Artes da cena e
práticas contemplativas da Revista da Pós, EBA/UFMG, abril, 2018, e do livro O Jardim: relatos e
reflexões sobre o trabalho parateatral de Jerzy Grotowski de 1973 a 1985, publicado pela editora É
Realizações, em 2019. O livro foi lançado com presença do autor e da tradutora durante o Seminário
Internacional Grotowski 2019: uma cultura ativa, no Rio de Janeiro.
72
Os laboratórios Caminhos do Silêncio são uma iniciativa do grupo de pesquisa CNPq CRIA - Artes e
Transdisciplinaridade, que é coordenado pelos professores Fernando Mencarelli e Monica Medeiros
Ribeiro. Participam também da organização dos laboratórios os professores Ricardo Gomes (UFOP),
Tatiana Motta Lima (UNIRIO) e Mauro Rodrigues (UFMG) além de Rodrigo Campos.
73
A estadia em Bergamo (Itália) fez parte da viagem de estudos de doutorado-sanduíche realizada com
Bolsa PDSE da Capes. O processo de ensaios ocorreu em caráter de residência artística, dentro da
mostra Arcate d’Arte, promovida pelo Teatro Tascabile di Bergamo, e teve duas apresentações públicas,
em português, sob o título provisório de La Brocca (O Cântaro). Nessa mesma ocasião, organizei e assisti
os ensaios e a apresentação do espetáculo solo Viaggio a Izu (Viagem a Izú) de Kahn apresentado na
mesma mostra, em Bergamo.
127
Apresentei seus resultados em diversos eventos acadêmicos74 e, aos poucos, ele foi
ganhando autonomia em relação à pesquisa doutoral e transformando-se no projeto de
encenação do espetáculo solo O amor possível, a ser apresentado, em âmbito artístico,
em um futuro próximo.
74
As apresentações aconteceram no Seminário CRIA 2016: Corpo e cena: para além da técnica
(EBA/UFMG), no Seminário CRIA 2017: Corpo e palavra (EBA/UFMG), em Belo Horizonte; na X Reunião
Científica da ABRACE, durante encontro do GT Artes Performativas, Modos de Percepção e Práticas de
Si, em Campinas, 2019 e no Seminário Internacional Grotowski 2019: uma cultura ativa, no Rio de
Janeiro.
75
Minha versão de referência de Minha vida na Arte neste artigo é a edição italiana La mia vita nell’arte
(STANISLAVSKIJ, 2009), organizada por Fausto Malcovati, com tradução do russo de Raffaella Vassena,
para a editora La Casa Usher, Firenze (Itália), a partir da edição russa das obras completas de Stanislávski
Sobranie Socinij devjati tomach. Tom pervyj. Moja zizn’v iskusstve (Seleção de obras em nove volumes.
Primeiro volume. Minha vida na arte), Moskva, Iskusstvo, 1988.
128
o que tinha se desgastado, era preciso ser reavivado. Sem esse tipo de
trabalho, não era possível ir adiante (STANISLAVSKIJ, 2009, p. 311, tradução
nossa).
76
Na minha tese de doutorado, além do silêncio em François Khan, examino a maturidade artística de
outros atores e atrizes, atribuindo a cada um deles as seguintes qualidades: para Iben Nagel Rasmussen
(nascida em 1945), a transparência; para Beppe Chierichetti (nascido em 1948), a vulnerabilidade; para
Luigia Calcaterra (nascida em 1951), abandono.
129
queimado, esse pó torna-se cinzas que não se dissipam, mantendo a forma original dos
caracteres ou padrões do selo (BEDINI, 1963). A brasa que consome a linha contínua
representa seu caráter transitório; os caracteres ou padrões, que não perdem sua
significação após serem reduzidos a cinzas, dão lugar à sensação de duração, de demora.
Para pensar as qualidades que discuto em minha tese, inspiro-me no livro Seis
Propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1988). O escritor italiano identifica
seis qualidades – leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência –
que deveriam ser conservadas no campo da literatura no novo milênio. Analogamente,
acredito que determinadas qualidades deveriam ser cultivadas no campo teatral,
especificamente no trabalho do ator, sendo uma delas o silêncio. A qualidade denotaria
uma possibilidade de demora na maturidade artística, tal como o aroma do incensário
chinês permanece no tempo e no espaço.
130
revela-se extremamente difícil. Ele cita três situações de aplicação do silêncio no
trabalho parateatral desenvolvido junto a Grotowski:
1) Silêncio nas atividades físicas […]: quando corremos, por exemplo, temos a
tendência de fazer barulho com os pés e a respiração para criar uma espécie
de ritmo auto-hipnótico que é uma barreira, uma maneira de evitar a duração
do esforço, uma maneira de forçar para queimar mais rapidamente a energia
e declarar que não aguentamos mais, que estamos exauridos, que sofremos,
etc. A única solução é escutar o barulho que fazemos e reduzi-lo o máximo
possível. Isso nunca é ausência total de barulho, mas isso torna-se silêncio.
