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anais do

seminário
INTERNACIONAL
grotowski 2019:
uma cultura ativa

MARCA
ESCOLA DE TEATRO
ESTENDIDA
FUNDO CLARO

realização apoio

MARCA
ESCOLA DE TEATRO
ESTENDIDA
FUNDO ESCURO
O SEMINÁRIO INTERNACIONAL
GROTOWSKI 2019: UMA CULTURA ATIVA
OCORREU EM NOVEMBRO DE 2019.

SUAS ATIVIDADES FORAM REALIZADAS


NO RIO DE JANEIRO E PARTE DA
PROGRAMAÇÃO FEZ ITINERÂNCIA PELAS
CIDADES DE BELO HORIZONTE (MG),
SANTA MARIA (RS), OURO PRETO (MG) E
BRASÍLIA (DF).

Ficha Técnica Analista de Marketing Digital: Whiverson Reis


Coordenação de comunicação virtual e impressa:
NA UNIRIO Jeff Lyrio
Reitor: Ricardo Silva Cardoso Equipe de Assessoria de Imprensa: Ana Pinto e
Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Marcia Fixel
Evelyn Goyannes Dill Orrico Coordenação de Foto e Vídeo: Bruna Trindade e
Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Jorge de Paula Thais Inácio
Costa Avila Equipe de Foto e Vídeo: Gabi Matos, Lia Rodrigues,
Decana do CLA: Carole Gubernikoff Avenida Suellem Fernouz, com colaboração de Pedro Martins e
Diretor da Escola de Teatro: Luiz Henrique Sá Vitor Medeiros.
Coordenador do PPGAC: Adilson Florentino Equipe de Tradução: André Grabois, Andreia Tamanini,
Caetano da Motta Lima Souza Ramos, Franciele
Castilho, Giovanna Ferrari, Luciáh Tavares, Priscilla
NO SEMINÁRIO Duarte, Ricardo Gomes, Tatiana Motta Lima, Yasmin
Curadoria e coordenação geral: Tatiana Motta Lima Piorino.
Coordenação: Carla Pollastrelli, Fernando Mencarelli, Equipe de Luz: Luma Wyżykowska, com colaboração
Lidia Olinto, Luciano Matricardi, Michele Zaltron e de Jorge Oliveira e Kay Lima
Ricardo Gomes. Equipe de Som: Akauã Santos e Heitor Acosta
Coordenação regional (itinerâncias): Alice Stefânia
e Lidia Olinto (UNB), Daniel Plá (UFSM), Fernando PRODUÇÃO EXECUTIVA
Mencarelli e Monica Ribeiro (UFMG), Ricardo Gomes e
Coordenação de Produção UNIRIO: Letícia Carvalho e
Paulo Maciel (UFOP).
Jai Gonçalves, com colaboração de Jeff Fagundes
Coordenação de Produção Teatro Poeira: Marcelo
COMITÊ CIENTÍFICO Miguez e Walace Pinheiro
Formado pelos professores Antonio Attisani, Dariusz Coordenação de Produção E.C.A. Renascer: Bruna
Kosiński, Tatiana Motta Lima, Adilson Florentino, Trindade
Fernando Mencarelli, Monica Ribeiro, Ricardo Gomes, Equipe: Anderson Caetano, Bruna Trindade, Camila
Paulo Maciel, Cassiano Quilici, Matteo Bonfitto, Zampier, Elyseu Rodrigues, Emanuel Cecchetto, Fellipe
Renato Ferracini, Lidia Olinto, Luciana Hartmann, Estevão, Franciele Castilho, Gabi Matos, Giovanna
Alice Stefânia Curi, Rita de Cássia de Almeida Castro, Ferrari, Heitor Mota, Isabelle Cardoso, Jansen Castellar,
Fernando Villar, Daniel Reis Plá, Silvana Baggio, Flavio Jeff Lyrio, Lucas Menezes, Luciáh Tavares, Manuel
de Campos Braga, Gilberto Icle, José Tonezzi e ainda Figueiredo, Renata Asato, Suellem Fernouz, Thauane
por Carla Pollastrelli e François Kahn Oliveira, Valentina Cárcano, Valentina Miranda, Walace
Pinheiro, Whiverson Reis e Yasmin Piorino
CONVIDADOS
Antonio Attisani, Carla Pollastrelli, François Kahn, Agradecimentos
Guilherme Kirchheim, Luciano Mendes de Jesus, Andréa Beltrão, Marieta Severo, José Luiz Coutinho,
Magda Złotowska, Mario Biagini, Priscilla Duarte e Teo Flavia Gomes, Luiz Henrique Sá, Carolina Bassi de
Spychalski Moura, Juliana Manhães, Jorginho de Carvalho,
Eurides Lourenço, Márcio Leandro Oliveira, Paulo
EQUIPE DE PRODUÇÃO Barbeto, Anderson Ratto, Clarisse Terra, Edinho, Da
Coordenação geral: Tatiana Motta Lima, com Guia, Francisco de Lima, Lino Rocca (Rede Baixada em
colaboração de Luciano Matricardi e Michele Zaltron Cena), Priscilla Duarte, Jair Ramos, Dayse Farid, Maria
Design gráfico: Alice Cruz Clara Migliora e a todxs que ofereceram suas casas em
Gestor de Marketing Digital: Jhonattan Reis hospedagem solidária.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Even3 Publicações, PE, Brasil)

S471 Seminário Internacional Grotowski 2019: uma cultura ativa


(1. : 2019 : Rio de Janeiro, RJ)
Anais do Seminário Internacional Grotowski 2019: uma
cultura ativa [recurso eletrônico] / organizadores: Tatiana
Motta Lima, Luciano Matricardi. – Recife: Even3 Publicações,
2021.
156 p. : il.

Modo de acesso: Internet.


ISBN: 978-65-5941-130-6

1. Grotowski. 2. Workcenter. 3. Teatro. 4. Arte. 5.


Aprendizagem. I. Título.

CDD 792
CDU 792
SUMÁRIO

Apresentação (Tatiana Motta Lima | Luciano Matricardi)................................................3

Do teatro filosófico ao Mistério: Apontamentos sobre relações entre cena e ritual em


Jerzy Grotowski (Thiago Miguel Sabino).........................................................................14

Silêncio: um valor nas composições cênicas de Jerzy Grotowski (Luciano Mendes de


Jesus)..............................................................................................................................28

Diálogos entre o Impulso, nas pesquisas de Jerzy Grotowski, e a proposta de um corpo


limiar, na busca por processos criativos orgânicos e precisão cênica para além dos
códigos (Carolina de Pinho Barroso Magalhães).............................................................40

A experiência do aprendiz no trabalho sobre as ações físicas (Silvana Baggio Ávila).....57

“O corpo não tem memória, o corpo é memória” (Evelin Reginaldo)............................70

Grotowski: Percursos de pesquisa (Ilda Andrade)..........................................................88

Grotowski estrategista: a desconstrução do ermitão (Daniele Sampaio)....................110

O amor possível ou em busca do aroma na maturidade artística (Priscilla Duarte).....126

ANEXO | Programação do Evento................................................................................155

2
Apresentação

Tatiana Motta Lima1


Luciano Matricardi2

Como parte das homenagens aos 20 anos de falecimento de Jerzy Grotowski, em


novembro de 2019, realizamos o Seminário Internacional Grotowski 2019: uma cultura
ativa. O evento teve curadoria e coordenação geral da Profa. Dra. Tatiana Motta Lima e
coordenação de Carla Pollastrelli, dos Profs. Drs. Fernando Mencarelli e Ricardo Gomes,
da Profa. Dra. Lidia Olinto, e, ainda, da bolsista de pós-doutorado Michele Zaltron e do
doutorando Luciano Matricardi (ambos vinculados ao PPGAC-UNIRIO). O Seminário,
uma atividade do PPGAC e da Escola de Teatro da UNIRIO, foi realizado com verba
proveniente do Programa de Apoio a Eventos no País (PAEP) da CAPES e feito em
parceria com outros PPGs e Departamentos: PPGArtes/UFMG, PPGCEN/UNB,
PPGAC/UFOP e com o Departamento de Artes da UFSM. Essa parceria permitiu a
itinerância do Seminário, com alguns convidados ministrando palestras ou realizando
seus espetáculos nas cidades parceiras. No Rio de Janeiro, foram sete dias de atividades
intensas - espetáculos, mesas redondas, entrevistas públicas, palestras, lançamentos de
livros, exibição de filmes e oficinas - ocorridas na Escola de Teatro, no Teatro Poeira, na
Escola de Capoeira Angola Renascer e no Colégio Leopoldo, em Nova Iguaçu, a convite
da Rede Baixada em Cena. O Seminário contou com 7 convidados vindos da Itália, França
e Canadá: o professor universitário, pesquisador do teatro e especialista na obra de
Grotowski e do Workcenter (Antonio Attisani); uma das responsáveis pela criação do
Workcenter em Pontedera, tradutora da obra completa de Grotowski para o italiano e,
por essa obra, ganhadora do Prêmio Ubu (Carla Pollastrelli); três artistas que
colaboraram intensamente com Grotowski nas fases pós-teatrais (François Kahn, Magda
Złotowska e Teo Spychalski); e dois membros do Workcenter of Jerzy Grotowski and
Thomas Richards (Mario Biagini, diretor associado do Workcenter e diretor do Open
Program, e Guilherme Kirchheim, ator brasileiro que integra a equipe Focused Research
Team in Art as Vehicle, dirigida por Thomas Richards). Além desses, foram convidados
dois artistas-pesquisadores brasileiros, Priscilla Duarte e Luciano Mendes de Jesus. Um
dos momentos importantes da programação, e que está representado nos anais que ora
publicamos, foi a mesa, mediada pela Prof. Dra. Simone Shuba da Escola Macunaíma,
de mestres e doutorandos brasileiros que apresentaram suas pesquisas vinculadas à
obra de Jerzy Grotowski e/ou do Workcenter. Além dos pesquisadores que estiveram na

1
Professora Associada da Escola de Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), atuando no Departamento de Interpretação e no Programa de Pós Graduação em Artes
Cênicas (PPGAC); diretora do grupo Hanimais Hestranhos e atriz bissexta.
2
Doutorando no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); ator e professor de interpretação teatral.

3
mesa, convidamos, para escrever para esses anais, a recém doutora Priscilla Duarte e o
doutorando Luciano Mendes de Jesus.

Em 2009, nos 10 anos de morte de Grotowski, organizamos o primeiro


Seminário Internacional Grotowski e, agora, realizamos uma segunda edição. Embora as
datas de homenagem sejam importantes, não é isso que nos move, posto que não nos
interessa um Grotowski “finalizado” ao qual seríamos fiéis ou renderíamos homenagens.
O que temos em vista é outro Grotowski, aquele que foi continuamente pesquisador,
autocrítico, capaz de mudanças significativas no rumo de suas investigações, e que está
sempre a ser relido e redescoberto. Interessa-nos aquele Grotowski das “palavras
praticadas”, palavras nascidas da prática e endereçadas à prática não como dogmas,
mas como perguntas que podem nos estimular nas nossas próprias pesquisas. Ao nos
depararmos com a cultura ativa, por exemplo, tema de nosso seminário, vemos uma
noção que pode auxiliar-nos na compreensão de um pensar/fazer relacional mais lúcido
e cidadão, pois ela nomeia ações artísticas que convocam à experiência de um
descondicionamento nos modos de pensar, sentir e agir, de um alargamento da
percepção, de uma escuta mais aberta e atenta, na contramão da pasteurização e
colonização da sensibilidade cotidiana contemporânea. Nessas experiências, a
performance aparece como ação transformadora vinculada a uma política do sensível.

É com alegria, então, que vemos aumentarem, desde 2009, também por conta
dessa rede de professores que esteve envolvida na construção desses e outros eventos
relacionados ao percurso de Grotowski, as pesquisas referentes ao trabalho do artista.
Nos últimos anos, também foram muitas as traduções para o português de livros
dedicados às investigações do artista polonês, sobretudo pelo esforço feito pela editora
É Realizações. Entre eles, livros escritos por companheiros de trabalho de Grotowski de
diferentes épocas, como Ludwik Flaszen3, James Slowiak e Jairo Cuesta4 e, mais
recentemente, François Kahn5. O aumento da publicação de obras em nosso idioma e,
também, o aumento das pesquisas universitárias - dissertações e teses - dedicadas à sua
obra não apenas mostram a importância que a obra de Grotowski continua tendo no
contexto brasileiro, mas também permitem que voltemos a ler, a estudar e a analisar os
textos do artista polonês e de seus colaboradores. Acreditamos ser necessário evitar
uma leitura mistificadora e/ou datada que, ao invés de contextualizar os conceitos e
práticas, revelando um Grotowski pesquisador, acaba por aplainar seus processos de
investigação, perdendo de vista perguntas e experiências que poderiam dialogar de
maneira intensa com o contexto da criação teatral e atoral brasileiras de hoje. A obra de
Grotowski faz parte de uma tradição que só pode existir enquanto transformação. Ela

3
FLASZEN, Ludwik. Grotowski & companhia: origens e legado. São Paulo: É Realizações, 2015.
4
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2013.
5
KAHN, François. O Jardim - Relatos e Reflexões sobre o Trabalho Parateatral de Jerzy Grotowski de
1973 a 1985. São Paulo: É Realizações, 2019.

4
se renova na medida em que é vista a partir de olhares e inquietações contemporâneas,
mas, por outro lado, pela radicalidade, profundidade e potencialidade dessa tradição
investigativa, ela também tem a capacidade de renovar esses mesmos olhares colocados
sobre ela. Traça-se, assim, uma via de mão dupla, onde não se sabe mais exatamente
quem sofre influência de quem. As leituras do trabalho de Grotowski serão tanto mais
ricas quanto buscarem seguir e compreender as transformações na pesquisa do artista
polonês, não querendo, a todo custo, encontrar uma unidade definitiva ou uma essência
para aquilo que esteve em permanente movimento. A aventura de Grotowski é tão mais
interessante quanto menos procuramos certezas, e quanto mais nos deixamos
interrogar (ao interrogá-lo).

Nesse sentido, nosso esforço foi de reunir nestes anais os trabalhos de


pesquisadores e pesquisadoras em formação que buscam refletir sobre diferentes
âmbitos da pesquisa e da criação de Grotowski, bem como de seus colaboradores e/ou
continuadores, a partir de inquietações ligadas às suas experiências como atores,
diretores, preparadores, produtores e professores. Os artigos tratam de elementos
técnicos do trabalho do ator, de experiências de criação e de aprendizagem, da
composição da cena, das relações ator-espectador, da produção e gestão de práticas
artístico-investigativas, do deslizamento entre arte e vida e entre arte e ritual. O teatro
aparece nesses artigos, como não poderia deixar de ser quando se trata do percurso de
Grotowski, no cruzamento de uma série de implicações históricas, sociais, políticas,
filosóficas e antropológicas.

***

Buscando entender o surgimento da noção de rito na obra de Grotowski,


Thiago Miguel Sabino, da Universidade Estadual Paulista, se debruça sobre os primeiros
textos do artista, produzidos entre 1958 e 1960, e constata que uma determinada
perspectiva filosófica, presente nas reflexões de Grotowski ainda antes da formação do
Teatro das 13 Filas, orientou a noção de “teatro-ritual”, que conduziu a criação dos
quatro primeiros espetáculos do grupo: Orfeu, Caim, Mistério Bufo e Sakuntala.
Conforme esclarece Sabino, esse “teatro filosófico” buscava dar conta das necessidades
existenciais da sociedade decorrentes, segundo o diagnóstico de Grotowski, da ausência
de uma religião e de uma fé comuns, bem como do avanço da ciência e do racionalismo,
que teriam promovido no indivíduo uma falta de sentido diante da experiência da
morte. Sabino pontua que não se tratava de uma crítica de Grotowski à ciência, nem de
uma defesa das religiões tradicionais, mas da percepção de uma vocação existencial do
teatro que se localizaria justamente nessa lacuna, entre ciência e religião, buscando
“desenvolver na psique humana o senso de unidade profunda entre o homem e o

5
Cosmo”6. O artista concebia, assim, o teatro como um “ato de conhecimento”, princípio
fundamental do teatro de Grotowski não só naquele período, mas, como propõe Sabino,
de “toda a sua prática”. Para Sabino, o ponto de encontro entre a filosofia e o ritual,
nesses primeiros anos da produção de Grotowski, está vinculado a uma determinada
noção de espiritualidade. Retomando Foucault7 e Hadot8, o pesquisador nos lembra que
boa parte daquilo que entendemos por filosofia antiga está, na realidade, fortemente
baseado nos exercícios espirituais. Esses que, para além do sentido religioso, integravam
toda uma cultura do “cultivo de si”. Enquanto prática de conhecimento, os exercícios
espirituais compunham um “modo de vida” que englobava princípios e práticas que,
hoje em dia, diriam respeito aos campos da filosofia, da ciência, do rito, da arte e da
política. Além de dedicar-se àqueles primeiros anos das investigações de Grotowski,
Sabino vai mostrar como, ao longo do tempo, as ideias de ritual e mistério foram
reavaliadas, retrabalhadas e, em alguns casos, até mesmo abandonadas por Grotowski.
O pesquisador considera, entretanto, que apesar das diferentes abordagens, a relação
entre teatro e ritual, para Grotowski, entende a arte não como um lugar de fruição
estética ou de mero entretenimento, mas como um meio de aproximação radical com
as “necessidades da vida” do homem;

Trabalhando sobre as reflexões de Ludwik Flaszen, Luciano Mendes de Jesus,


da Universidade de São Paulo, busca sublinhar o silêncio como aspecto fundamental na
pedagogia, pesquisa e criação teatral de Grotowski. Conforme observa o pesquisador,
já no início dos anos 1960, o silêncio era tido como norma na rotina do Teatro
Laboratório e estava ligado ao exercício da disciplina e da concentração do ator para a
instauração do estado criativo. Pouco a pouco, o silêncio foi também sendo abordado
como um meio para trabalhar sobre a escuta do ator, de modo a ampliar não apenas
sua percepção sobre os aspectos sonoro-musicais, como também sobre os próprios
processos corporais e interiores do ator. Segundo Jesus, o reconhecimento da
importância do silêncio teria se dado, para Grotowski, no âmbito do “trabalho do ator
sobre si”. Além disso, para o pesquisador, o silêncio também foi se revelando um
elemento importante na articulação sonoro-musical dos espetáculos de Grotowski, a
fim de prolongar o processo vivido pelo “ator-sonante” no “espectador-ouvinte”. Nesse
último, produzia-se uma espécie de silêncio interior: um ralentar do fluxo racional,
condicionado pela tendência de rápida assimilação, através de sentidos pré-concebidos,
em favor de uma experiência corpórea, emocional e psíquica integrada, que
possibilitasse outras camadas de percepção na relação com a obra. Para Jesus, o silêncio

6
GROTOWSKI, Jerzy. Il teatro e l’uomo cosmico. In: __________. Testi 1954-1998. Vol. 1 – La possibilità
del teatro (1954-1964). Florença: La casa Usher, 2015. p. 137.
7
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France. São Paulo: Editora
WMF - Martins Fontes, 2010.
8
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.

6
também teve um papel fundamental no desenvolvimento daquelas experiências atorais
que resultaram nas noções de Ato Total e organicidade: “toda a ação cênico-sonora
nascia do silêncio e a ele voltava, numa ordenação cíclica que colaborava com o princípio
da organicidade - presente não apenas no corpo do ator, mas também no corpo do
espetáculo”. E, nas fases pós-teatrais, o autor afirma que a dimensão da escuta e da
percepção teria ganho ainda maior protagonismo, citando, como exemplo, no final dos
anos 1970, o princípio gnóstico do “movimento que é repouso”, presente no evangelho
apócrifo de Tomé e em certos textos do yoga tibetano, que passou a ser para Grotowski
uma espécie de orientação prática de trabalho. Para Jesus, a relação aparentemente
paradoxal entre “movimento e repouso” inclui também a dimensão sonora, podendo
ser lida, nesse sentido, como “som e silêncio”. Jesus afirma, por fim, que embora o
artista polonês se nutrisse de princípios de diferentes tradições espirituais, sua
experimentação foi sempre muito pragmática, baseada na efetividade das técnicas
dessas tradições sobre os processos psicofísicos do atuante. Assim, para o autor, o
silêncio e a escuta podem ser vistos como “parte das tecnologias orgânicas” sobre as
quais Grotowski trabalhou, e cujo legado continua a mobilizar as investigações atuais do
Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, tanto no que tange ao trabalho do
ator, quanto na composição dos espetáculos – Jesus faz essa última constatação
também a partir da experiência que teve como integrante do Open Program, dirigido
por Mario Biagini;

Carolina de Pinho Barroso Magalhães, da Universidade Federal de Minas


Gerais, relata e analisa algumas de suas experiências formativas junto a artistas e
professores, cujas pesquisas se nutrem e/ou dialogam com o legado de Jerzy Grotowski,
para pensar o trabalho do ator sobre os “impulsos” como a instauração de um “corpo
limiar”. Conforme relembra Magalhães, foi partindo do trabalho de Stanislavski sobre as
ações físicas que Grotowski dedicou especial atenção aos impulsos: “micro ações” que
antecedem a ação, ou que acontecem antes da ação tornar-se visível, e que se originam
no interior do corpo. Foi no contato com as companhias Teatro Akropolis e Zikizira
Teatro Físico que o trabalho sobre os impulsos se apresentou para a atriz e pesquisadora
como um modo de romper com os automatismos do comportamento, no processo
improvisacional, dando espaço a uma nova percepção de si mesma. Perspectiva que se
adensou, conforme relata Magalhães, na oficina conduzida pela professora Carla Andrea
Lima (UFMG), quando lhe pareceu que a espontaneidade e o trabalho sobre os impulsos
estariam também ligados a uma revelação do “si mesmo” do ator - num processo no
qual, conforme destaca, “não era possível mentir”. Já nas aulas do professor Fernando
Mencarelli (UFMG), observou como essa revelação pessoal poderia também se dar
através do trabalho sobre a memória: numa abordagem de sensibilização e
engajamento do corpo ator como um todo que lhe parecia também um modo de dar
passagem ao “fluxo dos impulsos”. A partir do curso ministrado pela atriz Graziele Sena

7
(Open Program - Workcenter), destacou-se para a pesquisadora a importância de
detectar no comportamento do ator aquilo que bloqueia ou libera a sua
espontaneidade. Processo que, conforme observa Magalhães, aparecia no trabalho de
Grotowski, sob a perspectiva da “via negativa”, enquanto eliminação dos obstáculos que
impedem as reações vivas do ator. E foi, por fim, durante as práticas conduzidas pelo
professor André Magela (UFSJ), que a pesquisadora percebeu, diante de seus próprios
bloqueios, a necessidade de desafiar a si mesma, a fim de interromper o fluxo das ideias
e reações conhecidas, para um agir que se desse de modo mais espontâneo.
Posteriormente, a importância deste lugar de iminência da ação foi reforçada durante a
participação da pesquisadora na residência artística “Caminhos do silêncio”, conduzida
pelo ator e diretor francês François Kahn. Conforme relata, ali o silêncio lhe permitiu
perceber, de modo ainda mais evidente, que o trabalho sobre contatos, impulsos e
ações seria, antes de tudo, um trabalho sobre a percepção, principalmente no que diz
respeito à atenção e à escuta. A partir de tais experiências e do estudo das proposições
de Grotowski, Magalhães conclui que o nascimento do impulso passa pela permanência
do ator num certo lugar de liminaridade, uma zona de indeterminação que, baseada nos
desafios e tarefas que podem modificar suas qualidades de percepção, visa interromper
o automatismo de suas reações e dar espaço àquelas não antevistas e/ou não
padronizadas. Na contramão do espírito dos nossos tempos, a noção de “corpo limiar”,
segundo Magalhães, é um convite para habitar o corpo sem pressa, na dúvida e na
ambiguidade, para reencontrar sua própria sensibilidade e, através de tal processo,
empenhar-se num tipo de “refazimento de si mesmo”;

Silvana Baggio Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, relata seu
próprio processo de aprendizagem no “trabalho sobre as ações físicas”. A escrita da
experiência de Ávila ganha sentido a partir do relato das falhas e dificuldades
encontradas pela atriz e pesquisadora, bem como das estratégias que utilizou diante das
mesmas, ao longo de sua trajetória. Ela identifica, por exemplo, que já nas etapas iniciais
de sua formação, o apego à forma exterior de uma estrutura de ações lhe impedia de
direcionar sua atenção para as intenções, associações e contatos que permitiriam um
fluxo vivo de reações. O que decorria, conforme observa, de uma “dominação da mente
discursiva” sobre o processo de criação. Citando Richards9, a pesquisadora esclarece
que, através de tal mecanismo, o ator corre o risco de reduzir suas percepções aos
limites do já conhecido, deixando de perceber as coisas diretamente e condicionando
seus modos de agir aos sentidos antevistos. Foi a partir das experiências vividas em
workshops liderados por Mario Biagini, bem como da leitura de seus textos, que Ávila
percebeu, no seu próprio corpo, que o trabalho sobre uma estrutura de ações se
desenvolve sempre na relação entre “aquilo que é consciente e corresponde à vontade",

9
RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012.

8
como as intenções e os elementos de contato, e “aquilo que não está na esfera da
vontade consciente” e que diz respeito ao modo como essas intenções e contatos
atravessam o corpo, o espaço e os parceiros produzindo novas percepções e reações a
cada repetição da estrutura. Nesse sentido, Ávila compreende que o trabalho do/a
ator/atriz é também um processo de conscientização de sua “vida interior”, que deve
implicar, consequentemente, um esforço pessoal para lidar com os impedimentos que
se apresentam diante desse “território desconhecido”. Recuperando os relatos de
experiência de Toporkov, ela relembra que, desde Stanislavski, o “trabalho sobre si
mesmo” pressupõe uma educação interior do ator e uma coragem de apaixonar-se pela
ação – e, portanto, pelas leis da “natureza criadora” – que é “volitiva” e não apenas
racional. Assim, Ávila considera que a “disciplina interior e pessoal”, apontada sob
diferentes formas nos escritos de Stanislávski, Toporkov, Grotowski, Biagini e Richards,
é essencial não apenas ao desenvolvimento técnico do ator, mas também à liberação de
sua natureza criativa;

Evelin Reginaldo, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, relê a


noção grotowskiana de “corpo-memória” e, tecendo um diálogo com algumas noções
da filosofia e da psicologia, propõe abordá-la como um “estado de presença” do ator
conquistado num trabalho de autoconhecimento. Conforme aponta a pesquisadora,
Grotowski experimentou diferentes abordagens sobre a memória ao longo de sua
trajetória e, a partir da prática, formulou diferentes termos para refletir sobre a natureza
de tais investigações: associações, corpo-memória, corpo-vida, corpo-e-essência e
corpo da essência. Para Reginaldo, o “desbloqueio” do corpo-memória implicaria, entre
outras coisas, um trabalho sobre as tensões e relaxamentos do indivíduo. A partir do
diálogo que estabelece com Bergson, Reich e Jung, a autora apresenta uma intrincada
relação entre memória, consciência, corpo e subjetividade e arrisca “dizer que trabalhar
com o corpo-memória em nada tem a ver com trabalhar sobre memórias, trata-se mais
de um trabalho do ator sobre si mesmo, um trabalho de autoconhecimento e,
sobretudo, um trabalho de presença”. Essa presença estaria relacionada com a
possibilidade do atuante de liberar-se do seu “eu” mais conhecido, mais cotidiano,
condicionado pelas máscaras sociais, para entrar em contato com outras partes de si -
até então desconhecidas, esquecidas, escondidas e/ou bloqueadas. Segundo Reginaldo,
esse ato de conhecimento também foi, ao seu modo, realizado no trabalho de Gurdjieff
- mestre espiritual que Grotowski cita diretamente no texto Performer, ao abordar a
passagem do “corpo-e-essência” ao “corpo-da-essência”, termos que, para a autora, na
arte como veículo, ecoam a perspectiva do corpo-memória/corpo-vida, somando uma
consciência mais alargada à dimensão do comportamento orgânico. Em seu artigo,
Reginaldo propõe um estudo sobre a trajetória de Grotowski, através do
desenvolvimento e das transformações operados em diferentes termos, convidando-

9
nos a uma leitura não “metodologizante” da questão da “memória” nas pesquisas do
artista;

Em Grotowski: Percursos de pesquisa, Ilda Andrade, da Universidade Estadual


Paulista, compartilha parte da pesquisa realizada em sua dissertação de mestrado, na
qual analisou as nove aulas ministradas por Grotowski no Collège de France, entre 1997
e 1998. É neste conjunto de aulas intitulado Antropologia Teatral - que figura entre as
últimas falas públicas de Grotowski - que grande parte das referências e interesses
artísticos, filosóficos, antropológicos e espirituais do artista são explicitados e
articulados, pela primeira vez, de modo tão explícito. Andrade destaca que já no projeto
de candidatura ao Collège de France, Grotowski apresenta duas perguntas que
nortearão o seu desenvolvimento: “Existem elementos técnicos que ultrapassam o
contexto cultural no qual esta ou aquela forma de prática ritual nasceu e/ou se
desenvolveu? Estes elementos são objetivos o bastante, para continuarem eficazes no
caso de pessoas pertencentes a outro contexto cultural, tradicional e religioso?”10.
Conforme observa a pesquisadora, a noção de técnica, aqui, não deve ser compreendida
como simples apropriação formal e instrumental. Grotowski compreendia que os
elementos performativos de diferentes manifestações culturais se produzem numa
complexa relação entre a postura do indivíduo diante da própria cultura e os modos de
percepção que essa mesma cultura molda nele. Nesse sentido, ainda que Grotowski
pareça estar buscando por elementos “universais”, seu estudo recaí sobre os diferentes
modos através dos quais, em contextos performativos, o ser humano explora uma pré-
disposição natural: o conhecimento de si na relação com o ambiente em seu entorno. E,
através de uma aproximação com outras ontologias, no campo performativo, o artista
busca colocar em xeque o tipo de percepção habitual do atuante, fazendo-o exercitar
outros modos de percepção e, assim, potencializar um alargamento da experiência do
“si”. Para Andrade, já na primeira aula, Grotowski parece articular algumas das
principais noções e práticas investigadas ao longo de sua pesquisa (como organicidade,
ações físicas, impulsos, trabalho sobre si, artes espetaculares e performativas, teatro e
ritual) tanto para circunscrevê-las no campo de investigações da “antropologia teatral”
– construindo, assim, uma narrativa coerente sobre as distintas experiências, rupturas
e transformações que marcaram sua trajetória -, quanto para indicar a natureza das
investigações que estava desenvolvendo, naquele período, no âmbito da arte como
veículo. Tal perspectiva também é constatada pela pesquisadora quando, nas aulas
posteriores, observa que o artista refletiu sobre sua própria trajetória “indo e voltando
no tempo, revisando, retificando e reencontrando suas questões, noções e alterações
de percurso. E, talvez, o mais importante: programando o que permaneceria de tudo
isso”. Conforme constata Andrade, o elemento que permeia as discussões no decorrer

10
GROTOWSKI, Jerzy. Projet d’Enseigment et de Recherches – Antropologie Théâtrale. (Arquivo de
Mario Biagini. Cedido à pesquisadora Tatiana Motta Lima). 1995

10
das aulas do Collège de France é a noção de corpo. Em sua dimensão não apenas física,
mas no complexo organismo que envolve a mente, o sensível, a memória e os
comportamentos, o corpo é abordado através das questões artesanais do ofício - seja
no teatro, ou no ritual – que concernem, segundo Grotowski, às duas extremidades da
cadeia das performing arts: as artes espetaculares e a arte como veículo;

Em Grotowski estrategista: a desconstrução do ermitão, Daniele Sampaio, da


Universidade Estadual de Campinas, busca desfazer a visão romantizada de que as
investigações de Grotowski tiveram suas condições materiais sempre asseguradas, livres
de percalços e desafios. Baseando-se nos relatos bibliográficos de Ludwik Flaszen e nas
entrevistas que realizou com Eugenio Barba, Carla Pollastrelli, Luca Dini, Roberto Bacci,
Renata Molinari, Thomas Richards e Mario Biagini, a pesquisadora buscou compreender
como Grotowski teria atuado na produção e gestão de suas diferentes investigações
artísticas. Conforme aponta Sampaio, para que o artista assegurasse a subvenção estatal
do Teatro Laboratório, no contexto político autoritário da Polônia dos anos 1960 e 1970,
sem abdicar de seus princípios e objetivos artísticos, era necessário agir como um
verdadeiro estrategista. Já nos anos 1980, ao idealizar o Workcenter de Pontedera junto
com Carla Pollastrelli e Roberto Bacci, o artista usou de seu “capital simbólico” e se
reportou diretamente à Fundação Rockefeller, nos Estados Unidos, “para negociar o
redirecionamento do aporte que já recebia da instituição”, naquele país, para o novo
projeto na Itália. Para Sampaio, Grotowski “não entendia a produção como elemento
apartado da criação, mas parte intrínseca do processo criativo”. Perspectiva que,
segundo a pesquisadora, se mantém, até os dias de hoje, na rotina dos artistas do
Workcenter, que se ocupam da produção de seus projetos e da viabilização de suas
circulações. Assim, conforme constata, Grotowski soube negociar, ao longo de sua
trajetória, com instituições governamentais e privadas, em diferentes países, tanto no
contexto político-econômico socialista, quanto no contexto liberal. Mas, também
importante - e justamente por isso a trajetória de Grotowski interessou à pesquisadora
-, empreendeu essas negociações “sem abrir mão da radicalidade de sua investigação”,
ainda que nas situações mais adversas. Para Sampaio, “na mesma medida em que
[Grotowski] se notabilizou como um grande artista, foi igualmente um grande
produtor”;

Ao compartilhar o seu próprio processo de criação no espetáculo solo O amor


possível - uma adaptação do romance A Caverna, de José Saramago – a atriz e diretora
Priscilla Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, reflete sobre as questões que
emergem na maturidade artística. Tomando o termo a partir das proposições de
Stanislavski em Minha Vida na Arte, Duarte considera que a maturidade artística diz
respeito à “fase da carreira de um artista na qual diversos fatores convidam à
reavaliação das experiências, ao refinamento de escolhas e ao cultivo de valores
realmente importantes para seguir trabalhando de forma comprometida, como artesão,
11
como artífice”. A atriz reconhece que nos seus mais de trinta anos de carreira privilegiou
a expressão pelo movimento e identifica, em sua própria maturidade artística, a
emergência da “palavra” como questão central de trabalho. Dentre a abordagens do
texto teatral com as quais trabalhou, como aquela do Teatro Tascabile de Bergamo
(Itália), no qual atuou por um longo período, Duarte verifica que a composição vocal
esteve, muitas vezes, mais focada na formalização do que nos sentidos do texto. Assim,
trabalhando em colaboração com o ator e diretor francês François Kahn, encarou o
“texto” e a “palavra” como pontos de partida para a criação do espetáculo O amor
possível. Nesse processo, a memorização do texto tornou-se uma questão essencial. A
“prática da memória” desenvolvida por Kahn privilegia a incorporação do texto e dos
seus sentidos, sem ênfase sobre a formalização artificial e mecânica do ator. É também
através da “não-ação, do repouso e do silêncio” que, segundo Duarte, a abordagem de
Kahn convida o ator a uma qualidade de atenção sutil sobre suas próprias sensações e
memórias, no contato com o texto e com os outros elementos da cena. O silêncio, que
Duarte destaca como qualidade essencial na maturidade artística de Kahn, está
presente no trabalho do artista pelo menos desde a década 1970, quando foi
participante e guia nos projetos parateatrais de Jerzy Grotowski, com quem colaborou
até meados dos anos 1980. Trata-se, segundo a pesquisadora, de um silêncio que
implica calma, que convida a um “tempo contemplativo”, que “não significa ausência de
palavras, mas que se refere a uma economia delas, bem como dos gestos, reduzidos ao
essencial”. Duarte apresenta a maturidade artística através da metáfora do filósofo sul-
coreano Byung-Chul Han11, aroma do tempo: “um tempo que se detém como o aroma
desprendido por um incensário chinês – o hsiang yin” - e que se distende no espaço.
Nesse sentido, Duarte apresenta o aroma do tempo que emerge na sua trajetória -
enquanto caminho de conhecimento e de transformação de si - e nos convida não
apenas a refletir sobre as diferentes abordagens do texto teatral, mas propõe uma
reavaliação das relações entre corpo, mente e sentimento no trabalho do ator.

***

Grotowski é um desses autores para os quais o reconhecimento não veio


acompanhado de um estudo aprofundado de sua obra textual, parte importante de seu
legado. Mesmo com esforços de alguns pesquisadores e pesquisadoras, esse ainda é um
terreno a ser explorado através de estudos continuados que, acreditamos, trarão novas
compreensões e interpretações do percurso artístico do artista polonês. Milosz
perguntava, a propósito de Mickiewicz: “temos o direito de adular um poeta e colocá-lo
em um pedestal, desapropriando-o de seu pensamento?” Poderíamos dirigir essa

11
HAN, Byung-Chul. O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora. Tradução de
Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2016.

12
mesma questão aos admiradores de Grotowski. Organizar esse seminário e seus anais é
parte do esforço de responder negativamente àquela pergunta, de avançar na
compreensão do pensamento-prática de Grotowski. Será preciso um gosto pelo estudo
continuado, pela crítica, pela análise, pela contextualização, pela percepção de que
existem múltiplos modos de experienciar o mundo; será necessária a capacidade de
assombrar-se com esse “outro” que foi Grotowski e que está presente também em seus
textos. Só poderemos chamar atenção para um Grotowski pesquisador se, estudiosos e
artistas, tivermos o gosto pelos processos criativos e não estivermos apenas em busca
de procedimentos produtivos. Assim, é com felicidade que apresentamos as conclusões
parciais de pesquisa desses mestres, doutorandos e recém doutora que estão fazendo
um esforço para sair das primeiras ideias e imagens, para sair do senso comum que
envolve a obra de Grotowski em uma aura dogmática, subjetivista e/ou religiosa.
Vamos, então, aos textos!

13
SABINO, Thiago Miguel. Do teatro filosófico ao Mistério: Apontamentos sobre relações
entre cena e ritual em Jerzy Grotowski. São Paulo: Instituto de Artes, UNESP. Programa
de Pós-Graduação em Artes. Doutorando. Orientadora: Profa. Dra. Marianna Monteiro.

RESUMO: O artigo analisa a relação entre teatro e ritual no início do trabalho artístico
de Jerzy Grotowski através do estudo dos textos do artista produzidos entre os anos de
1958 e 1960. Busca-se apresentar o modo como Grotowski compreendia o ritual e os
motivos da sua adesão a tal modelo para pensar a cena. Para compreender tais motivos,
enfatiza-se o período anterior a estreia de sua primeira peça junto ao Teatro das 13 Filas,
o espetáculo Orfeu. Se é verdade que diferentes perspectivas de ritual religioso
resultaram em práticas teatrais distintas, cabe destacar também que as concepções de
Grotowski sobre ritual foram influenciadas pelos modos como o artista pensava o fazer
teatral. Assim, busca-se compreender as práticas e projetos iniciais de Grotowski,
situando-as no encontro de diferentes campos, como arte, filosofia e religião.

PALAVRAS-CHAVE: Jerzy Grotowski; teatro-ritual; espiritualidade.

ABSTRACT: This paper analyses the relationship between theater and ritual at the
beginning of Jerzy Grotowski’s artistic work. The study investigates texts by Grotowski,
produced between 1958 and 1960. The purpose is to present how Grotowski
understood ritual and the reasons for adopting this model to conceive his scene. In
order to comprehend these reasons, the paper emphasizes the period before the
premier of his first play with ‘Theater of Thirteen Rows’, Orpheus. If it is true that
different perspectives of religious rituals resulted in different theatrical practices, it is
also pertinent to highlight that Grotowski's conceptions about ritual were influenced by
his own views on theater practice. Thus, the present work seeks to understand
Grotowski's initial practices and projects, placing them in the encounter of different
fields such as art, philosophy and religion.
KEYWORDS: Jerzy Grotowski; ritual theater; spirituality.

Introdução

Um dos temas recorrentes no trabalho de Jerzy Grotowski diz respeito à relação


entre arte e ritual. Tal temática se apresentou sob formas distintas ao longo de seu
percurso de pesquisa, tornando-se impossível, ou ao menos improdutiva, qualquer tipo
de definição generalizante sobre suas práticas e investigações. Assim, a palavra “ritual”
foi entendida com várias nuances a depender do momento de seu trabalho. Dentre tais
variações, encontramos entendimentos sobre o ritual “religioso” que podemos associar:
à “celebração coletiva”; à possibilidade de transcendência ou de contato com um
“sagrado” de forma secular; a uma forma de espiritualidade que se desenvolve de

14
maneira laica; e a conjuntos de procedimentos marcados pela capacidade de agir de
modo transformador sobre as pessoas.

O que se pode afirmar, é que a escolha por um modelo de cena e de trabalho


pautado em certo entendimento sobre ritual se deu na tentativa de atribuir ao teatro
uma dimensão outra que não apenas a de um lugar de fruição estética, ou do mero
entretenimento, mas como uma possibilidade de aproximação mais radical entre a arte
e as necessidades da vida. Em nome desse objetivo, Grotowski lançou mão de inúmeros
recursos estéticos, principalmente na fase do Teatro dos Espetáculos12, visando um
“teatro ritual”.

Ao longo das montagens criadas entre 1959 e 1969, as cenas do Teatro das 13
Filas - posteriormente, Teatro Laboratório - se configuraram de forma bastante diversa.
Um dos principais mobilizadores dessas mudanças foi a noção de rito, encarada pelo
artista sob múltiplas perspectivas. Devido a uma série de limites encontrados na
aproximação com a noção de rito, Grotowski chegará, num determinado momento, até
mesmo a abandonar essa referência explícita. Dessa forma, estudar a obra de Grotowski
nos permite pensar inúmeras possibilidades de aproximação entre rito e arte. Ademais,
o percurso de Grotowski é marcado por autocríticas do artista, por mudanças radicais
de rotas e de experimentos, por revisões, por sucessos e, sobretudo, por “fracassos” –
a partir dos quais se extraem reflexões sob variados pontos de vista sobre o mesmo
problema. Apresentaremos aqui apenas alguns apontamentos sobre as primeiras
noções e ideias de Grotowski acerca da relação cena/ritual, retomando alguns estudos
já realizados sobre o período do Teatro dos Espetáculos13. Busca-se entender, assim,
como e porque se deu o “surgimento” da noção de rito em sua obra, analisando alguns
textos anteriores às primeiras referências do artista a tal noção.

Da Filosofia ao Rito - O Rito como Mistério

As primeiras propostas teatrais de Grotowski junto ao Teatro das 13 filas, bem


como seus primeiros textos, já se relacionavam ou faziam menção a certa noção de ritual
religioso. O fazer teatral deveria se pautar sobre essa noção de rito. Como salienta
Ludwik Flaszen (2007, p. 20), Grotowski sempre insistia que a prática precedia as

12
O longo período de trabalho de Grotowski pode ser dividido nas seguintes fases (ainda que com algumas
divergências de datas): “Teatro dos espetáculos” (1959-1969); “Parateatro” (1969- 1978); “Teatro das
Fontes” (1976-1982); “Objective Drama” (1983-1986); “Arte como Veículo” (1986-1999) (CUESTA;
SLOWIAK, 2013, p. 9)
13
Refiro-me ao trabalho de Tatiana Motta Lima (2012), Palavras Praticadas: o percurso artístico de Jerzy
Grotowski, 1959-1974, que tem servido como base para estudos dessa fase de Grotowski, e a minha
dissertação de mestrado, na qual estudei especificamente a relação do ritual e espiritualidade nas
encenações de Grotowski (SABINO, 2016).

15
formulações discursivas. O que significa que os textos do diretor polonês decorriam de
sua experiência concreta relativa ao ofício do teatro. Seus termos eram, conforme
propõe Motta Lima (2012), “palavras praticadas”. No entanto, no início das atividades
do Teatro Laboratório (nome que substituiu Teatro das 13 Filas e com o qual o grupo
ficou mundialmente conhecido), havia palavras-projeto, palavras-intento, que deveriam
mobilizar as práticas. E, no início, estava a palavra “mistério” (FLASZEN, 2007, p.20).

É relacionada a ideia de “Mistério” que a noção de ritual deve ser entendida no


início do trabalho de Grotowski. O rito encarado sob tal perspectiva aparece de modo
bastante concentrado no período entre os anos de 1959 e 1960, englobando peças
como Orfeu, Caim, Mistério Bufo e Sakuntala.