[…] 2) O silêncio nas atividades cotidianas, durante o trabalho: […] Trocar as
palavras por mímica […] irritava-o [a Grotowski] profundamente: ‘Se você
precisa do sal, à mesa, pegue-o diretamente; se você não o alcança, peça de
maneira clara e concisa, sem perturbar a tranquilidade de todos com gestos’.
[…] lavar a louça, sem barulho, provocava em mim uma forma de silêncio, de
calma, ligada à atividade manual, física, e à atenção que devo ter no
momento. É uma das vias para entender o paradoxo: o movimento que é
repouso. Mas, para atingir essa forma paradoxal de repouso, é preciso, talvez,
aceitar uma espécie de cansaço enorme, ou tocar em um desespero
profundo. […] 3) O silêncio na natureza: […] um dos segredos não é não fazer
barulho, mas não bater (ou fazer vibrar) a terra quando apoiamos os pés no
chão. […] Se começamos a nos esforçar para pensar que, na verdade,
caminhamos sobre o corpo de nossa mãe, a terra, talvez possamos atenuar
os golpes constantes que infligimos nela. Os animais aprendem desde cedo a
não fazer o solo vibrar; sua sobrevivência depende disso. Os pássaros também
são notáveis mestres do silêncio: eles tecem uma trama de sons que permite
a cada um se manifestar, elaborar um mapa sonoro do território onde vivem,
sem perturbar a escuta do silêncio (KAHN, 2019, p. 122).
Os meus mais de trinta anos de profissão, vividos como atriz do Teatro Tascabile
di Bergamo (Itália)77, e do Teatro Diadokai78 (Brasil), haviam forjado um canal privilegiado
– a expressão pelo movimento –, pautado pela apreensão de diversas técnicas corporais.
O TTB, em suas origens, teve o seu trabalho fortemente pautado por técnicas corporais,
herança da tradição dos teatros de grupo, dos teatros-laboratórios europeus (SCHINO,
2012) e – em certa medida – da antropologia teatral de Eugenio Barba (1993) e do teatro
pobre de Jerzy Grotowski. A corporalidade desenvolveu-se através de duas linhas de
77
O Teatro Tascabile di Bergamo (TTB) foi fundado em 1972 na cidade de Bergamo (Itália) e é um dos
grupos históricos do movimento dos teatros de grupo italianos, além de ser um centro de referência em
pesquisas práticas sobre as danças clássicas indianas. Fui aluna-atriz do TTB de 1989 a 1990, atriz de
1991 a 1994 e atriz-colaboradora de 2003 a 2007.
78
O Teatro Diadokai foi fundado por mim e pelo diretor Ricardo Gomes, a partir da estreia do
espetáculo Pedro e o lobo, em 1996, no Rio de Janeiro, com base na experiência profissional adquirida
por ambos no Teatro Tascabile di Bergamo. Para mais detalhes, ver DUARTE, Priscilla de Queiroz. Cap. 3
- O Recomeço no Brasil, In: _______ O Treinamento do Ator: do Corpo como Instrumento ao Corpo
como Experiência. Dissertação de mestrado, EBA, UFMG, 2014. p. 91-106.
131
pesquisa dentro do grupo: de um lado, a dança clássica indiana, de outro, o teatro de rua.
Por uma escolha estética, o teatro de rua praticado no TTB privilegiava o uso do corpo,
amplificado pelo amplo uso das pernas de pau; a dança clássica indiana, tal como
praticada na Índia, não prevê o uso da voz. Porém, o acento sobre a expressão do corpo
não excluiu a expressão da voz no trabalho do grupo. De fato, ao longo dos anos, o TTB
desenvolveu métodos próprios de trabalho sobre a palavra.
Além do “estilo oral” de Saramago, que quase convida mais à fala do que à
leitura, o tema do romance me tocava em modo particular. Por uma série de
circunstâncias, o protagonista da história, o oleiro Cipriano Algor, aos sessenta e quatro
anos de idade, se vê obrigado a re-inventar seu ofício para dar-lhe um novo sentido.
Analogamente, também era essa a minha necessidade com relação ao meu ofício de
atriz. De algum modo, esse experimento cênico buscava responder questões como: o
que me resta fazer agora, como atriz, com toda a bagagem acumulada nestes anos? A
resposta parecia estar escondida no caminho menos explorado: no trabalho com o
texto, ou seja, na expressão pela palavra em cena.