Esse “mistério” deve ser entendido no sentido original da palavra, ligado à


religião. Trata-se de cultos secretos nos quais apenas os iniciados poderiam ser
admitidos, daí, por extensão, a palavra significar também “segredo”. As próprias
escolhas das peças a serem montadas, além dos expedientes de encenação, obedeciam
ao intento de estabelecer um ritual-mistério peculiar por meio do teatro14. A primeira
peça montada pelo Teatro das 13 Filas foi Orfeu, baseada no texto de Jean Cocteau.
Orfeu é o herói mítico ao qual se liga os antigos mistérios do orfismo. Embora Grotowski
não faça associações diretas ao orfismo (ou a uma “religião” em particular), nada
impede de nos debruçarmos sobre este, uma vez que a noção de “mistério” guiava suas
buscas.

Na história das religiões na Grécia Antiga, o orfismo ocupa um lugar à parte,


marcado não só pelo aspecto da iniciação, como também todo um cultivo do trabalho
do homem sobre si, visando a purificação da alma. Para tanto, além do aspecto litúrgico
e ritual do qual participava o religioso, havia uma exigência de conduta moral, de
abstinências e “renúncias” aos valores e costumes presentes na sociedade (CASORETTI,
2014).

Em “Farsa-Misterium”, um dos primeiros textos de Grotowski referentes a sua


proposta teatral no Teatro das 13 Filas, o artista afirma que a dimensão estética do
teatro não funcionava como um fim em si ou como um modo de ilustrar algo, mas que
a forma, com suas múltiplas camadas, deveria funcionar como um particular “ato de
conhecimento”. Esse “ato de conhecimento”, é algo aberto, não fixado e deveria
superar a teatralidade apreendida, e consequentemente, superar o “eu apreendido”
(GROTOWSKI, 2007, p. 46-47). Assim, teríamos como objetivo desse teatro o trabalho
sobre a forma, que deveria propiciar um conhecimento capaz de transformar o “eu”,

14
Evidentemente que se trata de uma aproximação e analogia para pensar o teatro, Grotowski jamais
propôs um retorno de fato a (ou a criação de) um ritual. Em todo caso, estudar esse tipo de performance
pode auxiliar no entendimento sobre as propostas de Grotowski e nos desdobramentos possíveis de sua
pesquisa.

16
superar o “eu apreendido”. Trata-se, portanto, de um ato de conhecimento e uma
transformação de si.

Já no texto “Brincamos de Shiva”, Grotowski afirma que essa divindade hindu é


apresentada em muitos contos mitológicos como o criador dos opostos, aquele que
dança a totalidade. Ao definir sua pesquisa cênica como um “brincar” de ser Shiva,
Grotowski alude a sua tentativa de abordar a multiplicidade da realidade na cena, a
totalidade do cosmos. Uma estética mais voltada ao mimetismo realista-naturalista não
daria conta de apresentar essa realidade múltipla. Por isso, a ênfase à forma teatral faz
com que Grotowski se aproxime de um teatro marcado pela “teatralidade”, ou seja, a
explicitação dos meios que constituem a linguagem teatral, transitando entre diferentes
estilos e convenções teatrais. Não há nenhuma tentativa de forjar um teatro da ilusão,
pelo menos não no sentido de imitar a realidade. Dessa forma, a cena é construída no
jogo formal de elementos opostos: sério, grotesco, solene, banal, “derrisão na dor”.
Assim o faz, justamente com o intuito de dar conta das variadas camadas da realidade.
Essa ênfase formal e o jogo de opostos seria uma construção artificial “voltada à
realidade”, ou seja, que deveria agir sobre a realidade ou sobre o espectador,
provocando o ato de conhecimento e transformação. Daí teríamos a aproximação com
o ritual e com a ideia de “Mistério” - que ficará mais evidente, no texto Farsa-Misterium.
Quanto à relação teatro e ritual, Grotowski salienta:

O teatro indiano antigo, como o japonês antigo e o helênico, era um ritual


que identificava em si a dança, a pantomima, a atuação. O espetáculo não era
“representação” da realidade (construção da ilusão), mas “dançar” a
realidade (uma construção artificial, algo como uma “visão rítmica” voltada à
realidade) (GROTOWSKI 2007, p. 38).

Assim, Grotowski intenta elaborar uma arte que funcione como uma
contraproposta laica à religião, identificando elementos comuns no teatro e no ritual
que deveriam ser explicitados e desenvolvidos: “o teatro como um cerimonial coletivo”;
“um sistema de signos”; “espectadores como coatores” (GROTOWSKI, 2007, p. 41).
Evidentemente que Grotowski não pretendia retornar aos ritos antigos, nem criar um
ritual religioso no sentido literal. Devido a isso, e à constatação de que no teatro deveria
operar não a crença, mas o jogo de imaginação, bem como devido ao trabalho estético
que jogava com uma dialética da forma (grotesco, sublime, alegre, triste), esse rito laico
deveria ser uma espécie de Farsa-Misterium. Mistério, pois, segundo Grotowski, assim
eram chamadas as formas teatrais da antiguidade grega que funcionavam na “fronteira
do culto aos deuses”. Farsa, pois este é o gênero marcado pelo jogo, pela “brincadeira”,

17
pelo não sério. Farsa e mistério constituiriam, portanto, dois opostos daquele jogo
dialético das formas.

Se Grotowski escolhe a ideia de ritual e mistério para pensar seu teatro, pode-
se cogitar que a própria concepção que ele faz de “rito” tem sua origem em
determinados aspectos de um certo teatro valorizado pelo artista polonês. Esse ponto
é importante pois, se os textos relativos aos primeiros trabalhos no Teatro das 13 Filas
apresentam implícita ou explicitamente a referência ao ritual, isso não ocorria, ao
menos não da mesma forma, em textos e reflexões anteriores a estreia da peça Orfeu.

Um teatro “filosófico”

O que encontramos em Grotowski, nesses textos anteriores, é a defesa de um


teatro de viés “filosófico”. É provável que essa alcunha, no lugar de “ritual”, tenha sido,
em parte, uma tentativa de Grotowski se livrar de suspeitas das autoridades da Polônia
comunista, e mesmo da igreja, evitando associações das suas práticas e intentos com
questões da religião ou do misticismo (o mesmo que ocorreu, durante anos, com a
utilização do termo “laico”, utilizado como uma “palavra-camuflagem”). Entretanto,
também é possível que Grotowski ainda não tivesse desenvolvido a ideia de um teatro
como ritual. Seja como for, tal “teatro filosófico” visaria a dar conta de necessidades
existenciais da sociedade contemporânea. O artista polonês faz um diagnóstico de seu
tempo e detecta uma certa carência de sentido que a ausência da religião e da fé
comuns, bem como, na direção oposta, o avanço da ciência e do racionalismo causaram
na sociedade. Isso não significou, em hipótese alguma, uma crítica à ciência, tampouco
a defesa da religião nos moldes tradicionais oficiais. Para suprir essa lacuna o “teatro
filosófico” teria um papel importante.

Além dessa vocação existencial do teatro, havia um entendimento relativo à


forma estética que parece relacionar-se a visão subsequente de “ritual”, tal como
apontada acima. No programa do primeiro espetáculo dirigido profissionalmente por
Grotowski15, encontramos uma espécie de “fórmula”, segundo a qual, um teatro
verdadeiramente contemporâneo deveria equivaler a: um “teatro criativo, segundo
critérios humanistas (engajado moralmente e socialmente) + experimento formal”16
(GROTOWSKI, 2015, p. 99).

Essa experimentação formal imprime ao teatro uma dimensão estética


bastante diversa do naturalismo-realismo burguês. Por outro lado, o engajamento com
questões sociais e existenciais fazem com que o teatro não se reduza apenas a um

15
Trata-se da peça “Os deuses da chuva”, de Jerzy Krzyszton, dirigida por Grotowski no Stary Teatr,
Cracóvia, 1958.
16
As traduções da edição italiana dos textos de Grotowski (2015) são minhas.

18
experimento formal fortuito. Ao tratar de um espetáculo do mímico Marcel Marceau17,
Grotowski deixa claro sua visão sobre o desenvolvimento da mise-en-scène. Se a
autonomia da encenação é ressaltada, isso ocorre tendo em vista sempre o objetivo de
um teatro “filosófico” e sempre obedecendo aquilo que, para Grotowski, consistiria no
eixo do fazer teatral. Esse eixo seria constituído pelo entendimento: 1- de que o teatro
é a arte realizada ao vivo, no encontro entre espectadores e atores e nas possibilidades
de diálogo entre eles (pode-se encontrar tal ideia antes mesmo de textos como
“Possibilidade do teatro” ou “Farsa-Mistério”, destacando-se, por exemplo, o texto
“Morte e reencarnação do teatro”, de 1959); 2- De que o teatro seria um “Jogo de ação”.
Dessa forma, a experimentação formal da encenação deveria se desenvolver sobre esses
dois fatores. Na crítica sobre o espetáculo de Marcel Marceau, Grotowski salienta a
“objetividade” do cenário utilizado, o que podia ser entendido como uma “tentativa de
resolver o conflito entre a cenografia criativa, antinaturalista, e a exigência da cena, que
é, antes de mais nada, um ‘jogo de ação’ e não uma obra de arte visual autônoma”
(GROTOWSKI, 2015, p. 129). Esta exploração formal do cenário, e dos demais elementos
da cena, não pela dimensão estética visual apenas, mas pelo jogo e ação, pode nos levar
a pensar na utilização de objetos como em determinadas cerimônias rituais (eles têm
um porquê que não é apenas estético ou “visual”, mas assumem funções e significados
de acordo com as ações dos “sacerdotes” ou performers). Ademais, apesar de dialogar
com elementos da vanguarda teatral e da encenação autônoma, Grotowski, com essa
afirmação, parece se preocupar em distinguir o teatro que almeja de outras formas de
arte e dos espetáculos em voga naquele momento.

Retornando à questão da relevância desse teatro, de seu objetivo e sua


justificativa, encontramos uma série de razões que levaram a aproximação da cena ao
“ritual” no início do Teatro as 13 Filas, com a peça Orfeu, como também a aproximação
a uma ideia de “filosofia”, em textos anteriores a estreia da peça.

Grotowski enxergava que na sociedade contemporânea o homem se


encontrava em uma situação psicológica peculiar. Os avanços científicos, os satélites
espaciais, a “era do átomo”, a percepção da imensidão do universo... tudo isso fazia com
que o homem, transitório e frágil, se confrontasse com a infinitude do “Cosmos”
(GROTOWSKI, 2015, p. 136). Frente ao desaparecimento dos “deuses” e dos mitos, e à
nova realidade objetiva, nada protegeria o homem do horror da morte. Nesse cenário,
a arte teria um importante papel: “desenvolver na psique humana o senso de unidade
profunda entre o homem e o Cosmo” (GROTOWSKI, 2015, p. 137). A percepção dessa
unidade permitiria que homens e mulheres pudessem se reconhecer no Cosmo e com
isso superar a finitude individual. Essa seria uma espécie de resposta a uma necessidade

17
No texto “O mimo e o mundo”, publicado em 1959, Grotowski discorre sobre os esquetes do espetáculo
de mímica de Marcel Marceau, ao qual assistiu em Paris.

19
de continuidade e de transcendência da morte, necessidade tradicionalmente
trabalhada pelas religiões. Essa ideia de Cosmo, apresentada por Grotowski em um
sentido amplo, como “realidade material infinita”, “totalidade da natureza”, mesmo que
em constante movimento e transformação, segundo o artista, não estaria sujeita a ação
da morte. Essas ideias se apresentam em entrevista do então jovem artista em 1958, e
em textos de 1959 como “O teatro e o homem cósmico” e “A propósito do teatro do
futuro”. O “ato de conhecimento” que o teatro deveria propor teria relação com essa
percepção: a consciência humana não está separada da existência do mundo, do
Cosmos, e o “eu” individual seria uma ilusão. Esse talvez seja o ponto fundamental dos
objetivos almejados pelo teatro de Grotowski no período (talvez em toda sua prática?).

É a partir de tais preocupações que devemos entender os motivos das relações


entre arte e ritual evidenciados em textos posteriores, quando, por exemplo, Grotowski
afirma que o teatro poderia ser uma contraposta laica à religião, como um meio de se
trabalhar, no contexto secular, os “excessos da imaginação” desfrutados nos ritos
religiosos (GROTOWSKI, 2007, p. 40). Fica evidente que essa “resposta laica” a questões
existenciais já era uma preocupação do artista, antes mesmo de iniciar o trabalho no
Teatro das 13 Filas. Contudo, conforme mencionei, em um primeiro momento,
Grotowski, talvez buscando uma fórmula adequada, chamava esse teatro de “teatro
filosófico” (há também menções, sem nenhuma tentativa de definição, a um “neo-
teatro”, “teatro do futuro”, etc.).

No artigo sobre o espetáculo de Marcel Marceau, Grotowski também elogia a


essencialidade e precisão da arte do mímico, além da sua coragem de se confrontar com
“problemas últimos do destino humano”. Destaca o caráter “filosófico” como um dos
pressupostos dessa mímica e complementa com uma afirmação na qual podemos
identificar o objetivo que o teatro, para ele, deveria buscar: “Uma arte de ambição
filosófica, será a expressão do século XX” (GROTOWSKI, 2015, p. 130).

Mesmo no que diz respeito ao espetáculo Orfeu, encontramos menção a uma


ambição filosófica. Em entrevista à época da peça, Grotowski assim respondeu quando
perguntado sobre a liberdade com a qual lidava com os textos na encenação:

É uma história longa, mas vou tentar explicar em poucas palavras. A nós
interessa (digo “a nós” porque toda a companhia concorda com esse ponto
de vista, de outro modo a colaboração seria muito difícil), pois bem, a nós
interessa retornar a aquele período da arte no qual não havia uma distinção
entre “teatro” e filosofia, quando o teatro tinha uma dimensão não apenas
estética. Disso deriva a escolha do repertório. O texto existente deve ser
somente uma tela sobre a qual pintamos nossa atitude em relação à vida. Se
trata de uma atitude sem dúvida laica de colocar em discussão o
“existencialismo caseiro”. Não queremos continuar a “absurdidade da vida”,

20
nós vemos e queremos encontrar a esperança18 (GROTOWSKI, 2015, p. 172-
173).

Grotowski identificava uma tendência na arte vinculada a um “existencialismo”


pessimista, à absurdidade, a uma desesperença absoluta “à la Kafka” (2015, p. 154).
Suas peças iniciais buscavam uma resposta a esse problema.

Essa resposta, com sua dimensão filosófica, deveria se dar no diálogo com a
plateia, meio pelo qual o teatro poderia reencontrar sua força na sociedade. Grotowski
acreditava que o teatro encarado como uma arte de reprodução de “eventos vivos”,
realistas, constituiria um anacronismo sem esperança, frente o desenvolvimento e
avanço do cinema e da televisão (GROTOWSKI, 2015, p. 146). A possibilidade de o teatro
renascer seria por meio de uma nova “encarnação”, centrada no diálogo com o público,
uma vez que é a presença viva que faz do teatro uma arte distinta daqueles outros
meios.

[...] uma encarnação baseada em formas diretas de diálogo entre a cena e a


plateia, um diálogo concentrado em torno de problemas fundamentais do
destino humano, da busca de sentido, da esperança, da libertação do medo
da morte19 (GROTOWSKI, 2015, p.153).

Esse diálogo não deve ser entendido no sentido necessariamente verbal, mas
por meio da materialidade da ação cênica. Uma vez estimulado por diferentes
elementos formais (como o choque de convenções opostas, proposto nas cenas), o
espectador reagiria ao espetáculo. Ao longo do período de quase dez anos, nos
diferentes espetáculos de Grotowski haverá uma transição desse “diálogo” mais
sensorial para uma participação mais direta do espectador na cena, até chegar ao
posterior abandono de qualquer tentativa de “manipulação” do público.

18
È una storia lunga, ma cercherò di spiegarla in poche parole. A noi interessa (dico a noi perché tutta la
compagnia concorda con questo punto di vista, altrimenti la collaborazione sarebbe molto difficile),
ebbene a noi interessa tornare a quel período dell’arte in cui non c’era distinzione tra “teatro” e filosofia,
quando il teatro aveva una dimensione non soltanto estetica. Da questo deriva la scelta del repertorio. Il
texto esistente deve essere solo una tela sulla quale dipingiamo la mostra attitudine verso la vita. Si trata
di un'attitudine senza dubbio laica che mette in discussione l’ “esistenzialismo casereccio”. Non vogliamo
continuare l’“assurdità della vita”, vediamo e vogliamo trovare una speranza (GROTOWSKI, 2015, p. 172-
173).
19
[...] in una incarnazione che si fondi su forme dirette di dialogo tra la scena e la platea, un dialogo
concentrato intorno ai problemi fontamentali del destino umano, della ricerca del senso, della speranza,
dela liberazione dalla paura della morte (GROTOWSKI, 2015, p. 153).

21
Teatro como retorno a uma dimensão não só estética (mas “filosófica”);
diálogo direto com a plateia (e consequente participação desta); apelo a forma
antinaturalista, não mimética, mas teatral. Essas são as noções que vão desembocar no
modelo ou inspiração de um teatro ritual, e este entendido, em um primeiro momento,
como mistério.

Filosofia e ritual

Pode parecer estranha a associação de filosofia e ritual, e mesmo de enxergar


que um teatro de ambição filosófica se desenvolvesse para a busca de um teatro
ritualístico. Contudo, considerando o que apresentamos até aqui, é bastante pertinente
essa transformação, como também é natural que Grotowski tenha se inspirado
inicialmente na ideia de mistério.

Apenas uma visão parcial apresentaria o universo da filosofia e do rito como


duas instâncias absolutamente opostas. Embora a filosofia esteja associada a buscas
racionais pelo “verdadeiro” e o desprendimento do mito nas explicações sobre a
realidade, enquanto o rito religioso, por outro lado, seja fortemente associado aos mitos
e aspectos mais irracionais, essa oposição não é de todo correta. A ideia de
espiritualidade pode ser entendida como o ponto de encontro dessas instâncias
aparentemente opostas. Encontramos em Michael Foucault uma concepção importante
sobre a associação entre a noção do “cuidado de si”, filosofia e espiritualidade, que nos
ajuda a compreender essa questão. Se a filosofia é a busca pela verdade ou pelo
conhecimento, a espiritualidade pode ser entendida como o conjunto de práticas e
experiências que, transformando o sujeito, permite que este tenha acesso a
verdade/conhecimento (FOUCAULT, 2010, p.15). Segundo Foucault (2010) e Hadot
(2014), boa parte da filosofia antiga pode ser associada aos exercícios espirituais, não
no sentido estritamente religioso, mas como um cultivo de si mesmo, através de atos de
conversão do olhar, mudanças de perspectivas, exercícios mentais e etc. Esses exercícios
espirituais que fazem parte da filosofia antiga encontrariam suas raízes, ou sua “pré-
história”, em parte, nos ritos religiosos. Assim, a separação radical entre rito e filosofia
como duas coisas totalmente distintas não é de todo correta20.

A questão dos Mistérios Antigos, e do orfismo em específico, pode ser vista


justamente como o encontro entre aspectos da religião e da filosofia. De fato, as
religiões iniciáticas e secretas na Grécia contrastavam com a religião oficial, pública e
cívica. No caso do orfismo, por exemplo, toda uma série de restrições e renúncias
marcavam radicalmente a vida do adepto. No orfismo pode-se ver um movimento no

20
Sobre esse tema das práticas espirituais, espiritualidade e a relação com a filosofia antiga ver Michael
Foucault (2010) e Pierre Hadot (2014).

22
qual a ascese da alma teria se desenvolvido fortemente e se difundido pela Grécia,
inclusive nas filosofias da antiguidade (CASORETTI, 2014). Da mesma forma, a vida órfica
implica um abandono dos valores recebidos e da educação formal que até então
estruturava o entendimento do indivíduo sobre si mesmo. De forma alguma pretendo
afirmar que Grotowski tinha qualquer intenção de associar suas práticas ao orfismo só
por ter escolhido uma peça cujo personagem principal era Orfeu. Ocorre é que tanto em
Grotowski, quanto em algumas tradições rituais e na filosofia antiga (e na religião órfica
de modo muito particular), podemos encontrar essa dimensão de “espiritualidade”
entendida como uma forma de acesso ao conhecimento e a transformação de si (“ato
de conhecimento” e superar o “eu apreendido”).

Outra maneira de entender o “mistério” é no sentido de Mistério Medieval.


Esta é uma forma teatral relacionada a temáticas religiosas cristãs. Grotowski menciona,
em entrevista de 1958, algumas referências que podemos aproximar com essa forma de
teatro:

Dediquei grande atenção às tradições da moralidade medieval europeia – a


subdivisão semântica da cena, a cena simultânea, o diálogo direto entre cena
e plateia. A seguir: ao teatro oriental, em particular o teatro clássico chinês e
indiano – o gesto sintético, o uso metafórico dos objetos de cena, a estrema
convencionalidade no uso do espaço cênico21 (GROTOWSKI, 2015, p.111).

Além de certa função pedagógica, o recurso do cenário e cena simultânea do


teatro medieval pode ter interessado a Grotowski como uma possibilidade de mostrar
em cena a multiplicidade da realidade, a totalidade do Cosmos. O jogo de opostos com
a variedade estética não existe em função da busca por um efeito de “estranhamento”,
como um efeito de distanciamento do espectador para uma análise fria da cena, mas
como um princípio prático. É uma questão estética e ética, está subordinada à finalidade
do teatro. Retomando a fala de Grotowski relativa ao trabalho com textos dramáticos,
na entrevista feita à época de Orfeu:

[...] Não queremos continuar a “absurdidade da vida”, vemos e queremos


encontrar uma esperança. Para utilizar a linguagem do teatro, esta esperança
se encontra entre as duas extremidades da realidade: entre a extremidade
trágica e a grotesca. Isso requer uma adaptação dos textos [...] Em nossos
espetáculos o pulsar da forma ocorre não tanto em função da diversidade ou

21
Ho dedicato grande attenzione alle tradizioni della moralità medievale europea – la suddivisione
semantica della scena, la scena simultanea, il dialogo direto tra scena e platea. A seguire: il teatro
orientale, e in particolare il teatro clássico cinese e indiano – la sinteticità del gesto e l’uso metaforico degli
oggetti di scena, l’estrema convenzionalità nell’uso dello spazio scenico (GROTOWSKI, 2015, p. 111).

23
do estranhamento, mas porque essas são nossas premissas artísticas 22
(GROTOWSKI, 2015, p 173).

Todas essas questões são elaboradas nos textos posteriores, como os já


mencionados “Brincamos de Shiva” e “Farsa-Misterium”. Após apresentar essas linhas
gerais do entendimento sobre teatro, que viria dar lugar a noção de ritual e mistério no
início do trabalho de Grotowski, convém apresentar como isso se desenvolveu em uma
de suas práticas.

Farsa e mistério em Orfeu.

Orfeu, baseado no texto de Jean Cocteau23, estreou ainda em 1959. Segundo


aponta Flaszen, podemos entender que a escolha da peça se deu pelo fato de o texto
tratar de grandes temas passíveis de diálogo como a morte, o amor, a passagem do
tempo e a razão do ser (FLASZEN, 2015, p. 82). A encenação visaria superar o que Flaszen
chamou de “brecha existencialista” entre o indivíduo e o mundo que o cerca. Grotowski
intentava mostrar a complexidade do mundo e a batalha contínua entre o caos e a
ordem. Essa complexidade era abordada pelo jogo de opostos nos diferentes planos
(estético, rítmico...). Assim, a peça era composta a partir da oposição das personagens,
que demonstravam atitudes diametralmente distintas: de um lado, o Cavalo do
Absurdo, que personificava as forças cegas da natureza, de outro, Heurtebise, que
personificava a ordem racional. O personagem Orfeu, por sua vez, deveria escolher
entre elas (talvez Orfeu, frente essa oposição, possa ser entendido como alegoria
daquela tentativa de reconhecer as duas facetas de uma mesma unidade: a da
consciência humana e o Cosmos-Natureza).

A peça foi preparada com menos de três semanas de ensaios, com a sua forma
já predefinida por Grotowski (KUMIEGA, 1987, p. 19). Embora houvesse uma ênfase na
encenação e pouca exploração do trabalho atoral, havia uma grande precisão nas ações
e nas cenas, que eram formuladas como uma partitura musical.

O espetáculo era marcado por um jogo de zombaria, com cenas sucessivas


entre o trágico e o grotesco, o solene e o frívolo. A cena da morte de Eurídice é

22
[...] Non vogliamo continuare l’ “assurdità della vita”, vediamo e vogliamo trovare una speranza. Per
usarei l linguaggio del teatro, questa speranza si trova tra le due estremità della realtà: tra l’estremità
trágica e quella grottesca. Questo richiede un adattamento dei testi [...] Nei nostri spettacoli il pulsare
della forma ha luogo non tanto in funzione della diversità e della stranezza, ma perché queste sono le
nostre premesse artistiche (GROTOWSKI, 2015, p.173).
23
Jean Cocteau (1889-1963) foi um dos grandes artistas franceses do século XX: importante dramaturgo,
poeta, pintor e diretor de cinema, bastante ligado à estética surrealista.

24
acompanhada de uma música de rock, a figura da Morte é retratada como uma
dançarina de cabaré. A personagem Orfeu, por exemplo, enquanto realiza um monólogo
sobre a grandeza da poesia, come cenoura ralada. Ao final, a personagem título propõe
um brinde e profere um discurso, escrito por Grotowski - o texto “Invocação” (2007) -,
que é uma espécie de oração de agradecimento ao mundo que ressalta a ambiguidade
e a unidade, uma espécie de oração panteísta, cósmica. Aquela identificação com o
Cosmo e a desidentificação com o ego, que permitiriam aos homens e mulheres superar
a sua finitude, pode ser encontrada na Invocação final do espetáculo (impresso também
no programa da peça):

Nós te agradecemos mundo, por ser.


Nós te agradecemos, por ser dançarino infinito e eterno.
[...]
Nós te agradecemos, mundo, pois possuímos a consciência
que nos permite vencer a morte: compreender a nossa
eternidade na tua eternidade. E porque o amor nisso
é mestre, abecedário. Te agradecemos por não sermos
separados de ti, por sermos tu, porque justamente em
nós atinges a consciência de ti, o despertar.
Nós te agradecemos, mundo, por ser (GROTOWSKI, 2007, p. 35).

Conclusão

Os espetáculos iniciais de Grotowski junto ao Teatro Laboratório (Teatro das 13


Filas) não entraram para a história como Dr. Fausto e, sobretudo, Akrópolis, Príncipe
Constante e Apocalipsys cum figuris. Orfeu, a estreia de Grotowski no Teatro das 13
Filas, na cidade de Opole, na Polônia, foi uma dessas peças menos conhecidas. A própria
ideia de ritual e mistério que orientaram as primeiras propostas cênicas do artista foram,
em seguida, desenvolvidas, criticadas, retrabalhadas e/ou abandonadas, por ele.

Desse teatro-ritual-mistério-farsesco pautado no jogo formal e em busca da


“totalidade Cósmica”, temos rapidamente a passagem para experimentos espaciais
mais radicais, abolindo a separação palco e plateia, exigindo a participação do
espectador. Após notar a participação estereotipada do espectador, o artista abandona
a exploração mais exterior e formal do rito, o que muitas vezes redundava em mera
“encenação” do ritual. Grotowski passa então a explorar o Mito e o arquétipo como
elementos que permitiriam esse contato mais radical entre a cena (atores) e o público.
Posteriormente, abandonou até a ideia de ritual, pois, segundo Grotowski, ela suscitava
uma série de mal-entendidos (e ainda hoje suscita), seja para atores, seja para
espectadores. Em busca desse contato e encontro, em um passo mais ousado,
Grotowski vai até mesmo abandonar o teatro, dedicando-se às experiências

25
parateatrais. Finalmente, ele retorna ao “ritual”, já numa abordagem bastante diversa,
com a investigação sobre técnicas tradicionais, nos períodos do Teatro das Fontes e da
Arte como Veículo – cujo estudo escapa ao escopo do presente artigo.

Esse longo percurso mostra que a questão do ritual foi compreendida de


formas bastante distintas pelo artista. Talvez “ritual” e “teatro” sejam, no fim, apenas
palavras. A experiência de Grotowski fica como um convite para repensar a separação
rígida entre essas instâncias e ao mesmo tempo, um alerta para a confusão ingênua que
se pode fazer entre as mesmas em nome de um “teatro-ritual”. No fundo: encontro,
experiência e aventura são os motes de seu percurso. Teatro? Ritual? Filosofia?
Mistério.

Referências

CASORETTI, Anna Maria. O surgimento da ascética da alma na antiguidade grega:


Orfismo e Pitagorismo. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
CUESTA, Jairo; SLOWIAK, James. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2013.
FLASZEN, Ludwik. Grotowski e Companhia: origens e legado. São Paulo: É Realizações,
2015.
___________. De Mistério a Mistério: Algumas Considerações em Abertura. In:
FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski
1959- 1969. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera de
Teatro, 2007, p. 17-34.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France. São
Paulo: Editora WMF - Martins Fontes, 2010.
GROTOWSKI, Jerzy. A possibilidade do teatro. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI,
Carla (org.). O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959- 1969. São Paulo:
Perspectiva: SESC; Pontedera, IT: Fondazione Pontedera de Teatro, 2007, p. 48-74.
___________. Brincamos de Shiva. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O
Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959- 1969. São Paulo: Perspectiva: SESC;
Pontedera, IT: Fondazione Pontedera de Teatro, 2007, p. 38-39.
___________. Farsa-Misterium. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O
Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959- 1969. São Paulo: Perspectiva: SESC;
Pontedera, IT: Fondazione Pontedera de Teatro, 2007, p. 40-47.
___________. Invocação. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O Teatro
Laboratório de Jerzy Grotowski 1959- 1969. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera,
IT: Fondazione Pontedera de Teatro, 2007, p.35.

26
___________. Testi 1954-1998. Vol. 1 – La possibilità del teatro (1954-1964). Florença:
La casa Usher, 2015.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.
KUMIEGA, Jennifer. The theater of Grotowski. Londres, Nova York: Methuen: 1985.
MOTTA LIMA, Tatiana. Palavras Praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski,
1959-1974. São Paulo: Perspectiva, 2012.
SABINO, Thiago Miguel. O teatro para além do teatro: espiritualidade e ritual em
encenações de Jerzy Grotowski. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes, São Paulo, 2016.

27
JESUS, Luciano Mendes de. Silêncio: um valor nas composições cênicas de Jerzy
Grotowski. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes/Universidade de São Paulo.
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Doutorando. Orientadora: Sayonara
Sousa Pereira. Bolsista CAPES. Ator, diretor, músico e professor, leciona na Escola Livre
de Teatro de Santo André e coordena a ação artística Ponte Elemento Per.

RESUMO: Este texto propõe uma reflexão sobre o silêncio como um aspecto central na
obra de Jerzy Grotowski: um fenômeno sonológico especial que se perde em meio ao
impacto das questões vocais presentes na pesquisa do artista, quer seja no período dos
espetáculos, quer seja no trabalho com os cantos de tradição abordados com maior
ênfase a partir da década de 1970. Em um diálogo com as observações que Ludwik
Flaszen fez sobre o sentido do silêncio na pedagogia e na criação de Grotowski,
proponho um “ponto de escuta” alternativo para pensar a articulação sonoro-musical
nos processos criativos do diretor e pesquisador polonês, considerando, para tal, a
perspectiva do espectador como ouvinte. Dessa forma, busco salientar o silêncio como
aspecto fundamental na obra de Grotowski, tanto no que tange ao trabalho do ator
quanto na composição das suas encenações. Cuja importância se observa, ainda hoje,
nas atividades do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.
PALAVRAS-CHAVE: ator-sonante; espectador-ouvinte; som-música; ressonância; ponto
de escuta.

ABSTRACT: This text proposes a reflection on silence as a central aspect in the work of
Jerzy Grotowski: a special sonological phenomenon that is lost amid the impact of vocal
issues present in the artist's research, whether in the period of the performances or in
the work with the traditional songs approached with greater emphasis since the 1970s.
In a dialogue with the observations that Ludwik Flaszen made about the sense of silence
in Grotowski's pedagogy and creation, I propose an alternative “listening point” to think
about the sound-musical articulation in the creative processes of the Polish director and
researcher, considering, for this, the perspective of the spectator as a listener. In this
way, I seek to emphasize the silence as a fundamental aspect in Grotowski's work, both
in terms of the actor's work and in the composition of his “mise-en-scène”. This
importance can still be seen today in the activities of the Workcenter of Jerzy Grotowski
and Thomas Richards.
KEYWORDS: actor-sounder; spectator-listener; sound-music; resonance; listening point.

O tanque morto.
Ruído de rã
submergindo.
(Bashô)

28
O silêncio é um campo que sustenta a qualidade de todo o processo de
experimentalidade na relação essencial entre corpo e som no conjunto de obras de Jerzy
Grotowski, quer teatrais, quer pós-teatrais.

Ele está ligado, na fase de espetáculos, à criação de um ambiente relacional


entre atuantes-sonantes e espectadores-ouvintes regido por uma densidade de forças
psíquicas e biológicas, ativadas pelo contato com as fontes arquetípicas do humano, e
que, quando emergem através de um processo organizado, resultam num estado de
estancamento do fluxo racional. Então a percepção da vida imediata, para os que
realizam o ato criativo e para os que o assistem e escutam, se move num canal onde
sentidos, pensamentos e emoções se tornam unificados numa mesma cadência e
frequência, harmonizados ao ponto de produzirem objetivamente uma qualidade de
silêncio exterior e em nível subjetivo. A catarse acontece plenamente quando esse
estado silencioso de duas vias encruzilhadas se concretiza.

Silêncio exterior criado pela suspensão do caos e ocasionalismo de informações


imagético-sonoras, já que a ordenação de todos os eventos cênicos e sônicos da obra
teatral foram articulados analogamente ao princípio rigoroso dos rituais formalizados. E
silêncio interior criado pelo refreamento da necessidade de compreensão pela leitura
estética da obra, preterida a favor da experiência integral do corpóreo, do emocional e
do psíquico, gerada pelo visto e escutado.

Silêncios ideais, que na verdade dependem sempre do ponto de escuta do


ouvinte enquanto indivíduo. Ludwik Flaszen, estreito colaborador de Grotowski em
diversas instâncias, aludindo a um trecho do Prometeu, de Ésquilo, diz que “ver e escutar
– e não apenas olhar e ouvir – são virtudes prometeicas” (FLASZEN, 2015, p. 233). Ele
ainda destaca que Grotowski “era um fazedor de silêncio como um fazedor de chuva”
(ibid., p. 234). Em que sentido?

Como materialidade palpável o silêncio na prática do diretor polonês se


construiu inicialmente como “prescrição de método”, muito antes de se tornar um
elemento intrinsecamente constituinte da sua práxis poiética. Quer dizer, tinha mais a
ver com a ideia da prática do silêncio como sinônimo de disciplina e concentração, do
que como uma potência misteriosa a ser explorada. Através do relato de Flaszen
presente no texto “Grotowski e o silêncio” (2015), e das minhas experiências de escuta
dele e suas obras, é que apreendo sua relação com este princípio constituinte do
fenômeno sonoro.

Usando o silêncio como um aliado no seu processo criativo, Grotowski


instaurava um espaço de escuta junto aos seus interlocutores. Assim também o fazia em

29
suas palestras24, levando em conta o tipo de audiência que tinha diante de si e a
natureza dessa relação. Ele também buscava esta mesma qualidade de silêncio e escuta
no contato entre atores e espectadores em suas obras teatrais. A relação com cada
indivíduo presente era um valor real, levado em conta desde o início do encontro, como
ouvinte em particular, mesmo que num espaço coletivo, não simplesmente como uma
massa atenta, com uma escuta padronizada.

O silêncio tornou-se seu aliado na medida em que, passo a passo, estabelecia o


diálogo criativo ativo com a manifestação do som. Ritmicamente e com intenções
definidas, que se referiam ao tipo de efeito psicofísico ou provocação de percepção que
gostaria de mover naqueles que lhe ouviam, e que, logo, seriam potenciais ouvintes de
suas obras artísticas. Segundo Flaszen, sua palavra emitida em direção ao ouvinte era
conformada como um pensar em “voz alta para outra pessoa, na presença do outro”
(ibid., p. 234). Essa mobilidade da voz, assim como se opera nos grandes oradores,
realiza um câmbio de forças, entre a escuta e a emissão, por via da presença sonora que
se estabelece de forma não-virtual, mas presentificada pelo sentido da carnalidade da
comunicação interpessoal, imediata, hic et nunc.

A partir da emergência da palavra necessária, encarnada, performatizada com


potência, mas sem arroubo surdo, o silêncio surge como um acordo tácito, necessário
para se entrar na dimensão de reflexão para além das primeiras impressões do visto e
ouvido, além da camada superficial. Um silêncio “diferente do silêncio que resulta do
interesse e da atenção” (ibid., p. 234). Acordo esse estabelecido entre o atuante-
sonante e o espectador-ouvinte, mas que mesmo numa simples situação de palestra
Grotowski buscava, consciente do valor das palavras e da sua perigosa mutabilidade
conforme o bom ou mal-entendimento de quem ouve.

Se numa situação de conferência havia essa preocupação, tanto mais no


trabalho de pesquisa com os atores, nos processos criativos dos espetáculos, na
pedagogia teatral e nas fases seguintes da sua pesquisa. No entanto, este grau de
criação de intimidade e de valor transpessoal do silêncio veio também como
consequência do “trabalho do diretor sobre si mesmo”.

Flaszen (ibid., p. 234) narra que no início o silêncio era uma imposição
autoritária para atores e público, antes de ser uma conquista pela busca consciente do
seu sentido.

24
Tenho vívida memória auditiva do ambiente sonoro das palestras que proferiu em São Paulo em 1996,
no Simpósio Internacional Arte como Veículo, no SESC Consolação, de como as reações do público iam do
mais solene silêncio às ruidosas reações coletivas diante das polêmicas que surgiram nos debates sobre o
que faziam no Workcenter naquela altura.

30
A proximidade com os elementos da cultura oriental, sobretudo a indiana, pela
qual Grotowski se interessou, desde criança, e se manteve próximo até o fim da vida
(suas cinzas, conforme seu pedido, foram dispersas no monte Arunachala 25) – através
de estudos e práticas corporais, como o hatha yoga, e através de viagens e trocas (como
o contato com os Bauls26) lhe trouxe uma noção clara do valor e da substância energética
do silêncio. Flaszen destaca que nas situações em que a presença e a ação deveriam,
segundo Grotowski, estar em primeiro plano, o diretor constantemente reivindicava, de
modo determinado, por uma ausência do som. Nessa atitude, Flaszen identifica um
reflexo da própria busca de Grotowski por um silêncio interior (ibid., p. 235).
Paradoxalmente, ainda na visão de Flaszen, a busca pelo silêncio interior contrastava
com o homem de intensa ação exterior que era Grotowski.

Esse interesse por determinadas tradições culturais, na obra do diretor


polonês, pode ser lido, muitas vezes, sob uma perspectiva mística. Mesmo quando seu
trabalho é colocado dentro do contexto acadêmico, torna-se impossível não considerar
essa dimensão ao abordar a pesquisa de Grotowski, ainda que queiramos reposicionar
a visão comum do conceito de “místico”. A própria trajetória do artista, influenciada por
referências teatrais, filosóficas e espirituais, para citar algumas, assim o comprova. Ele
caminhou nas várias dimensões das artes performativas em direção ao âmago do
trabalho da pessoa performante: como um desenvolvimento do conhecimento de si
própria (“trabalho sobre si”) e a consolidação da função de pontifex, mediadora entre
“algo” ou “lugares” desconhecidos da experiência humana e aquele que testemunha
seus atos, o espectador que é também ouvinte. Porém, o rigor de toda a pesquisa e
criação de Grotowski, nas suas diferentes fases, é o que garante o teor e a coerência do
seu trabalho - incluindo-se, neste caso, a importância do fenômeno “Silêncio”. O diretor
e pesquisador do “homo performaticus” sempre buscava ter uma consistente base de

25
O monte Arunachala é considerado um dos lugares sagrados mais importantes para a religiosidade da
Índia, tido por alguns como o coração do mundo, local milenarmente consagrado ao deus Shiva. Nele
residiu Ramana Maharshi, um iogue que exerceu profunda influência sobre o pensamento de Grotowski
em relação à função da arte. A questão principal colocada pelo iogue era que a única pergunta realmente
importante a ser respondida era “Quem eu sou?”. Seus ensinamentos eram transmitidos aos seus
discípulos em absoluto silêncio. Seu conhecimento chegou ao Ocidente através do livro “A Índia Secreta”,
de Paul Brunton, publicado em 1934, o qual foi lido pelo diretor polonês em sua infância.
26
Os Bauls são identificados como pequenos grupos, que podem ser integrados por homens e mulheres,
que viajam constantemente entre diferentes cidades e vilarejos realizando “celebrações-show” ao ar livre.
Sua manifestação devocional se dá através da música, e se exprime pelo canto, acompanhado de
diferentes instrumentos. Este movimento surgiu há cerca de 200 anos e o repertório de suas canções data
do século XV. Estas canções são consideradas pela UNESCO uma das obras-primas da herança oral e
imaterial da humanidade. Não possuem templos. Concebem como único lugar de culto o corpo, único
local onde creem poder ser encontrado Deus. Por isso, entendem a relação do homem com o sagrado
como uma ação direta, não mediada, ativada pela música, pela poesia e pela dança devocional. Os cantos
transmitem suas concepções sobre o sagrado e são ao mesmo tempo os veículos da realização do seu
processo de ascese espiritual.

31
pensamento, visando sempre o empirismo e a técnica pragmática. Não era “mambo
jambo”, chute de aprendiz de feiticeiro ou diletantismo.

Consciente da difícil tarefa que era investigar a “anatomia do silêncio” no teatro


que buscava, Grotowski desenvolveu metodologias de pesquisa e verificação baseado
em rigorosos referenciais de estudo, mas o “ruído” e as confusões gerados em torno de
suas investigações se devem, em grande parte, ao fato do artista ter tocado em temas
considerados polêmicos, como o sentido de sacrum, por exemplo. Sobre isso, Flaszen
esclarece que as próprias fontes utilizadas nessas investigações, por suas diferentes
naturezas, eram passíveis de aversão a depender do leitor: “[...] Utilizamos estudos
religiosos (por se tratar de um teatro sagrado), antropologia e etnologia (pois lidávamos
com cerimônias, mitos, rituais, mistérios, etc.), bem como – perdoem-me por dizê-lo –
uma história da espiritualidade [...]” (ibid., p. 241).

Em “O novo testamento do teatro”, um dos textos basais da fase de produção


de espetáculos, o encenador fala de uma qualidade particular de silêncio que se cria na
relação com os espectadores-ouvintes. Essa qualidade é gerada através das provocações
objetivas e das mobilizações subjetivas que sua prática artística, calcada na noção do
teatro pobre, trazem ao evento cênico. Trata-se de um silêncio que é manifestado,
sobretudo, ao final de uma apresentação: “um silêncio especial no qual existe muita
fascinação e ao mesmo tempo muita indignação e até repugnância” (GROTOWSKI, 1970,
p. 39, tradução nossa). É um silêncio denso que reflete a pressão psíquica sob a qual
atuantes e público estão submetidos no desenrolar da encenação.

Nascido não da busca de “efeitos mediante o cálculo frio” (ibid., p. 42, tradução
nossa), mas de uma lógica irrepreensível do organismo, o som (por mais elementar que
seja) e o silêncio são compreendidos como formas evidentes de comunicação em um
nível vital direto, sem a intermediação de qualquer forma de conceituação racional ou
esteticismo de linguagem. Isto também para além do valor meramente semântico das
palavras que componham a obra literária sobre a qual o espetáculo esteja baseado,
ainda que não se compreenda a língua no qual é realizado. O som e sua aparente
ausência, seu contrário, o silêncio, são ações literais, em si, sem filtragem poética,
apenas ajustadas, após sua concepção pelo trabalho criativo do ator, à tessitura lógica
da encenação.

Apenas para resumir o fim a que chegou esta atenção, de origem juvenil, em
relação ao silêncio, não me perdendo do principal ponto de escuta sobre sua obra,
ressalto o preceito prático que apareceu durante o Teatro das Fontes e que se
condensou, posteriormente, no Workcenter: ser simultaneamente movimento e
repouso.

32
É uma dialética – princípio fundamental de sua vida artística – que tem origem
nos textos antigos, especialmente nas fontes judaico-cristãs, e que está presente no
evangelho apócrifo27 de Tomé. É um conceito retirado de uma passagem onde Jesus diz:
“Se lhes perguntarem: - Qual é a evidência de seu Pai em vocês?, digam-lhes: - É
movimento e repouso" (TOMÉ, [s. d.]).

Para conectar com a proposta deste artigo transcrio estes termos para som e
silêncio. Dinâmica-chave que constitui o pensamento sonoro-musical de Grotowski. Som
e silêncio articulados linearmente na ação, no espaço e nas composições desses, no
tempo onde se imprime a montagem de significados. Som e silêncio verticalmente
organizados como camadas de afetos para uma escuta profunda que gere uma
experiência autêntica de presença no aqui-agora da performance e do encontro.
Camadas sutis onde som pode ser lido como “ser” e silêncio como “vazio”. Ou também
o contrário, som o “vazio” e silêncio o “ser”. Aspectos cambiantes que dependem dos
efeitos variáveis destas duplas operações nas pessoas do ator-sonante e do espectador-
ouvinte.

Segundo Flaszen (2015, p. 235), no prosseguimento das experiências sobre o


humano em estado cênico, a partir do Teatro Laboratório, na Polônia, o poder do
silêncio, com suas propriedades de impacto sobre o espaço e como propiciador de
leituras do instante - onde ação intencional e organismo vivo se encontram - foi uma
descoberta. Problematizando as múltiplas leituras do conceito de silêncio, Flaszen indica
que este pode trafegar desde a sua noção mais científica (dentro da física acústica),
passando pelo sentido legislativo (a regulamentação das intensidades sonoras de um
ambiente), até seus aspectos ascéticos (como parte de uma disciplina espiritual) (ibid.,
p. 235). Avançando para o universo teatral observa as categorias de silêncio presentes
nele. Oriundo do público, da cena, da suspensão definida ou indefinida de atos e
palavras, que podem fazer parte da montagem ou das prévias indicações de um
dramaturgo.

O modo como Grotowski lidou com o silêncio como um princípio para a criação
de situações onde a escuta atenta e aprofundada – uma escuta imediata – fosse uma via
de acesso para uma experiência potente para o corpo, a psique e os sentidos do
auditório, foi radical. Para Flaszen (2015, p. 236) o diretor “é um espécime especial nessa
confraria de silêncio no teatro e em seus environs (arredores)”.

Este silêncio já estava presente no ambiente de trabalho do Teatro Laboratório,


como norma, desde a entrada dos atores nos espaços de treinamento, ensaios e

27
Diferentemente dos evangelhos canônicos (Lucas, Marcos, Mateus e João) os apócrifos são os
evangelhos que não são reconhecidos pela Igreja Católica como fontes históricas e sacras oficiais sobre a
vida e obra de Jesus Cristo. O evangelho de Tomé consiste numa série de 114 aforismas ditos por Cristo e
a partir de reflexões sobre ele, com uma riqueza filosófica muito superior à doutrinária.

33
espetáculos. Buscava-se com isso isolar dois mundos: o das questões ordinárias
particulares e aquele onde o trabalho de investigação criativa era o centro. Com isso
buscava fazer emergir uma “higiene” sonora favorável à prática competente do ofício e
para a emersão do estado criador. Este ambiente de trabalho criativo seria
ecologicamente favorável, em termos acústicos, porque faria surgir, e destacaria, os
sons do diapasão potencial do atuante que fossem mais vibrantes de energia vital e
autenticidade, contra a domesticação social da natureza do corpo-voz e a imposição da
escuta rarefeita da urbanidade. Da mesma maneira, pela capacidade de se criar nesse
ambiente um espaço físico também vibratilmente vivo, não apenas pela exploração de
sua arquitetura, mas especialmente por suas possibilidades acústicas dentro dessa
arquitetura, capazes também de gerar reflexos no estado criador dos atores. Flaszen
(2015, p. 238) apresenta seu ponto de escuta sobre esta época: “O silêncio ali era
peculiar; não era apenas uma ausência de ruído, como em salas em que nada acontece.
Ao entrar naquele lugar, você podia escutar o silêncio – e os ruídos da cidade ao fundo
soavam como música concreta”.

Era desse ponto de silêncio programado do ambiente de trabalho que se


desenvolvia a postura da escuta ampliada dos atores do Teatro Laboratório, e que
depois transbordava para os espectadores-ouvintes nos espetáculos emblemáticos,
especialmente a partir de Akropolis, de 1962. Em lugares onde o silêncio tem essa força,
qualquer mínimo som é envolvido por interesse. A escuta total, não apenas coclear28,
adquirida na intensidade da pesquisa, como contrapartida gerava o “silêncio ativo, um
silêncio-ação” (ibid., p. 238). Pode se dizer que era uma escuta que envolvia toda a
corporeidade e movia-se com ela.

Nada era contemplativo nesse silêncio, não tinha fundo ou fim místico, ainda
que se apropriasse de princípios de escolas do sagrado para tanto. Porém, era uma
apropriação de técnicas pragmáticas: escuta como ferramenta primária e silêncio como
ferramenta de precisão para se chegar o mais fundo possível na manifestação pura da
humanidade do ator em cena. Escuta e silêncio como parte das tecnologias orgânicas
que Grotowski operou.

A tríade “escuta-silêncio-voz” “era uma troca de energias [...] sonoras; energias


de silêncio” (ibid., p. 238). De novo, me baseando nesse movimento acústico, a
passagem apócrifa tem valia, e talvez o diretor polonês concordasse com essa paráfrase:
seus atores eram som e silêncio.

O silêncio, como um fenômeno não apenas restrito à prática laboratorial e


criativa de treinamentos e ensaios, ou nas construções sígnicas das obras teatrais, mas

28
Escuta coclear se refere ao processo natural da audição humana, que se opera dentro do sistema
auditivo, no ouvido interno, sendo a cóclea o local de conversão das ondas sonoras em impulsos elétricos
e por sua vez transformados pelo cérebro em cognição auditiva.

34
a partir destas suportado e criado, propagou-se aos espectadores-ouvintes, começando
em Akropolis. Flaszen notou que o fenômeno era latente nos trabalhos anteriores, mas
ainda indefinível. Tornou-se claro paulatinamente e com a montagem do texto de
Wyspianski manifestou-se de maneira impressionante. O impacto da experiência de
corporificação poética de Auschwitz gerou uma reação no auditório de desdomesticação
do comportamento naturalizado nos espetáculos. Alongar-me aqui nas memórias e
considerações de Flaszen é importante:

A reação do público foi de completo silêncio. Ninguém ousou aplaudir. Não


pela desaprovação, mas pelo choque. Foi o primeiro de uma série de
espetáculos de Grotowski encenados no silêncio e que terminavam com o
silêncio do público. Creio ter sido uma das descobertas: um teatro sem
aplauso. [...] Talvez devamos procurar analogias distantes com antigos ritos
de mistério. Para todos nós, para os atores e para o próprio Grotowski, foi
uma surpresa, uma surpresa esperada. Naquela época, com ele, estávamos
buscando o sacrum no teatro [...]. Provavelmente, houve inúmeros motivos
para inibir o instinto atávico de aplaudir ruidosamente no final do espetáculo.
Choque? Surpresa? Exaltação? Ansiedade? Estar em si mesmo e na vida por
um instante? Um estado próximo da meditação? O sentimento
contemplativo de que fomos tocados por algo desconhecido, inexplicável –
algo que não pode ser nomeado? Ou talvez simplesmente comovidos? Os
espectadores esperavam para sair e ficavam por muito tempo em silêncio,
sem falar uns com os outros depois que acabava a ação [...]. É muito tarde
para uma tese [...] sobre a psicologia do público do Teatro Laboratório, com
o subtítulo “O Silêncio do Espectador de Grotowski”. Conto aqui com minha
memória e talvez esteja maquiando um pouco. Provavelmente, nem toda a
noite era assim. Tão ideal. Tão unânime no silêncio. Mas me lembro de tais
noites; são presentes preciosos. [...] Se numa noite aplaudissem ao final do
espetáculo, era sinal de que a atuação tinha permanecido interpretação, sem
verdade (FLASZEN, 2015, p. 239-241).

Um instrumento, o corpo, dentro de outro instrumento, o espaço, dentro de


um lugar, o som. Um lugar que tanto afaga quanto choca, acalanta e agita, e se consome
a si mesmo, gerando o silêncio. Na qualidade do silêncio dos espectadores-ouvintes ao
final deste espetáculo, que após um tempo sentados e reflexivos partiam, muitas vezes,
sem deixar aplausos – os atores também não voltavam à cena para recebê-los - é que
Grotowski confirmava os efeitos de um verdadeiro encontro entre artistas e público em
torno de um tema de comum afeto. Grotowski media a qualidade do encontro pela
“qualidade do silêncio obtido” (SLOWIAK e CUESTA, 2015, p. 184).

Afora o tema e seu modo de tratamento cênico e dramatúrgico, é importante


notar e refletir sobre o papel que o uso do elemento sonoro-musical pode ter tido, nos
espetáculos de Grotowski, para gerar tal profundidade de silêncio no público. Brook,

35
numa crítica ao comportamento institucionalizado das plateias de teatro ocidental das
grandes cidades, aponta que suas reações se mecanizaram como resultado de um teatro
moribundo. Ouvimos palmas imediatas e irrefletidas um segundo após o fim de
qualquer espetáculo. São como respostas automáticas. Um comportamento “bem
educado”, que muitas vezes reflete mais a impaciência com o que estava sendo
assistido, revelando-se, assim, a falta de uma relação real estabelecida entre cena e
audiência. As palmas, neste caso, são somente uma reação de liberação daquele
compromisso social/cultural enfadonho. O entretenimento termina e as palmas finais
corresponderiam ao apertar o botão off da televisão. O público raramente dá-se o
tempo para que um possível silêncio ocupe o espaço após o fim de uma obra teatral,
para que desse vácuo emerja uma reação instintual, sem polidez. Brook questiona o fato
de que o silêncio ou o bater dos pés no chão – ao invés das palmas formalizadas e dos
bravos institucionalizados - não surgem como respostas autênticas de um espectador
atravessado por aquilo que assistiu. Ele afirma que:

Esquecemos que há dois clímax possíveis numa experiência teatral. Há o


clímax de celebração, quando a nossa participação explode com gritos,
bravos, batendo com os pés e as mãos; ou então, por outro lado, o clímax do
silêncio – outra forma de reconhecimento e de apreciação de uma
experiência na qual todos participam. Já praticamente esquecemos o silêncio.
Chega mesmo a incomodar-nos; batemos as mãos mecanicamente, porque
não sabemos fazer outra coisa. E não sabemos, também, que o silêncio é
permitido, que o silêncio também é bom (BROOK, 1970, p. 25).

Experiências, como a que foi relatada acima, em Akropolis, geradas pelo visto e
escutado na zona liminar de cena e som da obra grotowskiana se adensaram nos
espetáculos seguintes, também estes cada vez mais sintetizados sobre os pressupostos
do “teatro pobre”. Qualidades muito fortes de silêncio e imobilidade também
aconteceram, segundo relatos de Flaszen, aos finais de O príncipe constante e
Apocalypsis cum figuris.

As dimensões possíveis de se pensar sobre estes diferentes sentidos de silêncio


trafegam entre tantos níveis, que não é possível dissociar, até uma diferenciação
cristalina, quais são impressões de cunho puramente emocional - da vida íntima de
afetos – e quais são resultantes dos pressionamentos históricos, arquetípicos, políticos,
sociais e mesmo metafísicos, a que os espectadores-ouvintes foram submetidos. Não há
de fato a possibilidade de se fazer hoje em dia um questionário, como indicou Flaszen,
para o público do Teatro Laboratório a fim de se traçar o perfil psicológico do seu ponto
de escuta. De qualquer forma, o que prefiro dizer, amparado pelas memórias do velho

36
colaborador de Grotowski e pelas minhas próprias experiências de escuta e silêncio,
como (tele)espectador-ouvinte da sua obra performativa e ex-performer do Workcenter
of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, centro de pesquisa e criação onde deixou os
últimos ecos da sua prática, é que todos os possíveis silêncios se encontravam num
comum resultado. Este resultado era a catarse, a qual aludi no início deste texto. Uma
realocação imediata do nosso deslocamento do presente e da surdez de si mesmo
através da presença humana em performance viva, do corpo e sua interioridade, em
forma de imagens e sons arraigados no fundo do ser performante, e que pode se
arraigar, como experiência psico-corpórea integral, no espectador-ouvinte.

O processo de criação do silêncio especial a que venho me referindo era


desenvolvido com muito cuidado por Grotowski. Acredito que este cuidado foi se
destilando conforme ia notando a eficácia do método, assim como a distinção do tipo
de relação que buscava estabelecer entre atores e espectadores, a partir do dispositivo
espacial-cenográfico. O silêncio emergia dessa atenção sobre o encontro.

A estruturação das partes finais dos espetáculos, a partir do domínio da


montagem coerente, era realizada de forma a se criar uma via de indução ao silêncio.
Obviamente não por obra de atitudes textuais, pedidos educados ou autoritários dos
atores ao público, mas somente pela organização tempo-rítmica da montagem, tendo
por centro o ator, com suas ações físicas e sonoras, o fluxo orgânico da sua energia e
impulsos vitais, movendo-se numa grande curva de intensidades. Toda a ação cênico-
sonora nascia do silêncio e a ele voltava, numa ordenação cíclica que colaborava com o
princípio da organicidade - presente não apenas no corpo do ator, mas também no
corpo do espetáculo. “Como se o silêncio fosse a mãe de todas as coisas” (FLASZEN,
2015, p. 241).

O “ato total” - como Grotowski passa a nomear a experiência do ator após o


trabalho com Riszard Cieslak, em O Príncipe Constante - deveria estar recoberto e
protegido por este silêncio movente, para que se mantivesse protegido da profusão de
possíveis reações dos espectadores, já que era um ato de transgressão em cena.
Transgressão de uma forma de atuação a que estavam acostumados, apenas pela
perspectiva da ficção. A dialética entre vida e ficção no Teatro Laboratório os impactava
fortemente. O silêncio velava e propulsionava esta transgressão e quando esta se
recolhia nele, trazia junto a percepção do público, gradativamente também silenciando-
o por acordar sua escuta profunda. Ouvir o silêncio, ouvir-se em silêncio e ouvir-se no
silêncio são coisas distintas.

Com o fim da produção de espetáculos, em 1973 iniciam-se as experiências da


fase parateatral. Nela, ainda que a noção de ações pragmáticas e pesquisa objetiva se
mantenham, o discurso sobre o desejo de tocar algo mais próximo de um sacro laico
cotidiano, através do encontro coletivo, fica evidente. É o zeitgeist dos anos 70 do século

37
passado. O espírito hippie da época. Nas fases criativas seguintes de Grotowski, som e
silêncio continuarão sua movência. As acepções mudam, a escuta se transforma. Sua
postura diante do fenômeno sonoro-musical - da liberdade da voz ao silêncio eloquente
- destilada nos seus anos de trabalho como diretor, irá colaborar também na construção
da sua postura de “teacher of Performer” (GROTOWSKI, 2015, p. 2) e “espectador-
ouvinte de profissão”, nas novas etapas da sua trajetória artística.

A inextrincável relação entre o silêncio e Grotowski – realizada no seu trabalho


de maestro que escuta e nos conduz nos caminhos dos sons que levam ao silenciar – é
com bela precisão assim definida:

Ele era um usuário do silêncio. Era um artesão do silêncio. Era um político do


silêncio. Era um administrador do silêncio. Era um professor do silêncio. Era
também um bandido agressivo do silêncio e ladrão do silêncio. Era um
neurótico do silêncio. Era um gênio do silêncio. Era um usurpador do silêncio.
Era um criminoso do silêncio que o usava como faca. Era um cavalheiro do
silêncio que o usava como uma espada cintilante [...]. Era um amante do
silêncio, que se deleitava em sorvê-lo num ato de grande erotismo. Era
também um excelente voyeur do silêncio dos outros. Era um diplomata do
silêncio, utilizando-o para negociar com o mundo: com patrocinadores e
funcionários com poder de decisão [...] (FLASZEN, 2015, p. 244).

E no fim da sua própria música da vida, cinzas ao vento. Silêncio de montanha.

E nós seguimos fazendo barulho, burburinho, palavrório, poemas e canções.

Referências

BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. São Paulo : Vozes Limitadas, 1970.
FLASZEN, Ludwik. Grotowski & companhia: origens e legados. São Paulo: É
Realizações, 2015.
GROTOWSKI, Jerzy. Hacia um teatro pobre. Cidade do México: Siglo XXI, 1970.
_________. Performer. [1988]. Revista Performatus, Inhumas, ano 3, n. 14, p. 1-6, jul.
2015. ISSN: 2316-8102. Disponível em: https://performatus.net/traducoes/performer/
Acesso em: 10 mar. 2020.
JESUS, Luciano Mendes de. Quando até as paredes cantam: o som como experiência
na obra de Jerzy Grotowski. 2016. Dissertação (Mestrado em Processos de Criação

38
Musical) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2016. DOI: https://doi.org/10.11606/D.27.2017.tde-10032017-163729.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Ed. da Unesp, 1991.
SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Publicações, 2013.

39
MAGALHÃES, Carolina de Pinho Barroso. Diálogos entre o Impulso, nas pesquisas de
Jerzy Grotowski, e a proposta de um corpo limiar, na busca por processos criativos
orgânicos e precisão cênica para além dos códigos. Ouro Preto. Universidade Federal
de Ouro Preto. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Mestrado. Orientador:
Ricardo Gomes. Bolsa FAPEMIG. Pesquisadora, preparadora corporal, atriz/dançarina e
performer, professora de expressão e técnica corporal do curso de Teatro do Centro de
Formação Artística e Tecnológica – CEFART, Fundação Clóvis Salgado29.

RESUMO: Este artigo parte de relatos de experiências e interesses que me levaram a


desenvolver uma pesquisa sobre Jerzy Grotowski, bem como do intuito de analisar
alguns percursos e descobertas desse diretor na direção de uma via orgânica de criação,
com o objetivo de vivencia-los em processos criativos atuais. Tendo em vista esse
objetivo, a noção de impulso me pareceu um elemento essencial a ser analisado. A partir
dela, proponho como diálogo a ideia de um corpo limiar, que me parece intimamente
conectada à busca por processos criativos orgânicos, interessados em uma precisão
cênica para além dos códigos. Este artigo refere-se à minha pesquisa de mestrado,
realizada no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Ouro
Preto, com apoio da bolsa FAPEMIG, e traz, portanto, fragmentos da mesma,
reconfigurados para este artigo.
PALAVRAS-CHAVE: impulso; corpo-memória; contato; corpo limiar; processos criativos.

ABSTRACT: This article was written from memories that led me to the desire to conduct
a research on Jerzy Grotowski, as well as experiences, readings and questions that
followed this. Through these perceptions and the interest in experiencing this director's
experiences and discoveries in current creative processes, it seemed to me fundamental
to understand his notion of impulse. Based on it, I propose as a dialogue the idea of a
threshold body, which seems connected to the search for organic creative processes,
interested in a scenic precision beyond the codes. This article refers to my master's
research, carried out in the Postgraduate Program in Arts at the Federal University of
Ouro Preto, with support from the FAPEMIG scholarship, and therefore brings fragments
of it, reconfigured for this article.
KEYWORDS: impulse; body-memory; contact; threshold body; creative processes.

Os caminhos que me levaram à obra de Jerzy Grotowski (e de seus


colaboradores) e a criadores(as) que nela se inspiram, partiram do interesse por
intensificar e aprofundar processos criativos relacionados ao trabalho do(a) criador(a)
sobre si mesmo (como instância mutável e porosa), envolvidos em fragilizar o
predomínio da razão e acessar um corpo-instinto-pessoal-coletivo, em encarar os

29
Atualmente, doutoranda na Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em
Artes, sob orientação de Fernando Mencarelli, bolsa FAPEMIG.

40
abismos, vivenciar o corpo em amor fati30, o inconsciente trazido à tona pela via da
corporeidade, a não segregação entre consciente e inconsciente, entre corpo e mente,
interessados na forma emergida do caos, com a precisão do que se faz necessário31,
imersos na sinceridade, no risco e na potência de vida em sua transitoriedade. É por
meio dessas vias que compreendo a necessidade e a existência política do fazer artístico,
e foram elas que me aproximaram da pesquisa desse diretor.

Inicialmente essa aproximação se deu por meio do contato com grupos, Cias e
pessoas que inspiravam seus trabalhos nas pesquisas de Jerzy Grotowski, como a Cia
Teatro Akrópolis, a Cia Zikizira Teatro Físico, a atriz/bailarina e Profª. Drª. Carla Andréa,
os criadores e Profs. Drs. Fernando Mencarelli (orientador de minha pesquisa de
doutorado, atualmente em processo), André Magela e Ricardo Gomes (orientador de
minha pesquisa de mestrado), e posteriormente com François Khan (ator e diretor que
trabalhou diretamente com Grotowski nas fases do Parateatro e do Teatro das Fontes)
e Graziele Sena (integrante do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, do
Open Program, núcleo dirigido por Mario Biagini, que foi colaborador e um dos
continuadores da pesquisa de Jerzy Grotowski).

A Cia Teatro Akropolis e a Cia Zikiria baseavam seus trabalhos nas pesquisas de
Grotowski e destacavam nele a noção de impulso como um elemento primordial. Deixar
passar os impulsos seria sair do automatismo dos gestos, entrar em desvelamento de si,
encontrar o desconhecido de si, e a repetição seria ali uma das vias para esse
aprofundamento.

Os espetáculos da Cia Teatro Akropolis e o filme Cinzas de Deus, da Cia Zikizira


- meus primeiros contatos com criações inspiradas em pesquisas de Jerzy Grotowski -
me tocaram profundamente, pareciam trazer à cena outra intensidade, outro nível de
entrega, coragem de revelação e presença e que me engajavam em suas ações.

Em um workshop realizado com a Cia Teatro Akropolis trabalhamos


principalmente com diálogos corporais, que por um lado se assemelhavam a processos
criativos que eu havia vivenciado em dança contemporânea e em práticas de contato e
improvisação, por outro distinguiam-se por algo que inicialmente não me era fácil
identificar. Trabalhamos sobre a repetição e a precisão da ação, as orientações eram
para que “não dançássemos”, mas apenas reagíssemos aos estímulos de maneira

30
Amor Fati refere-se a uma ideia do filósofo Friederich Nietzsche de amor ao destino trágico e entrega
ao presente da vida de modo a torná-lo o melhor possível. “Amor fati: seja este, doravante, o meu amor!
Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores.
Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas
alguém que diz Sim!” (NIETZSCHE, 2012, p. 276).
31
Ricardo Gomes, em uma de nossas orientações de Mestrado na qual conversávamos sobre minha busca
por uma precisão cênica para além dos códigos, me disse que a precisão, dentro das pesquisas de
Grotowski, vinha exatamente do que era preciso, no sentido de necessário.

41
sincera e precisa, sem excessos que não correspondessem às reais necessidades
daqueles contatos e das relações, que poderiam ou não se dar pelo toque. O trabalho
durou muitas horas e passou por algumas outras etapas, mas permanecia ao longo de
todo ele, a sugestão para que deixássemos o corpo agir a partir de suas reais
necessidades, sem premeditar ou racionalizar as intenções, sem camuflar, ou exagerar,
deixando-nos ser surpreendidos por nós mesmos e pelo outro a partir daqueles
contatos.

Algum tempo depois vivenciei uma oficina de Dança-teatro com a Profª. Drª. e
atriz/bailarina Carla Andrea Lima, onde, a meu ver, dialogavam princípios da dança
contemporânea, do Butoh e de suas pesquisas sobre o teatro de Jerzy Grotowski. Ao
realizá-la foi modificada em mim a percepção de algumas práticas que havia vivenciado
em aulas de dança contemporânea. Fui estimulada a estar presente nos mesmos
exercícios com um engajamento completo, que me levava a sentir uma maior intimidade
com as movimentações propostas e uma maior densidade de presença nas
experimentações. Deveriam estar presentes os impulsos, as ações corporais deveriam
ser precisas, espontâneas, e deveríamos envolver todo o corpo em cada ação. Lembro-
me da percepção de que “não era possível mentir ali”. Havia tido uma sensação de
desnudamento e revelação semelhante à que senti em uma disciplina de Expressão
Corporal direcionada ao curso de Comunicação Social, realizada em 2004, durante as
aulas do Prof. Dr. Fernando Mencarelli. Em uma de suas práticas, quase ao fim do curso,
o professor nos pediu que recordássemos de uma memória forte, dizendo que a mesma
não deveria ser representada, nem tampouco narrada, e que quem assistisse você
naquele momento não precisaria saber qual seria essa memória. Deveríamos recordar
com o corpo, deixar-nos ser afetados por aquela memória, perceber como o corpo
reagiu, e como reage hoje àquela memória, e dar passagem aos impulsos que surgiam
na relação com aquela memória.

As associações que liberam os impulsos do corpo têm um vasto campo de


amplificação por meio de imagens [...] esse tipo de jogo libera aqueles
impulsos que não são frios, mas que são procurados no âmbito da nossa
memória, do nosso “corpo-memória” (GROTOWSKI, 2007, p. 158).

Por meio daquela prática foi possível acessar revelações sobre nós mesmos e
sobre aquelas memórias, que pareciam encontrar-se até então inacessíveis. Nos
revelávamos um ao outro em um nível de profundidade que, até então, em um ano de
convívio cotidiano, ainda não havia sido possível naquele grupo.

42
Quando no teatro se diz: procurem recordar um momento importante da sua
vida e o ator se esforça por reconstruir uma recordação, então o corpo-vida
está como em letargia, morto, ainda que se mova e fale... É puramente
conceitual. Volta-se às recordações, mas o corpo-vida permanece nas trevas.
Se permitem que seu corpo procure o que é íntimo [...] nisso há sempre o
encontro [...] e então aparece o que nós chamamos de impulso
(GROTOWSKI, 2007, p.205-206, grifo meu).

Em seu curso “Comportamento orgânico e ação intencional”, Graziele Sena nos


fazia acessar nossos impulsos, nosso corpo memória e a organicidade das ações físicas
por meio de cantos e trabalhos físicos, sempre em contato, em relação. Graziele me
trouxe provocações intensas, que me tiravam da zona de conforto e me abriam à zona
de risco, à entrega completa ao momento presente, à ação em desvelamento do si, que
eu procurava e, sem perceber, evitava. Graziele Sena me mostrou um de meus bloqueios
fundamentais, e então, profundamente perdida, me vi inteiramente no presente da
ação, conectada às relações que se estabeleciam e reagindo a elas de modo mais
profundo e sincero.

Nas práticas conduzidas por André Magela no grupo de pesquisa “Grotowski


Deleuze Educação”, partíamos da obra Palavras Praticadas, de Tatiana Motta Lima (que
se refere ao percurso de Jerzy Grotowski entre os anos de 1959 e 1974, e destaca
elementos fundamentais da sua pesquisa). Pesquisávamos, na teoria e na prática,
primordialmente as noções de impulso e contato. Ao longo dessas experimentações,
André me dizia que meu repertório corporal (vindo da dança contemporânea, capoeira
e de outras técnicas), por um lado me favorecia, por me tornar aberta aos contatos e
permissível aos impulsos, bem como por me fazer confiar nas possibilidades corporais
de adentrar o inusitado sem me machucar, mas que, por outro lado, era esse mesmo
repertório que me prejudicava em outros momentos, pois me fazia tender aos vícios, a
recorrer a caminhos já conhecidos e a evitar o risco - os lugares onde haveria algo de
novo a descobrir. Durante esses trabalhos André Magela sempre nos alertava para a
importância de vivenciarmos o “lugar de não saber o que fazer", "lugar de iminência",
"a sensibilização para o microimpulso". Ele dizia: "Quando estou aberto para o
intermediário deixo que outra coisa aconteça, não deixo que a coisa formatada me
domine" (Diário de bordo da pesquisadora).

Vivenciando essas experiências, conectadas às leituras de textos de Jerzy


Grotowski, de seus colaboradores e pesquisadores, ficava cada vez mais relevante para
mim a ideia de que, para experienciar a essência das pesquisas de Grotowski em meus
próprios processos criativos, seria fundamental uma investigação mais aprofundada
sobre o que seria o trabalho com os impulsos, ou ao menos, sobre o que nos afastaria
dessa via de experimentação. Além disso, pareceu-me também importante refletir

43
sobre aquele “lugar de iminência”, espaço “intermediário”, ressaltado por André
Magela. Essa impressão era acentuada pela memória do texto de divulgação do
workshop da Companhia Teatro Akropolis, onde dizia que a Cia iria apresentar-nos sua
interpretação do treinamento físico do ator, por meio do “estudo do impulso como
origem de cada ação física, analisando a ação a partir do momento que precede sua
iniciação”32.

Estar atento(a) ao momento que precede cada ação, dar atenção aos lugares
de passagem entre elas, parecia, portanto, uma importante percepção a ser despertada
na busca pela escuta dos impulsos e pela organicidade. Essa impressão confirmou-se ao
longo das experiências vivenciadas durante a Residência Artística “Caminhos do
silêncio”, conduzida por François Kahn. Parecia nítida ali a importância dos impulsos, do
contato, da ação física, do corpo-memória, da organicidade e de outras “palavras
praticadas” – termo proposto por Motta Lima (2012a) – bem como importava
absolutamente o silêncio. O silêncio me parecia ser algo que trazia a percepção desse
espaço entre, dessa zona de liminaridade e de passagem, que facilitava o encontro com
as “palavras praticadas” e a experimentação das mesmas, para além das
superficialidades e de automatismos.

Foi a partir dessas percepções que dediquei minha pesquisa de Mestrado ao


estudo dos impulsos e das “palavras praticadas” que se associam a eles, chegando,
então, ao que chamei de “corpo limiar” - noção através da qual abordei a importância
dos “lugares de passagem”, que, a meu ver, não se separam do trabalho com os
impulsos. Essa pesquisa foi realizada no intuito de refletir sobre algumas questões
destacadas por Jerzy Grotowski que me pareciam essenciais para criadores(as)
interessados(as) em processos criativos que visam uma precisão cênica para além dos
códigos e uma maneira orgânica de trabalhar que não distinga estrutura e
espontaneidade. Essa pesquisa clareou elementos fundamentais, e reverberou de modo
direto e profundo em minhas práticas como artista do corpo, preparadora corporal,
professora e pesquisadora. Nunca tive com ela a ilusão de que seria possível definir
qualquer metodologia, tampouco tive o desejo de fazê-lo, mas me parecia que a
possibilidade de analisar as reflexões trazidas por Jerzy Grotowski poderia levar-me a
caminhos mais próximos de meus desejos para os processos de criação.

[...] não é possível verbalmente indicar o modo de captar impulsos, é um


trabalho prático e longo. Algumas pessoas captam rapidamente e depois
perdem, outras captam após muito tempo e o mantém. Não é possível indicar
um percurso em direção aos impulsos, é como se alguém lhe perguntasse
como se escreve um bom poema, ou uma boa música (GROTOWSKI apud
MORAES 2008, p. 94).

32
Texto presente no email de divulgação do workshop da Cia Teatro Akropolis.

44
A pesquisa acerca dos impulsos e de meios para desbloquear sua passagem foi
o marco inicial do interesse de Jerzy Grotowski por trabalhar sobre as subjetividades dos
atores e atrizes e para a busca por uma co-existência entre técnica e expressividade, ou
estrutura e espontaneidade. Conforme apontam Slowiak e Cuesta, “[...]impulso é um
dos conceitos mais importantes para o ator grotowskiano. Grotowski muitas vezes
afirmou que a maneira de perceber se o ator está trabalhando organicamente ou não é
determinar se está trabalhando no nível dos impulsos” (SLOWIAK; CUESTA, 2013, p. 102-
103).

O interesse de Grotowski em relação aos impulsos se inicia quando seu trabalho


deixa de direcionar-se aos espectadores, abandonando a busca por uma estética capaz
de acessar o inconsciente dos mesmos, e passa a direcionar-se ao trabalho do(a)
ator/atriz sobre si mesmo. A ideia de um “trabalho do ator sobre si mesmo”,
inicialmente desenvolvida por Constantin Stanislávski, refere-se à mobilização de
aspectos pessoais da experiência do(a) ator/atriz para a construção do personagem. Na
primeira fase da elaboração do método das ações físicas, Stanislávski acreditava que o
ator deveria procurar elementos de sua própria memória, que se relacionassem às
experiências do personagem, utilizando-os para sustentar suas ações em cena. Próximo
ao fim de sua vida, porém, o diretor descobre não ser possível manipular as emoções e
acessá-las no momento desejado, mas entende que seria possível perceber os impulsos
e as ações físicas associadas a essas memórias e fixá-las. Segundo Quilici, “a técnica que
daria acesso a essa fonte estaria ligada à desautomatização das ações e à investigação
das conexões entre aspectos físicos e psíquicos” (QUILICI, 2015, p. 77). O ator então não
deveria mais perguntar a si mesmo o que havia sentido nesta ou naquela situação, mas
o que havia feito, o que conduziu Stanislávski à última etapa de sua pesquisa, o método
das ações físicas.

Antes de começar a me concentrar sobre um papel específico, antes de


pensar na criação do círculo de atenção no qual tenho que fazer entrar estas
ou aquelas “circunstâncias dadas” do papel, tenho primeiro que libertar a
mim mesmo das diferentes crostas e capas de minha vida privada que carrego
até o momento em que comecei o trabalho criativo (STANISLÁVSKI, 1994,
p.89).

Partindo da descoberta de Stanislávski sobre as ações físicas, Grotowski


interessou-se por processos que pudessem liberar o fluxo de impulsos no corpo do (a)
ator/atriz e, por meio deles, dar passagem ao corpo-memória e acessar necessidades,

45
talvez ainda desconhecidas, relacionadas à criação. Dessa maneira, para pensar em
processos criativos tendo como referência o trabalho de Grotowski se faz importante
realizar a seguinte pergunta: “[...] esse tipo de trabalho desenvolve os impulsos vivos do
corpo?” (GROTOWSKI, 2007, p. 164).

A pesquisadora e Profª. Drª. Tatiana Motta Lima descreve diferenças entre as


maneiras como Grotowski desenvolvia a ideia de um trabalho sobre si antes e depois de
1965, quando realizou as experiências criativas com o ator Ryszard Cieslak. Inicialmente
Grotowski trabalhava a partir da ideia de autopenetração, um processo de introspecção
conduzido de modo a levar os(as) atores/atrizes a um estado de transe, com o objetivo
de “anulação” do corpo para a passagem dos processos psíquicos. Grotowski defendia
a ideia de um “ator santo”, que realizasse um sacrifício do ego por meio de situações
limites, rompendo, desse modo, os bloqueios e barreiras do corpo à passagem dos
impulsos. Aos poucos, Grotowski estabelece uma não diferenciação entre corpo e
pisque, seu trabalho deixa de direcionar-se à anulação do corpo, e o diretor passa a
interessar-se pelo ato total, pela escuta do corpo em contato, por suas sensorialidades,
sentimentos e memórias; rompendo as fronteiras entre corpo e mente, entre interno e
externo. As pesquisas do diretor foram modificando-se bastante ao longo do tempo,
configurando diferentes fases de seu trabalho, permanece nelas, porém, a partir de sua
abordagem sobre o trabalho de atores/atrizes sobre si mesmos(as), a importância de
uma corporeidade permissiva à passagem do fluxo de impulsos. Para melhor
compreender o que seria o trabalho com os impulsos, procurei pesquisar as “palavras
praticadas” associadas a esse trabalho, que foram elucidadas na pesquisa de Tatiana
Motta Lima.

Primeiramente foi possível perceber uma íntima relação entre as ideias de


impulso e corpo-memória. Grotowski difere a “memória do corpo”, do “corpo-
memória”. A memória do corpo estaria direcionada à busca pela reconstrução ou
representação de uma experiência, em uma perspectiva predominantemente racional.
O corpo-memória refere-se à corporificação de uma experiência, à passagem dos
impulsos e afetos referentes a uma recordação, como também a memórias que surgem,
inesperadamente, a partir de situações de improvisação, definindo impulsos e ações
físicas a fixar, e sobre os quais mergulhar e investigar. Segundo Slowiak e Cuesta (2013,
p.106), Grotowski compreendia que o corpo “não possui memória, mas é memória”,
“aquele fluxo de impulsos que nos guia na direção daquilo de que necessitamos, na
direção de nos revelar todas as paisagens dentro de nós, os espaços abertos e fechados,
o passado e o potencial”. A ideia de corpo-memória distingue-se profundamente da
representação e de ações descritivas sobre alguma recordação. O trecho abaixo explicita
a relação entre corpo-memória e os impulsos:

46
O ator apela para a própria vida, não procura no campo da “memória
emotiva”, nem do “se”. Dirige-se ao corpo-memória, não memória do corpo,
mas justamente ao corpo-memória. E ao corpo-vida. Então se dirige para as
experiências que foram para ele verdadeiramente importantes ou para
aquelas que ainda esperamos, que não vieram ainda. [...]. Estas recordações
(do passado e do futuro) são reconhecidas ou descobertas por aquilo que é
tangível na natureza do corpo e de todo o resto, ou seja, o corpo-vida. [...] E,
neste momento, se libera sempre o que não é fixado conscientemente, o
que é menos apreensível mas, de algum modo, mais essencial na ação física.
É ainda física e já pré-física. A isso eu chamo “impulso” (GROTOWSKI, 2001,
p.16, grifo meu).

Também é possível notar uma profunda relação entre os impulsos e as reais


necessidades do corpo, a verdade com a qual se entrega ao trabalho. “Não era possível
mentir ali!”, era o que percebia em processos que me envolviam na pesquisa dos
impulsos. Torna-se necessário ir além das máscaras que nos protegem, e dar passagem
aos afetos, aos impulsos, através das novas relações que surgem durante as
experimentações, onde o outro, com o qual se relaciona, está também se desnudando,
o que nos leva a novas possibilidades diante de nós mesmos. Nesse processo tendem a
surgir outras subjetividades, algumas delas que procurávamos esconder de nós
mesmos, já que tal espaço de criação permite ultrapassar as barreiras da moral social e
dar passagem mesmo ao que elas oprimem.

Encarada dessa maneira, a representação se torna um ato de transgressão,


não no sentido do pecado, e sim no sentido de ir além dos limites individuais.
O que isso significa para o ator? Aqui, a linguagem de Grotowski se torna
áspera. Fala de tabu, de violação, mas o que está realmente pedindo ao teatro
é que este rejeite seus clichês e se recoloque no âmbito da provocação, no
qual somos capazes de “atravessar nossas fronteiras, exceder nossas
limitações, preencher nosso vazio – nos tornarmos plenos” (SLOWIAK;
CUESTA, 2013, p. 96).

Para tanto, torna-se importante descobrir o que é de fato necessário, não pelo
pensamento racional, mas por uma mente-corpo, que, como vimos anteriormente, é
capaz de ultrapassar os limites do já conhecido. Necessário não apenas ao personagem
(muitas vezes inexistente nessa via de trabalho), à obra, ao conceito ou à discussão, com
os quais se pretende trabalhar, mas às necessidades e afetos sinceros, que definem os
impulsos, do corpo-mente-espírito frente a elas. Grotowski procurava a ruptura com as
máscaras cotidianas: “O impulso do ator sem fingimento determinava imediatamente

47
aquilo que era preciso eliminar [...]” (GROTOWSKI, 2007, p. 191, grifo meu). Torna-se
possível, ao longo dessas práticas, aprender a diferenciar representações e
automatismos dos impulsos reais, que ocorrem a partir de sua verdade e necessidade:
“O teste de um impulso verdadeiro é se acredito nele ou não” (GROTOWSKI, 1992, p.
193, grifo meu).

Sempre procurem a verdade real. Não o conceito popular da verdade. Usem


suas próprias experiências reais, específicas, íntimas. Isto significa que muitas
vezes vai dar a impressão de falta de tato. Tenham sempre como objetivo a
autenticidade [...]. Em suma, façam sempre o que está intimamente ligado
com suas próprias experiências (GROTOWSKI, 1992, p. 195-196).

A verdade da ação relacionada aos impulsos refere-se também à


disponibilidade de entrega para estar inteiro no presente da ação, como notamos no
trecho abaixo, escrito por Thomas Richards sobre o trabalho com Grotowski a partir das
ações físicas:

Quando levávamos algum tempo de ensaio, minha mente começava a


queixar-se da fadiga física. Então, Jim me fazia parar e me dizia que por uns
instantes havia estado ausente na realização da linha de ações. Havia
centenas de coisas que me faziam perder a concentração, as queixas de
minha mente eram apenas uma delas. Estava claro que uma pessoa que me
observava com olho atento podia detectar todos os momentos nos quais
não estava presente (RICHARDS, 2005, p. 106, grifo meu).

A partir dessa entrega então abre-se a possibilidade de que ocorra “algo que
de tão pessoal se torna impessoal”, como comenta Ricardo Gomes em um de nossos
ensaios/orientações (diário de bordo da pesquisadora). “[...]Espero que fique bem claro
que é muito importante nunca fazer nada que não se harmonize com seu impulso vital,
nada de que não possam prestar contas” (GROTOWSKI, 1992, p. 162-163, grifo do
autor).

Trabalhar com os impulsos envolve a revelação do desconhecido de si, que por


alguma razão foi ocultado e, portanto, torna necessário descobrir meios de desbloquear
o corpo para a passagem do fluxo de impulsos. Grotowski diz interessar-se pela via
negativa, pois não pretende agregar técnicas, ou ensinar formas de atuação a um(a)
ator/atriz, mas sim eliminar os obstáculos que impedem suas reações naturais e

48
orgânicas. Desbloquear a passagem de seu fluxo de impulsos é um dos principais
aspectos de suas práticas.

Quais são os obstáculos que lhe impedem de realizar o ato total, que deve
engajar todos os seus recursos psicofísicos, do mais instintivo ao mais
racional? Devemos descobrir o que o atrapalha na respiração, no movimento
e – isto é o mais importante de tudo – no contato humano. Que resistências
existem? Como podem ser eliminadas? (GROTOWSKI, 1992, p. 180, grifo
meu).

O trabalho com os impulsos parece encontrar profundas relações também com


a noção de contato - que se relaciona ao desenvolvimento de uma qualidade de
porosidade e abertura na relação com o meio e tudo que o envolve, uma capacidade
do(a) ator/atriz manter-se em transformação, afetando e sendo afetado(a). O
entendimento de tal premissa afasta a ideia de trabalho sobre si de uma proposta auto-
centrada, focada em uma autopenetração, desconectada do todo e dos elementos que
o envolvem, e direciona-se a um trabalho de ampliação da “escuta” e das inter-relações
corpo-meio. O contato, em Grotowski, ultrapassa o toque físico, refere-se a uma
disponibilidade para estar, a todo o momento, presente e em conexão, o que envolve
uma abertura para o espaço e para os(as) demais criadores(as), de modo que todo esse
conjunto torna-se parte integrante no surgimento dos impulsos e das ações físicas –
como envolve também relações e conexões com elementos que ultrapassam o lugar
físico, por exemplo, a política e as memórias.

Contato: o contato é um dos elementos essenciais do ofício do ator. Não deve


ser entendido meramente como olhar ou como fixar os olhos no parceiro.
Contato é ver verdadeiramente. Se você realmente vir e ouvir seu parceiro,
ocorre uma adaptação natural. Você deve ajustar o que está fazendo porque
hoje, mesmo que você e seu parceiro estejam seguindo a mesma partitura de
ações, sempre haverá leves diferenças. A verdadeira improvisação se
apresenta no nível do ver, ouvir e ajustar. Estar presente e vivo no palco é
estar em contato, e esse contato resulta em harmonia entre você e seu
parceiro. Vocês estão juntos no mesmo momento – vendo, ouvindo e
respondendo (SLOWIAK; CUESTA, 2013, p. 104).