132
Abordagem do texto no Teatro Tascabile di Bergamo: o trabalho sobre o
zangão
133
conta a atriz Tiziana Barbiero, a respeito do processo de trabalho com o texto para o
espetáculo Esperimenti con la verità (Experimentos com a verdade) do TTB:
134
nos atores indianos de Kathakali, que depois de anos de treinamento, fazem sua primeira
apresentação atrás de uma cortina que não permite a visão de sua dança ao público:
Esse é o ator sem nome. Esse era o nosso ideal contra o ator do teatro
tradicional que se acotovelava com os companheiros para ter alguns
milímetros a mais nas letras garrafais dos cartazes, ou que lutava pela ordem
alfabética [na ficha técnica], pela ordem de aparição [em cena], ou por outros
tipos de ordem, se isso lhe conviesse. Ao lado do costume teatral europeu e
italiano, existia essa tradição que, depois de tanto trabalho, oferece sua
dança somente aos deuses. (VESCOVI, 2007, p. 175, tradução nossa).
A noção de “ator sem nome” (VESCOVI, 2007, p. 175, tradução nossa) liga-se
também a um certo entendimento de personagem e indivíduo anônimo:
79
Quando se trata de um texto dialogado, torna-se inevitável aprender também as réplicas dos
personagens desempenhados pelos outros atores.
137
(correndo, nadando, etc.) ou atividades manuais de precisão (costurar, lavar a louça,
etc.). Nos dois casos é preciso manter o rigor, a precisão e a fluência do texto pensado.
Por fim, deve-se pensar o texto em ambientes dispersivos e perturbadores (por
exemplo, em uma sala cheia de gente falando ou próximo a uma rua movimentada) ou
situações de esforço físico prolongado (por exemplo, subindo uma ladeira de bicicleta).
A última fase da memorização voluntária, a fase composta, é aquela na qual se
cria a “partitura do ator” (KAHN, 2009, p. 151). É o momento em que, talvez, seja mais
perceptível a mistura entre o processo consciente e o inconsciente. A improvisação
estruturada — fase da memorização involuntária e intuitiva, em que surgem as ações
que irão se conectar à memorização voluntária do texto — seria o fragmento inicial da
“partitura do ator”.
Sob muitos aspectos, a abordagem do texto proposta por François Kahn parece
estar em contradição com a abordagem do TTB que vimos anteriormente. Claramente,
a comparação entre esses dois “métodos” é esquemática e reducionista. Na realidade,
nenhum deles apresenta fases estanques; são procedimentos empíricos, inseridos em
processos longos e complexos. Não são fórmulas ou receitas que garantem um
determinado êxito final.
138
a principal vantagem da memorização escrita é não memorizar interpretação,
enunciação, musicalidade e ritmo do texto; o trabalho sobre o zangão do TTB baseia-se
justamente, na memorização da interpretação, da enunciação, da musicalidade e do
ritmo do modelo.
Da literatura à cena
Outro aspecto que aproxima meu experimento cênico sobre A Caverna do teatro
praticado por François Kahn é o fato de colocar em cena um texto literário, em uma encenação
intimista, reduzida ao essencial. Esse é o procedimento que caracteriza o projeto
TEATROdaCAMARA, criado por François Kahn em 1995, no qual se inserem os solos encenados
pelo artista. O TEATROdaCAMARA tem origem no período em que François Kahn vivia na Itália
e nasceu da necessidade de realizar espetáculos de forma totalmente autônoma ao circuito do
mercado teatral, apresentando-os em casas privadas. Kahn define assim o projeto:
139
A proximidade com os espectadores impõe, de forma muito concreta, um
determinado tratamento do texto por parte do ator, que Kahn descreve assim:
O crítico teatral italiano Franco Acquaviva (2016, grifo e tradução nossos) colhe
a essência do silêncio no trabalho de Kahn em A Dama do cachorrinho (criado em 2014)
(fig. 1), de Tchekhov:
140
Figura 1: François Kahn no ensaio do espetáculo A Dama do cachorrinho, na Escola Neijing. Belo
Horizonte (MG), janeiro de 2017. Foto: Maria Duarte.
Muitas vezes, notei nos atores que o grande volume dado à voz sufoca sua
capacidade de atenção auditiva (especialmente quando se trata de recordar
uma voz ouvida, uma situação vivida). Então, frequentemente peço ao ator
para trabalhar com uma voz “menor” que a sua voz natural, que seja apenas
suficiente para transmitir o sentido daquilo que ele tem a dizer e que, ao
mesmo tempo, permita que ele escute a voz interior da memória ou da
fantasia (sem cobri-la) (KAHN, 2018, p. 9).
Fernando Aleixo, que foi aluno em uma oficina ministrada por François Kahn,
registrou assim suas indicações a respeito do volume da voz:
141
direcionar o texto – um “falar com” – para as pessoas que estavam localizadas
próximas. Neste sentido, a ideia do “acolher” a presença e o olhar do outro,
aponta para um estado em que eu não “digo” ou “mostro” que estou olhando
o outro, eu apenas o olho e o vejo diante de mim (ALEIXO, 2014, p. 89, grifo
nosso).
“Não se esconder atrás do barulho da voz” (ALEIXO, 2014, p.89) equivale dizer
ao ator para não se esconder atrás de “entonações pré-fabricadas”, como disse
Acquaviva (2016). Penso que essas entonações prontas representam um filtro que
falseia a escuta interna de si, interferindo no processo de indução, na escuta do público
com relação ao ator. Paradoxalmente, o exercício da escuta de si passa por “falar com”.
De fato, François Kahn prefere ensaiar seus solos na presença de alguém e não de
espectadores imaginários, para poder “falar com”, realmente80.
80
Quando realiza espetáculos no Brasil, Kahn se apresenta em português. Graças a suas vindas
frequentes ao país (desde 1987), para apresentação de espetáculos, condução de oficinas e realização
de palestras, François Kahn vem aperfeiçoando o domínio do português falado e expressa-se
fluentemente em nossa língua. Apresentações em língua estrangeira, porém, exigem do ator francês
tempo e esforço redobrados na memorização do texto e a presença de colaboradores durante os
ensaios, para auxiliar na correção de eventuais erros de tradução ou de pronúncia do português.
142
Figura 2: Francois Kahn no espetáculo Viagem à Izu, em apresentação no Festival de Ouro Preto e Marina.
Ouro Preto (MG), 2013. Foto: Maria Duarte.
143
Novo sentido no processo criativo
Figura 3: Priscilla Duarte durante primeira fase do experimento sobre A Caverna, na Escola Neijing. Belo
Horizonte (MG), 2016. Foto: Priscilla Duarte.
81
O primeiro período de trabalho com François Kahn foi de uma semana, em Belo Horizonte (MG), em
janeiro de 2017. O segundo foi de quinze dias, em julho de 2017, durante viagem de estudos (doutorado
sanduíche), no formato de residência artística no Teatro Tascabile di Bergamo (Itália), como parte da
mostra Arcate d’Arte, organizada pelo TTB. Ao final, foram realizadas duas apresentações públicas dos
resultados da residência, sob o título La Brocca (O Cântaro). O trabalho foi apresentado em português,
precedido de uma introdução em italiano. O terceiro período foi de cinco dias, em julho, e de três dias,
em novembro, de 2019, em Ouro Preto (MG).
144
Antes de ter o texto completamente memorizado, comecei a esboçar
possibilidades de composição, dizendo trechos do texto enquanto improvisava as ações
físicas. Por não se tratar de um método dogmático, não é necessário que uma etapa
esteja completamente superada para iniciar a etapa sucessiva; não há uma progressão
linear. O pressuposto de base – memorizar o texto antes de começar a agir – permanece
como uma meta ideal, um farol que ilumina o caminho. Claramente é preciso atingir um
grau mínimo de memorização para que as ações possam se desenvolver com uma certa
liberdade com relação ao texto escrito. Em caso de lapso de memória, a consulta ao
texto escrito deve ser feita em modo tranquilo, buscando manter a concentração no
fluxo das ações.
145
processo integrado. Apesar da memorização do texto ser preparada em separado, a
forma de dizê-lo não é fixada de imediato. Por isso o texto permanece plástico o
suficiente para ser trabalhado em conjunto com as ações.
Outra questão que se colocou durante o trabalho com François Kahn, foi o
problema da emoção. Desde a biomecânica de Meyerhold e as pesquisas de Stanislávski
sobre as ações físicas, sabe-se que não é possível ao ator controlar as emoções, mas
apenas as ações. No TTB, a emoção era considerada como algo relacionado ao “eu
privado”, ao “eu psicológico”, coisa que não interessa ao espectador; o teatro é lugar do
“eu teatral”, um eu que é artificial. Renzo Vescovi, costumava ressaltar o aspecto
146
artificial e artesanal do teatro: “uma vez que o teatro é produto de um trabalho
artesanal, tudo aquilo que se refere a ele, com diversas características, resulta ‘arti-
ficial’” (VESCOVI, 2007, p. 117, tradução nossa). Dentro desse entendimento, a emoção
diz respeito ao espectador, como rasa, ou seja, como emoção estética, tal como explica
Tarlekar em comentário sobre o Natyasastra82:
Vescovi acreditava que esse “eu teatral” em oposição ao “eu privado”, tem sua
máxima expressão no teatro oriental que se baseia no “cancelamento consciente da
individualidade” (VESCOVI, 2007, p. 125). O ator oriental se utiliza de “uma técnica que
fixa na precisão do corpo os impulsos desordenados da psique” (VESCOVI, 2007, p. 103,
tradução nossa). De fato, como visto anteriormente, a noção de ator sem nome de
Renzo Vescovi nasce justamente de uma oposição à ideia de personagem como algo que
possa ser confundido (pelos espectadores) com o “eu privado” do ator, como uma
projeção na vida cotidiana do ator, que caracteriza a divinização: “No teatro tradicional
[…] há espaço para a divinização, isto é, espaço para a continuação do papel do
personagem fora da cena” (VESCOVI, 2007, p. 179, tradução nossa).