Grotowski ressaltava a importância de fixar e repetir as ações físicas surgidas


das experimentações corporais; os movimentos que trazem em si organicidade,
impulsos, verdade, memória, contato, no intuito de um aprofundamento nas mesmas,

49
bem como em estados e imagens, que surgem por meio delas. Grotowski acreditava que
a espontaneidade não seria possível sem a partitura, pois o processo de improvisação
constante poderia levar o(a) criador(a) a fugir das descobertas presentes nessas ações
e, sem essa definição e repetição, as mesmas poderiam perder-se no caos,
permanecendo, na criação, primordialmente momentos de superficialidade. “O ato do
ator compõe-se das reações vivas do seu organismo, da ‘corrente dos impulsos visíveis’
no corpo. Todavia, para que esse processo orgânico não se desvie no caos, é necessária
a estrutura que o canalize, a partitura composta do movimento e do som” (FLASZEN,
2007, p. 30).

O trabalho com as partituras, além de permitir um aprofundamento e


desvelamento, envolve também o ato de desbastar, esculpir, retirar os excessos: tudo
que não parta dos impulsos e necessidades deve ser excluído para que apenas
permaneçam os fluxos de impulsos, compostos de precisão advinda das reais
necessidades. De acordo com Grotowski (1992, p.164), “[...]ninguém deve esquecer de
eliminar tudo o que é supérfluo. O estoque deve conter não somente os movimentos,
mas, de preferência, os elementos que compõem tais movimentos”.

A relação entre a partitura e o fluxo de vida, de impulsos, relaciona-se à


simultaneidade entre estrutura e espontaneidade, bem como à precisão cênica para
além dos códigos. Thomas Richards, que foi colaborador de Jerzy Grotowski, afirma que
o equilíbrio da vida cênica se dá através do paradoxo: “Precisão/Forma” e “Corrente de
Vida” (1996, p.21). A partir desses aspectos, surge a seguinte questão: como manter viva
a partitura a cada dia de sua “repetição”? Sobre esse questionamento Grotowski
considera: “[...] se, durante os ensaios, o ator tiver estabelecido a partitura como algo
natural, orgânico (o padrão de suas reações, ‘dar e tomar’) e se, quando já representado
para fazer esta confissão, nada escondendo, então a representação atingirá sua
plenitude” (GROTOWSKI, 1992, p. 183). Entende-se assim, que a partitura,
organicamente nascida das necessidades e impulsos, se reatualiza, a partir dos contatos,
a cada vez que é executada. A precisão orgânica, portanto, nunca se finaliza em si
mesma, mas mantêm-se aberta ao acontecimento.

É importante ressaltar que a repetição, para Jerzy Grotowski, tem como


objetivo o mergulho no corpo-memória, o aprofundamento em suas emoções e o
trabalho com os impulsos; não a construção de um efeito estético. “Um ator deve ser
capaz de repetir a mesma partitura muitas vezes, e esta deve ser viva e precisa cada vez.
Como podemos fazer isso? O que um ator pode fixar, assegurar? Sua linha de ações
físicas” (RICHARDS, 2005, p. 58). Ao que segue o seguinte comentário de Ryszard
Cieslak:

50
Cada noite eu começo sem nada antecipar. É a coisa mais difícil de aprender.
Não me preparo para experimentar o que quer que seja. [...]. Quero somente
estar pronto para o que acontecerá. E eu me sinto pronto para aproveitar o
que acontecerá e me sinto seguro em minha partitura, se eu sei que, mesmo
quando não sinto quase nada, o vidro não se quebrará, que a estrutura
objetiva, trabalhada durante meses, me ajudará. Mas quando vem o
momento em que posso queimar, brilhar, viver, revelar, então estou pronto
porque não antecipei nada. A partitura permanece a mesma, mas cada coisa
é diferente, pois sou diferente (CIESLAK apud TAVIANI, 2015, p. 66).

Partindo dessas percepções pareceu-me importante trazer breves reflexões de


Jerzy Grotowksi sobre algumas “precauções” a serem observadas ao longo de um
processo de criação, para que o mesmo não se afaste da organicidade, sendo elas: “O
desejo de evitar o Ato, de fugir do que deveria ser feito agora, hoje” (GROTOWSKI, 2007,
p. 179); a segregação entre técnica e expressão, corpo e processos psíquicos, o interno
e externo (autopenetração/ ilusão de isolamento): “A técnica emerge da realização,
portanto a falta de técnica é um sintoma de falta de honestidade [...]. Temos alguns
elementos muito precisos. Por meio do contato e da presença tangível do corpo-
memória a cena se desenvolve coerentemente” (idem, p. 179).

Encontramos também como obstáculo o controle e predomínio da


racionalidade; o “relaxamento excessivo”; o fechamento do/da ator/atriz em si
mesmo/a; e o ato de “bombear emoções”, que pode acontecer quando o/a ator/atriz
se exacerba e busca intensificar e/ou representar um impulso. Nesse sentido, ao relatar
suas primeiras experiências no trabalho sobre os impulsos e as ações físicas, Richards
conta que:

[...] havia confundido a agitação dos nervos com emoções verdadeiras; havia
evitado o verdadeiro trabalho prático e havia tentado “bombear” um estado
emocional. Na sua conferência de Liége (1986), Grotowski disse:
Normalmente, quando um ator pensa nas intenções, pensa que se trata de
“bombear” um estado emocional dentro de si. Não é isso. O estado emocional
é muito importante, porém não depende da vontade. Não quero estar triste:
estou triste. Quero amar a essa pessoa: odeio essa pessoa, porque as
emoções não dependem da vontade. De maneira que quem tenta
condicionar as ações através dos estados emocionais cria confusão
(RICHARDS, 2005, p. 66).

A partir dessas percepções, reflexões e descobertas, surgiram novos


questionamentos: Como poderíamos diferenciar os impulsos dos vícios e
automatismos? Como poderíamos de fato dar passagem aos impulsos, e às memórias e

51
subjetividades que surgem a partir deles? Pareceu-me, então, que a atenção àquele
espaço intervalar ressaltado por André Magela, estado entre “o que foi” e “o que pode
vir a ser pode ser”, que traz em si características do passado, e esboços do que ainda é
latente, do que está por vir, em suas possibilidades de dissolução de identidades e
condicionamentos, poderia ser um ponto importante de reflexão em tais processos de
criação. Grotowski diz: “O que eu poderia dizer eu já disse. O impulso vem antes da ação,
uma micro-ação, quando a ação, ainda, não é visível, mas já começou no interno do
corpo, está sob a pele” (GROTOWSKI apud MORAES, 2008, p. 94).

Ludwik Flaszen, colaborador de Jerzy Grotowski, em seu livro “Grotowski &


Companhia – Origens e Legado”, no texto chamado “Na passagem entre máscaras”, tece
reflexões que vêm ao encontro dessas inquietações e reflexões, nas quais é bastante
enfatizada a importância dessa zona de liminaridade:

Quarenta anos atrás Grotowski deliberava: “Como se livrar da máscara? Essa


é uma tarefa completamente relativa. Pois se já nos livramos de uma
máscara, imediatamente colocamos uma nova, por exemplo, a máscara de
depojei-me da máscara. Todavia, entre os dois pontos – na passagem –
acontece um milagre, algo vivo.
[...] Grotowski, anatomista meticuloso do ofício do ator, enfatizava que o
crucial na partitura do ator não é o esquema geral das ações, as grandes
figurações, posturas ou gestos, mas as passagens menos espetaculares
entre isso. É aí que flui o “fluxo da vida” – o “fluxo de impulsos” que
provocam a soma de estar vivo e orgânico.
[...] Em outro texto, ele observa que: “Na realidade, acontece a dança
quando o pé está no ar”. Portanto, acrescentamos, na passagem entre a
estase e a dinâmica do corpo, na suspensão entre elas.
[…] Grotowski falou certa vez de uma terra de nômades como o alvo de sua
procura. Preciso destacar que sua especialidade era operar em zonas
intermediárias raramente frequentadas, em passagens, nas entre- (zonas),
abundantes de tentações (FLASZEN, 2015, p. 374-376, grifos meus).

É notável que os impulsos tendem a perder sua potência, ou mesmo não


encontrar passagem, quando as experimentações se direcionam às vias automatizadas,
a um excessivo controle sobre si e sobre a criação, a partir de um binarismo
corpo/mente, forma/ impulsos, e a uma fuga do devir de cada instante. Através disso se
dá a normatização do gesto, um fazer delimitado pelas fronteiras do já conhecido, de
insistências em subjetividades enrijecidas, que não mais permitem a passagem de
afetos. Nas experiências práticas é possível notar como a fuga do acontecimento, o
receio de tornar-se permeável aos afetos e permitir-se ser desconstruído a partir deles,
de tornar-se outro(a) e inesperado, podem gerar empecilhos nas ações da cena, como
notamos no trecho abaixo:

52
Porque muitas vezes o que chamamos de nossa reação, de nosso fazer mais
espontâneo, está misturado com a rapidez do pensamento-ação-mecânico.
Uma resposta rápida, primeira, aos estímulos, não significa necessariamente
uma resposta livre, ela pode ser exatamente a resposta habitual, padronizada
e muitas vezes romantizada. Então interromperíamos essa mecanicidade
percebendo que ela sim poderia operar outra interrupção não desejada ao
correr do fluxo. Essa mecanicidade também teria a ver com aquela rapidez
em ler e em nomear a experiência segundo certos padrões, como diz Quilici
“[…] no nascer de uma sensação e na maneira como ela é rapidamente
nomeada, classificada, trazida para o campo do já conhecido”. É por isso que
requer um gesto de interrupção: alguma coisa precisa se interromper para
esse mecanismo não acontecer inteiramente de forma desacordada,
dormindo 33 (MOTTA LIMA, 2012b).

Esse espaço de interrupção citado acima, essa abertura ao inesperado, ao


tempo necessário para que o impulso se mostre, ao rito de passagem que existe entre
o morrer e nascer de cada estado, imagem, memória, subjetividade, a entrega a esse
espaço intervalar, lugar de desconstrução, chamo aqui de “corpo limiar”, e me parece
um elemento relevante no contexto de processos criativos que buscam um
desvelamento de si, um aprofundamento nas reais necessidades da criação, e uma
precisão orgânica. Nas palavras de Grotowski, “[...] entre as margens dos detalhes passa
agora o “rio de nossa vida” (GROTOWSKI, 2007, p. 174).

[...] do mergulho nessa ausência, nesse “não querer agarrar nem rejeitar”,
brota uma singular disposição. A ‘presença’ pauta-se então numa atitude
desarmada, num corpo que não se defende dos fluxos que o atravessam,
surgindo e desaparecendo incessantemente [...]. Ao mesmo tempo, ele
deverá ser o mediador, aquele capaz de moldar a forma que acolhe o puro
fluir silencioso. Ao ator cabe descobrir os modos do agir e estar junto às coisas
a partir da intimidade com as dimensões profundas que se abrem também no
seu próprio corpo (QUILICI, 2006, p. 4).

A filósofa Jeanne Marie Gagnebin (2010) ressalta que as reflexões do filósofo e


sociólogo Walter Benjamin, sobre o abandono das zonas de liminaridade e dos ritos de
passagem na modernidade, em particular no capitalismo, apontam para a criação de
sociedades que tendem a não experienciar os espaços de deriva, transitando de

33
Palestra realizada por Tatiana Motta Lima no Simpósio internacional corpo-em-arte terra, realizada
pelo grupo LUME, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no ano de
2012.

53
fronteira em fronteira ou prendendo-se nos limiares. Segundo Gagnebin, nessa
dinâmica não se ousa experimentar nem a intensidade da vida e nem a dor da morte,
segue-se “vivendo num limiar de indiferenciação e de indiferença, como se essa
existência administrada fosse a vida verdadeira” (GAGNEBIN, 2010, p. 23). Para
Gagnebin (2010, p.16) “atravessar” um limiar seria “deixar um território estável e
penetrar num outro”, e a possibilidade de vivenciá-lo refere-se à potência de
“reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do intermediário,
da suspensão e da hesitação, e isso contra as tentações de taxinomia apressada, que se
disfarçam sob o ideal de clareza” (idem, p. 16-17). Trata-se, portanto, de “ousar pensar
devagar, por desvio, sem pressupor a necessidade de um resultado ao qual levaria uma
linha reta” (idem). A autora afirma que a duração do limiar é variável: “[…] aponta para
um lugar e um tempo intermediários e, nesse sentido, indeterminados, que podem,
portanto, ter uma extensão variável, mesmo indefinida” (idem, p.14-15).

Nos tempos atuais parece necessário retomar a experiência de deriva nesse


espaço de liminaridade, vivenciar a potência dessa zona indeterminada, com o objetivo
de criar porosidades nas fronteiras, torná-las permeáveis. Espaço prenhe, à beira do
abismo, encruzilhada. Procurar resgatar a vivência de algo que se perdeu na
contemporaneidade, com a possível consequência de devolver isso à cena, ao contato
com o público, parece trazer um viés político, tendo em vista o momento histórico atual,
no qual preconceitos, fronteiras e discursos de ódio e segregação estão a se enrijecer.

Então, o que seria a ideia de um corpo limiar? O corpo limiar não é o vazio, mas
refere-se à possibilidade de “esvaziar”. O corpo limiar não é apenas um elemento que
antecede a ação, mas também se manifesta na ação. É criar o espaço da dúvida, é habitar
a ambiguidade, que permeia a dissolução da identidade anterior e o adentrar em algo
desconhecido, é criar abertura para o novo. É a possibilidade de desfazer fronteiras,
torná-las permeáveis, de realizar criações como ritos de passagem. É a abertura para
inúmeras possibilidades. Assim, entendo que a passagem do impulso necessita da
vivência do período de liminaridade, ultrapassando o automatismo e a superficialidade.
Da mesma maneira, faz-se necessário o impulso para ultrapassar a zona de liminaridade
e adentrar ao novo, ao desconhecido, que se mostra através dela.

Como vimos, o corpo limiar está intrinsecamente relacionado à


transitoriedade, à ruptura com imagens, ideias e identidades pré-concebidas, à
permissividade à experiência presente a partir do dilaceramento de fronteiras, dentre
elas as fronteiras entre interno e externo, antes e depois, e mesmo entre impulso e
limiar. Tudo se mescla em um só corpo. O corpo limiar e o corpo vida transitam no
criador que se torna permeável às experiências, uno a elas.

54
O impulso e o corpo limiar de fato parecem potencializar as criações e serem
fundamentais para a construção de uma precisão orgânica. Ao percebê-los,
interdependentes e quase unificados, nosso olhar para a cena começa a notar como sua
ausência, mesmo em segundos, nos distancia como espectadores. Essas “palavras
praticadas” parecem borrar as fronteiras entre criador e espectador.

Admitir o fluxo, o devir, o “quem sou? ”, o “não ser”, o “não sei”, os hiatos de
ideias, o mutismo, a gagueira, as ausências de opinião, a impermanência de
posição, o silêncio, enfim, experimentar o vazio abre portas desconhecidas,
acessos a dimensões insuspeitadas de ser e criar. Permitir o esfacelamento
de estratos enrijecidos e vencidos é adubar o ser poético e o ser político. A
cada nova atualização ética e estética, saber escutar os silêncios ecoando nos
espaços do corpo, para nutrir o germe do vazio no seio do pleno, revela
disposição não apenas de manter-se vivo, mas de ser-em-vida (CURI, 2015, p.
134).

Os excessos do mundo contemporâneo, sua fragmentação e produtividade, seu


ritmo acelerado, dificultam tanto a experiência do corpo limiar - sua suspensão e
ambiguidade - quanto do corpo vida. A passagem dos impulsos, que ultrapassa as
fronteiras de convenções sociais, a meu ver adquire potência na relação com processos
criativos que compreendam o tempo/espaço necessários à sua experiência, a
liminaridade.

Não procuramos aqui por respostas, nem tampouco metodologias, mas pela
investigação de caminhos que possam contribuir na busca por processos criativos
relacionados ao trabalho sobre si e à construção de precisão cênica por uma via
orgânica.

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55
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Cieslak. Ator-Símbolo dos Anos Sessenta. 1 ed. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 41-
68.

56
ÁVILA, Silvana Baggio. A experiência do aprendiz no trabalho sobre as ações físicas.
Porto Alegre: UFRGS. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Doutoranda.
Orientador: Walter Lima Torres. Atriz, professora do Departamento de Artes Cênicas da
UFSM.

RESUMO: Neste artigo, proponho refletir sobre o que está envolvido no ato de aprender
a trabalhar sobre as ações físicas, na perspectiva do aprendiz que descobre como fazer
na prática. Partindo do relato da minha própria experiência em trabalhar sobre as ações
físicas com Mario Biagini, por meio da participação em workshops conduzidos por ele
em tempos e lugares diferentes, busquei apoio nas experiências daqueles que vieram
antes de mim e refletiram sobre seus próprios processos de aprendizagem desta
“premissa necessária” para aqueles que agem no campo das performing arts. Diante das
palavras de Constantin Stanislávski, Vassíli Toporkov, Jerzy Grotowski, Mario Biagini e
Thomas Richards, exercito o pensamento sobre a aprendizagem do trabalho técnico e
artesanal na qual a “disciplina interior e pessoal” é imprescindível ao desenvolvimento
da qualidade artística do ator.
PALAVRAS-CHAVE: ação física; experiência; aprendizagem; ator.

ABSTRACT: I propose to reflect on the act of learning based on work on physical actions,
from the perspective of the apprentice who discovers how to do it in practice. I started
by the account of my working on physical activities, achieved through participation in
workshops conducted by Mario Biagini, in different times and places. I sought support
in the experiences of those who preceded me, reflecting on their learning processes
about the "necessary premise" for those who act in the field of performing arts. Faced
with the words of Constantin Stanislavsky, Vassíli Toporkov, Jerzy Grotowski, Mario
Biagini, and Thomas Richards, I exercise my thinking about learning technical and
craftwork in which "inner and personal discipline" is essential for the development of
the actor's artistic quality.

KEYWORDS: physical action; experience; learning; actor.

1. A escrita da experiência

Impactada pela experiência – que revira o sujeito, que deforma, que esfacela,
que desmancha e mancha, que o transforma – desejo que, através da minha escrita, se
mostre a cara viva e estremecida de quem encara o que lhe acontece com a
correspondente “voz viva, trêmula, balbuciante” (LARROSA, 2016, p. 76) da experiência
humana. O que impele a escrita aqui é o impacto, que produz no sujeito uma estranha
necessidade de traçar as palavras deste lugar de sujeito impactado, acreditando que:

57
A experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à escritura. Digamos com
Foucault, que escrevemos para transformar o que sabemos e não para
transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever é a possibilidade
de que esse ato de escritura, essa experiência em palavras, nos permita
liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos para
ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo (LARROSA; KOHAN, 2016, p.5).

Interessa-me a escrita daquele que escreve na qualidade de sujeito da


experiência, mostrando o rosto decomposto e a voz falha, já que é no rosto e na voz que
se assinalam “os lugares essenciais de singularização humana” (LARROSA, 2016, p. 76).
É do lugar deste rosto-voz estremecido que prefiro falar, desvelando o real na vida do
artista, que muito se apresenta nas dificuldades pelas quais ele enfrenta. É também
deste lugar que prefiro ler/ouvir a experiência do outro. Relatar uma experiência faz da
experiência com as palavras um espaço de escuta à experiência do outro.

Centro-me aqui nas particularidades vividas pelos artistas, sujeitos da


experiência, atravessados por impasses e dificuldades em suas trajetórias de
aprendizado técnico-artístico. Deste ponto, minha percepção compactua com a reflexão
de Bonfitto que, ao ler materiais escritos descrevendo processos de criação, encontra
uma ação de limpeza sobre aquilo que “não deu certo” e sobre as lacunas que podem
gerar importantes esforços e tentativas por parte do artista:

[...] percebo que em muitos casos tais descrições são de certa forma
idealizadas, higienizadas: relata-se o que “deu certo” nesses processos,
porém a presença de dificuldades é rara. Um aspecto interessante nesse
sentido está associado às estratégias utilizadas nessas situações de
dificuldade. Vejo esses momentos como cruciais nos processos criativos. Ao
lidar com as dificuldades, em seus diferentes níveis e tipos, o artista pode
fazer opções que o lançam para territórios desconhecidos por ele até então.
Talvez sejam eles os momentos mais cruciais, em que a descrição do já sabido
encontra os próprios limites. [...] Contudo, o lidar com as dificuldades e com
o não saber nos processos criativos envolve vários aspectos artísticos e extra-
artísticos (BONFITTO, 2019, p. 65).

Apontar as dificuldades e as estratégias que vão se apresentando no caminho


nebuloso dos processos de criação é lidar com o real e aceitá-lo como tal. Evidenciar
aquilo que “não deu certo”, trazendo as dificuldades enfrentadas pelos artistas, pode
contribuir para favorecer o pensamento sobre os aspectos artísticos e extra-artísticos
envolvidos nas experiências singulares dos artistas. Mas a evidência desse ocultamento
talvez se relacione com o fato de que, não somente na arte, como já havia dito

58
Stanislávski, “[...] os homens se recusam a aceitar a experiência do outro que os adverte
amorosamente contra erros e ilusões” (apud CRUCIANI; FALLETTI, 2004, p. 52).

Concentro-me neste artigo em pensar o processo de aprendizagem com as


ações físicas na perspectiva daquele que faz, e encara os “aspectos extra-artísticos” em
seu processo e que revira seus saberes. Pensemos então, “na potência da experiência
que produz aberturas, que arrebenta o cárcere que nós mesmos construímos”, como
disse Magda Złotowska34 no primeiro dia do Encontro Teórico “Liberdade como
tentação primária35” durante o Seminário Internacional Grotowski 2019 – Uma Cultura
Ativa. Mesmo que a natureza da busca seja pessoal e dependa da ação daquele que age,
ao relatar as particularidades da experiência do ator, evidencio a presença de um
outro/de outro(s) que atravessam o processo pessoal do artista contribuindo para o seu
desenvolvimento.

2. O relato de minha própria experiência

O que faz o ator quando se depara com certas dificuldades e impedimentos em


seu trabalho criativo? Esta pergunta apareceu no momento posterior à apresentação
pública do meu espetáculo solo Obscenidades para uma dona-de-casa36, requisito para
a conclusão do Curso de Bacharelado em Artes Cênicas – Interpretação Teatral, na
Universidade Federal de Santa Maria, em 2004, e me atormentou durante anos,
fazendo-me conviver com um enorme conflito em meu trabalho de atriz. Por mais que
a recepção tenha sido positiva e que aos olhos do público os resultados tenham sido
satisfatórios, eu guardava a insatisfação de ter sufocando o fluxo de vida ao me agarrar
na forma das estruturas de ação como salvação para minha insegurança de principiante.
O medo de viver um processo vivo diante do público gerou uma preocupação excessiva
com o domínio sobre a forma exterior da partitura de ações. Pela repetição mecânica
das partituras, havia criado impedimentos de acesso àquilo que dava sentido à escolha
pela profissão de atriz. Diante disso, que sentido teria minha performance se não
existisse essa vida cintilando em meu trabalho de atuação?

Mesmo que os anos de aprendizado no Curso de Artes Cênicas tenham me


proporcionado investigações precisas e descobertas valiosas com o trabalho sobre as

34
Magda Złotowska é formada em História da Arte pela Universidade de Wroclaw e em Antropologia
Cultural pela Universidade de Warsaw, ambas na Polônia. Trabalhou com Jerzy Grotowski na Polônia,
Itália e EUA, no Parateatro, Teatro das fontes e no Objective Drama Project. Traduziu para várias línguas
conferências e textos de Grotowski.
35
O encontro teórico aconteceu no dia 22 de novembro durante a programação do Seminário
Internacional Grotowski 2019 – Uma Cultura Ativa, promovido pela Unirio, na cidade do Rio de Janeiro.
36
Baseado no conto do escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, sob orientação da Profª Adriana Dal
Forno, o espetáculo estreou no Theatro Treze de Maio durante o Festival de Teatro Santa Cena, na cidade
de Santa Maria.

59
ações físicas como uma “premissa necessária para quem é ativo no campo das
performing arts” (GROTOWSKI, 2012, p. XI), após a conclusão do curso, me deparava
com a obviedade encarnada de que estar com um diploma na mão não garantia o
domínio, na prática, dos elementos indispensáveis ao ofício do ator. Deparava-me,
assim, com a urgência de reencontrar o caminho de reconexão com o processo vivo do
qual havia me distanciado.

Eu fazia o esforço de analisar o problema que se apresentava nebuloso e


somente depois de algum tempo, ao ouvir as palavras de quem me guiou “de fora”, a
orientadora do processo de criação do espetáculo, é que pude ver com mais clareza o
problema. Sob a insegurança e o medo, inconscientemente levei a atenção
exclusivamente para o aspecto físico da estrutura, tentando me assegurar de que,
tomando essa medida, dominaria o comportamento cênico em sua totalidade. O
direcionamento unilateral bloqueou a atenção para as intenções, associações e relações
de contato que fazem correr o fluxo de vida na partitura de ações físicas, fazendo
prevalecer uma realização mecânica e formal nas sequências estruturadas de ação.

Suspeito fortemente de um dos fatores que me levaram a uma preocupação


excessiva com a forma: a dominação da mente discursiva – que quer categorizar,
entender, comandar – tão fortemente exercitada em nossos tempos. Como elucida
Thomas Richards:

Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente
discursiva. Essa parte da mente divide, reparte, etiqueta – empacota o mundo
e o envolve como se ele fosse “entendido”. É essa máquina dentro de nós que
reduz o misterioso objeto que oscila e ondeia a uma simples “árvore”. Como
essa parte da mente comanda nossa formação interior, à medida que
crescemos a vida perde seu sabor. Nossas experiências vão se tornando cada
vez mais rasas, e deixamos de perceber as “coisas” diretamente, como fazem
as crianças, para percebê-las como se fossem signos de um catálogo que já
nos é familiar. O “desconhecido”, então reduzido e petrificado, passa a ser o
“conhecido”. Entre o indivíduo e a vida surge um filtro. A mente discursiva,
assim como ela é, tem dificuldade de tolerar um processo vivo de
desenvolvimento. Como um cachorrinho que tenta reter um rio
comprimindo-o com seus dentes, essa mente etiqueta as coisas ao nosso
redor, e afirma: “Eu entendo”. Através desse tipo de “entendimento” criamos
mal-entendidos, e reduzimos o que é percebido aos limites e às
características da mente discursiva (RICHARDS, 2012, p. 4).

Sob o domínio da mente discursiva, que sufoca o fazer pelo excesso de


teorização sobre aquilo que se faz, fui criando um impedimento em tocar o intangível
na estrutura, bloqueando minha capacidade de agir organicamente. Eu experimentava

60
estratégias para solucionar esse problema, mas não percebia evolução. A necessidade
de seguir desenvolvendo o trabalho sustentado pela prática com as ações físicas
requeria a tentativa de trabalhar com alguém em quem pudesse confiar, alguém com
conhecimento profundo sobre o ofício do ator que pudesse contribuir para a
continuidade de meu processo de aprendizado sobre as ações físicas.

Foi então que, em 2007, deparei-me com a oportunidade de entrar em contato


com o trabalho do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, participando da
sessão de seleção para um novo programa dentro do Workcenter, o “Artistry in
Residence – Open Program”, dirigido por Mario Biagini37, que aconteceu em sua sede na
cidade de Pontedera, na Itália.

Na época, nada sabia sobre o trabalho de Biagini e das então atuais atividades
no Workcenter, mas como estudante, leitora apaixonada de Grotowski, sabia da
existência desse centro de pesquisa concebido pelo mestre polonês e mantido em
atividade pelo seu herdeiro, Thomas Richards. Ao deparar-me com a possibilidade de
entrar em contato com a prática do Workcenter, intuía fortemente que ali encontraria
uma experiência que pudesse me reconduzir ao caminho da organicidade, do fazer vivo
do ator.

Em Pontedera, já na primeira sessão de trabalho com os cantos, fui golpeada


pela vida que jorrava do corpo e da voz de Mario em ação. Eu o reconhecia como o guia
em quem poderia confiar na busca por aprofundamento do ofício do ator e, arrisco
dizer, que o reconheci como o teacher of performer, como entendido por Grotowski:
“Teacher – como em qualquer ofício – é uma pessoa por meio da qual o ensinamento
passa; o ensinamento deve ser recebido, mas a maneira de o aprendiz redescobri-lo só
pode ser pessoal” (GROTOWSKI, 2015, p. 2).

Talvez ele não estivesse intencionado a agir naquele momento como o teacher,
já que estava ali em uma sessão de seleção onde escolheria os colaboradores com quem
futuramente trabalharia, compondo o novo team dentro do Workcenter, mas meu olhar
urgente o reconhecia naquele momento como tal, pois os ensinamentos eram visíveis
para quem buscava o conhecimento na prática sobre o ofício do ator. Ao ouvir as
palavras de Antonio Attisani38, proferidas em sua palestra durante o Seminário

37
Mario Biagini é diretor associado do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards. Trabalhou na
equipe liderada por Thomas Richards tornando-se um colaborador central na pesquisa prática no campo
da arte como veículo. Desde 2007, lidera a equipe do Open Program dentro do Workcenter, tendo dirigido
os espetáculos I Am America, Not History’s Bones – A Poetry Concert e Eletric Party.
38
Antonio Attisani é professor aposentado de História do Teatro na Universidade de Veneza (1992-2005)
e de Culturas Teatrais na Universidade de Turim (2005-2018). Attisani publicou “Un teatro apocrifo: il
potenziale dell’arte teatrale nel Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards” (2006); “Smisurato
cantabile: note sul lavoro del teatro dopo Jerzy Grotowski” (2009) e editou, entre outros, “The Grotowski’s
collection Opere e Sentieri” (com Mario Biagini, em 3 volumes, 2007-2008).

61
Internacional Grotowski 2019 – Uma Cultura Ativa, considerei-as afinadas com aquele
momento de reconhecimento e escolha: “se você se coloca ao lado de alguém que você
admira, esse é o critério. Mesmo que ele não se coloque como mestre para você.
Escolher os próprios mestres é se colocar em trabalho39”. Diante da oportunidade do
encontro, posicionei-me como aprendiz, colocando-me em trabalho para aprender
observando o mestre que tinha eleito.

Para a sessão de seleção, os participantes deveriam levar, cada um, duas acting
propositions para serem mostradas nos momentos dedicados a este trabalho. Elas
deveriam ser estruturadas e repetíveis, legíveis e compreensíveis para um observador.
Ao analisá-las, Biagini observava rigorosamente e fazia suas avaliações sobre as
questões ligadas aos elementos técnicos e artísticos do ator. Ao mostrar minhas acting
propositions, Mario apontou imediatamente para a ausência de ações em uma delas. Na
outra, apontou uma forma catatônica e patológica de agir. Fez-me perguntas precisas
como: “O que esta mulher faz?”; “Onde ela está?” – pois não se podia ver isso, na cena,
através do que eu fazia e de como eu fazia. Em suas observações, ressaltava a
necessidade de o ator ser concreto e específico em cena. Quando o ator ouve algo, por
exemplo, deve saber o que exatamente está ouvindo para poder responder a isso
verdadeiramente. Na sua análise sobre meu trabalho, confirmava-se o desmanche da
minha técnica. Geralmente, ao analisar as cenas dos participantes, Biagini pedia que
fizéssemos simplesmente “ações reais, nada abstrato!”.

Na análise que Biagini fez de meu trabalho, assim como na análise dos outros
participantes, eu percebia seu conhecimento profundo sobre o ofício do ator. Na sessão
de trabalho com os cantos, ou no momento dedicado aos exercícios físicos, não havia
espaço para o fingimento ou a passividade; via-se a ação real, viva no corpo e na voz de
Biagini e de outros membros do Workcenter.

Tudo aquilo que vi e ouvi durante minha participação no processo de seleção


ressoou durante os anos que se seguiram à experiência, funcionando como um guia na
busca por me trazer de volta ao lugar em que queria habitar. No esforço de conquistar
esse como fazer, eu segui fazendo tentativas.

Na experiência de fazer e de olhar outros fazendo, sob a condução de Biagini,


pude perceber, sobretudo, o que não deveria fazer. Eliminando tudo aquilo que não
servia, tudo o que não fosse uma manifestação da relação viva com os partners, reais e
imaginários, segui desenvolvendo o meu trabalho, exercitando a capacidade de agir de
acordo /com as circunstâncias do aqui e agora, buscando reconectar-me com o aspecto
interior e sutil da vida que pode pulsar do trabalho concreto e real sobre as ações do

39
A palestra “Antes, durante e depois do teatro (pensando em Grotowski e além)” foi proferida no dia 21
de novembro de 2019 como parte integrante da programação do Seminário Internacional Grotowski 2019
– Uma Cultura Ativa, promovido pela Unirio, na cidade do Rio de Janeiro.

62
ator. Movida pelo desejo de conquistar o conhecimento na prática, continuava a
trabalhar com a criação das ações físicas, investigando e investindo em tentativas,
buscando descobrir o como fazer na prática.

Em texto publicado na Revista Brasileira de Estudos da Presença, baseado na


transcrição do seminário intitulado Encontro na Universidade de Roma “La Sapienza” ou
Sobre o Cultivo das Cebolas, Biagini fala justamente dos esforços que o ator realiza em
seu ofício:

O ofício do ator é constituído por uma série de tentativas, de esforços mais


ou menos intensos de tocar algo que ele mesmo não conhece, de fazer desse
algo uma coisa viva e, em certos domínios da arte, de torná-lo também
perceptível ao observador. Para tocar esse algo sobre o qual é tão difícil falar,
para aproximar-se, o ator faz tentativas. Essas tentativas não estão
relacionadas a uma técnica específica. Não existe nenhuma técnica que
funcione por si mesma, nenhuma técnica graças à qual, antes de iniciar o
trabalho, assegure a alguém que o trabalho vai ser bem-sucedido. [...] Existem
muitas técnicas, barreiras contra as dificuldades, caminhos para eliminar os
bloqueios (BIAGINI, 2013, p. 324).

Em 2011, soube que Mario estaria no Brasil ministrando o workshop


“Contato.Intenção.Impulso”, durante o Encontro Mundial das Artes Cênicas, em Belo
Horizonte. Meu reencontro com Mario se fazia necessário para mim. Eu precisava ouvir
do teacher por mim eleito se minhas tentativas estavam na direção correta.

Como de costume, para participar do workshop, o participante deveria levar


uma acting proposition para ser trabalhada durante os momentos dedicados a ela. Para
criá-la, guiei-me por uma forte impressão de intensa verdade que guardava dentro de
mim, vivida na atuação do espetáculo Com carinho, Alice40, durante o período como
estudante no Curso de Artes Cênicas. Resolvi criar minha acting proposition sobre
aquela impressão, que envolvia o frescor das relações de jogo e brincadeira entre dois
partners, eu e meu amigo de infância. Sobre circunstâncias precisas, criei uma sequência
lógica de ações movida por associações pessoais que tocavam algo de íntimo e especial
nessa relação de amizade na infância.

Lembro-me de que, ao levantar para mostrar a cena que havia preparado, fui
invadida pela sensação de confiança por pisar em algo seguro e preparado com o

40
O espetáculo estreou no Teatro Caixa Preta da UFSM em 2001. Dirigido por Andréa M.Bolzon e sob
orientação da Profª Cândice Lorenzoni, teve no elenco os estudantes de Interpretação Teatral, Jader
Guterres de Mello e Silvana Baggio.

63
conhecimento prático dos elementos do ofício, o que permitia catapultar uma coragem
quase esquecida de acessar através da estrutura a sua potência de vida.

Ao finalizar a cena, nos sentamos. Mario olhou com determinação e rigor e


pronunciou as palavras: “Tem vida, tem associações. Eu acredito no que você faz”.
Naquele momento tive a confirmação de que estava caminhando na direção correta e
de que os esforços e tentativas estavam me levando a reconquistar uma qualidade no
fazer, confirmando aquilo que Richards constatou no trabalho com Grotowski, “que
aprender alguma coisa significa conquistá-la na prática. É preciso aprender ‘fazendo’ e
não por meio de memorização de ideias e teorias” (RICHARDS, 2012, p. 1).

As associações resgatavam uma fisicalidade adormecida, entorpecida pela


mente discursiva. Na tentativa de dar lugar ao desejo de viver a estrutura de ações como
algo desconhecido, um avanço importante em minha busca pessoal tinha se dado.
Diante dessa conquista, outras questões certamente apareceriam e exigiriam novos
esforços.

Ao guiar o trabalho pela composição de estruturas de ações, o ator se dispõe a


descobri-la a cada nova vez, o que implica um modo de agir daquele que faz. Ao falar da
estrutura, Biagini (2013) aponta para a atitude do ator em relação a ela, que envolve
fazer descobertas ao trabalhar sobre aquilo que é consciente e corresponde à vontade
– o palpável – e àquilo que não está na esfera da vontade consciente – o impalpável:

O ator está consciente das suas intenções e das suas ações, que se orientam
para fora, mas como exatamente a intenção atravessa o corpo no fazer,
atravessa a voz, atravessa o espaço, atravessa o parceiro – todo esse processo
não é totalmente consciente. No momento em que se torna consciente,
corremos o risco de termos nas mãos uma forma vazia. Quando mantenho o
nível de minhas ações exclusivamente no plano consciente, eu me movo, falo,
ajo, estritamente de acordo com o que já conheço, com o que já está
registrado na minha bagagem de know-how técnico, profissional ou humano.
Mas o terreno do real, da vida, é mais vasto e mais misterioso do que esse
pequeno enquadramento. Uma das aventuras, das tentações próprias ao
ofício do ator, é sair da área familiar, é aproximar-se de um território
desconhecido que inspira medo. Também por isso há a necessidade de uma
estrutura, porque, pelo menos você sabe, de qualquer forma, a próxima coisa
a fazer (BIAGINI, 2013, p. 328).

A natureza da estrutura de ações físicas vai exigir do ator que lide com um
paradoxo em seu ofício, fazendo-o lutar para que a vida se manifeste entre duas forças
opostas – o palpável e o impalpável. Na manutenção do processo vivo, em que não há
mais um “dentro” ou um “fora”, o contato aparece como elemento que permite a
manutenção do fluxo de reações, impulsos e associações “firmemente atados à

64
‘corporeidade’, ao ‘outro’, e ao ‘espaço’” (MOTTA LIMA, 2005, p. 57). A pesquisadora
Tatiana Motta Lima (2005) explica que, para Grotowski:

‘Estar em contato’ significava, concomitantemente, perceber o outro e reagir


intimamente de acordo com essa percepção; significava também que era no
presente, agindo e reagindo no aqui e agora das relações, que se poderia
trabalhar com aquilo que dizia respeito ao âmbito da memória, das
associações ou das aspirações e desejos (MOTTA LIMA, 2005, p. 56).

Além de trabalhar sobre o domínio dos elementos técnicos, a atitude interior


que exige desejo e coragem para se colocar em relação com é o que pode lançar o ator
para o “território desconhecido que inspira medo”, como disse Biagini.

3. A experiência dos que vieram antes de mim

Em seu livro, Richards (2012) relata os três primeiros anos do período de


aprendizagem com Grotowski, principalmente em relação ao trabalho sobre as ações
físicas, e descreve uma série de acontecimentos significativos na relação com seu
teacher. Como Grotowski dizia, a verdadeira aprendizagem requer um longo período em
que “o aprendiz conquista o conhecimento, prático e preciso, de outra pessoa, seu
teacher” (GROTOWSKI, 2012, p. XII). Thomas Richards41, depois de conquistar o
conhecimento na prática, como atuante, tornou-se teacher, e a pedido de Grotowski,
passou a dirigir um dos grupos do Workcenter, na época em que trabalhava diretamente
com ele.

Ao dispor-se para descobrir na prática, fazendo tentativas para dominar os


elementos de seu ofício, vemos o empenho interior daquele que faz, o que exige o
desenvolvimento de um aspecto fundamental na prática do atuante que é apontado por
Grotowski no livro de Richards:

O livro de Thomas Richards possui um valor notável para o jovem ator que
deseja dedicar sua vida à batalha na arte, pois fala de certos elementos
indispensáveis do ofício que, quando aprendidos, ou seja, dominados na
prática, podem ajudá-lo a sair do diletantismo. Neste livro, o leitor poderá
obter várias informações sobre como se desenvolver na prática. [...] Em cada
um desses episódios esconde-se um alarme ou uma indicação que diz

41
Thomas Richards após tornar-se líder de uma das equipes do Workcenter, passou a ser o “colaborador
essencial” de Grotowski, mostrando-se uma força fundamental no desenvolvimento das pesquisas no
campo da arte como veículo. Em 1996, Grotowski acrescentou o nome de Richards no Workcenter of Jerzy
Grotowski. Desde 2008, lidera a equipe Focused Research Team in Art as Vehicle.

65
respeito a essa disciplina interior e pessoal da qual não podemos falar apenas
em termos técnicos, mas sem a qual toda vocação é sufocada e não são
possíveis nem aprendizagem nem técnica (GROTOWSKI, 2012, p. XIII).

No processo de aprendizagem com as ações físicas, a “disciplina interior e


pessoal” constitui um elemento fundamental para a conquista do conhecimento prático.

Resguardamos aqui a particularidade do trabalho de Jerzy Grotowski – o


teacher –, com o aprendiz – Thomas Richards –, que se desenvolveu por um longo
período. Nas palavras de Grotowski, a natureza de seu trabalho com Thomas teve um
caráter de transmissão, de transmitir o que alcançou em sua vida, o “aspecto interior do
trabalho” (GROTOWSKI, 2012, p. XII). Esse resguardo é necessário para evitarmos uma
aproximação demasiado fácil e equivocada com processos de aprendizagem de uma
diversidade de artistas que desenvolvem o trabalho sobre as ações físicas orientados
por outras dinâmicas com seus colaboradores.

Guardadas as singularidades dos processos de aprendizado sobre as ações


físicas e as mais diversas motivações artísticas, pretendo que pensemos justamente
naquilo que deve receber uma atenção especial do ator/performer, independentemente
de seus direcionamentos estéticos. A sua “disciplina interior e pessoal” permite que seu
trabalho possa ser desenvolvido com qualidade artística e não de forma “em geral”,
como dizia Stanislávski, já que o “em geral é o inimigo da arte”.

No livro de Toporkov, o ator russo nos traz o relato de seu trabalho sobre as
ações físicas com Stanislávski, durante os últimos anos de suas investigações sobre seu
novo método. Em um dos trechos do livro, traz a advertência do mestre em relação aos
“perigos de uma abordagem criativa racional, fria”, exigindo dos aprendizes que se
voltassem para a realização da ação e não se submetessem aos domínios da razão.

– Quando um ator tem medo de mostrar sua força de vontade, quando não
quer criar, entrega-se à racionalização. Então, é como se fosse um cavalo que
bate as patas em desespero, sem conseguir sair do lugar ao tentar puxar uma
carroça pesada demais. Para agir corajosamente é preciso parar de bater as
patas no mesmo lugar, e educar em si mesmo a capacidade de apaixonar-se
pela ação. Desejo fazer e faço com coragem. A ação é volitiva, intuitiva. A
razão, cerebral (STANISLÁVSKI apud TOPORKOV, 2016, p. 181).

Stanislávski aqui fornece um direcionamento para a educação do ator, que


considerava um dos elementos do seu trabalho criativo. Ao direcionar o ator para a
realização do que é elementar em seu ofício – a ação –, incita-o a exercitar a atenção

66
amorosa à premissa fundamental sobre a qual apoia a sua arte. Ao realizar a ação física
mais simples, o ator exercita a capacidade de “agir audaciosamente, sem usar demais a
razão. Assim que se começa a agir, sente-se de imediato a necessidade de justificar essas
ações” (STANISLÁVSKI apud TOPORKOV, 2016, p. 184). No ato de sua ação, a educação
do ator e a autodisciplina devem estar no mesmo patamar de importância que o seu
amor pela arte.

Toporkov relata sua luta de aprendiz para descobrir e conquistar o


conhecimento prático e lembra como o mestre costumava ressaltar que “entender
significava ser capaz de fazer” (TOPORKOV, 2016, p.170). Eis a frase que também
Grotowski costumava dizer, enfatizando sua conexão com Stanislávski.

No caminho de aprimoramento técnico que exige o ofício, o ator depara-se com


as resistências e os bloqueios que impedem a passagem para o desenvolvimento da sua
natureza criativa. A capacidade de lidar com esses impedimentos requer esforço pessoal
e empenho interior no exercício do “trabalho do ator sobre si mesmo”, para tocarmos
em uma noção fundamental do sistema de Stanislávski, que perpassa o aprimoramento
técnico e pessoal constante na vida do artista.