82
O Natyasastra é um antigo tratado sobre o teatro sânscrito, e ainda hoje referência fundamental para
a cultura cênica indiana. Sua autoria é atribuída ao mítico Bharata Muni, cuja existência nunca foi
comprovada historicamente. Muni quer dizer sábio, e bharata seria um acróstico de bhava
(sentimento), raga (melodia) e tala (ritmo). O mais provável é que o texto seja o resultado da
contribuição de diversos autores anônimos ao longo dos séculos. Igualmente incerta é a data de sua
escritura, que pode variar, segundo diferentes historiadores, entre os sécs. VI a.C. e II d.C. (GOMES,
2007).
147
sentimental”, expressão usada por Grotowski e lembrada por Kahn (2019, p. 53). A meu
ver, o que François Kahn chama de emoção é a manifestação de um fluxo subterrâneo.
Outro fator singular da experiência de trabalho vivida com François Kahn sobre
o texto de Saramago foi o valor adquirido pelo silêncio. A condição do silêncio, que
acompanha François Kahn desde os tempos do trabalho parateatral com Grotowski, é
aprofundada nos escritos mais recentes do ator e diretor francês83. A necessidade do
silêncio durante o trabalho da memorização escrita tornou-se patente. O silêncio não é
uma ausência de som, mas uma ausência de ruído. A calma que se instalava durante a
memorização escrita disseminava-se nos outros momentos do trabalho onde eram
previstos sons (da voz, da respiração, da movimentação do corpo no espaço, da
manipulação de objetos); como se, para propiciar uma condição criativa, fosse
necessário instaurar um não ruído dentro de cada som; uma não ação dentro de cada
ação. E assim, cada som, quando ocorre, não é uma interferência, mas torna-se uma
manifestação sonora única, absolutamente necessária, essencial. Através do silêncio
despertou-se uma sensibilidade de tipo quase sinestésico, principalmente pelo uso do
barro e da água, matérias primas do trabalho do protagonista do romance A Caverna. A
modelagem da argila84 (fig. 4) fez parte das improvisações e da composição das cenas e
contribuiu enormemente para conectar o meu trabalho de atriz ao ambiente e aos
personagens da história de Saramago.
83
A esse respeito, ver KAHN, François. DUARTE, Priscilla (tradução). A prática do silêncio no trabalho
teatral e parateatral. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, p. 347-361.
maio 2018; e KHAN, François. DUARTE, Priscilla (tradução). O Jardim: relatos e reflexões sobre o trabalho
parateatral de Jerzy Grotowski de 1973 a 1985. São Paulo: É Realizações, 2019.
84
Durante doutorado-sanduíche na Itália, além de realizar ensaios sob a supervisão de Kahn, tive a
oportunidade de frequentar um curso livre de modelagem em cerâmica, com o mestre Luca Catò, no
laboratório da Associazione Tutti Gìu per Terra, em Bergamo.
148
Figura 4: Priscilla Duarte durante curso de modelagem em cerâmica no laboratório da Associazione Tutti
Gìu Per Terra. Bergamo (Itália), junho de 2017. Foto: Luca Catò.
[…] se a obra não tem uma validade, uma importância, uma força… alguma
coisa falhou. É um paradoxo: a obra, como obra, se a gente faz um espetáculo,
é um espetáculo, por exemplo, como obra, deve ser, de uma certa maneira,
impecável. Senão, tudo se torna rebaixado. E, aí… Podemos analisar até
porque. Por que nos dizemos: ‘Bom. Eu trabalho do domínio do, digamos,
acting, no domínio de um aspecto performativo. Mas, na verdade, são outras
as riquezas que eu busco’. Sim, mas, se nos dizemos isso… nós nos damos a
liberdade de não realizar o trabalho. De não realizar sua obra. De não chegar
a uma qualidade nisso que é o trabalho artístico. E, é, inevitavelmente brisa…
149
isso se torna desonesto. Então, é… aí é preciso sempre ser consciente. Sim.
Isso deve, isso pode ser, alguma coisa que ultrapassa a obra… que é esta porta
de ascensão dentro de nós mesmos. Mas… ou na direção de alguma coisa de
nós mesmos, ou na direção de alguma coisa… sim. Mas a obra enquanto obra,
deve ser impecável. É absolutamente necessário. Não tem nenhuma
justificativa que possa mudar isso. Se a gente faz, isso deve ser bem feito. Se
queremos realizar… realizar esse outro aspecto, é preciso realizar o primeiro
aspecto. Que deve ser impecável. É contra toda a nossa preguiça e contra
toda a nossa necessidade de fazer as coisas facilmente e rapidamente. Mas,
não existe outra estrada. Tem uma quantidade de estradas possíveis, dentro
das opções. Mas, não tem nenhuma estrada eficaz que seja, simplesmente,
fácil (GROTOWSKI, apud SODRÉ, 2014. p. 191-192).
É preciso lembrar que o apreço de Renzo Vescovi, diretor do TTB, pela técnica
e pelo âmbito formal estava em consonância com a consciência plena do valor do
artesanato do trabalho do ator para que esse possa ser preenchido por uma qualidade
que está além da técnica. Como ocorre frequentemente em sua trajetória artística, seu
ponto de referência para essa reflexão é a tradição clássica indiana. Vescovi refere-se à
taça — ou patra (pote) mencionado por Tarlekar (1999, p. 56) — e à graça que se
deposita dentro dela:
150
especialmente difícil escolher os detalhes que costuravam a trama, privilegiando as falas
e ações dos personagens principais e cortando as partes excedentes. Por fim, chegamos
a uma versão final do texto, com quinze laudas divididas em oito cenas. Em todas essas
ocasiões de trabalho, além de dividirmos a adaptação do texto, François Kahn
comportou-se quase como um diretor, embora ele prefira nomear a sua função como
colaboração artística. Me fez notar que, na realidade, a diretora era eu, uma vez que a
concepção do espetáculo era minha. Depois de La Brocca (O Cântaro) (fig. 5), o título
definitivo da adaptação do texto ficou sendo O amor possível. O título nasce da
observação de Aranda (2015, p. 92) sobre como Saramago trata do amor em seus
romances:
[…] o amor que o autor expõe é sempre assim: possível. Amores fortes,
passionais mas sem rupturas, sem o acréscimo de sofrimentos desmedidos
nem tarefas irrealizáveis. “Nos meus romances não costuma haver exageros”,
diz referindo-se a esse romance contemporâneo em que todos os amores
estão estragados, como também no cinema. Tudo tem que ser levado ao
limite, quando na vida normal nem tudo atinge esses limites extremos. A vida
às vezes é muito mais normal que tudo isso. “Os meus romances são
romances de amor porque são romances de um amor possível, não
idealizado; um amor concreto, real, entre as pessoas” (ARANDA, 2015, p. 92).
Figura 5: Priscilla Duarte no ensaio geral de La Brocca (O Cântaro), conclusão de residência artística com
François Kahn no Teatro Tascabile di Bergamo. Bergamo (Itália), julho 2017. Foto: Ricardo Gomes.
151
O sentimento como aroma na maturidade artística
Por que realizar um espetáculo? Essa talvez seja uma das questões mais
fundamentais que se apresenta para a minha própria maturidade artística. Fazer teatro,
como atriz, foi sempre a busca por uma dimensão do sensível, um caminho de
conhecimento e de transformação de si. Qual seria então a qualidade, o “aroma do
tempo” (Han, 2016), que emerge da minha trajetória, em busca dessa dimensão? Os
estudos gudijeffianos oferecem uma pista ao apontar o sentimento como “instrumento
essencial no conhecimento” (SALZMANN, 2015, p. 79). Claramente a analogia entre o
trabalho do ator e o trabalho sobre si em Gurdjieff tem seus limites: seus objetivos e
seus meios são diferentes. Porém, a definição do que seja o sentimento no trabalho
proposto por Gurdjieff parece bastante pertinente àquilo que compreendo como
caminho em direção ao conhecimento no trabalho do ator:
Nos estudos gurdjieffianos, corpo, mente e sentimento são forças que devem
ser harmonizadas para permitir uma conexão estável com uma força mais alta; somente
então uma transformação pode ter lugar (RAVINDRA, 2001). Observando meu percurso
artístico, no entanto, percebo que por muito tempo, houve uma desarmonia entre essas
três forças: o corpo assumiu o comando, como se esse pudesse ser separado da mente
e como se ambos não tivessem relação com o terceiro elo da corrente, o sentimento.