Na trajetória do aprendiz, os impedimentos aparecem como forma de


resistência para não fazer, para não se desenvolver. Diante deste fato, penso nas
palavras de Grotowski sobre o performer, que tocam este aspecto:

O homem de conhecimento [czlowiek poznania] tem à sua disposição o fazer,


o doing, e não ideias ou teorias. O verdadeiro teacher – o que ele faz pelo
aprendiz? Ele diz: faça isso. O aprendiz luta para entender, para reduzir o
desconhecido ao conhecido, para evitar fazer. Pelo simples fato de querer
entender, ele resiste. Ele só pode entender depois de fazer. Ele faz ou não faz.
O conhecimento é uma questão de fazer (GROTOWSKI, 2015, p. 2).

Nas palavras de Grotowski, sobre o fazer do atuante, penso no ator, aquele que
faz no âmbito da arte como apresentação e que, diante de seu fazer, responsabiliza-se
sobre aquilo que faz, primando pela maestria em sua arte. Os termos ator/perfomer vão
se diluindo para fazer aparecer uma mesma imagem daquele que embasa sua arte no
conhecimento prático das ações físicas. Dessa forma, o trabalho do artista ruma para
distintos caminhos, segue objetivos artísticos específicos e perspectivas particulares de
criação, e o que vemos é a maestria da arte de fazer.

Da sua experiência com Grotowski, Richards nos traz um importante alerta


sobre uma das formas de resistência que criamos para não fazer, para não nos
desenvolvermos. No texto de Richards (2007), não publicado em português, ele inicia

67
refletindo sobre o comentário que costuma ouvir das pessoas que olham de fora para o
Workcenter: “trabalham muito”, dizem. Ao concordar com essa percepção de que sim,
trabalham muito, porque é necessário para que algo se desenvolva, acrescenta que
gostaria de que as pessoas não colhessem somente isso deles, já que trabalhar muito,
apenas por trabalhar, não seria assim tão importante. Para ele,

[...] o importante é como se trabalha. Como se entra no espaço de trabalho.


Como se fala a um colega. Como se combate para que a pesquisa siga adiante,
ou como inventamos desculpas quando o trabalho não se desenvolve.
Desculpas, desculpas. É uma das coisas que Grotowski procurou erradicar da
nossa proposta na arte. Não temos desculpas! Se ele criticava o teu trabalho,
imediatamente se ativava um mecanismo de defesa: “Mas Grotowski, a noite
passada não dormimos bastante, falamos até às duas, como podes esperar
que esta manhã eu possa trabalhar cem por cento?”. “Thomas, nada de
desculpas!”. “A pessoa que guiava o trabalho hoje me falou de um modo que
eu não gostei, por isso eu fiz tudo pela metade...”. “Nada de desculpas”! Estas
pequenas desculpas são inimigas da qualidade, inimigas daquilo que se pode
perceber como intensificações da vida, a vida que pode cintilar, fluir através
de ti. Sempre, sempre podemos encontrar um “Sim, mas...”, porém quando
abandonamos nossas desculpas, alguma coisa muito forte pode circular.
Quando você chega lá onde não existem desculpas, alguma coisa em ti se
torna verdadeiramente viva. [...] Podemos sempre encontrar uma desculpa,
no nosso orgulho, no nosso ego, nos nossos pés. Somos mestres em encontrar
desculpas. Ser um verdadeiro artista, do meu ponto de vista, significa se
tornar mestre de nenhuma desculpa. Faz de ti mesmo um mestre de
nenhuma desculpa e te encontrarás de fronte com o teu potencial pleno”
(RICHARDS, 2007, p. 123-124).

Ao propor refletir a experiência de trabalho sobre as ações físicas, tentei


abordá-las no nível primeiro de aprendizado, e não menos complexo, do que um outro,
do ator que se empenha em descobrir como fazer. É nesse âmbito elementar do trabalho
do ator que as desculpas exercitadas vão aprisionando o seu potencial criativo,
impedindo-o de desenvolver a qualidade na sua arte. Como mestres em criar desculpas,
bloqueamos o acesso à experiência do que pode ser sutil e vivo em nosso trabalho. Para
sair dessa prisão e desenvolver o potencial criativo, “[...] um dos primeiros passos é
reconhecer que a prisão não está fora de ti, está dentro de ti, és tu mesmo” (RICHARDS,
2007, p. 110).

Referências

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das Cebolas. Revista Brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 287-
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João Wanderley Geraldi. – 1.ed., 2.reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
MOTTA LIMA, Tatiana. Conter o incontível: apontamentos sobre os conceitos de
‘estrutura’ e ‘espontaneidade’ em Grotowski. Revista Sala Preta. São Paulo, v. 5, p. 47-
67, nov. 2005. e-ISSN: 2238-3867. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57264. Acesso em: 20 mar. 2020.
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Roma: Bulzoni, 2007, p. 109-129.
TOPORKOV, Vassíli. Stanislávski Ensaia: memórias. SP: É Realizações, 2016.

69
REGINALDO, Evelin. “O corpo não tem memória, o corpo é memória”. Rio de Janeiro:
UNIRIO. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Doutoranda. Orientadora:
Tatiana Motta Lima.

RESUMO: Este artigo aborda o termo corpo-memória, desenvolvido por Jerzy


Grotowski. O termo veio à público pela primeira vez em uma conferência do artista no
ano de 1969. No entanto, a pesquisa sobre memória já vinha sendo lapidada
anteriormente em seus estudos sobre as ações físicas, herdados de Stanislavski. E
mesmo depois de deixar o teatro, a pesquisa sobre a questão da memória continuou a
ter grande importância dentro de sua trajetória. Assim, o objetivo deste artigo é criar
um diálogo entre os textos de Grotowski e outros pensadores, como Bergson, Reich,
Jung e Gurdjieff, com o intuito de entender o que é o corpo-memória e também de
aprofundar a investigação sobre memória no trabalho do ator.
PALAVRAS-CHAVE: Jerzy Grotowski; memória; presença.

ABSTRACT: This article addresses the term body-memory, developed by Jerzy


Grotowski. The term was first made public at a conference in 1969. Nevertheless,
research on memory was already being polished by him in his studies on physical
actions. And even after leaving the theater, research on the question of memory
continued to be of great importance within its trajectory. Hence, the objective of this
article is to create a dialogue between Grotowski's texts and other intellectuals such as
Bergson, Reich, Jung and Gurdjieff, in order to understand what the memory-body is,
and also to approach the investigation of memory in the actor's work with more depth.
KEYWORDS: Jerzy Grotowski; memory; presence.

Este artigo é fruto da minha pesquisa de mestrado onde me debrucei sobre os


textos de Jerzy Grotowski na tentativa de entender o que ele queria dizer com o termo
corpo-memória.
Desde o início da pesquisa, eu sabia que estudar a memória no trabalho de
Grotowski seria um desafio. Concordo com a pesquisadora Tatiana Motta Lima quando
diz que a memória talvez seja uma das palavras mais difíceis de ser analisadas nos textos
de Grotowski “porque ela envolve uma série de investigações que, ultrapassando
largamente a noção de teatro, diz respeito a uma noção de percepção de si
experienciada pelo atuante” (MOTTA LIMA, 2009, p.159).
Mesmo assim, o desafio de estudar esse tema me instigou, mesmo sabendo da
sua dificuldade e de que talvez só conseguiria alcançar alguns pontos e que outros ainda

70
ficariam para uma próxima pesquisa. Então, tudo que direi nas próximas páginas faz
parte de uma pesquisa que está longe do fim.
Analisei o termo buscando entender, primeiramente, o que Grotowski queria
dizer com ele, depois o coloquei em relação com alguns argumentos sobre a memória,
a partir de pesquisadores que não estão necessariamente no âmbito do teatro, com o
objetivo de criar um diálogo entre esses pensadores. Não tenho a pretensão de expor
aqui todo o pensamento de cada autor, vou apenas apontar alguns argumentos.
Assim, cheguei à hipótese de que o corpo-memória é um corpo em estado de
presença, que se revela a partir de um trabalho árduo de autoconhecimento. A partir
daí, surgiram algumas questões que vão nortear este artigo: Como e quando surgiu o
termo corpo-memória? O que é um estado de presença? O que significa fazer um
trabalho de autoconhecimento?
Ao ler Grotowski é necessário ficar atento ao fato de que, em certos momentos,
ele mantém termos já utilizados, mas altera o seu sentido. Em outros momentos
mantém o sentido, mas muda o nome dado ao termo. E em outros muda tanto o sentido
quanto o nome, pois aquele nome não abarca todo o sentido do termo42. Deste modo,
é preciso questionar: como Grotowski opera com o termo corpo-memória em diferentes
momentos do seu trabalho? Grotowski utiliza diferentes nomenclaturas referentes à
memória durante seu percurso. São elas: associações, corpo-memória, corpo-vida,
corpo-e-essência e corpo da essência.
A questão da memória esteve presente na pesquisa de Grotowski desde muito
cedo, pois descende de Stanislavski. No entanto, o artista polonês se afasta do “se” e
das “circunstancias dadas” – conforme proposto por Stanislavski -, se distanciando
completamente da ideia de “memória emotiva”. Inicialmente, Grotowski falava sobre
associações. A premissa era de que a memória acontece no corpo e não só na mente. E
quando se refere às associações as vê como reações físicas, e não como pensamentos.

O que é uma associação na nossa profissão? É algo que brota não apenas da
mente, mas também do corpo. É um retorno á uma memória precisa. Não
analise isso intelectualmente. As memórias são sempre reações físicas. É a
nossa pele que não se esqueceu, são nossos olhos que não se esqueceram. O
que ouvimos ainda pode ressoar dentro de nós. Trata-se de executar um ato
concreto (GROTOWSKI, [1966] 2011, p. 176).

42
É Tatiana Motta Lima (2012) quem aponta para tal necessidade quando se lê Grotowski, ela explicita
esse argumento no livro “Palavras praticadas: O percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959-1974”.

71
A palavra “associações” é encontrada nos textos referentes aos primeiros anos
do Teatro Laboratório e depois, em textos posteriores, ela é substituída. A partir de 1969
começa a parecer o termo corpo-memória.

Antigamente, eu usava a palavra “associação”. As associações são ações que


se coligam à nossa vida, às nossas experiências, ao nosso potencial. Mas não
se trata de jogos de subtextos ou de pensamentos. Em geral não é algo que
possa ser expresso com palavras. [...] É preciso indagar com o corpo-memória,
com o corpo-vida, e não chamar pelo nome (GROTOWSKI, [1969] 2001, p. 17).

Mesmo encontrando o termo somente no final da década de 1960, é


importante destacar que a peça Príncipe Constante, que estreou em 1965, teve uma
grande influencia na construção do termo. Lembrando que Grotowski era um prático e
que seus conceitos foram se elaborando e reelaborando em relação com a prática.
É a partir de Príncipe Constante que surgem noções importantes como
organicidade, contato e Ato Total. E essas noções estão interligadas ao conceito de
corpo-memória. Lendo os textos de Grotowski pós Príncipe Constante é possível
perceber que a memória não provém de um pensamento ou uma lembrança: é
necessário deixar o corpo reagir organicamente. Não agir a partir de pensamentos pré-
determinados, mas sim, reagir a partir do contato com o aqui e agora. O termo corpo-
memória se afasta da separação entre corpo e mente, ele representa uma totalidade.
Além disso, não podemos ignorar o fato de que Rizard Cieslak, protagonista de
Príncipe Constante, trabalhou sobre uma memória precisa para dar vida ao seu
personagem. E este processo criativo pode ter transformado a maneira como se
entendia a questão da memória no Teatro Laboratório até então.
A peça era uma adaptação do poema de Slowacki, baseado no texto de
Calderón de La Barca. Tratava-se da história de Dom Fernando, um príncipe cristão que
é solicitado a renegar sua fé e por isso é torturado. Mas, Cieslak construiu sua partitura
de ações psicofísicas baseado na memória de sua primeira experiência amorosa e
sexual.

Todo o papel foi estruturado sobre um tempo muito preciso de sua memória
pessoal (podemos dizer ações físicas no sentido de Stanislavski) relativo ao
período em que era adolescente, e quando teve sua primeira grande, enorme
experiência amorosa. Tudo estava ligado a essa experiência. Ela se referia a
este tipo de amor que, só pode acontecer na adolescência, traz toda a sua
sensualidade, tudo o que é carnal, mas, ao mesmo tempo, por trás disso, algo
totalmente diferente do carnal, ou que é carnal de outra maneira, e que é
muito mais como uma prece. É como se, entre estes dois aspectos, tenha se
criado uma ponte que é uma prece carnal (GROTOWSKI, 1990, p. 23-24).

72
Serge Ouaknine, artista plástico que acompanhou as apresentações de Príncipe
Constante, chamava os atores que trabalhavam com Grotowski de “l’acteur Proust”,
pois os atores trabalhavam com suas associações e memórias pessoais. E, para
Ouaknine, isso corresponderia à “memória involuntária” de Proust.
Na obra Em busca do tempo perdido, Marcel Proust concede à memória uma
importância até então não observada em nenhum romancista no sec. XX. Seus principais
temas são o tempo e a memória. No decorrer do romance, ele conceitua o que seria
“memória voluntária” e “memória involuntária”.
Segundo Proust a “memória involuntária” não depende do nosso esforço de
recordar. Ela está adormecida e não pode ser acessada pela vontade. Ela depende do
acaso, um fato qualquer pode fazê-la subir a consciência despertando sensações que
antes estavam como que perdidas. Um episódio que explica claramente o que é
memória involuntária é:

Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos


chamados madeleines. [...] Mas no mesmo instante em que aquele gole, e as
migalhas do biscoito, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se
passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado,
sem noção de sua causa. [...]. De onde poderia ter vindo essa alegria
poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, tocou meu
paladar, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma
espécie. De onde vinha? Que significaria? (PROUST, 2004, p. 51).

“De onde vinha?” Como tocar tais memórias se elas aparecem ao acaso?
Segundo Grotowski, a memória não está separada do resto do corpo, o “corpo é
memória”, e ela se presentifica, ou se atualiza, na ação. É interessante pensar o corpo
com uma totalidade, e não uma dualidade entre corpo e mente. Para Grotowski, as
memórias aparecem porque estão gravadas no corpo.

O “corpo-memória”. Pensa-se que a memória seja algo de independente do


resto do corpo. Na verdade, ao menos para os atores, é um pouco diferente.
O corpo não tem memória, ele é memória. O que devem fazer é desbloquear
o corpo-memória (GROTOWSKI, [1969] 2010, p. 173).

O que é “desbloquear o corpo”? O que isso significa? Talvez seja encontrar uma
liberdade corporal, onde o corpo não está “domesticado” ou “colonizado”. “O que
precisa fazer é liberar o corpo, não simplesmente treinar certas zonas. Mas dar ao corpo

73
uma possibilidade. Dar-lhe a possibilidade de viver e de ser irradiante, de ser pessoal”
(GROTOWSKI, [1969] 2010, p. 170).
Depois de algum tempo estudando os textos de Grotowski, comecei a levantar
a hipótese de que um caminho para esse tal desbloqueio, para dar uma possibilidade ao
corpo, poderia ser um trabalho de autoconhecimento. Assim seria possível que o corpo
se transformasse em canal por onde passam as associações, as quais Grotowski
mencionava desde o início de sua pesquisa. Quando o corpo-memória é desbloqueado,
as associações encarnam em impulsos.

O “corpo-vida” ou o “corpo-memória” determina o que fazer em relação a


certas experiências ou ciclos de experiência de nossa vida. Então qual é a
possibilidade? É um pequeno passo em direção à encarnação de nossa vida
no impulso. [...] Eis como o corpo-memória/corpo-vida se revela
(GROTOWSKI, [1969] 2010, p. 173).

Se o corpo do ator estiver livre e sem bloqueios, então o corpo-memória pode


aparecer, pois a memória está muito mais relacionada com a presença do que com uma
espécie de reminiscência. Se o ator estiver presente, em contato com o aqui e agora,
então abre a possibilidade para que as associações revivam.

Estas recordações (do passado e do futuro) são reconhecidas e descobertas


por aquilo que é tangível na natureza do corpo e de todo o resto, ou seja, o
corpo-vida. Ali está escrito tudo. Mas quando se faz, existe aquilo que se faz,
o que é direto – hoje, hic et nunc (GROTOWSKI, [1969] 2001, p. 16).

Ou seja, me arrisco em dizer que trabalhar com o corpo-memória em nada tem


a ver com trabalhar sobre memórias, trata-se mais de um trabalho do ator sobre si
mesmo, um trabalho de autoconhecimento e, sobretudo, um trabalho de presença.
Pode se dizer que o corpo-memória é um corpo em presença.
Mas o que é presença? É possível estar presente no aqui e agora? O quanto, na
prática, isto é crível? Para o filósofo francês Henri Bergson, “quando pensamos esse
presente como devendo existir, ele ainda não existe; e, quando o pensamos como
existente, ele já passou” (BERGSON, 1999, p.166).
O presente e o passado coexistem, não designam dois momentos sucessivos.
Passado, presente e futuro são tempos simultâneos, o passado se atualiza o tempo
inteiro. Segundo Deleuze, no livro Bergsonismo, “o presente não para de passar; e o

74
passado, pelo qual todos os presentes passam, não para de ser” (DELEUZE, 1999, p. 45).

O corpo em presença pode sustentar uma relação intrínseca com o tempo. Não
é necessário buscar uma memória, basta fazer ações concretas que as lembranças se
revelam, por que o corpo é um acumulador de passados que sobrevivem a cada instante
no presente.
Conforme propõe Bergson, “o passado está inscrito no corpo, que se
presentifica na ação. O presente consiste na consciência que tenho do meu corpo”
(BERGSON, 1999, p. 114). Nesse sentido, através de uma aproximação com as reflexões
de Bergson, compreendemos a importância do trabalho sobre o autoconhecimento e a
“percepção de si”, na pesquisa de Grotowski.

Para Bergson, existem dois tipos de memória. Uma consiste nos mecanismos
motores, adquirida através do hábito e da repetição. Essa memória-hábito faz com que
o corpo se adeque à sociedade e se situe no cotidiano como um ser adaptado. A segunda
memória é o que ele chama de memória pura ou memória verdadeira, seriam as
lembranças acumuladas da existência e todos os elementos que nos constroem.
Mas, essa memória pura não está fixada em um tempo passado, pelo contrário,
ela é presente e interfere com imagens no momento vivido, “o que sentimos, pensamos,
quisemos desde nossa primeira infância está aí debruçado sobre o presente que a ele
irá se juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-lo de fora”
(BERGSON, 2006, p. 47).
Nesse sentido, memória e consciência estão intrincadas. Se a consciência
estiver voltada somente para as ações cotidianas e memórias-hábito, é como se ela
estivesse fechada, restrita, tensa. Mas é possível trabalhar a consciência para dilatá-la,
afrouxá-la ou relaxá-la. Bergson usa a imagem de tensão e relaxamento para explicar
esta atividade psicofísica (BERGSON, 1999).
Joice Brondani faz uma reflexão sobre a memória pessoal e coletiva na criação
artística. Ela defende, partindo de pensamento bergsoniano, que “dilatar a consciência
significa dilatar a memória que deixa de ter uma atividade apenas utilitária. E é
justamente nesse momento de dilatação que aconteceria o encontro entre experiência,
memória e arte” (BRONDANI, 2015, p.18).
Outro pensador que utiliza essa imagem de tensão e relaxamento é Wilhelm
Reich. Em 2015, em uma conversa com Ludwik Flaszen, co-fundador do Teatro
Laboratório e amigo de Gotowski, ele disse que eu precisava ler Reich para entender o
que Grotowski dizia sobre a memória.
Além disso, Motta Lima, em uma nota de pé de página no livro “Palavras
Praticadas”, diz que Serge Ouknine fez menção à “Função do orgasmo” de Reich. Na

75
mesma citação diz que Flaszen confirmou o interesse de Grotowski pelo livro e pelo
conceito de couraças.

Sergue Ouaknine afirmou (em uma palestra realizada em Buenos Aires no ano
de 2000) que os gráficos apresentados em seu livro sobre o espetáculo
Príncipe Constante, gráficos que buscam representar o percurso realizado
sobretudo nos três monólogos de Cieslak, protagonista de Príncipe
Constante, seguiam – Grotowski o teria dito – a formula de Reich da curva
orgástica. A formula ou curva de Reich é assim expressa: 1. Tensão mecânica;
2. Carga bioelétrica; 3. Descarga bioeletrica; 4. Relaxamento. [...] Flaszen, por
exemplo, discordou da análise de Ouaknine ainda que tenha confirmado o
interesse do diretor pelo conceito de couraças e pelos livros A Função do
Orgasmo e o Assassinato de Cristo, de Reich (MOTTA LIMA, 2012, p. 143).

Assim, mesmo Grotowski nunca tendo citado Wilhelm Reich, resolvi seguir o
conselho de Flaszen. Reich, conta no início do livro “A Função do Orgasmo”, que ele
seguiu as pesquisas de Freud e se tornou psicanalista, mas não tinha paciência para
esperar que as questões psicológicas dos pacientes se desfizessem no processo de
análise, ele acreditava que poderia ter outro caminho para alcançar a memória
inconsciente dos pacientes. Durante as sessões de psicanálise, ele percebeu que a vida
social cria um corpo mascarado, os pacientes criavam uma espécie de máscara para se
defender, tanto do mundo exterior como do seu processo interno. E para desfazer essa
máscara, que Reich denomina de couraça, era necessário trabalhar sobre as tensões
musculares (REICH, [1940] 2004).
Aí se encontra, a meu ver, o ponto de interseção entre Grotowski e Reich. Era
necessário para ambos, dadas as distinções dos seus campos de pesquisa, bem como de
seus objetivos, criar um corpo sem tensões para que o indivíduo (paciente ou ator)
pudesse reviver uma memória. Toda experiência pessoal é inscrita dentro do corpo e
particularmente dentro dos músculos. Então, é também trabalhando sobre os músculos,
sobre as tensões – seja no processo terapêutico, ou no contexto criativo -, que se pode
reencontrar a memória.
Ainda analisando o livro, Reich descreve sua teoria sobre a couraça e as
tensões musculares. O surgimento da noção de couraça, na teoria reichiana, se deu na
discussão sobre a formação do caráter. Para ele, os desenvolvimentos do ego, do caráter
e da couraça estão intimamente ligados43. Quando o ego entra em choque com o mundo

43
Para entender melhor a teoria reichiana é necessário dominar alguns conceitos psicanalíticos, pois Reich
esteve vinculado às teorias psicanalíticas freudianas durante muito tempo. De acordo com a premissa
psicanalítica, existe o Id, que Freud esclareceu como um reservatório de energia psíquica, onde se
localizam as pulsões de vida e de morte. A ele são atribuídas as características do inconsciente. E o ego é

76
social cria-se uma forma rígida. Isto configura o desenvolvimento do caráter, ou seja,
criam-se maneiras especificas de se estar no mundo que definem cada sujeito. O caráter
pode enrijecer o ego com intuito de protegê-lo. Assim, a presença do caráter significa
que foi formada uma couraça.
Reich desenvolveu uma prática que denominou de análise do caráter. O
objetivo era analisar e interpretar as resistências e diminuir a couraça logo no início do
tratamento. Essas resistências não eram só psíquicas, mas também físicas. No decorrer
dos primeiros quinze anos de pesquisa a investigação partiu do psiquismo para a esfera
somática.

Em 1933, a minha ideia sobre a unidade do funcionamento psíquico e


somático tornou-se clara da seguinte forma. As funções biológicas
fundamentais de contração e expansão aplicavam-se tanto ao campo
psíquico quanto ao somático. Havia duas séries de efeitos antitéticos, e os
seus elementos representavam as diversas profundidades do funcionamento
biológico (REICH, 2004, p. 244).

A ideia de que as funções biológicas de contração e expansão possuem


expressão no psíquico e no físico chegaram a Reich a partir do interesse pela fisiologia
da sexualidade. Através de estudos biológicos desenvolveu a fórmula do orgasmo:
tensão – carga – descarga – relaxamento. A tensão, que ocorre antes de acontecer o
orgasmo, afeta os músculos do corpo inteiro causando contrações e consequentemente
a expansão muscular. Além disso, a tensão e o relaxamento dos músculos estão
intimamente relacionados à angústia e o prazer.
Por esse ângulo, nenhum prazer ou angústia deixaria de ser representada no
plano físico, desse modo, a couraça passa a ser muscular além de psíquica. As neuroses
e psicoses são sustentadas por uma energia sexual que foi inadequadamente
descarregada, refletindo em tensões musculares. “A energia da vida sexual pode ser
contida por tensões musculares crônicas. A cólera e a angústia podem também ser
bloqueadas por tensões musculares” (REICH, 2004, p. 230).
Com o processo de análise de caráter e consequentemente o afrouxamento da
couraça, o indivíduo consegue tocar algumas lembranças. Reich afirma que a couraça
está ligada aos conflitos infantis e que seu afrouxamento é uma janela para tais
memórias. Ao dissolver a couraça, os afetos são liberados das resistências. Facilitando-

o sistema que estabelece o equilíbrio entre o Id e a realidade. Freud chamava o ego de ich, traduzido para
o inglês como I (“Eu”, em português).

77
se, assim, o trabalho clínico, ao evitar o rodeio psíquico e atingir diretamente os afetos
a partir de uma análise somática.

Não deixa nunca de ser surpreendente o modo como a dissolução de um


espasmo muscular não só libera a energia vegetativa, mas, além disso, e
principalmente, reproduz a lembrança da situação da infância na qual ocorreu
a repressão do instinto. Pode se dizer que toda rigidez muscular contém a
história e o significado da sua origem (REICH, 2004, p. 255).

É possível fazer uma analogia desse processo com o trabalho do ator, pois a
dissolução da couraça faz com que o corpo esteja livre e sem bloqueios, assim o ator
pode tocar em lembranças que estavam inconscientes. Os músculos são uma espécie de
biografia interior, todas as experiências estão registradas neles.
Até então, as memórias, das quais Reich fala, são pertencentes ao indivíduo.
Mas acredito que um corpo sem tensão se torna canal para que passe um fluxo de
memória seja ela qual for. Assim, é possível um trabalho que vai além da memória
pessoal, em direção à memória ancestral, como um arquétipo, por exemplo.

CAMPO: ...Estou me perguntando se existe uma maneira de retomar uma


memória que não é apenas nossa memória pessoal e sim algo que nos
precede, que é mais antigo do que nós, que talvez resulte no chamado
"arquétipo". É algo que você tenta encontrar quando trabalha com esta
tentativa de descobrir a Vida neste padrão de ações?
MOLIK: Acredito que é uma das coisas fundamentais (MOLIK, 2012, p. 48).

A citação acima faz parte de uma entrevista com Zygmunt Molik, que foi um
importante companheiro de Grotowski durante a fase teatral. E já naquele período a
ideia de arquétipo se fazia presente. Foi durante a criação da peça Kordian, uma das
peças iniciais do Teatro Laboratório, que Grotowski começou a pensar em arquétipo.
O termo, arquétipo, foi desenvolvido por Carl Gustav Jung - outro
psicoterapeuta e pesquisador de influência freudiana. No entanto, Grotowski diz que
suas terminologias não são estritamente baseadas nas ciências humanas. Isso significa
que ele não estava preso a uma exposição científica dos termos, mas que trabalhava
sobre os seus significados de modo dinâmico, a partir das experiências vividas na lida
com o ator, articulando-os, assim também, em suas falas públicas, à medida que se fazia
necessário iluminar a reflexão sobre a natureza de suas investigações.

78
Quando falo sobre raízes ou alma mítica, perguntam-me sobre Nietzsche; se
mencionar imaginação de grupo, surge Durkheim; se uso o termo arquétipo,
Jung. Mas as minhas formulações não vêm de disciplinas humanísticas,
embora eu as utilize em análises [...] (GROTOWSKI, [1965] 2011, p. 19).

A convergência entre a minha definição teatral-doméstica do arquétipo e a


teoria dos arquétipos de Jung é muito imprecisa, uso a palavra arquétipo em
um sentido restrito, sem o background filosófico junguiano, não presumo a
incognoscibilidade do arquétipo nem que ele exista fora da história
(GROTOWSKI, [1962] 2010, p.51).

Em um primeiro momento a aproximação entre Grotowski e Jung pode se dar,


especialmente, no que diz respeito à sobrevivência dos símbolos e temas míticos na
psique humana. Muitas vezes, Grotowski utilizava a palavra mito como sinônimo de
arquétipo.
Para Jung, os mitos descrevem o comportamento dos arquétipos, são
descrições dramáticas na linguagem personificada dos processos psíquicos. Como
representações universais de dilemas psicológicos, os mitos são a base da psicologia
arquetípica.
Grotowski, assim como Jung, acreditava na existência de conteúdos enraizados
na psique da sociedade, um cerne vivo de imagens profundas e representações
coletivas. E acreditava ser este um dos caminhos para construir a relação entre ator e
espectador, pois considerava tais conteúdos como um terreno comum entre ambos.
Durante a década de 60, a encarnação do mito se fazia muito importante para tal
relação. Para Grotowski, somente o mito, encarnado na realidade do ator, em seu
organismo vivo, poderia funcionar para a desconstrução do tabu.

Para que o espectador seja estimulado à autoanálise quando confrontado


com o ator, é preciso que haja algum terreno comum já existente entre
ambos, algo que eles possam recusar em um gesto ou cultuar juntos. Por isso
o teatro deve atacar o que podemos chamar de complexos coletivos da
sociedade, o cerne do subconsciente coletivo ou talvez do superconsciente,
não importa o nome; os mitos que não são uma invenção da mente, mas são,
por assim dizer, herdados através do sangue de alguém, de uma religião,
cultura ou clima (GROTOWSKI, [1964] 2011, p. 33).

Quando o arquétipo encarnado do inconsciente coletivo emergia na


consciência, era como um exemplo metafórico da situação humana. Grotowski colocava
o espectador em contato com a realidade através de mitos, os mitos estavam em
confronto com os valores e as crenças da modernidade. Este é um dos motivos pelos

79
quais os espectadores ficavam tão impactados com os espetáculos, porque estavam
mexendo com o inconsciente de cada um.
A perspectiva do arquétipo, na relação ator-espectador, apareceu em alguns
textos de Grotowski, dentre eles: Em busca de um teatro pobre (1965), O novo
testamento do teatro (1964) e A possibilidade do teatro (1962). É possível perceber,
assim, que esta relação está presente nos primeiros anos de sua pesquisa. O que
acontece depois, no entanto, com a noção de arquétipo, no percurso de Grotowski?
Quero aprofundar a pesquisa do arquétipo relacionada ao corpo-memória, mais
precisamente ao corpo-vida.
O arquétipo pode representar o comportamento instintivo, e transformar o
instinto em uma forma, sendo assim um “equivalente psíquico”. No domínio da mente
o instinto é percebido como imagem. O princípio que organiza as imagens e dá à
realidade psíquica seus padrões específicos e suas formas para se expressarem no
mundo é chamado de arquétipo.

Os instintos são, entretanto fatores impessoais, universalmente difundidos e


hereditários, de caráter mobilizador, que muitas vezes se encontram tão
afastados do limiar da consciência, que a moderna psicoterapia se vê diante
da tarefa de ajudar o paciente a tomar consciência dos mesmos. Além disso,
os instintos não são vagos e indeterminados por sua natureza, mas forças
motrizes especificamente formadas, que perseguem suas metas inerentes
antes de toda conscientização, independendo do grau de consciência. Por isso
eles são analogias rigorosas dos arquétipos, tão rigorosas que há boas razões
para supormos que os arquétipos sejam imagens inconscientes dos próprios
instintos; em outras palavras, representam o modelo básico do
comportamento instintivo (JUNG, [1936] 2000, p. 55).

Os arquétipos são conteúdos que habitam o inconsciente coletivo, mas que


chegam ao consciente através de formas, de imagens. Essas formas são primordiais, são
conservadoramente repetidas através de séculos, são herdadas dos ancestrais.
Jung define inconsciente coletivo como parte da psique que o homem recebe
por hereditariedade. O inconsciente coletivo é uma memória ancestral.

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um


inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência
pessoal, não sendo, portanto uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente
pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes
e, no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou
reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na
consciência e, portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem
sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal

80
consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente
coletivo é constituído essencialmente de arquétipos (JUNG, [1936] 2000, p.
53).

Grotowski chegou a mencionar que a memória que fluía do corpo não era
somente uma memória pessoal, existia algo além. Ainda em 1969, é possível encontrar
textos em que Grotowski se refere ao corpo-vida. Podemos inferir que o termo corpo-
vida surge para abranger a questão da memória, no sentido de abarcar uma memória
que vai além do indivíduo, a memória que pertence à ancestralidade.

É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é a nossa vida. No nosso


corpo, inteiro, são inscritas todas as experiências. São inscritas sobre a pele e
sob a pele, da infância até a idade presente e talvez também antes da infância,
mas também antes do nascimento da nossa geração. O corpo-vida é algo
tangível (GROTOWSKI, [1970] 2010, p. 205).

Em alguns textos os termos corpo-vida e corpo-memória aparecem lado a lado.


Segundo Motta Lima, Grotowski substituiu a noção de corpo-memória por corpo-vida,
“talvez por achar o segundo termo mais abrangente” (MOTTA LIMA, 2012, p. 261).
Apesar da mudança do nome, essa terminologia foi criada a partir do trabalho prático.
E, na prática, a maneira como o corpo-vida é colocado em cena segue o mesmo caminho
do corpo-memória. Mesmo a memória coletiva está gravada no corpo. A tentativa de
lembrar uma memória e reconstruí-la cenicamente não fará viver o corpo-vida.

Quando no teatro se diz: procurem recordar um momento importante da sua


vida, e o ator se esforça para reconstruir uma recordação, então o corpo-vida
está como em letargia, morto, ainda que se mova e fale... É puramente
conceitual. Volta-se às recordações, mas o corpo-vida permanece nas trevas
(GROTOWSKI, [1970] 2010, p.205).

Um dos caminhos para que o corpo-vida não permaneça nas trevas é trabalhar
para que o corpo esteja presente. Não é necessário tentar relembrar algo, pois a
memória surge do inconsciente a partir de uma ação ou reação física. “Por isso não se
cria a projeção: ela já existe de antemão” (JUNG, 1983, p. 7).
O corpo-vida só é possível, no contexto criativo, sobretudo, através do trabalho
com o contato. É também o contato com o outro, e com o aqui e agora, que faz com que
o ator esteja presente e, assim, o corpo-vida se revela. Segundo Jung, as projeções só
podem ser reconhecidas pelo outro, nunca pela própria pessoa, já que é o inconsciente
81
dela que as projeta. Então, faz-se necessário a presença do outro para que o corpo-vida
surja.

O ato do corpo-vida implica na presença de um outro ser humano, a


comunhão das pessoas. Mas então até mesmo as nossas recordações são
essenciais, quando se ligam a um outro ser humano, quando evocam aqueles
momentos em que vivemos intensamente com os outros. Esses outros são
inscritos no corpo-vida, pertencem-lhe por natureza. E se vocês evocam com
o corpo-vida o instante no qual vocês tiverem tocado alguém, aquele alguém
se mostrará naquilo que vocês fazem. E talvez ao mesmo tempo estará
presente aquele que é o seu “partner”, aqui e agora, e quem esteve na nossa
vida e quem vai chegar: e Ele será uno (GROTOWSKI, [1970] 2010, p. 206).

Para Jung a presença do outro é de extrema importância, pois as projeções


podem criar ilusões entre o sujeito e o mundo exterior. Grotowski também sinaliza a
importância do outro no trabalho, pois ele percebeu que colocar-se em contato gera
consequências psíquicas auto reveladoras, mas sozinho o ator pode entrar num
processo de narcisismo.

E quando digo corpo, digo vida, digo eu mesmo, você, você inteiro, digo.
Algumas vezes a associação se refere a um momento da vida importante
demais para nós para tornar-se objeto de monólogo na taverna, mas antes de
qualquer associação – mesmo uma do gênero – é essencial o encontro aqui e
agora com o outro, em grupo, essa presença viva: a volta do corpo-vida exigirá
o desarmamento, a nudez extrema, total, quase inverossímil, impossível na
sua inteireza. Perante um tal agir toda a nossa natureza se desperta. Portanto
o que é necessário? Algo que não seja barato. Uma doação (GROTOWSKI,
[1970] 2010, p.206).

Esse desnudamento que ocorre quando o corpo-vida está presente é uma


retirada das máscaras sociais, deixando assim o corpo nu das resistências que criamos
para viver em sociedade. Nesse momento algo se revela, algo que era desconhecido se
revela. Desconhecido para aquele que age, pois surge algo inconsciente, tanto do
inconsciente pessoal quanto do inconsciente coletivo. “Alguém que tenha
experimentado aquela aventura surpreendentemente descobrirá as coisas mais
inesperadas. Em primeiro lugar: que se sabe muito mais depois, do que antes;
descobrirá coisas que não lhe passaram nunca pela cabeça” (GROTOWSKI, [1970] 2010,
p. 206).
Para Jung, o “eu” é entendido como personalidade consciente. No entanto o
eu é incompleto, pois faltam os traços do desconhecido, aquilo que está inconsciente.

82
Então, a personalidade que compreende tanto o consciente como o inconsciente é
chamada, por Jung, de Self (si mesmo).
No trabalho com o corpo-vida, pode se dizer que o “self” está presente, pois
ele faz surgir memórias pessoais e coletivas, que estavam inconscientes. O “self” é o ser
inteiro, integro. É o Ato Total. “Por fim estamos falando da impossibilidade de separar o
espiritual do físico. O ator não deve usar seu organismo para ilustrar um ato da alma,
ele deve executar este ato com seu organismo” (GROTOWSKI, [1967] 2011, p. 88).
Aqui, chegamos a uma questão fundamental: como se aproximar do “self”?
Tanto para Jung quanto para Grotowski, o ser humano possui uma compreensão
limitada de si. E por isso é indispensável um trabalho de autoconhecimento, para atingir
as camadas psíquicas que estão por trás das máscaras sociais.
Quando Jung se refere à ciência do desconhecido, implica em conhecer
aspectos obscuros da personalidade, aquilo que por vezes a consciência tratou de
esconder. Esses aspectos são denominados de sombra. E tomar consciência das sombras
é a base do autoconhecimento.
O autoconhecimento não está relacionado somente ao trabalho com a
memória. Mas sim ao trabalho com a arte, Stanislavski já havia apontado para o
“trabalho do ator sobre si mesmo” anos antes. O autoconhecimento foi um trabalho
essencial no percurso de Grotowski desde muito cedo.
O caminho do autoconhecimento nos leva a outro pensador que foi
extremamente importante para que Grotowski chegasse às reflexões sobre “corpo-e-
essência” e “corpo da essência”. Este pensador foi Gurdjieff. Grotowski diz que Gurdjieff
foi capaz de passar do corpo-e-essência para o corpo da essência: “Isso que podemos
reconhecer na foto de Gurdjieff velho sentado num banco em Paris” (GROTOWSKI,
[1987] 1997, p.378).
Gurdjieff acreditava que o homem vive com um nível de consciência muito
abaixo da sua capacidade potencial, essa condição ele chamou de “estar adormecido”,
e a busca para transformar esse estado tornou-se o cerne do seu trabalho. Gurdjieff
criou uma espécie de treinamento que deve ser praticado dia a dia, conduzindo o
aprendiz a olhar para si mesmo, sem máscaras, sem mentiras, só assim o aprendiz
poderá atuar sob sua verdadeira condição.
Ele acreditava que é possível ter consciência total de si, mas continuamos
presos a uma visão limitada e distorcida da realidade. E para mudar essa atitude, o
primeiro passo é aprender a ver. Esse é o caminho para a tomada de consciência.

A primeira exigência, a primeira condição, o primeiro teste para aquele que


deseja trabalhar sobre si mesmo é de mudar sua avaliação de si mesmo. Ele
não deve se imaginar, não simplesmente acreditar ou pensar, mas ver as

83
coisas em si mesmo que não tinha visto antes, ver realmente. E para que ele
veja, é preciso que ele aprenda a ver: é a primeira iniciação de um homem ao
conhecimento de si (GURDJIEFF, 1941).

No texto “o Performer”, Grotowski diz que para o atuante se tornar um


Performer ele precisa aprender a ver. É preciso aprender a olhar a si mesmo, mas sem
crítica ou julgamento, é como uma presença que tudo vê. O homem está dividido em
dois: um que age e um que olha. Grotowski chama essa presença de EU-EU.

Podemos ler nos textos antigos: Nós somos dois. O pássaro que bica e o
pássaro que olha. Um morrerá, um viverá. Embriagados de estar dentro do
tempo, preocupados em bicar, nós esquecemos de fazer viver a parte de nós
mesmos que olha. Existe então o perigo de se existir somente dentro do
tempo e nulamente fora do tempo. Se sentir olhado pela outra parte de si
mesmo, esta que está como que fora do tempo, dá uma outra dimensão.
Existe um Eu-Eu. O segundo Eu é quase virtual; não está em nós o olhar dos
outros, nem o julgamento, é como um olhar imóvel: presença silenciosa,
como o sol que ilumina as coisas e é tudo. O processo de cada um pode se
completar somente no contexto desta presença imóvel. Eu-Eu: na experiência
a dupla não aparece separada, mas como plena, única (GROTOWSKI, [1987]
1997, p.378).

Flaszen disse que esse EU que observa é de outra dimensão, esse EU não é
social, não é histórico, não é individual. Para ele, quando esse EU se apresenta então
surge o corpo-e-essência. É dentro do corpo-e-essência que há o duplo.
A essência é aquilo que possuímos independente de códigos sociais, de
educação, ou religião. A essência trata-se de ser. Trata-se de descobrir quem você é.
Nesse sentido, o autoconhecimento é imprescindível ao trabalho com o corpo-e-
essência.

A essência: etimologicamente se trata do ser, da “seridade” A essência me


interessa porque ela não tem nada de sociológico. É aquilo que nós não
recebemos dos outros, aquilo que não vem do exterior, que não é aprendido.
Por exemplo, a consciência (no sentido de the conscience, a "consciência
moral") é alguma coisa que pertence à essência, e que é completamente
diferente do código moral pertencente à sociedade. [...] Como quase tudo
que nós possuímos é sociológico, a essência parece pouca coisa, mas ela é
sua. (GROTOWSKI [1987] 1997, p.377)

84
Para Grotowski é necessário um processo de desnudamento, uma tentativa de
retirar máscaras e aquilo que foi imposto ao corpo. Isto leva ao encontro com uma
corporeidade ancestral. Primeiro, pode parecer a corporeidade de alguém conhecido,
mas quanto mais escavar, é possível encontrar a corporalidade de um antepassado,
completamente desconhecido.
Mas não é uma construção. O corpo-e-essência não é criação, é uma
lembrança. Esta corporeidade volta como se já tivesse sido desta forma algum dia.

Você pode chegar muito longe para trás como se a memória despertasse. É
um fenômeno de reminiscência, como se nos lembrássemos do Performer do
ritual primário. Cada vez que eu descubro alguma coisa tenho o sentimento
de que é aquilo do qual me lembro. As descobertas estão atrás de nós e é
preciso fazer uma viagem para trás para chegar até elas. Com a travessia -
como na volta de um exilado - podemos tocar alguma coisa que não é mais
ligada às origens, mas - se ouso dizer - à origem? Eu acredito. A essência está
no fundo da memória? Eu não sei nada (GROTOWSKI [1987] 1997, p.379).

Quero terminar aqui com esta fala de Grotowski: “Eu não sei nada”. Durante
todo o texto fiz referência a autores e pensadores tentando criar um diálogo sobre
questões levantadas a partir do termo corpo-memória. No entanto, a memória flerta
com o desconhecido, com algo que está inconsciente. É como se eu quisesse dar luz a
algo que não quer aparecer.
Prefiro terminar o texto sem uma resposta, sem verdades absolutas. Neste
processo aprendi que quando se fala sobre o ator ou sobre o homem, a maioria das
afirmações são relativas. O que é possível perceber é que desde o início, quando ainda
se falava sobre associações, até a conceituação do corpo-e-essência, se enfatiza que a
memória é algo que se revela, e o trabalho é conhecer a si mesmo. Então, prefiro
concluir esse artigo com algumas palavras que ficaram muito fortes durante a pesquisa.
Palavras que não definem o corpo-memória, mas apontam um caminho e criam novas
perguntas. São elas:

PRESENÇA
AUTOCONHECIMENTO
CONTATO
DESBLOQUEAR
DESCONHECIDO
VIDA ESSÊNCIA

85
Referências
BERGSON, Henry. Matéria e Memória. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
___________. Memória e vida. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
BRONDANI, Joice Aglae (org). Grotowski: estados alterados de consciência - teatro –
máscara - ritual. São Paulo: Giostri, 2015.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999.
GROTOWSKI, Jerzy. O Príncipe Constante de Ryszard Cieslak. In: BANU, Georges.
Ryszard Cieslak: ator-simbolo dos anos sessenta. São Paulo: É Realizações, 2015. p.
19-30.
___________. A possibilidade do Teatro [1962]. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI,
Carla (org.). O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo:
Perspectiva, SESC-SP, 2010. p. 48-74.
___________. Exercícios [1969]. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O
Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva, SESC-SP,
2010. p. 163-180.
___________. O que foi [1970]. In: FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O
Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva, SESC-SP,
2010. p. 199-211.
___________. Ele não era inteiramente ele mesmo [1967]. In: GROTOWSKI, Jerzy. Para
um teatro pobre. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2011. p. 83-90.
___________. O Discurso de Skara [1966]. In: GROTOWSKI, Jerzy. Para um teatro
pobre. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2011. p. 176-189.
___________. O Novo Testamento do Teatro [1964]. In: GROTOWSKI, Jerzy. Para um
teatro pobre. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2011. p. 21-42.
___________. Para um teatro pobre [1965]. In: GROTOWSKI, Jerzy. Para um teatro
pobre. Brasília: Teatro Caleidoscópio & Editora Dulcina, 2011. p. 12-20.
___________. Performer [1987]. In: SCHECHNER, Richard (org.); WOLFORD, Lisa (org.).
The Grotowski Sourcebook. Londres/Nova York: Routledge, 1997. p. 376-380.
___________. Resposta a Stanislavski [1969]. Tradução de Ricardo Gomes. Revista
Folhetim. Rio de Janeiro, n. 9, jan. - abr. 2001.
GURDJIEFF, George Ivanovich. Primeira iniciação [1941]. Tradução de Celina Sodré.
(não publicado).

86
JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução: Maria Luíza Appy,
Dora Mariana R. e Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
MOLIK, Zygmunt; CAMPO, Giuliano. Trabalho de voz e corpo de Zygmunt Molik. São
Paulo: É Realizações, 2012.
MOTTA LIMA, Tatiana. Experimentar a memória, ou experimentar-se na
memória. Revista Sala Preta. São Paulo, v. 9, p. 159-170, nov. 2009. e-ISSN: 2238-
3867. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57399. Acesso
em: 9 de julho de 2020.
___________. Palavras praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski, 1959-1974.
São Paulo: Perspectiva, 2012.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: Ediouro publicações,
2004.
REICH, Wilhelm. A função do orgasmo: problemas econômico-sociais da energia
biológica [1940]. Tradução de Maria de Gloria Novak. São Paulo: Brasiliense, 2004.

87
ANDRADE, Ilda. Grotowski: Percursos de pesquisa. São Paulo: Instituto de Artes, Unesp.
Programa de Pós-Graduação em Artes. Doutoranda. Orientadora: Marianna Monteiro.
Atriz e educadora.

RESUMO: Neste artigo, apresento alguns dos caminhos percorridos durante a pesquisa
de mestrado que culminaram na dissertação Grotowski no Collège de France, focada,
principalmente, na aula inaugural do artista naquela instituição. Compartilho eventuais
perguntas que surgiram nesse processo, as quais têm estimulado e alimentado a
continuidade das minhas pesquisas sobre Grotowski no período da Arte como Veículo,
sua fase final de trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Jerzy Grotowski; Collège de France; Organicidade; Arte como


Veículo.

ABSTRACT: In this article, I present some of the paths taken during the master's
research that culminated in the dissertation Grotowski at the Collège de France focused
mainly on the artist's inaugural class at that institution. I share questions that have arisen
in this process, which have stimulated and fed the continuity of my research on
Grotowski in the period of Art as a Vehicle, his final phase of work.

KEYWORDS: Jerzy Grotowski; Collège de France; Organicity; Art as Vehicle.

Nossas opções na arte são as opções do temperamento, de


condicionamento, daquilo que nós amamos ou detestamos, desde a
infância (GROTOWSKI, 2014, p. 43).

Em meus estudos acerca do artista polonês, soube que suas últimas falas
públicas haviam sido um conjunto de aulas ministradas no Collège de France, cujo único
registro oficial eram gravações de áudio, em Francês. Então, ao ingressar no mestrado,
busquei compreender, através de estudo e análise dos materiais disponíveis, a questão
da organicidade e o estabelecimento do que Grotowski chamou de linha orgânica do
teatro e do ritual no decorrer dessas aulas.

Ao lidar com esse material emergiu, para mim, uma nova percepção de
Grotowski, principalmente no que se refere ao percurso por ele percorrido. Visto
comumente como carregado de rupturas, salta aos olhos a unidade que ele percebia
nesse percurso. Essa percepção talvez seja um dos aspectos mais relevantes na pesquisa
empreendida.

88
Em seu projeto para a candidatura, Grotowski se faz duas perguntas que serão
guias para o curso:

1. Existem elementos técnicos que ultrapassam o contexto cultural no


qual esta ou aquela forma de prática ritual nasceu e/ou se desenvolveu?
2. Estes elementos são objetivos o bastante, para continuarem eficazes
no caso de pessoas pertencentes a outro contexto cultural, tradicional e
religioso? (GROTOWSKI, 1995, p. 1).

Ao iniciar a leitura, já considerava possível intuir quais seriam as respostas de


Grotowski: Sim e sim. A questão era descobrir quais seriam os elementos técnicos que
ultrapassam seus contextos culturais e quais seriam os modos de trabalhar sobre eles,
mantendo sua eficácia, de modo que pudessem funcionar como ferramentas para o
atuante no âmbito do “trabalho sobre si” – noção essa que abordarei mais à frente. É
para entender e responder a essas perguntas que o curso de Grotowski se organizou, e
meu trabalho seguiu essa orientação, consistindo em analisar de modo exploratório as
nove aulas ministradas por Grotowski no Collège de France, entre 1997 e 1998, tendo a
questão da organicidade como lente.

Para tanto, utilizei como suporte a pesquisa de doutoramento Jerzy Grotowski:


artesão dos comportamentos humanos metacotidianos realizada por Celina Sodré e
concluída em 2014, pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Em
seu trabalho, a pesquisadora propõe-se a transcrever em Francês os registros de áudio
das aulas (como já mencionado, é o único registro disponível até então) e a traduzir os
conteúdos para o Português.

A dissertação resultante se estruturou da seguinte maneira:

No primeiro capítulo focamos em analisar a aula inaugural. Retornarei a ela.


Por hora, frisamos que a mesma se desenvolveu como uma espécie de mapa conceitual
das aulas futuras, por isso a análise da mesma será destacada adiante.

O capítulo dois reúne as aulas ocorridas em junho de 1997. Temos aqui a


exploração de algumas conceituações grotowskianas, a saber: a divisão do trabalho
entre as linhas orgânica e artificial; como se apresentam tais linhas e quais as suas
principais características; os deslocamentos do teatro e do ritual dentro dessas linhas;
como estas afetam outras noções como montagem, composição, estrutura e
improvisação; e os trabalhos que Grotowski aloca na linha artificial, como os de Brecht
e da Ópera de Pequim. Nestas aulas, Grotowski também vai se voltar para a linha

89
orgânica, trazendo elementos de suas experiências concretas, ao destacar diversos
exemplos de como seus apontamentos sobre as linhas atravessaram suas práticas e de
seus companheiros.

O mesmo ocorre com as aulas de outubro, todas analisadas conjuntamente no


capítulo três. Nesse ponto, Grotowski busca estabelecer o “lugar” de onde ele fala e do
campo em que ele atua. É possível perceber que o artista se volta para um
compartilhamento de exemplos a partir de seus percursos dentro dessas linhas, em
especial da linha orgânica e seus modos de trabalho, pois, conforme veremos, a
descoberta da organicidade promoveu significativas mudanças no seu trabalho. Nestas
aulas, Grotowski ainda aborda seus deslocamentos entre teatro e ritual.

No último bloco de aulas, ocorridas em janeiro de 1998 e reunidas no capítulo


quatro, pude perceber uma narrativa mais pessoal por parte de Grotowski, pois ele
passa a falar acerca de experiências pessoais em relação às suas “pátrias-mãe”, Polônia
e Índia, e em como essas culturas despertaram e encaminharam seus interesses e
orientaram as consequentes buscas que realizou. Aqui, Grotowski discute como as
imagens de algumas figuras místicas de diferentes correntes espirituais, cuja
aproximação se deu, principalmente, a partir de leituras – dentre elas, os evangelhos
bíblicos, os livros A vida de Jesus de Ernest Renan e Em busca da Índia Secreta de Paul
Brunton, textos relacionados ao Yoga e ao Advaita Vedanta e fragmentos do Mestre
Eckhart44 - foram suas fiéis companhias e reverberaram ao longo de sua vida pessoal e
profissional.

Havia no planejamento inicial de Grotowski mais uma aula neste bloco, sobre a
qual ele falaria do Haiti. Infelizmente, essa aula não chegou a ocorrer devido à piora do
estado de saúde de Grotowski.

Devido aos temas levantados e as respectivas abordagens nas aulas, fica claro
que a escolha desses conceitos e o modo de abordá-los: menção, posterior retorno e
aprofundamento, foram programados e calculados por Grotowski, com o objetivo de
que a comunicação se desenrolasse da maneira que, para ele, parecia ser a mais
conveniente.

A preocupação de Grotowski em relação ao controle, a respeito de cada palavra


emitida, torna-se nítida na análise do material. Fazer-se compreender era essencial, era
provocador, era político e era uma prática. O que percebemos de diferente em relação
aos escritos? Grotowski não teve tempo para reler, reformular, lapidar as aulas. Temos

44
Mestre Eckhart (1260-1328), frade dominicano, reconhecido por sua obra como teólogo, filósofo e
por seu misticismo. É considerado um dos grandes símbolos do espírito intelectual da Idade Média

90
aqui um Grotowski em estado bruto e, ainda assim, em busca da polidez advinda da
precisão do discurso.

A aula inaugural

Grotowski realiza a aula inaugural em 24 de março de 1997 no Théâtre des


Bouffes du Nord, em Paris, sede do Centro Internacional de Pesquisa Teatral dirigido por
Peter Brook45. Grotowski inicia a aula revelando sua proximidade com Brook, afirma que
estar naquele local era muito simbólico para ele. A seguir, explica o porquê de ministrar
um curso no Collège de France, uma renomada instituição acadêmica de ensino livre,
uma vez que ele não era nem cientista, nem erudito, mas sim um artista ou mesmo um
artesão.

Será que eu sou um artista? Provavelmente, de uma certa maneira, sim, mas
eu diria que, mais precisamente, meu campo natural é o artesanato, que eu
sou um artesão, num domínio bastante particular, quer dizer, o do
comportamento humano dentro de condições metacotidianas (GROTOWSKI,
2014, p. 20).

Primeiro Grotowski se pergunta se ele mesmo pode ser incluído na categoria


artista, então responde afirmativamente. No entanto, busca situar os participantes
acerca de como se vê nesse lugar. Percebemos que, de seu ponto de vista, ele se vê
como um artista muito especializado e que trabalha numa seara técnica que, de tão
específica, entra no campo do artesanato, portanto para ele o termo preciso é artesão.

Em O Artífice, Richard Sennett (2008) examina questões relevantes para essa


discussão levantando alguns pontos que podem nos ajudar a compreender o sentido da
fala de Grotowski. Segundo ele, para o artesão ser um artesão existe a necessidade de
um desenvolvimento de habilidades técnicas para realizar seu ofício. No entanto, não
seria uma técnica puramente mecânica, mas sim “uma técnica considerada como uma
questão cultural” (SENNETT, 2008, p. 19). Algo que é mecânico, mas também acrescido
de outras determinações socioculturais.

Grotowski compreende técnica de um jeito similar, coloca-a para além do


aspecto formal, relaciona-a a determinada postura e a possíveis modos de percepção
do ser humano, de acordo com as variadas culturas. Dessa maneira, a aquisição de

45
Peter Brook (1925) diretor de teatro inglês, conhecido pelas pesquisas e pelos trabalhos marcantes
em teatro e cinema. Um grande expoente das revoluções nas artes da cena no século XX e XXI.

91
habilidades técnicas não seria somente um processo de apreensão mecânica, pois ainda
dependeria de uma atitude ligada a um meio social e culturalmente composto.

No artigo Tornar-se filho de alguém: reflexões sobre organon, técnica e tradição


em Grotowski (2013), o pesquisador Daniel Plá aborda a noção de técnica para
Grotowski e aponta que

ainda que se encontre no seu discurso a busca por elementos universais e por
procedimentos técnicos eficazes a partir do estudo de diferentes
manifestações culturais, o seu modo de aproximar-se dessas questões é
singular. O trabalho de Grotowski passa pelo indivíduo e por suas
particularidades, de modo que sua busca não está centrada na definição de
uma metodologia geral, aplicável a qualquer contexto ou pessoa. Isso não
significa que não existam procedimentos definidos em seu trabalho, mas
estes nunca são maiores que a relação que se estabelece entre o ator, seus
companheiros e seu ofício (PLÁ, 2013, p. 147).

Deste modo, a atitude apontada por Grotowski seria a de buscar a visão que
determinada cultura teria de si, mantendo, na mesma medida, a atenção à artesania e
às relações que vão se estabelecendo nesse contexto.

Sennett (2008, p. 19) define habilidade artesanal como “um impulso humano
básico e permanente, o desejo de um trabalho benfeito por si mesmo”. E o
entendimento de Grotowski, ao analisar, por exemplo, os rituais de cura da Taranta46
no sul da Itália, chega bem próximo dessa ideia. Ele ressalta que a eficiência da cura,
conforme se busca naquela prática, depende da execução dos ritos de modo preciso e
bem-feito por parte dos músicos. Nesse sentido, embora a habilidade artesanal do rito
não se destine à apreciação estética, o rito deve ser executado, em todos os seus
aspectos formais, na sua plenitude.

Como vimos, há uma dependência entre o objetivo do rito – a cura, no caso da


Taranta – e a habilidade artesanal de seus executores. O diálogo com Sennett, aqui,
aponta para uma ideia complementar: na habilidade artesanal há também um desejo
pela precisão, um desejo baseado na satisfação que a própria execução pode
proporcionar. Assim podemos nos perguntar: como artesão, o que Grotowski gera a

46
A Taranta constitui-se num ritual estruturado com música e dança, cujo objetivo é curar o tarantismo,
condição psicológica atribuída a picadas de tarântulas e que ocorria em mulheres púberes, mas que se
prolongava ao longo de suas vidas.

92
partir da técnica que possui/desenvolve? A resposta vem no final do excerto: o trabalho
sobre os comportamentos humanos dentro de condições metacotidianas.

Isso quer dizer, que é suposto que estas condições se coloquem um pouco
além, no mínimo, do comportamento humano cotidiano. Este
comportamento metacotidiano é alguma coisa que nós poderíamos,
exatamente, chamar de Antropologia Teatral, porque este é um vasto campo
que engloba, ao mesmo tempo, os fenômenos do teatro e os fenômenos do
ritual (GROTOWSKI,2014, p. 20).

Esse ponto nos interessa por explicitar que Grotowski não se coloca como
pesquisador dos comportamentos humanos de modo geral, e sim desses
comportamentos em condições específicas, no caso, na metacotidianidade,
enxergando-os como seu material de trabalho, sua matéria prima.

Se pensarmos na utilização do prefixo meta, em conjunto com a palavra


cotidiano, temos indicação de transcendência ou reflexão sobre si, como na palavra
metafísica (sentido de transcendência) ou metalinguagem (sentido de reflexão sobre
si). Como Grotowski indica no excerto, seriam comportamentos que se colocam um
pouco além do comportamento humano cotidiano. Em uma passagem da segunda aula,
Grotowski (2014, p. 65) corrobora esse entendimento ao afirmar que “metacotidiano é
alguma coisa que é mais concentrada, mais densa, mais elaborada, sem as coisas
gratuitas, casuais, da vida ordinária cotidiana”. Mas o que seriam esses
comportamentos?

Entendemos comportamento humano, aqui, como o conjunto das ações de


determinada pessoa em situações específicas, incluindo, assim também, os motivos que
levam a pessoa a agir de determinada maneira, ou seja, as referências e as influências
da cultura, do meio e das relações que a atravessam e que se convertem numa forma
de agir.

Dentre esses conjuntos comportamentais estão - um pouco além do cotidiano,


mas não completamente fora dele - tanto as práticas teatrais quanto as práticas rituais
e/ou espirituais. Ambas seriam abrangidas pelo que Grotowski entende por
antropologia teatral. Essa que, como ele apresenta no final do excerto, “é um vasto
campo que engloba, ao mesmo tempo, os fenômenos do teatro e os fenômenos do
ritual”. Nesse campo, segundo Grotowski (2014, p. 20), os fenômenos do teatro e do
ritual lançariam luzes um sobre o outro e isso permitiria a realização de uma pesquisa

93
prática. Perspectiva que reforça sua discussão anterior sobre a artesania, na qual ele
afirma: “eu sou um prático”.

Ainda de acordo com ele, aquele curso no Collège de France lhe permitiria
“englobar todos os diferentes aspectos da minha vida, da minha pesquisa, que sempre
estiveram (...) como que separados (...) por causa de certos hábitos mentais: isto é o
teatro, isto é o ritual, isto são as tradições culturais” (GROTOWSKI, 2014, p. 20). Ou seja,
podemos entender que, a despeito das especificidades de cada uma dessas áreas, o
artista polonês enxergava vasos comunicantes entre elas e, portanto, iria analisá-las nas
aulas seguintes em contato e de modo interrelacionado.

Retornando ao texto supracitado de Daniel Plá (2013), vemos que o autor


analisa o conceito de organon, no modo como utiliza Grotowski, ampliando o que vimos
até aqui nessa relação artesania-ferramenta-técnica. Segundo Plá:

Quando se refere ao organon, Grotowski descreve um tipo de instrumento


muito preciso, resultante de uma longa tradição de prática sobre os aspectos
conscientes, instintivos e inconscientes dos indivíduos e grupos sociais
envolvidos. O trabalho com esse tipo de instrumento se fundamenta na
objetividade e na eficácia (...) meio através do qual se faz algo, ampliando o
sentido original da palavra: o organon é um quê e também um como (PLÁ,
2013, p. 148).

Embora Grotowski por vezes afirmasse que o seu uso das terminologias era
pouco científico, o modo como as próprias terminologias vão sendo revistas e alteradas
pelo artista é, na verdade, muito próximo ao estilo científico. Com tais modificações,
Grotowski busca sempre maior clareza e exatidão, elas refletem o desenvolvimento do
pensamento de um artista em contínua pesquisa, como é evidenciado por Tatiana Motta
Lima (2012) em Palavras Praticadas: O Percurso Artístico de Jerzy Grotowski, 1959 -
1974. Em seu livro, a autora trata de algumas das inúmeras revisões terminológicas e
semânticas das noções abordadas por Grotowski, principalmente no período teatral, e
identifica, inclusive, como novos sentidos foram sendo atribuídos a palavras/conceitos
anteriores. Assim, estaria ele no entre lugar do artesão e do cientista?

De qualquer modo, é a partir dessa separação entre cientista e artesão que


emergem, na aula inaugural, dois parâmetros centrais em sua reflexão: o das artes
performativas e o das artes espetaculares. O problema reside na diferença de sentido
desses dois termos, já que ele postula que não são equivalentes. Então, quais são
efetivamente as diferenças entre esses termos e essas áreas?

94
De acordo com Grotowski esses termos demarcam diferentes territórios de
pesquisa. Por artes performativas ele compreende a noção que aborda diretamente a
experiência do agente da ação, do atuante que realiza a ação. Por sua vez, artes
espetaculares, para ele, referem-se mais a um trabalho voltado à percepção de quem
vê, os espectadores.

Nas artes performativas, nas quais ele se inclui a partir de 1962, o foco é o
trabalho interior, a ação do atuante sobre si. Em suas palavras: “quando dizemos
performing arts isto fala daquele que faz, do fazer: é um ser humano que está em ação”
(GROTOWSKI, 2014, p. 23). Posteriormente, ao já ter algo estruturado concretamente
e, caso o atuante queira que o que ele tem seja visto, inicia-se a elaboração da
montagem que possa ser vista por outras pessoas, ainda que este não tenha sido o foco
desde o começo. “É a expressão que aparece e depois ela pode ser percebida”
(GROTOWSKI, 2014, p. 24). Assim, podemos dizer que no trabalho de Grotowski, na
década de 1960, há tanto aspectos das artes performativas, quanto das artes
espetaculares.

Já na segunda abordagem, o foco é externo desde o início, busca-se a


expressividade para os que verão a estrutura da atuação. Toda a estruturação está
voltada para a construção de um sentido para os espectadores. Desse modo, nas artes
espetaculares, presença, relação e compreensão do outro é que tornam arte o trabalho
do atuante.

Eu acho que existem certos tipos de artes performativas, que foram criadas
para serem olhadas, mas, existem outros tipos de artes performativas, outras
abordagens, em que um processo se forma, se articula, é um tipo de batalha
de um ser humano consigo mesmo, para se tornar lúcido, transparente,
limpo, ligado às raízes de uma experiência direta da vida e que encontra
depois, podemos dizer, na montagem, nos elementos de composição, a
capacidade, a possibilidade, de ser compreendido por alguma outra pessoa
que olha (...) são muito próximas, na aparência, estas duas abordagens, mas
são diferentes (GROTOWSKI, 2014, p. 23).

Podem parecer diferenças sutis, mesmo assim se constituem diferenças


importantes. Esse ponto é relevante, pois podemos perceber uma centelha do
pensamento de Grotowski: as intenções, os objetivos do fazer e de esse fazer ser bem-
feito, são primordiais. E, para além disso, ter clareza do que, para que e para quem se
faz, não são obviedades, mas sim perguntas legítimas com total importância no trabalho
do atuante.

95
As artes espetaculares caracterizam-se por um vetor que busca a necessária
comunicação com o público, ainda que exista algum tipo de trabalho interno por parte
do atuante. Enquanto nas artes performativas o vetor principal é para o trabalho interno
do atuante, o trabalho sobre si, e, somente após esse trabalho interno ser de fato
realizado, caberia que alguém o visse, não como público – já que aquele trabalho não
foi feito para esse fim – mas sim como testemunha do trabalho que o atuante realiza
em si.

Trabalho sobre si

Em Grotowski, a noção de trabalho sobre si emerge, em grande medida, de sua


relação com elementos de algumas culturas orientais, especialmente a hindu e de
aproximações com as ideias de Gurdjieff47.

No campo da arte, esse trabalho se dá a partir da herança de Stanislavski48, que


consiste no trabalho que o ator realiza em si e para si, na busca de autoconhecimento e
na elaboração de procedimentos que permitam estar disponível para a realização do
ofício em variados aspectos: no âmbito técnico, no da imaginação ou no contato com os
parceiros. Relaciona-se com o conjunto de elementos aos quais ele pode recorrer para
superar dificuldades frente a um desafio cênico.

Segundo Cassiano Quilici no artigo O Treinamento do Ator/Performer:


Repensando o “Trabalho Sobre Si” a Partir de Diálogos Interculturais (2012), a noção de
trabalho sobre si desenvolve-se no âmbito das transformações ocorridas nas pedagogias
teatrais do século XX, no que se refere: a formação do ator, aos aspectos técnicos dessa
formação e aos questionamentos da disciplinarização dos corpos a partir dessas
técnicas.

Quilici alerta para o risco de ser gerado bloqueio e consequente mecanização


do trabalho do ator, em lugar da disponibilidade necessária à pesquisa atoral. Em virtude
disso, diretores pedagogos, como Stanislavski, Brecht e o próprio Grotowski, passaram
a buscar procedimentos de trabalho nos quais os atuantes pudessem debruçar-se sobre
aspectos técnicos e ainda sobre outros aspectos, como a ética desse ofício, por exemplo.

47
George Ivanovich Gurdjieff (1877-1949) foi um filósofo espiritualista armênio com influência
importante sobre Grotowski, conforme apontam Peter Brook (2011, p. 74) e Ludwik Flaszen (2015 p.
371-372).
48
Constantin Stanislavski (1863 - 1938) ator, diretor, pedagogo e escritor russo - destaque entre os
séculos XIX e XX. Stanislavski é mundialmente conhecido pelo seu ‘sistema’ de atuação para atores e
atrizes, suas técnicas de treinamento, preparação e procedimentos de ensaios.

96
O que promoveria não só modificações na atuação, mas, principalmente,
transformações nos estados de ser do sujeito (QUILICI, 2012, p. 16).

Ao pensar acerca de metacotidianidade, notamos que uma de suas acepções


pode ser a reflexão sobre si, entendimento que também pode encontrar ecos na noção
de “trabalho sobre si”. Esse que seria um certo tipo de treinamento do atuante que
também o mobiliza como sujeito, numa perspectiva objetiva e subjetiva de
transformação e de criação.
Como vimos, para Grotowski, a antropologia teatral compreende os fenômenos
do teatro e do ritual, organizados entre artes performativas e artes espetaculares. Além
disso, ele propõe outra distinção dentro das artes performativas e das artes
espetaculares: a linha orgânica e a linha artificial. Essas que podem existir tanto no
teatro, quanto no ritual.

Para compreender o que Grotowski entende por essas linhas, consideramos


importante explorar o sentido do termo orgânico e suas derivações no universo do
artista polonês.

Orgânico: de atributo do ator a campo de investigação

Grotowski não foi o primeiro a falar de orgânico em teatro. Stanislavski já


afirmava que seu sistema era “necessário apenas para abrir as portas da natureza
orgânica do ator para a criatividade” (TOPORKOV, 2016, p. 181). Por essa afirmação,
temos orgânico como característica, qualidade do ator.

Em mais de uma oportunidade, o artista polonês coloca-se como filiado à


tradição de Stanislavski e, de certa maneira, como seu continuador. Ele afirma: “quando
eu comecei a trabalhar sobre a técnica dos atores, sobre a técnica do ator, nesse
momento eu comecei meu trabalho, ali onde Stanislavski parou. Ele parou porque ele
estava morto. Simplesmente” (GROTOWSKI, 2014, p. 36).

Em determinado momento da aula, ao citar o problema do uso do termo


“natural” para qualificar um ator que trabalha em busca das relações com a vida,
Grotowski vai afirmar que, para ele, o termo não se adequa tão bem quanto o termo
“orgânico”, e elenca alguns motivos para preferir o segundo. O principal seria evitar
confusões com a busca por um tipo de “realismo cinematográfico” ou por
“comportamentos da vida corrente”. Assim, ele afirma: “por estas razões, depois de
Stanislavski, eu utilizo o termo ‘orgânico’ (...) isto quer dizer, alguma coisa ‘que precede
a composição’. Porque a arte exige a composição!” (GROTOWSKI, 2014, p. 25).

97
Para Stanislavski, o orgânico é uma qualidade do ator, para Grotowski o
conceito expande-se: além de ser uma qualidade do ator converte-se em campo de
trabalho, mais amplo, toda uma linha de pesquisa.

Ao rastrear a pesquisa de Grotowski podemos constatar, até meados de 1962,


um grande apreço pelo jogo e pela artificialidade. Além disso, o corpo era visto como
algo a ser superado, construído e, de certo modo, como um inimigo. De acordo com
Lidia Olinto (2016), nessa época, há no trabalho de Grotowski “uma ênfase positiva e
explícita a certos termos como ‘artificialidade’, ‘artificial’, ‘signos’, ‘habilidade(...).
Lembra-se, inclusive, o fato dos termos ‘artificialidade’ e ‘artificial’ terem a mesma raiz
etimológica da palavra ‘arte’” (OLINTO, 2016, p. 45).

Paulatinamente, essa visão foi desconstruída, e Grotowski passou a buscar


outros modos de trabalho, voltando-se para os processos interiores do ator. De 1962 a
1965, essas várias transformações vão desembocar no espetáculo O Príncipe Constante.
Grotowski passou a trabalhar individualmente com Cieślak49 a partir de associações
pessoais do ator. Motta Lima (2008) descreve algumas das transformações que se deram
a partir daquele trabalho:

As principais diferenças entre o trabalho de Cieślak em Pc e os espetáculos


anteriores foram: 1) uma nova maneira de enxergar o corpo parece ter
surgido a partir do trabalho de Cieślak em Pc. O corpo passou a ser visto
através da lente da organicidade ou da consciência orgânica, ele não era mais
inimigo, não era o único a bloquear um dito processo psíquico; não era apenas
armadura, aquilo que deveria ser anulado, mas ganhava em positividade; 2)
uma positividade que permitiu a Grotowski falar em um ato total; 3) a noção
de contato que colocou em cheque vários procedimentos anteriores; 4) a
luminosidade que esteve presente na experiência de Cieślak (MOTTA LIMA,
2008, p. 157).

O quinto ponto abordado por Motta Lima é o nascimento duplo e


compartilhado do diretor e seu ator, radicalmente diferente de suas experiências
anteriores. O espetáculo foi extremamente exitoso e tornou-se mundialmente
conhecido muito em função da abordagem ‘orgânica’ que, conforme aponta Olinto
(2016), “parece ter se dado não por alguma questão ideológica ou intelectual, e sim

49
Ryszard Cièslak (1937-1990) foi um ator e diretor de teatro polonês. Ingressou na companhia de
Grotowski desde o início desta, tornando-se um dos principais nomes do grupo.

98
devido a uma constatação pragmática advinda da própria experiência criativa e
pedagógica” (OLINTO, 2016, p. 55).

Após as várias viagens empreendidas pela companhia, em virtude das


apresentações, o grupo inicia pesquisas para a construção de um novo espetáculo.
Nesse processo, uma grande crise instala-se no Teatro Laboratório e o próximo (e
último) espetáculo produzido pelo grupo, Apocalypsis cum figuris (1969), levaria três
anos até sua estreia. Muito dessa crise tem relação com as alterações ocorridas no
processo de O Príncipe Constante e a nova busca de Grotowski pelo que chamou de
consciência orgânica ou organicidade.

Ainda durante o período de Apocalypsis cum figuris, Grotowski decide não


construir novos espetáculos e ingressa, junto com os atores do Teatro Laboratório, em
um novo projeto, o Parateatro. Essa mudança pode ser entendida como um
desenvolvimento e um desdobramento do trabalho sobre a organicidade, cujo enfoque
se deu a partir de Príncipe Constante e que foi capaz de expandir e reconfigurar as
investigações do grupo para além do campo teatral.

A fase posterior ao Parateatro, o Teatro das Fontes, aprofunda ainda mais a


questão da organicidade. Motta Lima aponta que ocorre uma reabilitação da questão
da técnica (que havia sido duramente criticada no Parateatro) com importante alteração
de sentido em relação às práticas nos anos 60.

Porém, já na segunda metade dos anos 1970, Grotowski voltou a procurar, a


utilizar e a ‘criar’ exercícios e técnicas. Essa experimentação baseou-se em parâmetros
diferentes daqueles que atuaram nos anos de 1960. Grotowski se interessou por
experimentar técnicas e exercícios que pudessem atuar como instrumentos eficazes
para auxiliar o atuante a penetrar no território da organicidade; técnicas e exercícios –
na sua maioria vinculados a experiências rituais – que facilitassem a entrada do
organismo naquele fluxo de ações que caracterizava a organicidade.

Grotowski investigou, no Teatro das Fontes, determinadas técnicas que


chamou, à época, de dramáticas e ecológicas. E parece não haver dúvida de que a
descoberta daqueles sintomas de organicidade o auxiliou na busca e seleção dessas
‘novas’ técnicas. Elas deveriam ser dramáticas, o que quer dizer que eram dinâmicas,
realizadas em ação, não sendo, dessa forma, técnicas contemplativas (MOTTA LIMA,
2012, p. 409-410).

É desse modo, ao questionar e reformular acepções anteriores, que a questão


da organicidade descortinou-se como campo de investigação numa clara consequência
e ampliação do entendimento acerca desse termo. Se, para Stanislavski, algo como a

99
organicidade se referia às leis da vida corrente, compostas para a cena; para Grotowski,
conforme aponta Richards, a “organicidade indica algo como a potencialidade de uma
corrente de impulsos, uma corrente quase biológica que vem de ‘dentro’ e que vai
terminar numa ação precisa” (RICHARDS, 2012, p. 1 07).

Passemos, então, à compreensão desse campo circunscrito por Grotowski e


que dá, inclusive, o nome ao curso: A linha orgânica no teatro e no ritual.

Linha Artificial e Linha Orgânica

Para distinguir as linhas artificial e orgânica, Grotowski exemplifica cada uma


delas a partir de suas características e diferenças, pois, segundo ele, “nós podemos
verdadeiramente analisar cada fenômeno, tanto teatral quanto ritual, do ponto de vista
da predominância do que é orgânico e do que é artificial” (GROTOWSKI, 2014, p. 27).

A principal característica da linha artificial seria a abordagem que começa pela


composição externa, iniciada por mãos, pernas e face de modo não contínuo, o que
Grotowski vai chamar de staccato. Ele diz: “[...] o ponto de nascimento de um elemento
cênico está na periferia, no rosto, nas mãos, nas pernas e também nas posições. As
transições são típicas para a abordagem orgânica, para a abordagem não-orgânica são
as posições (GROTOWSKI, 2014, p. 26-27).

Ele aponta um modo de fazer da linha artificial: primeiro uma estrutura é


iniciada a partir de posições, que mobilizam principalmente as extremidades do corpo,
como mãos, rosto e pernas. Na medida em que as extremidades criam posições,
acontecem pausas ou paradas entre uma e outra posição, o staccato ao qual ele se
refere, cria camadas de posição/pausa/outra posição/outra pausa. E, após a montagem
feita pelo diretor - quando tratamos da linha artificial, no teatro - tem-se a sensação de
fluidez desses movimentos, mas essa é uma “fluidez para o espectador” (GROTOWSKI,
2014, p. 62).

Podemos pensar que, na abordagem artificial, inicialmente se estrutura uma


forma externa, fixa-se essa forma e depois se passa a trabalhar no fluxo da energia que
vai transitar por esse canal. Seria, no trabalho sobre essa energia, um ponto no qual a
linha artificial de algum modo se contamina com a linha orgânica?

Na linhagem orgânica, o processo “começa pelos impulsos, pela continuidade,


por um fluxo contínuo, por um não-staccato. Mas, ela chega também a uma composição,
a uma estrutura” (GROTOWSKI, 2014, p. 27). Como se dá esse processo dos impulsos,
dos fluxos, até a estrutura?

100
Segundo Grotowski (2014), a passagem da energia livre pelos impulsos é que
vai constituir as pequenas ações que compõem, juntas, a estrutura. No contraste entre
a linha artificial e a orgânica, no campo teatral, poderíamos deduzir que, no caso da linha
orgânica, o fluxo dos impulsos estaria necessariamente relacionado ao trabalho com as
associações. Ou seja, por meio das associações pessoais, os impulsos desembocam em
pequenas ações de modo fluído, sem paradas.

Nesse ponto, é importante destacar alguns elementos-chave do trabalho na


linha orgânica: as noções de impulsos, de associações pessoais e de ação física.

Ação Física

Segundo Toporkov, para Stanislavski a ação seria o “fundamento irrefutável e


único da arte do ator” (TOPORKOV, 2016, p. 92). Em busca de uma atuação viva, o
caminho a percorrer seria através de ações simples e concretas que seguissem as leis da
vida. A construção das ações que segue essas leis alcançaria uma lógica de
comportamento orgânico e, portanto, vivo. Assim, o ator escaparia dos clichês teatrais
e estaria sendo sincero em seu trabalho.

Grotowski, ao se referir a Stanislavski, principalmente sobre os seus últimos


anos de pesquisa, destaca a ideia de que os atores devem deixar de tentar controlar as
emoções, já que estas não podem ser controladas. Só poderíamos controlar as ações
que realizamos e os processos para realizá-las sinceramente. A partir disso, Grotowski
também vai se focar na construção de ações simples que obedeçam às leis da vida
orgânica. No entanto, ele expande o campo, quando pensa as ações a partir dos
impulsos.

Impulsos

Em seus estudos, Grotowski percebeu que Stanislavski também se perguntava


sobre a construção da vida do ator, algo como a organicidade. O diretor russo teria
percebido, tardiamente, que a manipulação das emoções, presente na famosa noção de
memória emotiva, não era possível.

A partir desse ponto, Stanislavski passou a investigar as ações físicas e, através


delas, se deparou com a qualidade do orgânico. Todavia, é com Grotowski que o
orgânico deixa de ser somente um atributo do ator, como vimos acima, e essa expansão
se dá através do trabalho com os impulsos.

101
‘Mas, o que é que tem, nesta sabedoria de Stanislavski velho, a ver com como
abordar a vida emotiva, sem deixar ela escapar, sem bombear, através do
comportamento, o que é que tem que ultrapassa a situação realista?’ E, eu
encontrei: são os impulsos! E, de novo, nós estamos diante de um termo cuja
definição é impossível. Porque... será que... sim, eu sei que os impulsos são
alguma coisa que nascem sempre dentro do corpo e que apenas chegam à
periferia. Eu sei que é como alguma coisa que nasce atrás da pele (...) mas,
antes da ação física, tem uma pequena coisa, exatamente, que a precede e
que é todo o segredo de um ator orgânico como, aliás, dentro de alguém
como esta mulher no filme de Maya Deren 50: são os pequenos impulsos que
são contínuos, que formam um fluxo, que são... que são... que não para, que
rola. E, então, eu me disse: ‘Sim, isto quer dizer, que podemos trabalhar sobre
os impulsos’ (GROTOWSKI, 2014, p. 36-37).

Nessa passagem, a noção de impulsos configura-se como algo que antecede a


ação, constitui-se em espécie de pulsão para a ação. Segundo Thomas Richards (2012),
no livro Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas, para Stanislavski algo
semelhante aos impulsos remeteria a um trabalho “relacionado com os olhos e a
expressão facial: a periferia do corpo”, e para Grotowski, seria como “algo que empurra
de ‘dentro’ do corpo e se estende para fora em direção à periferia; algo muito sutil, que
nasceu ‘dentro do corpo’, e que não vem de um campo unicamente corporal”
(RICHARDS, 2012, p. 108-109).

Motta Lima (2012, p. 94) verifica que há relação entre a noção de signo,
utilizada por Grotowski no início da década de sessenta, e impulso. Signo teria ligação
com construção de uma imagem que se queria visível pelos espectadores;
paulatinamente, ocorreu a alteração desse termo para impulso, principalmente a partir
do trabalho no espetáculo O Príncipe Constante ao lado de Ryszard Cieślak.

Sendo assim, talvez a noção de signo estivesse inicialmente, num certo sentido,
mais próxima do uso stanislavskiano da noção de impulso, já que fala mais sobre
aspectos externos e da periferia do corpo. Ainda assim, percebemos que há um
desenvolvimento e um caminho da noção de impulso por Grotowski, inicialmente signo,
signo-impulso, impulsos interiores e, por fim, somente impulso. Signo mantém-se como
referência somente externa, como afirma Grotowski na aula: “Nós podemos dizer que
quando estamos cortados dos impulsos o que domina são os gestos, então, eu diria que

50
Grotowski refere-se ao filme exibido nessa primeira aula, filmado por Maya Deren (1917 - 1961), no
Haiti, nos anos 40. Deren foi uma pesquisadora de cinema, dança e vodu haitiano, que se debruçou
durante bastante tempo sobre o ritual. O documentário póstumo Divine Horseman: The living gods of
Haiti foi feito por seu ex-marido, em 1981, e reúne imagens feitas por ela e narrações de trechos de seus
diários.

102
são as reações, ou os signos periféricos do corpo: as mãos, o rosto, as pernas”
(GROTOWSKI, 2014, p. 26).

Nessa aula, especificamente, ele não faz referência exata à localização em que
se originam os impulsos, mas ele vai dizer que o impulso daquele movimento nasce
dentro do corpo e, então, reverbera pelas extremidades e que esse é um dos sintomas
da organicidade.

Portanto, podemos pensar que – para Grotowski – há nos impulsos uma


espécie de passagem que cria lastro interior. Ainda que tenha retirado o adjetivo do
termo, ele seria mais do que puramente corporal, como disse Richards (2012), o impulso
seria psicofísico, e a ação resultante desse impulso configura-se numa ação com esse
lastro interno, e é também ação psicofísica. Esse lastro interno seriam a memória e as
associações pessoais?

Associações Pessoais

As associações pessoais constituir-se-iam de interconexões entre uma ação


psicofísica e a presentificação e reverberação de alguma memória nessa ação. Essa
interconexão se dá a partir do trabalho sobre o impulso gerador da ação e estabelece a
psicofisicidade da ação.

A questão das associações pessoais está intimamente ligada ao entendimento


de Grotowski em relação à memória, o que é de extrema relevância no trabalho do
artista. Conforme aponta Motta Lima (2009), no artigo Experimentar a memória, ou
experimentar-se na memória: apontamentos sobre a noção de memória no percurso
artístico de Jerzy Grotowski:

A memória talvez seja uma das ‘palavras praticadas’ de Grotowski mais


difíceis de ser analisadas porque ela envolve uma série de investigações que,
ultrapassando largamente uma noção mais estrita de teatro, diz respeito a
uma certa percepção de si experienciada pelo atuante. A noção esteve
eminentemente relacionada a um trabalho sobre si realizado pelo atuante,
ou, dizendo mais claramente, sobre aquilo que é ou pode vir a ser
experienciado como si. Podemos ainda inverter a sentença e dizer que a
memória é, no percurso de Grotowski, uma experiência que permitiu que o
atuante ‘relaxasse’ uma certa percepção mais habitual – e pretensamente
estável – da sua própria subjetividade (MOTTA LIMA, 2009, p. 159).

103
No excerto, é interessante pensar no termo percepção de si. Nesse sentido, o
trabalho com a memória, em Grotowski, permitiria alterações de estados do atuante, as
quais poderiam resultar em mudanças, na percepção do atuante sobre si, e desbloquear,
num certo sentido, novas possibilidades de ser/estar como sujeito. Ou, ainda,
distensionar leituras mais rígidas ou estáveis de si. Seria esse distensionamento que
promoveria esse relaxamento das percepções e talvez certezas de/sobre si? Nesse
desbloqueio específico, não estaria o trabalho sobre si, como alterações do sujeito tal
qual também aponta Cassiano Quilici?

Acerca do que permitiria esse trabalho com a memória, que se presentificará


nas associações pessoais, quais seriam os procedimentos? Que camadas podem ser
construídas a partir das associações pessoais como procedimento e potência?

Na aula de 16 de junho de 1997, Grotowski nos dá algumas pistas a partir da


descrição de seu trabalho com Cieślak:

Como eu falei a respeito de Ryszard em O Príncipe Constante, e no filme tem


a questão das suas associações, das suas lembranças, pessoais, de tudo isso.
Mas, será que o diretor não teve, se ele trabalha nessa direção, suas próprias
associações e lembranças? Eu mesmo tive. Por exemplo, tem o momento em
Fausto, quando Mefistófeles, o demônio, nas duas pessoas vestidas como
jesuítas, um homem e uma mulher, estão deitados e aí deve acontecer o
último ato de acordo com o demônio, da parte de Fausto, de entrar com ele
numa cumplicidade e tem essas respirações: (Grotowski faz o som de uma
respiração oral forte, arfada). Isso foi filmado durante um momento curto: de
onde vem isso? Quando eu era... quando eu tinha dezesseis anos, eu estava
muito doente e eu fiquei durante um ano num hospital, numa sala para
pessoas que estavam morrendo. E, isso foi... eu não tinha dinheiro, eu era
pobre, então foi nesse quarto que não era grande, que tinha dezoito leitos e
durante a noite nós respirávamos de uma certa maneira, foi essa respiração
que eu reconstruí em Fausto, no momento do acordo entre Fausto e o
demônio, em duas pessoas. É uma associação pessoal. Um outro momento...
tudo é baseado sobre associações pessoais, da minha parte, eu devo dizer, e
da parte do ator à sua maneira (...) e isso me deu sempre um tipo de alegria,
de ver isso na composição do espetáculo, como ver como minhas lembranças
podem acordar, podem reviver em mim mesmo (GROTOWSKI, 2014, p. 103-
105).