Penso que um dos sinais concretos da chegada da maturidade é que ela impõe uma
reavaliação quanto ao uso do corpo; o avançar da idade traz desgastes e limitações
físicas. Essa reorganização das relações entre corpo e mente poderia abrir espaço para
que o sentimento pudesse se instalar. No processo de criação do espetáculo solo O amor
possível, é como se esses três fatores estivessem buscando uma reorganização em torno
da busca de novos caminhos expressivos. Sendo o sentimento “uma qualidade mais
intensa de sensação” (SALZMANN, 2015, p. 81), a demora sobre ele poderia, talvez,
significar a possibilidade de uma maturidade artística “com aroma”, parafraseando Han
(2016). Teríamos, portanto, uma maturidade artística que permite ao sentimento
152
perdurar, para que possa ocupar seu espaço, tal como o aroma do incenso chinês, que
arde ao mesmo tempo que conserva suas cinzas.
Referências
ALEIXO, Fernando Manuel. Texto, memória e fala. Um encontro com François Kahn.
Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, [S.l.], v.2, n.23, p. 83-91, nov. 2014.
ISSN 2358-6958. Disponível em:
<http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102232014
083>. Acesso em: 20 mar. 2020. doi:https://doi.org/10.5965/1414573102232014083.
ARANDA, Óscar. Aprende, aprende o meu corpo. Sobre o amor na obra de José
Saramago. Tradução de António Costa Santos. Lisboa: Fundação José Saramago, 2015.
BARBIERO, Tiziana. Una rosa bianca. In: VESCOVI, R. Scritti dal Teatro Tascabile. A cura
di Mirella Schino. Roma: Bulzoni, 2007. p. 337-351.
BEDINI, Silvio A. The scent of time. A study of the use of fire and incense for time
measurement in oriental countries. Philadelphia: The American Philosophical Society,
1963.
CALVINO, Italo. Lezioni Americane. Sei proposte per il nuovo millennio. Milano:
Garzanti, 1992.
GROTOWSKI, Jerzy. Teatro delle Fonti. In: __________. Testi 1945-1998. Vol. III. Oltre il
Teatro (1970-1984). Traduzione Carla Pollastrelli. Firenze: La Casa Usher, 2016. p. 235-
253.
153
HAN, Byung-Chul. O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora.
Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2016.
KAHN, François. A partir do conto Izu no odoriko (La danzatrice di Izu) di Kawabata
Yasunari. In: __________. Viagem a Izù (Dossier); adaptação teatral, direção e
atuação: François Kahn. (s/d)
RAVINDRA, Ravi. Coração sem limites. Trabalho com Madame de Salzmann. São Paulo:
Horus, 2001.
SALZMANN, Jeanne de. A Realidade do Ser. O Quarto Caminho de Gurdjieff. São Paulo:
Horus, 2015.
TARLEKAR, G.H. Studies in the Natyasastra. Whit Special Reference to the Sanskrit
Drama in Performance. Delhi: Motilal Banarsidass, 1999.
VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Org: Mirella Schino. Roma: Bulzoni, 2007.
154
Ficha Técnica
PPGAC/unirio e Escola de Teatro da UNIRIO
apresentam:
NA UNIRIO
Agradecimentos Em 2009, nos 10 anos de morte de Grotowski,
Reitor: Ricardo Silva Cardoso
Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Evelyn Andréa Beltrão, Marieta Severo, José Luiz Coutinho, Flavia organizamos o primeiro Seminário Internacional
Goyannes Dill Orrico Gomes, Luiz Henrique Sá, Carolina Bassi de Moura, Juliana
Grotowski e agora, em 2019, fazemos uma segunda
Manhães, Jorginho de Carvalho, Eurides Lourenço, Márcio
grotowski 2019:
Curadoria e coordenação geral: Tatiana Motta Lima mas em um Grotowski pesquisador, autocrítico,
Coordenação: Carla Pollastrelli, Fernando Mencarelli, Lidia Olinto, capaz de mudanças radicais de rumo. Interessa-nos
Luciano Matricardi, Michele Zaltron e Ricardo Gomes.
INTERNACIONAL
Coordenação regional (itinerâncias): Alice Stefânia e Lidia Olinto aquele Grotowski das “palavras praticadas”, palavras
(UNB), Daniel Plá (UFSM), Fernando Mencarelli e Monica Ribeiro nascidas da prática e endereçadas à prática não
(UFMG), Ricardo Gomes e Paulo Maciel (UFOP).