Na descrição de Grotowski, ele coloca que esse processo das associações


pessoais está muito mais na reconstrução e presentificação da memória, a partir da qual
o impulso gera ação, do que somente na reconstrução mimetizada da imagem daquela

104
memória. Além disso, fica evidente que essas associações não são somente do atuante,
mas também do diretor/orientador daquele trabalho.

Para Motta Lima (2009), Grotowski explicita, dessa forma, que o trabalho com
as associações não se dá somente no âmbito interno do atuante, não é um simples
exercício mental, mas concretiza-se numa pesquisa prática. E é, nesse sentido, que a
noção de corpo-memória é forjada. Grotowski entende que o corpo não “tem memória,
ele é memória” (GROTOWSKI, 2007, p. 173).

Na continuidade da aula inaugural, são exibidos dois excertos fílmicos: um do


documentário Divine Horseman de Maya Deren e outro do documentário, dirigido por
Mariane Ahrne, da série Os cinco sentidos do teatro51. No primeiro, vê-se um homem e,
posteriormente, uma mulher, passando por um transe de possessão. Ao analisá-lo,
Grotowski comenta: “sim, para mim está claro que isto que os haitianos chamam de
processo de possessão (...) é um processo orgânico. Existem todos os sintomas disto,
quer dizer, o comportamento humano se torna fluido, leve, contínuo” (2014, p. 29).

No segundo trecho, Grotowski exibe um recorte do espetáculo O Príncipe


Constante, o qual ele utiliza para demonstrar a relação entre as ações realizadas pelo
ator em cena, com os movimentos executados pelos participantes do Vodu: ambos
teriam um tipo de associação que é inter-humana, teriam origem interna, no fluxo dos
impulsos; apresentariam fluidez, continuidade e leveza, por isso são, ambos, orgânicos.

Interessa, nesse ponto, a clara apresentação de ambos: o Vodu haitiano e o


espetáculo O Príncipe Constante são pertencentes à linha orgânica. Segundo Grotowski,
em ambos se vê “como um processo que encontrou a sua própria estrutura, ele não
representa nada, ele não mostra nada, mas, ele é e é visível” (GROTOWSKI, 2014, p. 40).
Ali, estão todos os sintomas da organicidade: o primeiro, na instância do ritual; o
segundo, na instância do teatro. Este ser em ação, que não representa, mas que
simplesmente “é”, e cuja experiência pode ser testemunhada por outras pessoas,
aponta para aquela perspectiva das “artes performativas”, proposta por Grotowski,
conforme abordamos anteriormente. Pois o processo orgânico pode, antes de tudo,
configurar-se como um campo de experiência para o atuante, cujos sentidos também
poderão ser articulados, a depender dos objetivos da ação, para possíveis observadores.

É interessante perceber que, mesmo com todas as distinções entre as linhas e


ao apresentar exemplos que enfatizem essas diferenças, em vários momentos nesta
primeira aula, ele faz questão de dizer que as coisas não são tão puras. Como já

51
Mariane Ahrne (1940) diretora e roteirista de cinema nascida na Suécia. Dirigiu um dos episódios da
série Os cinco sentidos do teatro, produzida pela Radiotelevisione Italiana (RAI).

105
apontamos anteriormente, o ponto de partida, o objetivo inicial, do atuante, faz toda a
diferença. Como reforçado por Grotowski, “é a diferença das fases iniciais, [...] é sempre
isto que eu repito, que a diferença entre o caminho orgânico e o artificial, no sentido da
composição, é, na verdade, a diferença entre aquilo que está no primeiro plano e no
segundo plano” (2014, p. 34).

Essa afirmação de Grotowski sobre uma não pureza das linhas, artificial e
orgânica, sobre contaminações e deslocamentos, é interessante, pois demonstra um
olhar transcultural. Segundo Olinto e Vieira (2016), no artigo A perspectiva transcultural
dos conceitos de linha orgânica e linha artificial de Jerzy Grotowski, esse olhar “permite
reconhecer certos princípios estruturais de manifestações culturais bem diferentes
entre si, certos modus operandi que transpassam as muitas singularidades regionais”
(OLINTO; VIEIRA, 2016, p. 6). Olhar esse que se coaduna com o entendimento de
Grotowski sobre o que seria a Antropologia Teatral e também conversa diretamente
com o binômio Conjunctio Oppositorum.

Em sua pesquisa de doutoramento, Olinto (2016, p. 61) debruça-se sobre o


chamado Conjunctio Oppositorum, terminologia utilizada por Grotowski para suprir a
dualidade: estrutura/técnica/precisão, uma espécie de oposto complementar do
conjunto espontaneidade/improvisação/organicidade. Esse modo de pensar por
complementariedades estaria relacionado a formulação/percepção de Grotowski sobre
as linhas orgânica e artificial, já que nas aulas, em mais de uma oportunidade, ele cita
os deslocamentos e as contaminações, bem como o fato de não haver hierarquias de
valor entre elas.

É importante salientar que, de acordo com o próprio Grotowski, ao falar de


artificialidade e de sua escolha pela linha orgânica, não há julgamento de valor implícito,
ou seja, não há entendimento de que o trabalho numa linha seja melhor que em outra,
pois em cada uma há “coisas que fazem com que a gente não possa dizer que exista uma
corrente certa, não, não, se uma única corrente está certa ela é, certamente, muito
perigosa. Então, é o contrário, existe uma multiplicidade de possibilidades” (2014, p.
40).

Essas múltiplas possibilidades parecem se relacionar com algo tocado por ele
na parte final da aula, quando aborda a questão do temperamento e sua influência sobre
as escolhas pessoais, ao falar de projetos e pesquisas (recentes à época), realizados no
Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards acerca dos cantos da tradição afro-
caribenha, segundo ele, seu temperamento (e o de seus companheiros de Workcenter,
em alguma medida) conduziu-o para o trabalho sobre os cantos (GROTOWSKI, 2014, p.
44).

106
Grotowski fala desse trabalho sobre os cantos como instrumento que permite
a verticalidade no deslocamento das energias, do nível biológico às energias mais sutis.
Ele explica que esse trabalho foi possível, principalmente, com os cantos de origem
haitiana, “porque ali a participação da organicidade do corpo é total”. E afirma que,
nesses cantos antigos, há um componente vibratório que lhe pareceu ser o “ponto de
partida ideal” para a realização de um trabalho orgânico (GROTOWSKI, 2014, p. 46).

Grotowski afirma que o objetivo desse trabalho sobre esses cantos é decolar,
pois o mesmo pode ser altamente desencadeador de associações e vôos, em mais uma
referência de verticalidade, de subida. Em uma aula aberta sobre a questão da
organicidade, Motta Lima (2016) ressalta que, a partir desse trabalho orgânico, o corpo
se tornaria “uma pista de decolagem para a transcendência”52, o que complementa a
afirmação e a imagem de Grotowski:

[...] isto resultou nesta abordagem muito particular através dos cantos
vibratórios de antigos rituais. Que não é, evidentemente, a reconstrução de
um ritual africano ou caribenho, não, não, é apenas como os instrumentos de
trabalho sobre os corpos... sobre os cantos que se enraízam nos corpos, sobre
os impulsos que se prolongam nos cantos, como tudo isto pode ser
organizado do ponto de vista dos diferentes níveis da energia (GROTOWSKI,
2014, p. 46).

Nesse trecho, Grotowski exprime de modo claro o entendimento dos cantos


como ferramentas para esse trabalho da busca pela verticalidade. A partir deles seria
possível realizar o trabalho sobre si, partir das ações, estabelecer o fluxo dos impulsos e
alimentá-lo com as associações pessoais. Poderíamos, eventualmente, entender que os
próprios cantos, como instrumentos desse trabalho, tornam-se espécie de “argamassa”
que mantém esses elementos unidos?

Grotowski finaliza essa primeira aula, que tem caráter de apresentação e de


mapeamento dos lugares pelos quais suas aulas se deslocam, com apontamentos
concernentes ao, então, estágio atual do seu trabalho, com reflexões sobre outros
períodos e origens deles, com entendimentos que emergem de longos anos de trabalho.
Traz, ainda, aspectos que considera relevantes para compreender suas pesquisas, como
a noção de antropologia teatral, artesania, artes performativas, artes espetaculares,
trabalho sobre si, metacotidianidade, ações físicas, impulsos, organicidade, certo tipo

52
Registro do caderno de campo da pesquisadora, oriundo de uma aula aberta ministrada por Tatiana
Motta Lima em 2016, na Escola Superior de Artes Célia Helena (SP).

107
de ferramenta, de “ioga”, entre muitos outros assuntos que serão revisitados nas
próximas aulas, como a concepção e a existência de um caminho orgânico e um caminho
artificial.

Ao concluir a pesquisa de mestrado acerca das aulas de Grotowski no Collège


de France, fica para mim a nítida sensação de uma despedida. Temos neste artigo um
recorte que dá a ver que o polonês construiu uma análise, aula a aula, de todas as
diversas fases pelas quais passou em sua jornada de pesquisa, indo e voltando no tempo,
revisando, retificando e reencontrando suas questões, noções e alterações de percurso.
E, talvez, o mais importante: programando o que permaneceria de tudo isso.

No decorrer das aulas, é perceptível que elas versam, de modo teórico, acerca
de uma prática relativa ao corpo - o corpo, seus comportamentos e suas dimensões além
físicas - são o assunto principal. Ele vai estabelecer conceitos (linha orgânica, linha
artificial e afins) que se configuram como instrumentos para o conhecimento dos
objetos, como ocorre em toda ciência, mas aqui, o objeto é o corpo íntegro em suas
dimensões. Segundo ele: a arte como veículo – sua última fase de pesquisa, na qual se
destaca o trabalho sobre os cantos africanos e afro-caribenhos - põe em prática
questões ligadas ao ofício enquanto tal, legítimas nas duas extremidades da cadeia das
performing arts; questões ligadas ao artesanato (GROTOWSKI, 2012, p. 150).

Referências

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GROTOWSKI, Jerzy; FLASZEN, Ludwik; POLLASTRELLI, Carla (org.). O teatro laboratório
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____________. Grotowski & Companhia: origens e legado. São Paulo: É Realizações,


2015.

GROTOWSKI, Jerzy. 1995 - Projet d’Enseigment et de Recherches – Antropologie


Théâtrale. Projeto apresentado para candidatura de Grotowski ao Collège de France.
Arquivo de Mario Biagini. Cedido à pesquisadora Tatiana Motta Lima. Traduzido por
Laila Garin com fins exclusivamente didáticos.

____________. Prefácio. In: RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as


ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. XI-XIII.

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108
em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57399. Acesso em: 9 mar.
2020.

____________. Les Mots Pratiqués: Relação entre terminologia e prática no percurso


artístico de Jerzy Grotowski entre os anos 1959 e 1974. 2008. Tese (Doutorado em
Letras e Artes) – Centro de Letras e Artes (CLA), Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, 2008.

____________. Palavras Praticadas: O Percurso Artístico de Jerzy Grotowski, 1959 -


1974. São Paulo: Perspectiva, 2012.

OLINTO, Lídia. Conjunctio Oppositorum e o Parateatro de Jerzy Grotowski e


Companhia. 2016. Tese (Doutorado em Artes da Cena) - Instituto de Artes (IAR),
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2016.

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QUILICI, Cassiano Sydow. O Treinamento do Ator/Performer: Repensando o “Trabalho


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(CLA), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro,
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TOPORKOV, Vassili. Stanislavski ensaia – memórias. São Paulo: É Realizações, 2016.

109
SAMPAIO, Daniele. Grotowski estrategista: a desconstrução do ermitão. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas. Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena.
Mestrado. Orientadora: Tatiana Motta Lima. Produtora e gestora cultural, fundadora da
SIM! Cultura. Atua em colaboração permanente com o ator Eduardo Okamoto desde
2006. Integra as equipes de docência e coordenação do Curso de Especialização em
Gestão, Política e Produção Cultural da Unicamp.

RESUMO: Este artigo é parte da dissertação de mestrado “Agentes invisíveis e modos


de produção do Workcenter of Jerzy Grotowski”, defendida em 2018 no Programa de
Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Unicamp, sob a orientação da
Profa. Dra. Tatiana Motta Lima. O estudo teve como proposição central examinar os
modos de produção dos primeiros anos de consolidação do Workcenter of Jerzy
Grotowski, quando, a despeito de não se produzirem espetáculos, havia pelo menos três
agentes que respondiam pela produção e gestão do instituto. Neste artigo, partilho as
reflexões referentes ao terceiro capítulo da pesquisa, em que buscou-se, por meio de
bibliografia e entrevistas a agentes que atuaram diretamente com Grotowski, averiguar
se/como o artista teria atuado na produção das investigações artísticas de sua trajetória.

PALAVRAS-CHAVE: Jerzy Grotowski; Workcenter of Jerzy Grotowski, agentes invisíveis;


modos de fazer; produção e gestão cultural.

ABSTRACT: This article is part of the Master’s Dissertation “Invisible agents and
production ways on the first years of the Workcenter Of Jerzy Grotowski”, which was
defended in 2018 at Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena of the Unicamp,
with orientation of Profa. Dra. Tatiana Motta Lima. The study had as central proposition
to investigate the production ways of the first years of consolidation of the Workcenter
of Jerzy Grotowski, when although there were no performances, there were at least
three agents in charge of the institute production and management. In this article, I
share the reflections regarding the third chapter of the research, in which It has been
sought to verify, through of bibliography and interviews with agents who worked
directly with Grotowski, if / how the artist would have acted in the production of his
artistic investigations and of his trajectory.

KEYWORDS: Jerzy Grotowski; Workcenter of Jerzy Grotowski, invisible agentes;


production ways; production and cultural management.

A pesquisa da qual este texto faz parte é resultado de um estudo empreendido


entre 2011 e 2018, sendo os últimos três dentro do Programa de Pós-Graduação em
Artes da Cena do Instituto de Artes da Unicamp. Nela, procurou-se abrir algumas
questões acerca da função e do alcance da ação da produção em trajetórias artísticas

110
pautadas em pesquisas e que não têm, necessariamente, resultados alinhados ao
mercado da arte. Tomando como ponto de partida os desafios como produtora de um
artista da cena53 atuante no chamado teatro de pesquisa e cansada de ouvir que a
função de produtoras/es seria a de “vender” espetáculos, dediquei-me a uma pesquisa
a partir de 2011 por meio de livros que me foram dados ou emprestados por
parceiras/os profissionais à época, sobretudo o ator Eduardo Okamoto e a diretora
Maria Thais54, da Cia Teatro Balagan.

Talvez seja importante dizer que essa primeira leitura foi feita de modo
bastante natural e orgânica. Eu não pensava, à época, em pesquisa. Mas fui pouco a
pouco sendo fisgada por uma história que me parecia muito instigante. Claro, refiro-me
aos aspectos criativos do percurso de Grotowski, mas também e sobretudo, aos
aspectos da produção e gestão de sua trajetória. Conforme fui ampliando a bibliografia
sobre o artista polonês e conhecendo melhor as especificidades de suas fases de
trabalho, interessar-me-ia especialmente pelo seu último periodo de pesquisa,
denominado “Arte como Veículo” (1986 – atual), principalmente pelo fato de se tratar
de um período sem a produção de espetáculos. Até aquele momento, tudo o que eu
sabia é que em meados dos anos 1980 Grotowski havia se transferido para uma
cidadezinha nada extraordinária na Região Toscana da Itália, chamada Pontedera. Ali,
um grupo de jovens italianos – artistas e produtores – havia criado um centro de
pesquisa permanente para o polonês, conhecido como Workcenter of Jerzy Grotowski
(desde 1996, Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards) – cujos trabalhos se
desenvolvem até hoje. Chamava-me especialmente a atenção o fato de que, a despeito
de não se produzir espetáculos – pelo menos na primeira fase deste empreendimento –
, existiram agentes envolvidos na produção e gestão do projeto.

Perguntava-me: quem teriam sido as/os agentes que teriam estado ao lado de
Grotowski ao longo de sua vida? Essas e esses que talvez não saibamos os nomes, mas
que teriam sido fundamentais para a construção da trajetória desse importante nome
do teatro. Como produtora, interessava-me especialmente pensar quem teriam sido
as/os agentes envolvidas/os no trabalho da produção e gestão desse percurso artístico.
Reconhecer e iluminar alguns dessas/es agentes tornou-se, assim, um primeiro objeto
de interesse.

53
Refiro-me ao ator Eduardo Okamoto, com quem atuo em colaboração permanente desde 2006.
Okamoto é Bacharel em Artes Cênicas (2001), Mestre (2004) e Doutor (2009) em Artes pela
Universidade Estadual de Campinas, onde leciona. Realizou estágio de pós-doutorado no Theatre and
Performance Department of Goldsmiths University of London (2019).
54
Maria Thais é pedagoga teatral, diretora e pesquisadora. Professora aposentada do Departamento de
Artes Cênicas da ECA/ USP — na área de atuação e direção — e do Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas (PPGAC) e diretora da Cia Teatro Balagan.

111
Anos mais tarde, em 2015, meu estudo se estruturou em pesquisa acadêmica
e resultou na Dissertação de Mestrado55 desenvolvida na Universidade Estadual de
Campinas com orientação da pesquisadora e Profa. Tatiana Motta Lima.

Já no âmbito da academia, durante nova expansão da bibliografia, chamaria-


me a atenção o fato do criador ter, ao longo de seu percurso, transitado por diferentes
etapas de trabalho, vivendo em países com realidades sociopolíticas tão contrastantes
e ter conseguido que seu trabalho fosse assegurado por diferentes modos de
subvenção, mantendo-se permanentemente em criação e subsidiado. No entanto, mais
do que constatar que o artista contou com diferentes subsídios durante todo o seu
percurso, o que mais me intrigava era perceber como ele transitou por situações tão
adversas conseguindo manter-se fiel aos seus propósitos artísticos. Neste sentido,
interessava-me verificar qual teria sido o papel que o artista desenvolveu diante dessas
transformações no que dizia respeito à produção, desenhando-se, assim, um segundo
ponto de interesse. Qual teria sido o nível de envolvimento ou influência do artista
frente à produção e gestão de sua trajetória? De que maneira ele pessoalmente agiu
frente as adversidades que enfrentou? Será que Grotowski teria atuado diretamente
nas ações concernentes à produção de seus trabalhos? Como, e por fim, mesmo sem
produzir espetáculos durante quase trinta anos, conseguiu manter-se como referência
no mundo teatral?

A relação de Grotowski com a produção e gestão de sua trajetória foi matéria


central do terceiro capítulo da dissertação e é especificamente sobre ele que iremos nos
deter agora. A íntegra da pesquisa será publicada em livro pela Editora Javali ao longo
de 2020. Vale atentar, ainda, que embora o estudo tenha eleito o período de criação do
Workcenter of Jerzy Grotowski como recorte cronológico central, a análise que veremos
a seguir buscou contemplar diversos perídos de atuação do criador, já que se refere
especificamente ao modo como o criador agiu diante da produção de seu percurso.

Procurando estar atenta aos processos de mitificação que atuam na


consagração de determinados artistas, procurei abordar diferentes episódios na vida do
criador polonês Jerzy Grotowski a fim de evidenciar aspectos, ignorados ou abrandados
em torno de sua historiografia, que revelam uma imagem mais complexa do criador no
que diz respeito ao seu envolvimento com o aspecto de produção e gestão de seu
próprio trabalho. Longe da figura do guru ou ermitão, apareceria um Grotowski
estrategista que, em diferentes países, ocasiões e circunstâncias encontrou
possibilidades para desenvolver suas pesquisas e dividí-las com outras e outros.

Tendo-se notabilizado como um dos principais encenadores teatrais do século


XX, Grotowski figura entre as personalidades convertidas em mitos, sobre as quais, via
de regra, muito se fala, mas pouco se sabe. A despeito do respeitável trabalho de

55
A pesquisa foi publicada como livro pela Editora Javali em março de 2020, integrando a programação
da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

112
várias/os pesquisadoras/es que investiram seriamente na análise de seu percurso
artístico, a exemplo do polonês Zbigniew Osinski56, da inglesa Jennifer Kumiega57 ou da
brasileira Tatiana Motta Lima58, pouco se discorreu sobre os mecanismos de
consolidação desse percurso, no sentido da estruturação da sua produção e das táticas
e estratégias assumidas — de forma consciente ou não — para a constituição de sua
obra. O interesse aqui foi iluminar determinadas passagens na vida do criador polonês
que nos ajudassem a entrever, ainda que parcialmente, os bastidores de sua trajetória,
contemplando alguns dos desafios e insucessos que determinaram os contornos de seu
percurso e as condições favoráveis e adversas que permitiram sua emergência. Assim,
esperamos contribuir para uma desromantização em torno de trajetórias artísticas
tomadas como referência e sobre as quais normalmente crê-se que as condições
materiais sempre estiveram asseguradas, salvaguardando essas/es criadoras/es de
enfrentarem percalços e desafios.

Convém dizer que ao se colocar em relevo os problemas e obstáculos da


trajetória do artista polonês, não se pretende com isso diminuir ou desqualificar a
relevância do criador e de seu legado. Ao contrário. O intuito é, antes, o de tentar
contribuir para uma imagem menos idealizada de Grotowski, demonstrando que artistas
consagradas/os e respeitáveis também encaram adversidades na constituição de seus
trajetos. Para tanto, buscou-se nas entrevistas realizadas em campo59 e nos relatos
bibliográficos de Barba60 (2006; 2017) e Flaszen61 (2015), principalmente, dados e

56
Nascido na Polônia em 1939, Osinski foi um teórico e historiador de teatro que acompanhou de
maneira constante o trabalho do Teatro Laboratório na Polônia. Foi também diretor do Centre of Studies
on Jerzy Grotowski’s Work and Cultural and Theatrical Research, localizado na antiga sede do Teatro
Laboratório, em Wroclaw. Autor de três livros e de inúmeros artigos sobre Grotowski. Faleceu em 1o de
janeiro de 2018 (MOTTA LIMA, 2012, p. 17).
57
Jennifer Kumiega é pesquisadora nascida na Inglaterra. Visitou a Polônia pela primeira vez em 1972
enquanto estudava na Manchester University. Trabalhou com o Teatro Laboratório entre 1975 e 1981. É
autora de The theatre of Jerzy Grotowski considerada uma das mais importantes análises sobre o
percurso do artista entre 1959 e o “Teatro das Fontes” (MOTTA LIMA, 2012, pp. XXXI e XXXV).
58
Tatiana Motta Lima é professora da UNIRIO, no Departamento de Interpretação e no Programa de
Pós-Graduação (PPGAC). Estuda, há mais de 20 anos, a obra de Grotowski. Escreveu o livro Palavras
Praticadas: o percurso de Jerzy Grotowski (Perspectiva, 2102), além de ter orientado diversas
dissertações e teses e escrito inúmeros artigos em revistas nacionais e internacionais sobre o tema.
59
Em setembro de 2016 viajei a Pontedera e pude entrevistar a tradutora e produtora Carla Pollastrelli e
os dois diretores do Workcenter, Mario Biagini e Thomas Richards. Em novembro do mesmo ano
entrevistei via Skype os dois gestores do instituto, Luca Dini e Roberto Bacci. Em 2017, também foram
entrevistados o diretor italiano Eugenio Barba e a dramaturga Renata Molinari, também oriunda da
Itália.
60
Diretor do Odin Teatret, fundado em Oslo, na Noruega, em 1964, e estabelecido em Holstebro, na
Dinamarca, desde 1966. Entre 1961 e 1964, Barba foi assistente de direção de Jerzy Grotowski,
acompanhando o desenvolvimento do método de trabalho do artista polonês em seu Teatro das 13
Fileiras, em Opole, na Polônia.
61
Ludwik Flaszen (1930) é crítico, escritor, diretor e pedagogo teatral polonês. Foi cofundador do Teatro
Laboratório, atuando como diretor literário até 1980, quando assumiu sua direção artística. Escreveu
inúmeros artigos, principalmente nos anos 1960, sobre as experiências que estavam em curso no Teatro
Laboratório, sendo responsável pelos textos que apareciam nos programas de espetáculos da

113
vestígios sobre como o artista agiu frente às inúmeras dificuldades que marcariam o seu
percurso, como dialogava com a produção de seus projetos e de que modo teria, no final
da vida, se comprometido com o que iria deixar para as novas gerações.

Ao travar contato com a bibliografia em torno do percurso de Grotowski,


referente ao período entre 1959 e 1999, as lentes que assumi foram, inevitavelmente,
as de uma produtora cultural. Parece-me natural que o interesse estivesse mormente
nas entrelinhas dos enunciados, em que se apontavam, vez ou outra, os modos “como”
a investigação se dava e os aportes materiais para que ela pudesse existir. À medida que
avançava na pesquisa bibliográfica e, mais tarde, com a justaposição das entrevistas
realizadas no campo, a imagem de um ermitão — frequentemente associada ao artista,
sobretudo em seus anos no Workcenter — foi perdendo cada vez mais sentido. Ao
buscar uma reconstrução cronológica do percurso de Grotowski, muitas perguntas me
inquietavam. Como o artista teria conseguido passar por fases de trabalho tão distintas
sempre conseguindo realizar suas pesquisas e, mesmo sem produzir espetáculos na
maior parte desse período, mantendo-se vivo também enquanto referência no mundo
cultural? Na fase dos espetáculos, como pôde ser financiado pelo Estado socialista na
Polônia dos anos 1950 e 1960 e, ainda assim, longe de promover um teatro de apoio ao
regime, ter, de certa maneira, enfrentado esse mesmo regime — e, por extensão, o
catolicismo polonês arraigado — com suas experimentações blasfêmicas? Como, ao
anunciar que não faria mais espetáculos, nas fases do “Parateatro” e do “Teatro das
Fontes”, conseguiu manter-se recluso sem, em nenhum momento, desconectar-se do
mundo exterior e ainda conseguido verbas para sua investigação? De que modo
manteve protegida a sua pesquisa no “Objective Drama Program”, quando exilado nos
Estados Unidos, em país de cultura tão diversa daquela do seu país de origem e que
representa ao máximo o modelo neoliberal, o consumo desenfreado e a cultura de
massa? Como negociou com mundos tão díspares, mantendo preservada a natureza
investigativa de sua pesquisa? Enfim, como transitou entre a pesquisa artística e a
produção ao longo dessa trajetória? A pesquisa já havia demonstrado que Grotowski
não delegou essa função e atuou em proximidade com a gestão e produção de seu
trabalho. Mas, como realizou essa tarefa?

Uma análise mais atenta da bibliografia em torno do legado artístico do artista


nos deixava pistas que colocavam em xeque a noção de eremita, muito embora seja
verdade que o criador se manteve relutante a qualquer tipo de contato com o mundo
exterior quando de sua chegada a Pontedera. Como pudemos ver, e tomando como
ponto de partida a sua última fase de trabalho, para além da natureza singular da
pesquisa empreendida em seu novo instituto de pesquisa, a qual exigia uma certa
reclusão, o estado de saúde agravado de Grotowski quando de sua chegada em
Pontedera – onde situa-se o Workcenter – em julho-agosto de 1986, teria influenciado

companhia. Vive há vários anos em Paris.

114
de forma significativa a projeção de sua imagem enquanto artista isolado. De acordo
com os entrevistados, Grotowski chegou com problemas de saúde na Itália e mostrava-
se realmente preocupado quanto ao seu tempo de vida. Por isso, sabia que era preciso
canalizar racionalmente a sua energia àquilo que considerava essencial. Dessa forma,
durante os primeiros anos na Itália, o artista se poupou de forma sistemática, não
participando de qualquer atividade nem travando qualquer contato que o distraísse de
seu propósito, garantindo que não somente o trabalho permanecesse protegido, como
ele, sendo pessoalmente preservado, pudesse ter tempo disponível e energia para
construir o que sabia ser a fase final de sua obra. Segundo Renata Molinari62 (2018), que
testemunhou a criação do Workcenter na Itália dos anos 1980, mesmo a comunidade
italiana não sabia exatamente o que era desenvolvido no interior do instituto. O
trabalho, lembra a dramaturga, era feito de forma absolutamente discreta, sem clamor.
O que se sabia é que havia pessoas trabalhando à procura de algo claramente precioso,
o que, a seus olhos, era como sementes lançadas ao solo.

Carla Pollastrelli e Roberto Bacci63 disseram que a chegada de Grotowski à


Província resultou numa explosão de convites e propostas que aportavam quase que
diariamente no Centro di Pontedera. Apesar disso, e como procedimento padrão e
previamente acordado com o artista, a resposta para todos os assédios era
impreterivelmente de recusa. No entanto, posteriormente a essa primeira posição, um
dos trabalhos cotidianos de Pollastrelli e Grotowski era justamente a análise
aprofundada de todos os convites, nos quais avaliavam pormenor e conjuntamente
“como” recusá-los. Isso porque, segundo Pollastrelli, Grotowski demonstrava especial
preocupação em não fechar portas, sobretudo, no período de conformação do seu
instituto, quando as parcerias ainda estavam sendo consolidadas.

Se recapitularmos os acontecimentos à época da abertura do instituto,


poderíamos nos perguntar se a crise que Grotowski enfrentaria quando esteve exilado
em solo estadunidense, explicada brevemente em seguida, não teria sido também uma
das causas dessa conduta aparentemente preventiva, assumida, então, como
procedimento no trabalho de produção e gestão. Como vimos na pesquisa, em meados
de 1985 e início de 1986, Grotowski idealizou junto a Carla Pollastrelli e Roberto Bacci
um programa pedagógico para um centro de pesquisa – o futuro Workcenter - a ser
desenvolvido em duas cidades: Pontedera e Irvine. O trabalho deveria ser desenvolvido
ao longo de dez meses, sendo cinco deles em cada uma dessas localidades. Para tanto,
a equipe idealizadora desenhou uma proposta de orçamento que deveria ser assumida
por diferentes financiadores oriundos dos dois países. Dado que, como consta na íntegra
deste estudo, Grotowski já contava com subsídios advindos da Universidade da

62
Escritora, dramaturga e professora universitária de reconhecimento internacional que acompanhou o
trabalho de Jerzy Grotowski a partir da fase parateatral.
63
Tradutora e produtora italiana e diretor e gestor italiano, Carla Pollastrelli e Roberto Bacci,
respectivamente, foram dois dos três agentes responsáveis pela idealização, produção e gestão junto à
Grotowski de seu Workcenter na Itália.

115
Califórnia, de Irvine, para as suas pesquisas no “Objective Drama Program”, o plano era
que Irvine mantivesse o apoio econômico na etapa estadunidense do projeto. No
entanto, diante da exigência da instituição para que fossem previstas aberturas públicas
do trabalho e frente à recusa de Grotowski ao pedido, a universidade decide sair do
projeto dois meses depois de seu início. É nesse delicado contexto que Grotowski decide
contactar a Fundação Rockefeller64 para negociar o redirecionamento do aporte que já
recebia da instituição ao novo projeto na Itália, uma vez que a instituição podia investir
recursos em projetos fora do território estadunidense. Aqui o que nos interessa destacar
é que embora Grotowski contasse com parceiros habilitados para o trabalho de relações
institucionais, é o artista quem decide ir à Rockefeller. A decisão não teria sido forçada,
mas fruto de uma decisão política e deliberada do próprio Grotowski, que demonstrava
clareza e pleno domínio no uso do seu capital simbólico em favor de seus interesses,
não demonstrando qualquer pudor — sendo ele um artista — em empreender, se
preciso fosse, uma negociação sobre o aspecto econômico do seu trabalho. E a noção
de capital simbólico que reconhecemos aqui, vale dizer, é análoga àquela defendida pelo
filósofo francês Pierre Bourdieu, enquanto capital de reconhecimento ou consagração
acumulado no decorrer de lutas anteriores, ao preço de um trabalho e de estratégias
específicas (BOURDIEU, 1990, p. 170).

Isso parece digno de reflexão. Ao se ressaltar que foi o próprio criador quem
decidiu assumir as tratativas daquela crise, envolvendo aí a negociação de rubricas
orçamentárias, tem-se problematizada a ideia de artista imaculado, ocupado
unicamente com o processo artístico e que, portanto, não quer e não pode se envolver
com dinheiro — sob o risco de, entre outras coisas, sua obra não ser reconhecida como
pura. Como se uma/um artista não fosse uma/um profissional que, como outra/o,
depende tanto da remuneração de seu trabalho para viver quanto de financiamentos
para realizá-lo. Como se a lida com o dinheiro de alguma forma “sujasse” a sua imagem
e a de sua obra. Sabendo que negociações econômicas normalmente aterrorizam
algumas/alguns artistas, sendo, sempre que possível, delegadas ou evitadas
sistematicamente, nos perguntamos: até que ponto a atitude de Grotowski não
demonstra que o problema não está em se relacionar com o dinheiro, mas em “como”
se relacionar? Não seria mais inteligente e mesmo sensato reconhecer a dimensão
econômica do ofício para, inclusive, estabelecer com segurança os limites justos de uma
negociação?

Na minha percepção, quando Grotowski vai pessoalmente negociar o


financiamento do seu projeto com uma instituição, ele o faz porque reconhece as
dimensões social, cultural, política e econômica da proposta. Por essa razão, não tem

64
A Fundação Rockefeller é uma associação beneficente e não governamental criada em 1913 nos
Estados Unidos da América. Define sua missão como sendo a de promover o estímulo à saúde pública,
ao ensino, à pesquisa e à filantropia.

116
pudores em abordar a questão orçamentária, porque claramente é apenas um aspecto
do projeto. O que está envolvido nisso é justamente o encontro com maneiras de
realização, com estratégias que possam viabilizar o seu projeto artístico. O aspecto
econômico, pois, materializa a proposta, confere ao financiador a capacidade de
reconhecer a sua realização, além de, objetivamente, informar quanto ele precisará
investir. Grotowski não aborda a instituição propondo exclusivamente um aporte
financeiro para o seu projeto, ele propõe uma parceria. Para tanto, se vale dos valores
simbólicos da iniciativa para sensibilizar — e por que não dizer seduzir — o seu
interlocutor. É um estrategista.

Nessa conjuntura, a perspectiva aqui é a de que o artista e a sua obra não se


tornam “menos limpos” ou “menos puros” ao tocarem no aspecto financeiro. Até
porque essas noções parecem bastante questionáveis. O que seria “limpo” e “puro” no
sistema capitalista? E mesmo no sistema socialista com o qual Grotowski conviveu
durante todo o início de seu trabalho? Como artistas, ou quaisquer profissionais, podem
viver de seu trabalho — e, mais importante, realizá-lo — senão passando também pela
via financeira? Creio que é preciso cautela na reiteração desses rótulos de limpeza e
purismo, sob o risco de exigirmos de artistas um discurso que pode significar a
inexistência de sua obra.

A meu ver, a capacidade de perceber o valor do próprio trabalho, empreender


todos os esforços pela existência e saber aquilo que não pode ser negociado já é em si
um processo importantíssimo de emancipação que tira as/os artistas do lugar de
vulnerabilidade frente às negociações desta natureza.

Mas, para além disso, Grotowski parece ser um amplo conhecedor dos códigos
sociais. Neste sentido, Flaszen (2015) e Biagini (2016) corroboram essa impressão, ao
afirmarem que Grotowski era realmente interessado nas pessoas, sendo capaz de
destinar horas observando-as silenciosamente, enquanto radiografava os seus modos
de pensar, falar e andar. Era, segundo Flaszen, o seu trabalho de campo favorito, por
meio do qual recolhia o precioso material que lhe daria suporte para encarar
posteriormente seus interlocutores, fossem eles políticos, censores, público, críticos ou
financiadores. Quando em diálogo com alguém, seu principal exercício residia em ouvir
a/o interlocutora/or com todo o corpo, de forma a se conectar inteiramente com ela ou
ele. Ainda segundo o crítico literário, Grotowski era capaz de jogar com as emoções do
ouvinte como o faz um excelente ator, conduzindo-o facilmente do riso à seriedade
(FLASZEN, 2015, p. 234). Talvez, por essa razão, Flaszen ateste sem embaraço que, ao
longo da vida, Grotowski teria se empenhado na “produção” de muitos Grotowsks
(FLASZEN, 2015, p. 286). Ora para o mundo, ora para o seu próprio uso.

Essa capacidade de transmutação do artista se refletiria também na produção


das suas palavras escritas. Assim, por exemplo, Flaszen (2015, p. 78) conta que os textos
do Teatro Laboratório deveriam ser escritos de tal forma a contemplar, numa única

117
versão, todos os distintos públicos que almejava: às/aos chamadas/os espectadoras/es
comuns, às/aos críticas/os, às/aos formadoras/es de opinião, às/aos profissionais do
teatro e também às autoridades locais. Tratava-se, portanto, de encontrar o equilíbrio
justo para informar, atrair e proteger o trabalho. Embora as habilidades de Grotowski
enquanto negociador se façam notar em diferentes momentos da sua trajetória, é
interessante perceber como o regime político da Polônia dos anos 1950 e 1960 parece
ter sido, por um lado, uma importante escola para o artista. A pressão do ambiente
externo, o fato de ser subvencionado pelo Estado — autoritário — e a necessidade de
manter a salvo a sua firma — como ele denominava o Teatro das 13 Fileiras65 — parece
ter gerado no artista a necessidade de se metamorfosear em muitos, sob o risco de ter
seu trabalho interrompido. Como relata Barba (2006), naquela época, na Polônia, havia
uma forte censura a todos os tipos de expressão. Um teatro recebia a autorização do
texto que queria apresentar e depois, um pouco antes da estreia, a censura verificava
se no espetáculo havia aspectos que poderiam desagradar o regime político. O ambiente
habitual era de apreensão. Nos momentos mais tensos, segundo Flaszen, Grotowski,
desconfiando que os telefones podiam estar grampeados, realizava suas conversas em
código. Era preciso, pois, circular entre diferentes tipos de pessoas e instituições. Daí
que Grotowski precisou inventar diferentes tipos de personas para transitar por esses
ambientes, de forma a manter resguardados a empresa, as pessoas, o Teatro
Laboratório e as investigações que ali se realizavam.

Uma das táticas de sobrevivência adotadas por Grotowski, segundo as/os


entrevistadas/os e de acordo com a bibliografia contemplada nesta pesquisa, era
manter-se permanentemente informado. Biagini e Bacci afirmam que Grotowski era um
leitor voraz de jornais. Em Pontedera, ele lia diariamente e inteiramente dois jornais.
Quando da criação de seu instituto de pesquisa, Pollastrelli afirma que Grotowski,
mesmo silencioso, acompanhava de perto as notícias internacionais, mantendo-se
vigilante quanto aos impactos do neoliberalismo no mundo. Ao falar sobre a fase dos
espetáculos, Flaszen relembra que Grotowski dedicava-se com regularidade ao estudo
de charadas de ações políticas e livros de táticas de guerra. O criador sabia que a sua
condição como artista em um regime totalitário lhe exigia vigilância permanente. Era
preciso reconhecer como os detentores de poder pensavam e agiam para defender-se
sem, no entanto, revelar-se. Mesmo em estado de guerra, o enfrentamento só poderia
ser velado. Grotowski era um combatente.

Diante das pressões externas, o diretor fazia o que fosse preciso para manter
as autoridades distantes do seu Teatro Laboratório, sendo capaz, como lembram
Slowiak e Cuesta (2013, p. 40), por exemplo, de cantar canções natalinas polonesas
junto a um censor por uma noite inteira, ou de compartilhar uma garrafa de vodka com

65
Essa denominação está presente em vários textos de Grotowski e aparece também como “empresa” e
“Pleroma”. Especificamente aqui, refiro-me à nota de rodapé à página 79 do livro de Flaszen, Grotowski
& companhia: origens e legado, de 2015.

118
um oficial da imigração ao ser detido no aeroporto de Miami. Barba (2006, p. 38) relata
que, à época de seu estágio junto ao Teatro Laboratório, Grotowski falava em
“movimentos estratégicos para defender o 'essencial’”. Como aconteceu no inverno do
início dos anos 1960, quando Grotowski deu férias para a companhia inteira a fim de
despistar as autoridades que ameaçavam fechar o teatro, uma vez que na Polônia, à
época, ninguém podia ser demitido quando em férias. Em outro momento, diante da
real ameaça de fechamento do Teatro Laboratório, Grotowski teria criado dentro da
própria sede do grupo uma célula do Partido Comunista, de forma que não seria fácil
justificar seu fechamento (BARBA, 2006). Nesse sentido, Barba rememora que
Grotowski teria criado um diário em que se registravam as supostas discussões da
companhia nas “tais” reuniões do partido comunista. Mas o fato é que essas reuniões
não aconteciam. Tudo não passava de uma estratégia. Uma estratégia de sobrevivência.
Outro exemplo remete ao momento em que o Teatro das 13 Fileiras mudou seu nome
para Teatro Laboratório. De acordo com o diretor italiano (2006, p. 38-39), em janeiro
de 1962 o Ministério da Cultura polonês enviou a todos os teatros subvencionados um
formulário no qual, entre outras coisas, deveriam indicar o gênero teatral praticado. Na
ausência de uma opção realmente válida, Grotowski teria indicado a última
denominação: “Laboratório”. Ao fazê-lo, o encenador polonês ao mesmo tempo
legitimava a longa duração dos seus processos criativos e justificava o número reduzido
de espectadores. E não menos estratégico, o novo nome fazia referência à experiência
dos Laboratórios de Stanislavski, que, não bastasse a ascendência russa, era tido como
artista modelo para o bloco socialista, de forma que não pareceria razoável ao regime
fechar um teatro cujos “princípios ideológicos” supostamente se afinavam com os do
sistema.

Como vemos, a habilidade de estrategista de Grotowski teria sido motivada


principalmente por razões práticas e políticas. Mas, segundo Flaszen, ele também o fazia
por diversão. Nesta direção, Barba (2006, p. 38) relata que o artista era capaz de
detalhar previamente como poderia se comportar diante de uma abordagem da
censura, quais seriam as prováveis e diferentes reações que teria, com quem e até que
ponto poderia apelar para o patriotismo polonês para parecer “ideologicamente
incorreto”, de modo a não criar problemas com os russos. Ele mesmo relata um
acontecimento em que testemunharia as habilidades de Grotowski em transmutar-se
rapidamente. Certa vez, voltando de carona para Opole, vindos de uma cidade próxima,
os dois jovens, como que se divertindo, caminhavam pela estrada enquanto levantavam
o braço para todos os carros que apareciam. Num determinado momento, tendo um
veículo estacionado e seu condutor colocado o rosto para fora, ambos reconheceram
que se tratava do secretário do Partido Comunista de Opole. Ato contínuo, Grotowski
teria rapidamente assumido uma feição séria e inventado que: “Infelizmente perdemos
o trem”. Não o bastante, ainda voltaria de carona com o censor até Opole, cujo carro só
tinha espaço para um carona. Grotowski parece ter se valido dessa habilidade,
conscientemente cultivada, de “metamorfosear-se” como instrumento de negociação

119
com o mundo, atuando sempre de forma tática. Luca Dini66, em entrevista cedida em
novembro de 2016, dizia que todas as ações de Grotowski eram políticas, que para o
artista era tudo muito simples: “Vamos fazer X para chegar a Z”. Cada passo, cada ação,
toda conduta eram estratégicos. Em consonância, Flaszen discorre sobre a preocupação
do artista até mesmo nos cuidados com sua imagem pessoal. Neste escopo, um dos
cuidados de Grotowski passou pelo seu modo de se vestir. Flaszen relembra que antes
do Teatro Laboratório o jovem diretor podia ser visto sempre com calças surradas azul-
marinho, uma camisa parcialmente desbotada, gravata precariamente atada, com
meias disformes e sandálias marrons. Visto desse modo, Grotowski parecia a Flaszen —
que já era um crítico literário renomado na época — um sujeito totalmente desprovido
de qualquer elegância. No entanto, quando Grotowski aceitou o convite para ser o
diretor artístico do teatro de Opole, teria imediatamente entendido que era preciso
mudar a “roupagem”, pedindo ajuda à esposa de Flaszen para a compra de novas
roupas.