como receitas ou dogmas, mas como perguntas que
COMITÊ CIENTÍFICO podem nos interessar enquanto pesquisadores que
Formado pelos professores Antonio Attisani, Dariusz Kosiński, escola de teatro da unirio também somos. Ao nos depararmos com a cultura
Tatiana Motta Lima, Adilson Florentino, Fernando Mencarelli, avenida pasteur, 436 - fundos - urca
ativa, por exemplo, tema de nosso seminário, vemos
Monica Ribeiro, Ricardo Gomes, Paulo Maciel, Cassiano Quilici,
teatro poeira uma noção que, vinda do campo da arte, pode nos
Matteo Bonfitto, Renato Ferracini, Lidia Olinto, Luciana rua são joão batista, 104 - botafogo
seminário
Hartmann, Alice Stefânia Curi, Rita de Cássia de Almeida auxiliar a um pensar/fazer relacional mais lúcido
Castro, Fernando Villar, Daniel Reis Plá, Silvana Baggio, Flavio escola de capoeira angola renascer
de Campos Braga, Gilberto Icle, José Tonezzi e ainda por Carla rua Cândido mendes, 476 - glória e cidadão, pois ela nomeia ações artísticas que
Pollastrelli e François Kahn convocam à experiência de uma potencialização da
vida na contramão da pasteurização da sensibilidade
CONVIDADOS MARCA
ESCOLA DE TEATRO
realização
FUNDO CLARO
24/11
Tradução: André Grabois e Giovanna Ferrari
Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: Yasmin Piorino Atravessar os anos 70 com Grotowski: incertezas,
miragens, descobertas
17:30 às 19:30 Palestra
19:30 ÀS 21:30 Espetáculo Teo Spychalski
TEATRO POEIRA
UNIRIO - PALCÃO Mediação: Fernando Mencarelli | Tradução: Tatiana Motta Lima 9:00 às 11:00 Oficina Pensamentos de improviso - Um olhar sobre as
Episódio I: Uenda-congembo (morrer) TEATRO POEIRA discussões e vivências realizadas no seminário
Solo de Luciano Mendes de Jesus 17:30 às 19:30 Entrevista Pública
A Voz Viva Antonio Attisani
unirio - PALCÃO
Guilherme Kirchheim Mediação: Ricardo Gomes | Tradução: Luciáh Tavares
Carla Pollastrelli
Mediação: Zeca Ligiero | Tradução: Andreia Tamanini 9:00 às 11:00 ENCONTRO TEÓRICO 20:30 ÀS 22:30 Espetáculo
21/11
Entrevistadores: Ricardo Gomes + Fernando Mencarelli TEATRO POEIRA TEATRO POEIRA
Liberdade como tentação primária (Grupo 3) MOLOCH - Testemunha: Allen Ginsberg
20:00 ÀS 22:00 Ensaio Aberto conversa Magda Złotowska Solo de François Kahn
unirio - PALCÃO
Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: André Grabois
10:00 às 12:00 Palestra O Amor Possível
teatro poeira Solo de Priscilla Duarte 10:00 à 12:00 Exibição de Filme
Parateatro e Teatro das Fontes: experiências e textos Mediação: José Tonezzi unirio - AUDIOVISUAL
Carla Pollastrelli
Mediação: Patricia Furtado de Mendonça 14:00 às 16:00 Palestra antes e depois do seminário
Tradução: Andreia Tamanini TEATRO POEIRA
FRT Workcenter - Os atuais eventos
14:00 Às 16:00 Espetáculo
teatro poeira
23 /11 performativos do Focused Research Team in Art
as Vehicle
18 e 19/11
10 às 13:00 e 15 às 18:00
MOLOCH - Testemunha: Allen Ginsberg Guilherme Kirchheim unirio
Solo de François Kahn 9:00 às 11:00 Oficina Mediação: Camillo Scandolara Minicurso Grotowski Pós-Teatral
TEATRO POEIRA
Ministrado por Lidia Olinto e Tatiana Motta Lima
17:30 às 19:30 Palestra A Voz Viva 17:30 às 20:30 Mesa REDONDA
unirio - palcão Guilherme Kirchheim UNIRIO - palcão
Antes, durante e depois do teatro (pensando em Mestres e Doutorandos com pesquisas em 26/11
Grotowski e além) 9:00 às 11:00 ENCONTRO TEÓRICO Grotowski 14:00 às 18:00
Antonio Attisani TEATRO POEIRA Carolina de Pinho Magalhães (UFOP/UFMG), colégio leopoldo - nova iguaçu
Mediação: Michele Zaltron | Tradução: Ricardo Gomes Liberdade como tentação primária (Grupo 2) Daniele Sampaio (UNICAMP), Evelin Reginaldo
Magda Złotowska (UNIRIO), Ilda Andrade (UNESP), Letícia Carvalho Encontro Mario Biagini e Tatiana Motta Lima
(UNIRIO), Liége Müller (UNIRIO), Maria Lyra com os grupos do Rede Baixada Em Cena a convite
20:00 Às 22:00 Encontro Prático Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: André Grabois
(USP), Silvana Baggio Ávila (UFRGS) e Thiago de Lino Rocca
unirio - sala 602
10:00 àS 12:00 Exibição de Filme Miguel Sabino (UNESP)
Cantos Vissungos apresentação de documentário
Luciano Mendes de Jesus unirio - AUDIOVISUAL Mediação: Simone Shuba
Rede Baixada em Cena - História de um teatro periférico