A mudança nas vestimentas se repetiria algumas vezes durante a vida do


artista. No auge de seu sucesso enquanto diretor do Teatro Laboratório, no final da
década de 1960, Grotowski passou a vestir ternos elegantes, adornando-se com gravata
e chapéu com aba enfeitada, usando óculos, meias pretas e sapatos pretos pontudos.
Era preciso parecer mais sério, menos juvenil e com alguma autoridade. Grotowski
trabalhava na consolidação de uma autoimagem, a qual, segundo Flaszen, teria sido
conscientemente elaborada, modernizada e produzida até o último detalhe por
Waldemar Krygier, artista e diretor conhecido também como figurinista (FLASZEN, 2015,
p. 301). A preocupação de Grotowski com os cuidados da aparência revela, antes, a
percepção e habilidade do artista em se relacionar com o mundo concreto, em usar a
seu favor os códigos sociais que lhe permitiriam transitar por diferentes mundos e
garantir o livre acesso de sua obra pelos mais diversos ambientes. Assim, o artista
polonês parecia disposto a jogar de acordo com as regras instituídas para preservar e
continuar desenvolvendo o seu projeto artístico. O modo de se vestir era mais uma
estratégia — no sentido que postulou Bourdieu (1990, p. 81), enquanto produto do
senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular — adotada pelo artista
para preservar o seu trabalho. Nesta perspectiva, o bom jogador, para o filósofo francês,
é aquele que faz a todo instante o que deve ser feito, de acordo com o que o jogo
demanda e exige. Tal disposição supõe uma invenção permanente, indispensável para
se adaptar às situações indefinidamente variadas e nunca perfeitamente idênticas.
Grotowski se apropriou das regras sem, no entanto, se submeter a elas.

De certo, essa capacidade de transitar por e dialogar com diferentes mundos


ajudou Grotowski em distintas situações. Flaszen (2015, p. 245) lembra que o artista
julgava importante estabelecer relações, sobretudo com quem tinha poder de decisão

66
Ator e gestor italiano, terceiro agente responsável pela co-gestão do Workcenter of Jerzy Grotowski
junto ao criador polonês, Carla Pollastrelli e Roberto Bacci.

120
sobre os meios necessários para realizar o que ele considerava sua vocação e realização.
Sabendo da influência da imprensa, por exemplo, Flaszen descreve um procedimento
padrão nos primeiros anos do Teatro Laboratório, em que Grotowski conversava nos
bastidores com os críticos após as sessões dos espetáculos a fim de explicar-lhes o que
tinham acabado de assistir. Isso porque, se o resultado fosse o de críticas desfavoráveis
publicadas nos jornais locais, o futuro da companhia, pelo menos em Opole, estaria em
jogo. Não satisfeito, também organizava encontros periódicos com o público, com o
mesmo fim (FLASZEN, 2015, p. 77). E aqui é interessante perceber que Grotowski de
algum modo sabia que sua obra era pouco compreendida. No entanto, no lugar da
indiferença ou do ressentimento, punha-se a falar diretamente com aquelas/es que lhes
despertasse interesse, fossem críticas/os ou público. E, obviamente, de formas distintas.
Era um diplomata.

Devemos lembrar também que Grotowski não abandonou o vínculo com a


Universidade da Califórnia, em Irvine, quando conseguiu o aporte da Rockefeller para o
seu instituto de pesquisa permanente na Itália. Neste sentido, Carla Pollastrelli lembra
que, para além do artista cuidar das boas relações com a Universidade ainda por muitos
anos, havia pessoas que eram muito caras a ele: Grotowski não queria perder o contato
com as amizades e parcerias que fizera durante a sua estada nos EUA. Em sintonia com
essa informação, Lisa Wolford (1997, p. 292) atesta que a despeito de se considerar o
período oficial do “Objective Drama Program”, entre 1983 e 1986, o trabalho teria se
prolongado por pelo menos seis anos depois da transferência de Grotowski para a Itália
— ou seja, mais do que os três anos firmados no acordo com Irvine, conforme a pesquisa
nos mostrou. Segundo Wolford, logo em 1987, ele teria realizado sessões de duas
semanas de trabalho em Irvine, onde interagiu principalmente com atores e diretores
da Master of Fine Arts Program da Universidade, acompanhado de três assistentes,
James Slowiak, Maud Robart e Pablo Jimenez. Em 1989, voltaria novamente à Califórnia
para dirigir mais um intensivo de duas semanas liderado por James Slowiak. Apesar do
trabalho ter ganho novas conformações a partir de 1986, Lisa Wolford afirma que o
nome “Objective Drama Program” se manteve para fins de financiamento. Por essa
razão, em 1992, quando foram realizadas as últimas sessões do trabalho em Irvine,
conduzidas por Slowiak e Cuesta, Grotowski anunciou que, a despeito dos trabalhos
terem continuado depois de sua transferência para a Itália e contado com sua presença
espaçada, o período oficial do “Objective Drama Program” que deveria ser considerado
pelas/os pesquisadoras/es de sua trajetória era aquele entre 1983 e 1986. Ao mesmo
tempo em que “escrevia” sua própria história, Grotowski encerrava com civilidade a
parceria de quase dez anos com a Universidade da Califórnia, em Irvine.

Como se pode notar, Grotowski não reduzia suas parcerias a objetivos e


resultados imediatos: teve amigas/os, artistas ou não, que se manteriam como
parceiras/os quase permanentes de seu trabalho. O cuidado na deliberação dos convites
recebidos quando de sua chegada na Itália pode ser lido tanto como uma atitude de
prudência — de quem viu seu projeto recentemente ameaçado — mas também de
121
alguém que sabia da importância das relações no campo da cultura, cuja única
constância parece ser a própria instabilidade. Daí a possível razão para a história dos
primeiros anos do Workcenter ser marcada por inúmeras parcerias estabelecidas nos
mais variados formatos. Porque sendo um projeto incomum, foi preciso descobrir quem
poderia de fato ser parceira/o e segundo as diferentes formas de apoio. Por isso, entre
as/os primeiras/os apoiadoras/es do instituto constavam, em sua maioria, pessoas
físicas que conheciam o trabalho de Grotowski e instituições do setor cultural ou
acadêmico — como universidades, ministérios da Cultura, consulados, embaixadas,
agências fomentadoras, centros artísticos de referência, teatros particulares, etc. — nas
quais a pesquisa, a investigação e a inovação eram compatíveis com suas naturezas
jurídicas.

Para além disso, os episódios e relatos aqui reunidos mostram um artista


inteiramente envolvido com sua obra que não se abstém dos assuntos concernentes à
produção e gestão do seu projeto artístico. Como afirmaram todas/os as/os
entrevistadas/os de Pontedera — Bacci, Biagini, Dini, Pollastrelli e Richards —, isso
parecia algo bastante natural para Grotowski, já que o artista não entendia a produção
como elemento apartado da criação, mas parte intrínseca do processo criativo. Mesmo
se dedicando com prioridade à pesquisa artística, Grotowski manteve-se pessoalmente
vigilante aos aspectos administrativos e integralmente envolvido nas decisões do seu
Centro di Lavoro/Workcenter. Carla Pollastrelli e Bacci afirmam que tudo passava
impreterivelmente pelo artista, desde as decisões mais ordinárias, ligadas ao dia a dia
do instituto, até as mais complexas, como a participação em eventos ou a publicação de
textos relacionados à pesquisa. Nenhuma resolução era empenhada sem sua aprovação.

Quando nos lembramos de que Grotowski, ao chegar à Itália e estando


gravemente doente, declarou que se dedicaria apenas ao essencial, é interessante
perceber como a produção realmente está integrada ao seu discurso. Ao reconhecer
que era preciso usar com prudência a sua pouca energia, Grotowski se referia não
somente à pesquisa artística, mas também às formas de viabilização do trabalho, que
passava, inevitavelmente, pelas condições materiais necessárias. Nem mesmo diante do
seu estado de saúde, e ainda com a equipe que tinha à disposição, o artista se
desconectou dos aspectos administrativos do seu instituto. Para tanto e de acordo com
os entrevistados de Pontedera, Grotowski dedicava pelo menos três noites da semana
a encontros sistemáticos com Pollastrelli, nos quais se propunha a avaliar propostas,
estabelecer objetivos, desenhar estratégias, mapear os possíveis parceiros, amadurecer
as formas de interlocução da pesquisa.

De qualquer modo, foi curioso perceber a reação dos entrevistados quando da


minha pergunta sobre o trânsito de Grotowski pelo âmbito artístico e a produção. Como
me faria notar mais tarde, essa divisão não parece fazer sentido para elas/es, para quem
também a produção é parte constitutiva da criação. Essa sensação se repetiu em minhas

122
conversas informais com as/os atuantes mais antigos dos dois times67 do Workcenter.
Durante o mês de estadia em Pontedera, tive a oportunidade de participar de um
encontro com as/os atuantes dos dois times e que, segundo me informaram, é algo que
acontece com raridade. Foi justamente nessa ocasião que pude conversar com
representantes dos dois grupos e confirmou-se que todas e todos, sem exceção,
dedicam de duas a quatro horas de trabalho diários à produção. Ainda que nem todas
as pessoas ali se mostrarem contentes com isso — lembremos que são muitas as
nacionalidades das/os participantes, tão diversas quanto suas referências de modos de
produção —, pareciam ter clareza de que eram elas e eles, as/os atuantes e os dois
diretores — Richards e Biagini —, os responsáveis por viabilizar a circulação dos seus
projetos.

De volta ao Brasil, e tendo encontrado o ator Luciano Mendes de Jesus68, ex-


atuante do “Open Program” que hoje vive em São Paulo, ouvi que esse teria sido para
ele um dos maiores aprendizados durante sua experiência no Workcenter. Dado que nas
suas experiências anteriores a produção esteve sempre apartada da criação, esse ator
me dizia que ao entrar em contato com as práticas do Workcenter, nas quais a produção
está presente no seu cotidiano, teria entendido que assumir para si essa tarefa tornavam
mais concretas as chances de viabilização de seus projetos. O fato de não mais se sentir
dependente de alguém lhe dava o impulso e a autonomia de que precisava para gerir
sua trajetória, tornando-o comandante da sua nau. Ainda que esse artista possa um dia
contar com uma produtora ou produtor na sua equipe, nos parece que há grandes
chances dessa pessoa ocupar, já no início da relação, o lugar de parceiro criativo. O que,
certamente, seria bastante proeminente.

Sendo assim, e ao travar contato com os diferentes momentos da historiografia


de Grotowski, é possível perceber que o artista soube negociar com o Estado socialista
e com o Estado liberal, com o público e a imprensa, com seus parceiros de firma e os
censores, sem abrir mão da radicalidade de sua investigação, sem comprometer a sua
pesquisa. E, o mais instigante, não o fez refutando o Estado ou o mercado, apesar das
críticas que tinha sobre ambos. O fez desenvolvendo estratégias de relação com os
poderes estabelecidos. E isso sem pudores ou moralismos. Grotowski fez tudo o que
julgou preciso para manter a salvo o essencial. Conseguiu negociar, criar interlocução e
se beneficiar de apoios nas situações as mais adversas. Soube sobreviver. Não somente
escapou da morte física por muitos anos — era acometido da leucemia, doença

67
Refiro-me aos dois times que integram atualmente o Workcenter, o “Focused Research Team in Art as
Vehicle”, dirigido por Thomas Richards, e o “Open Program”, dirigido por Mario Biagini.
68
Luciano Mendes de Jesus é ator, diretor, músico, professor e pesquisador. Graduado em
Interpretação Teatral (IA-UNICAMP) e mestre em música (ECA-USP). Integrou a equipe do Open
Program do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards entre 2012 e 2015. Quando da escrita
desta pes- quisa, desenvolvia doutorado em Artes Cênicas na ECA-USP, investigando elementos de
africanidades em cenas contemporâneas. Desenvolve, ainda, criações, pedagogias e pesquisas em torno
das relações entre som/cena e tradição/contemporaneidade no teatro e na dança.

123
progressiva que indicava uma morte precoce, ocorrida em 14 de janeiro de 1999, aos 65
anos, em sua casa em Pontedera — como da morte artística. Tanto na Polônia, onde
opunha-se ao regime e à Igreja, quanto nos EUA, onde poderia ter ficado milionário
vendendo um “método Grotowski”. Foi um diplomata e um hábil estrategista. E na
mesma medida que se notabilizou como um grande artista, para nós, Grotowski foi
igualmente um grande produtor. Como nos disse Renata Molinari (2018), se Grotowski
foi um ermitão, o foi como um ativista da ação, no sentido de não se deixar adaptar ao
espírito deste mundo.

Referências

BACCI, Roberto. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.

BARBA, Eugenio. A terra de cinzas e diamantes: minha aprendizagem na Polônia.


Seguido de 26 cartas de Jerzy Grotowski a Eugenio Barba. São Paulo: Perspectiva, 2006.

__________. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da


pesquisadora, 2017.

__________. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da


pesquisadora, 2016.

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.

DINI, Luca. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.

FLASZEN, Ludwik. Grotowski & companhia: origens e legado. São Paulo: É Realizações,
2015.

MOLINARI, Renata. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2018.

MOTTA LIMA, Tatiana. Palavras praticadas: o percurso artístico de Jerzy Grotowski,


1959-1974. São Paulo: Perspectiva, 2012.

POLLASTRELLI, Carla. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.

RICHARDS, Thomas. Entrevista feita por Daniele Sampaio. Não publicada. Arquivo da
pesquisadora, 2016.

SAMPAIO, Daniele. Agentes invisíveis e modos de produção nos primeiros anos do


Workcenter of Jerzy Grotowski. Belo Horizonte: Editora Javali, 2020.

124
SCHECHNER, Richard; WOLFORD, Lisa (orgs). The Grotowski sourcebook.
Londres/Nova York: Routledge, 1997.

SLOWIAK, James; CUESTA, Jairo. Jerzy Grotowski. São Paulo: É Realizações, 2013.

125
DUARTE, Priscilla. O amor possível ou em busca do aroma na maturidade artística. Belo
Horizonte: EBA/UFMG. Doutorado. Orientador: Fernando Mencarelli. Bolsa
FAPEMIG/PDSE Capes. Atriz do Teatro Diadokai, professora na UFOP, pesquisadora.

RESUMO: Este artigo apresenta reflexões sobre o processo de trabalho da autora como
atriz criadora do espetáculo solo O amor possível – que se encontra em elaboração, em
colaboração artística com François Kahn –, traçando uma análise comparativa entre os
métodos de trabalho com o texto teatral desenvolvidos pelo Teatro Tascabile di
Bergamo e por François Kahn. O artigo destaca ainda as qualidades do silêncio e do
sentimento no trabalho do ator como “aromas do tempo” (de acordo com Byug-Chul
Han), nas questões que emergem da “maturidade artística” (segundo Konstantin
Stanislávski). Pretende-se assim contribuir para a discussão sobre diferentes abordagens
do texto teatral, no que diz respeito à sua forma e sentido, no âmbito da montagem de
um espetáculo solo a partir de um texto literário.

PALAVRAS-CHAVE: maturidade artística; aroma do tempo; texto teatral; memória;


espetáculo solo.

ABSTRACT: This article presents reflections on the work process of the author as a
creative actress in the solo performance The Possible Love – which is under elaboration,
in artistic collaboration with François Kahn –, outlining a comparative analysis between
the methods developed by Teatro Tascabile di Bergamo and by Kahn of working with
the theatrical text. The article also highlights the qualities of silence and feeling in the
actor's work as “scents of time” (according to Byug-Chul Han), in the issues that emerge
from “artistic maturity” (according to Konstantin Stanislavski). It is thus intended to
contribute to the discussion around the different approaches to the theatrical text,
regarding its form and meaning, in the context of assembling a solo performance based
on a literary text.

KEYWORDS: artistic maturity; scent of time; theatrical text; memory; solo performance.

Você precisa ter uma conexão entre a cabeça e o corpo.


Nenhum deles deveria ser mais forte do que o outro.
Eles devem ter força igual. Então, o sentimento surgirá.
Madame de Salzmann

O espetáculo solo O amor possível – adaptação teatral a partir do romance A


Caverna, de José Saramago (2000) –, no qual atuo como atriz e diretora, vem sendo
elaborado com a colaboração artística do ator e diretor francês François Kahn. O projeto
de montagem desse solo teve origem na minha tese de doutorado Maturidade artística:

126
ofício e cultivo de si (DUARTE, 2019), na qual a trajetória de François Kahn foi um dos
temas69. Pretendo compartilhar aqui algumas reflexões surgidas no processo de criação
do espetáculo, desde sua origem até seu estado atual.

Minha parceria com François Kahn na criação de O amor possível é fruto de uma
relação que vem se desenvolvendo desde os anos 1990. Nosso primeiro encontro deu-
se no Rio de Janeiro, em 1996, quando fui sua aluna na oficina Crianças da rua principal.
Desde então, seguiram-se outros encontros entre Brasil e Itália70, nos quais pude assistir
ensaios e apresentações de seus espetáculos, participar de suas oficinas, além de ser
uma das organizadoras de suas turnês ao Brasil (a partir de 2017) e de acompanhar os
ensaios de seus espetáculos em português. Traduzi para o português diversos textos de
divulgação dos espetáculos de Kahn, além de um artigo seu, bem como seu livro71.
Destaco também minha contribuição na organização de todas as edições do laboratório
Caminhos do Silêncio72 conduzido por Kahn: em 2017 e 2018 (em Ravena, MG) e 2019
(em Entre Rios de Minas, MG), em que fui também uma das participantes.

Em janeiro de 2017, eu e François Kahn iniciamos em Belo Horizonte (MG) os


trabalhos sobre A Caverna, de Saramago. A experimentação cênica era parte integrante
da minha tese de doutorado. Em julho de 2017, nos encontramos de novo em Bergamo73
(Itália) para mais uma etapa dessa experimentação que teve como título provisório La
Brocca (O Cântaro). No Brasil, a cada estadia de Kahn para o laboratório Caminhos do
Silêncio, reservamos alguns dias para trabalharmos sobre o meu experimento cênico.

69
A tese foi defendida em abril de 2019, no PPGArtes da EBA/UFMG, tendo como orientador o Prof.
Fernando Mencarelli e co-orientadora a Profa. Tatiana Motta Lima. Além de François Kahn, foram tema
da tese as trajetórias artísticas de Iben Nagel Rasmussen (atriz do Odin Teatret, da Dinamarca), Luigia
Calcaterra e Beppe Chierichetti (atriz e ator, respectivamente, do Teatro Tascabile di Bergamo, da Itália).
70
No fim dos anos 1990, eu morava em Bergamo, trabalhando como atriz do Teatro Tascabile di
Bergamo, e François Kahn morava em Cremona, onde se dedicava ao projeto TEATROdaCAMERA.
71
Trata-se do artigo A prática do silêncio na trabalho teatral e parateatral, no Dossiê Artes da cena e
práticas contemplativas da Revista da Pós, EBA/UFMG, abril, 2018, e do livro O Jardim: relatos e
reflexões sobre o trabalho parateatral de Jerzy Grotowski de 1973 a 1985, publicado pela editora É
Realizações, em 2019. O livro foi lançado com presença do autor e da tradutora durante o Seminário
Internacional Grotowski 2019: uma cultura ativa, no Rio de Janeiro.
72
Os laboratórios Caminhos do Silêncio são uma iniciativa do grupo de pesquisa CNPq CRIA - Artes e
Transdisciplinaridade, que é coordenado pelos professores Fernando Mencarelli e Monica Medeiros
Ribeiro. Participam também da organização dos laboratórios os professores Ricardo Gomes (UFOP),
Tatiana Motta Lima (UNIRIO) e Mauro Rodrigues (UFMG) além de Rodrigo Campos.
73
A estadia em Bergamo (Itália) fez parte da viagem de estudos de doutorado-sanduíche realizada com
Bolsa PDSE da Capes. O processo de ensaios ocorreu em caráter de residência artística, dentro da
mostra Arcate d’Arte, promovida pelo Teatro Tascabile di Bergamo, e teve duas apresentações públicas,
em português, sob o título provisório de La Brocca (O Cântaro). Nessa mesma ocasião, organizei e assisti
os ensaios e a apresentação do espetáculo solo Viaggio a Izu (Viagem a Izú) de Kahn apresentado na
mesma mostra, em Bergamo.

127
Apresentei seus resultados em diversos eventos acadêmicos74 e, aos poucos, ele foi
ganhando autonomia em relação à pesquisa doutoral e transformando-se no projeto de
encenação do espetáculo solo O amor possível, a ser apresentado, em âmbito artístico,
em um futuro próximo.

Os aromas da maturidade artística

Em nosso percurso de experiências compartilhadas, observo uma identificação


entre minhas inquietações e a trajetória desenvolvida por François Kahn. Tais
inquietações relacionam-se à maturidade artística: fase da carreira de um artista na qual
diversos fatores convidam à reavaliação das experiências, ao refinamento de escolhas e
ao cultivo de valores realmente importantes para seguir trabalhando de forma
comprometida, como artesão, como artífice. A noção de maturidade artística inspira-se
diretamente em Stanislávski e não necessariamente coincide com maturidade etária. É
possível amadurecer artisticamente na juventude, assim como é possível envelhecer
sem ter amadurecido artisticamente. No caso de Stanislávski, a maturidade artística
parece ter chegado aos sessenta anos de idade, no momento em que ele escreve Minha
Vida na Arte75 – sua auto-biografia e o primeiro de seus livros –, em 1923. Sua carreira
de ator estava praticamente encerrada, porém suas pesquisas ganharam novo impulso
e seriam interrompidas apenas com sua morte, em 1938. A escritura de seus livros e a
coordenação de pesquisas práticas com um punhado de atores em seu Studio
culminariam com o desenvolvimento de seu derradeiro legado: o método das ações
físicas. O capítulo final de sua auto-biografia – intitulado A maturidade artística – abre-
se com uma reflexão sobre seu passado. O mestre russo perguntava-se onde teria ido
parar “a antiga alegria criativa” (STANISLAVSKIJ, 2009, p. 311, tradução nossa) e
conjecturava:

Naquele tempo, eu havia acumulado uma bagagem razoável de materiais


sobre a técnica da arte teatral. Todo esse material parecia estar amontoado
sem uma ordem, confuso, não sistematizado e, nessas condições, era difícil
usá-lo da melhor maneira. Era preciso ordenar, examinar, avaliar e, por assim
dizer, dispor esses materiais sobre as prateleiras da alma: o que tinha ficado
em estado bruto, precisava ser elaborado e colocado na base da minha arte;

74
As apresentações aconteceram no Seminário CRIA 2016: Corpo e cena: para além da técnica
(EBA/UFMG), no Seminário CRIA 2017: Corpo e palavra (EBA/UFMG), em Belo Horizonte; na X Reunião
Científica da ABRACE, durante encontro do GT Artes Performativas, Modos de Percepção e Práticas de
Si, em Campinas, 2019 e no Seminário Internacional Grotowski 2019: uma cultura ativa, no Rio de
Janeiro.
75
Minha versão de referência de Minha vida na Arte neste artigo é a edição italiana La mia vita nell’arte
(STANISLAVSKIJ, 2009), organizada por Fausto Malcovati, com tradução do russo de Raffaella Vassena,
para a editora La Casa Usher, Firenze (Itália), a partir da edição russa das obras completas de Stanislávski
Sobranie Socinij devjati tomach. Tom pervyj. Moja zizn’v iskusstve (Seleção de obras em nove volumes.
Primeiro volume. Minha vida na arte), Moskva, Iskusstvo, 1988.

128
o que tinha se desgastado, era preciso ser reavivado. Sem esse tipo de
trabalho, não era possível ir adiante (STANISLAVSKIJ, 2009, p. 311, tradução
nossa).

No fim do capítulo, Stanislávski apresenta algumas certezas, mas também


temores e inquietações. Nos últimos anos que lhe restam, deseja apenas ser ele mesmo
e seguir sua própria natureza, segundo a qual sempre viveu e trabalhou (STANISLAVSKIJ,
2009). Ao realizar essa avaliação, pergunta-se:

Quem sou? O que represento na vida do teatro de hoje? Posso ainda


compreender, como antes, as pequenas nuances do que acontece à minha
volta, o que interessa aos jovens? […] Como faço para transmitir aos jovens
os frutos de meu trabalho e alertá-los para os erros causados pela
inexperiência? Quando repenso sobre o caminho que percorri na minha vida
na arte, parece o de um garimpeiro em busca de ouro, obrigado a vagar por
caminhos impraticáveis à procura de jazidas e, depois, passar na peneira
toneladas de areia e de pedras para extrair apenas alguns grãos do precioso
metal. Assim como o garimpeiro em busca do ouro, não posso transmitir à
posteridade minhas pesquisas e meus sacrifícios, minhas alegrias e
desilusões, mas apenas os minerais preciosos que encontrei (STANISLAVSKIJ,
2009, p. 408-410, tradução nossa).

Penso que as questões propostas por Stanislávski afligem também outros


artistas que chegam à maturidade. Aos meus cinquenta e quatro anos de idade já me
interrogo sobre o que fiz no passado e o que me resta realizar como atriz. Por isso o
interesse em indagar em minha pesquisa de doutorado sobre como atores e atrizes mais
velhos enfrentam questões similares no seu amadurecimento artístico; o que emergiu
foi uma certa qualidade para cada um deles. No caso de François Kahn, essa qualidade
foi o silêncio76. O silêncio seria algo que perdura, como um “aroma do tempo”. A
expressão é tomada de empréstimo da metáfora utilizada pelo filósofo Byung-Chul Han
(2016), que fala de um tempo que se detém como o aroma desprendido por um
incensário chinês – o hsiang yin: “O tempo que tem aroma não passa ou transcorre.
Nada pode esvaziá-lo. O aroma do incenso enche antes o espaço. Ao dar um espaço ao
tempo, confere-lhe aparência de uma duração” (HAN, 2016, p. 73). Mais do que um
simples incensário, o hsiang-yin (literalmente “selo de aroma”) é um antigo relógio
chinês. Trata-se de um recipiente que contém um stencil: um molde vazado, com um
desenho ou uma escrita em linha contínua. Despeja-se um incenso em pó dentro do
recipiente e, ao retirar-se o molde, o pó permanece em forma de selo; quando

76
Na minha tese de doutorado, além do silêncio em François Khan, examino a maturidade artística de
outros atores e atrizes, atribuindo a cada um deles as seguintes qualidades: para Iben Nagel Rasmussen
(nascida em 1945), a transparência; para Beppe Chierichetti (nascido em 1948), a vulnerabilidade; para
Luigia Calcaterra (nascida em 1951), abandono.

129
queimado, esse pó torna-se cinzas que não se dissipam, mantendo a forma original dos
caracteres ou padrões do selo (BEDINI, 1963). A brasa que consome a linha contínua
representa seu caráter transitório; os caracteres ou padrões, que não perdem sua
significação após serem reduzidos a cinzas, dão lugar à sensação de duração, de demora.

Para pensar as qualidades que discuto em minha tese, inspiro-me no livro Seis
Propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1988). O escritor italiano identifica
seis qualidades – leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência –
que deveriam ser conservadas no campo da literatura no novo milênio. Analogamente,
acredito que determinadas qualidades deveriam ser cultivadas no campo teatral,
especificamente no trabalho do ator, sendo uma delas o silêncio. A qualidade denotaria
uma possibilidade de demora na maturidade artística, tal como o aroma do incensário
chinês permanece no tempo e no espaço.

O silêncio na trajetória de François Kahn

François Kahn participou como um dos guias –– grupo de colaboradores de


Jerzy Grotowski que conduzia o trabalho diretamente com os participantes — no
período do parateatro. O silêncio esteve presente em sua trajetória desde então, até o
momento atual no projeto TEATROdaCAMARA (literalmente, Teatro de Câmara), como
veremos adiante.

Em seu livro O Jardim: relatos e reflexões sobre o trabalho parateatral de Jerzy


Grotowski de 1973 a 1985, Kahn (2019, p.113) classifica o silêncio como um dos
“motivos” que caracterizam o parateatro. Ele entende motivo como tema. O próprio
título do livro –– O Jardim ––, que trata desse período, alude aos temas ilustrados nos
tapetes persas: nascentes, bacias, chafarizes, árvores, flores, animais selvagens ou
mitológicos, montanhas e nuvens. Os desenhos obedecem a certa orientação e simetria,
apresentando pequenos erros que evitam a ideia de perfeição absoluta; sua beleza está
no rigor, na fantasia, nas nuances e nos detalhes. Kahn (2019, p. 113) entende o trabalho
paratetral de Grotowski como uma espécie de “tapete-jardim, com motivos mais ou
menos legíveis, mais ou menos regulares, de acordo com as circunstâncias, mas que se
repetem em quase todos os estágios do trabalho”.

De acordo com Kahn (2019, p. 122) Grotowski pontuava que, em polonês,


existem duas palavras para definir silêncio: milcznie, que significa não falar, e cisza, que
significa estar em silêncio, não criar barulho ou agitação. Ambas se aplicam ao modo
como o silêncio era praticado no trabalho parateatral. O primeiro silêncio diz respeito
ao corte da comunicação falada. Para se chegar ao segundo silêncio, os meios são
atenção, escuta e decisão nos movimentos. Nessas duas acepções, a regra do silêncio
parece simples, mas na realidade, como observa Kahn (2019), o respeito total a ela

130
revela-se extremamente difícil. Ele cita três situações de aplicação do silêncio no
trabalho parateatral desenvolvido junto a Grotowski:

1) Silêncio nas atividades físicas […]: quando corremos, por exemplo, temos a
tendência de fazer barulho com os pés e a respiração para criar uma espécie
de ritmo auto-hipnótico que é uma barreira, uma maneira de evitar a duração
do esforço, uma maneira de forçar para queimar mais rapidamente a energia
e declarar que não aguentamos mais, que estamos exauridos, que sofremos,
etc. A única solução é escutar o barulho que fazemos e reduzi-lo o máximo
possível. Isso nunca é ausência total de barulho, mas isso torna-se silêncio.
[…] 2) O silêncio nas atividades cotidianas, durante o trabalho: […] Trocar as
palavras por mímica […] irritava-o [a Grotowski] profundamente: ‘Se você
precisa do sal, à mesa, pegue-o diretamente; se você não o alcança, peça de
maneira clara e concisa, sem perturbar a tranquilidade de todos com gestos’.
[…] lavar a louça, sem barulho, provocava em mim uma forma de silêncio, de
calma, ligada à atividade manual, física, e à atenção que devo ter no
momento. É uma das vias para entender o paradoxo: o movimento que é
repouso. Mas, para atingir essa forma paradoxal de repouso, é preciso, talvez,
aceitar uma espécie de cansaço enorme, ou tocar em um desespero
profundo. […] 3) O silêncio na natureza: […] um dos segredos não é não fazer
barulho, mas não bater (ou fazer vibrar) a terra quando apoiamos os pés no
chão. […] Se começamos a nos esforçar para pensar que, na verdade,
caminhamos sobre o corpo de nossa mãe, a terra, talvez possamos atenuar
os golpes constantes que infligimos nela. Os animais aprendem desde cedo a
não fazer o solo vibrar; sua sobrevivência depende disso. Os pássaros também
são notáveis mestres do silêncio: eles tecem uma trama de sons que permite
a cada um se manifestar, elaborar um mapa sonoro do território onde vivem,
sem perturbar a escuta do silêncio (KAHN, 2019, p. 122).

A expressão pela palavra: uma questão para minha maturidade artística

Os meus mais de trinta anos de profissão, vividos como atriz do Teatro Tascabile
di Bergamo (Itália)77, e do Teatro Diadokai78 (Brasil), haviam forjado um canal privilegiado
– a expressão pelo movimento –, pautado pela apreensão de diversas técnicas corporais.
O TTB, em suas origens, teve o seu trabalho fortemente pautado por técnicas corporais,
herança da tradição dos teatros de grupo, dos teatros-laboratórios europeus (SCHINO,
2012) e – em certa medida – da antropologia teatral de Eugenio Barba (1993) e do teatro
pobre de Jerzy Grotowski. A corporalidade desenvolveu-se através de duas linhas de

77
O Teatro Tascabile di Bergamo (TTB) foi fundado em 1972 na cidade de Bergamo (Itália) e é um dos
grupos históricos do movimento dos teatros de grupo italianos, além de ser um centro de referência em
pesquisas práticas sobre as danças clássicas indianas. Fui aluna-atriz do TTB de 1989 a 1990, atriz de
1991 a 1994 e atriz-colaboradora de 2003 a 2007.
78
O Teatro Diadokai foi fundado por mim e pelo diretor Ricardo Gomes, a partir da estreia do
espetáculo Pedro e o lobo, em 1996, no Rio de Janeiro, com base na experiência profissional adquirida
por ambos no Teatro Tascabile di Bergamo. Para mais detalhes, ver DUARTE, Priscilla de Queiroz. Cap. 3
- O Recomeço no Brasil, In: _______ O Treinamento do Ator: do Corpo como Instrumento ao Corpo
como Experiência. Dissertação de mestrado, EBA, UFMG, 2014. p. 91-106.

131
pesquisa dentro do grupo: de um lado, a dança clássica indiana, de outro, o teatro de rua.
Por uma escolha estética, o teatro de rua praticado no TTB privilegiava o uso do corpo,
amplificado pelo amplo uso das pernas de pau; a dança clássica indiana, tal como
praticada na Índia, não prevê o uso da voz. Porém, o acento sobre a expressão do corpo
não excluiu a expressão da voz no trabalho do grupo. De fato, ao longo dos anos, o TTB
desenvolveu métodos próprios de trabalho sobre a palavra.

Em meu interesse na expressão pela palavra, não pretendo reafirmar uma


dicotomia, como se fosse possível no teatro uma voz sem corpo, ou um corpo sem voz. É
uma questão de abordagem, de ponto de partida; até então, em meu trabalho com a
palavra, era como se o corpo pudesse vir antes da voz. Não se tratava de um antes
cronológico, mas lógico. Essa lógica começou a ser posta em questão na medida em que
minha energia física começava a mudar de tonalidade, sinal evidente da passagem do
tempo.

O impulso de trabalhar a expressão pela palavra conduziu meu interesse à


sonoridade da língua portuguesa. O romance A caverna de José Saramago parecia se
prestar perfeitamente a uma experimentação cênica, graças ao “estilo oral” típico do
escritor português, exemplar nesse romance, como afirma Castelli:

O estilo oral [de José Saramago] consiste em introduzir no discurso as


falas dos personagens e do narrador em um continuum de perguntas,
respostas, intervenções e considerações do eu narrador, que não é
sempre o mesmo. É como se o escritor gravasse uma conversa entre
várias vozes, na qual a intervenção dos interlocutores, imediatas e, por
vezes, desconexas, sucedem-se em ritmos diferentes, em um dilúvio
de palavras e em um entrelaçamento entre história, imagens
visionárias, parábolas e provérbios, separados por uma simples vírgula
que precede uma maiúscula (CASTELLI, 1999, p. 150, tradução nossa).

Além do “estilo oral” de Saramago, que quase convida mais à fala do que à
leitura, o tema do romance me tocava em modo particular. Por uma série de
circunstâncias, o protagonista da história, o oleiro Cipriano Algor, aos sessenta e quatro
anos de idade, se vê obrigado a re-inventar seu ofício para dar-lhe um novo sentido.
Analogamente, também era essa a minha necessidade com relação ao meu ofício de
atriz. De algum modo, esse experimento cênico buscava responder questões como: o
que me resta fazer agora, como atriz, com toda a bagagem acumulada nestes anos? A
resposta parecia estar escondida no caminho menos explorado: no trabalho com o
texto, ou seja, na expressão pela palavra em cena.

132
Abordagem do texto no Teatro Tascabile di Bergamo: o trabalho sobre o
zangão

Como colocar em cena o “estilo oral” de Saramago? Eu desejava buscar um


ponto de partida coerente com meu ponto de partida que, neste caso, era o texto. Essa
perspectiva era diferente do modus operandi originário da minha experiência no TTB,
que me conduziria ao caminho da corporalidade. Esse acento sobre o corpo nasceu de
uma certa abordagem da dança indiana no TTB: “todo o nosso interesse pela Índia, pelas
diversas formas de teatro clássico indiano, nasceu da avidez por técnicas precisas, do
gosto pela perfeição, da necessidade de perfeição” (VESCOVI, 2007, p. 364, tradução
nossa, grifo do autor). Acredito que a busca pela perfeição, tenha se materializado, em
um primeiro momento, no aspecto formal e concreto, na materialidade do corpo.
Apesar disso, a palavra também tem seu lugar no trabalho do TTB, que desenvolveu um
método próprio: o lavoro sul fuco – literalmente, trabalho sobre o zangão, a abelha
macho. A metáfora das abelhas explica-se assim: a principal função do zangão é
fecundar a abelha-rainha; depois disso, ele morre. No trabalho desenvolvido pelo TTB,
uma estrutura física ou vocal pré-existente seria o zangão; o texto a ser dito em cena
seria a abelha-rainha.

A atriz Tiziana Barbiero, por exemplo, no processo de criação do espetáculo


Esperimenti com la verità (Experimentos com a verdade), utilizou uma estrutura vocal
como “zangão”. Para um monólogo do general Smuts, trabalhou sobre gravações de
discursos do primeiro ministro Winston Churchill. Seu trabalho dividiu-se nas seguintes
etapas: 1) “nascimento do zangão”: memorização das palavras e, principalmente,
imitação da musicalidade (melodia, ritmo, dinâmica, timbre) da fala, a partir de trechos
selecionados de gravações em áudio dos discursos de Churchill; 2) “zangão fecunda a
abelha rainha e morre”: aplicação da musicalidade da fala dos discursos de Churchill no
texto de Smuts e descarte das palavras de Churchill, conservando apenas sua
musicalidade aplicada ao texto de Smuts. A partir daí, o texto de Smuts (“abelha rainha
fecundada pelo zangão”) constituirá a partitura vocal a ser utilizada em cena.

O trabalho sobre o zangão caracteriza apenas a primeira fase do trabalho sobre


o texto desenvolvido pelo TTB. A outra fase era chamada pelo diretor Renzo Vescovi de
trenta due mani di lacca (literalmente, trinta e duas demãos de laca em uma alusão ao
longo e complexo trabalho de pintura chinesa), que consistia em: elaboração da
partitura vocal a partir dos compiti (tarefas) que modulam a musicalidade (ritmo,
pausas, alturas, volumes, originárias do áudio gravado) e servem para guiar o ator
durante a execução do texto; combinação da partitura vocal com as ações físicas do ator;
montagem entre as partituras dos atores e com outros elementos da cena. A questão
do sentido do texto a ser dito em cena é, propositalmente, deixada por último, como

133
conta a atriz Tiziana Barbiero, a respeito do processo de trabalho com o texto para o
espetáculo Esperimenti con la verità (Experimentos com a verdade) do TTB:

[Partindo] do problema de pertinência e de elaboração do zangão, chegamos


ao problema do sentido (…) do que o ator diz em cena. Não é que esse
problema fundamental fosse ignorado por nós, desde o início dos
experimentos. Simplesmente tínhamos decidido não nos ocupar disso, para
seguir por caminhos menos batidos pela tradição. (…) eu considero esse
trabalho sobre o sentido como uma ulterior demão de laca. Operando sobre
a forma em vez que sobre o conteúdo, o que faço no espetáculo é
simplesmente executar a partitura, ficando bem atenta para não errar as
notas. O resto, são impulsos profundos, difíceis de definir. Na minha opinião,
quem dá o sentido ao texto é o espectador. É, por assim dizer, o trabalho do
espectador. (BARBIERO, 2007, p. 347, tradução nossa)

De acordo com Barbiero entendo que, ao atribuir ao espectador a tarefa de


buscar sentido para o texto, compete ao ator trabalhar meticulosamente sobre sua
forma. De fato, uma das noções que está na base dos primeiros experimentos com a
palavra no TTB foi a “autonomia do significante” (BARBIERO, 2007, p. 338-339,
tradução nossa). Essa noção poderia ser suficiente para embasar os primeiros
experimentos: dicção, pronúncia, acentuação, análise dos fonemas. Porém, a questão
não se esgotava ali e as pesquisas do TTB avançaram. Se, por um lado, o trabalho sobre
o zangão garantia aos atores como dizer um texto, não resolvia o problema do o que
se diz, nem para o ator, nem para o espectador, conforme conta Tiziana Barbiero
sobre seu trabalho no espetáculo Esperimenti con la verità (Experimentos com a
verdade):

Depois de meses de trabalho com Renzo sobre [o texto do personagem, o


general] Smuts, tínhamos criado uma rede de ligações que, por um lado, a
cada execução, me permitia repetir o texto sempre do mesmo modo, como
uma partitura musical escrita, e, por outro lado, me impediam de cair no
psicologismo. Mas havia um problema. O texto era longo, conceitualmente
robusto, e eu, enquanto o executava, nada compreendia do que dizia, tão
ocupada estava perseguindo todas as minhas tarefas e a complexa partitura
física formalizada. Quem me escutava, igualmente, não entendia nada.
(BARBIERO, 2007, p. 347, tradução nossa)

O temor de “cair no psicologismo” sempre foi uma preocupação no TTB. Assim


como outros teatros de grupo, filhos de seu tempo, Vescovi buscava um “novo ator”
(VESCOVI, 2007, p. 175), opondo-se ao modelo do teatro tradicional italiano. Essa busca
engendrou a concepção da noção de “ator sem nome” (VESCOVI, 2007, p. 175, tradução
nossa) – pedra fundamental que norteou o trabalho do TTB –, em grande parte, inspirada

134
nos atores indianos de Kathakali, que depois de anos de treinamento, fazem sua primeira
apresentação atrás de uma cortina que não permite a visão de sua dança ao público:

Esse é o ator sem nome. Esse era o nosso ideal contra o ator do teatro
tradicional que se acotovelava com os companheiros para ter alguns
milímetros a mais nas letras garrafais dos cartazes, ou que lutava pela ordem
alfabética [na ficha técnica], pela ordem de aparição [em cena], ou por outros
tipos de ordem, se isso lhe conviesse. Ao lado do costume teatral europeu e
italiano, existia essa tradição que, depois de tanto trabalho, oferece sua
dança somente aos deuses. (VESCOVI, 2007, p. 175, tradução nossa).

A noção de “ator sem nome” (VESCOVI, 2007, p. 175, tradução nossa) liga-se
também a um certo entendimento de personagem e indivíduo anônimo:

Enquanto que, no teatro tradicional há uma espécie de achatamento do ator


sobre o personagem, o novo ator é o ator artesão que usa o seu corpo como
uma estátua ou como uma escultura de energia, que tem uma vida
independente daquela do escultor. Aí está o porquê de uma espécie de
anonimato: o que você irá ver no teatro não sou eu, o senhor Fulano de Tal,
mas você vai ver a minha obra. (VESCOVI, 2007, p. 179, tradução nossa)

O paradigma do “ator sem nome”, no qual se situa o trabalho sobre o zangão,


norteou a minha formação e meus primeiros anos de trabalho de atriz. Utilizei esse
método em espetáculos que realizei, na maioria das vezes partindo de uma estrutura física
como “zangão”, para construir partituras vocais. Mas nunca tinha me confrontado com
um texto narrativo como ponto de partida. O trabalho sobre o zangão exige que se
proceda passo a passo, por pequenos fragmentos. Quando me propus a trabalhar a partir
do romance A Caverna, julguei que esse método, além de excessivamente demorado,
quebrava o fluxo do sentido narrativo de um texto tão extenso. Eu estava em busca de
um método que partisse do texto propriamente dito.

Nos meus primeiros experimentos com A Caverna, busquei aplicar estruturas


físicas como “zangões” para a criação das partituras vocais que seriam executadas em
cena. A técnica consiste em acompanhar com a voz a dinâmica dos movimentos. Depois,
eliminam-se os movimentos, e fica-se apenas com a partitura vocal que eles geraram.
Criei improvisações físicas, tendo como tema ações presentes no texto, com o objetivo de
aplicá-las como “zangões” na criação de partituras vocais. Porém, rapidamente esse
caminho revelou-se dicotômico e me pareceu infértil para a especificidade daquele texto.
O conteúdo do romance se impunha de modo tão imperativo quanto a sonoridade do
português de Saramago que, inicialmente, havia despertado meu interesse. Parecia-me
impossível privilegiar apenas seu aspecto formal, ou seja, o significante. Além de sua
135
sonoridade, as palavras de Saramago pareciam reivindicar o justo valor de seu significado.
Falar o texto passou a ser mais importante do que agir o texto e, para isso, seria necessário
memorizá-lo. Porém a tarefa era árdua: o trecho do romance era bastante longo e sua
memorização representava um enorme desafio para quem, como eu, tinha mais prática na
memorização de movimentos do que de palavras. Eu estava diante da chave do novo
caminho que buscava: a memorização do texto não era apenas mais uma, era a questão.

Foi então que me ocorreu o método de memorização de texto proposto por


François Kahn. Na criação de seus espetáculos solo, Kahn desenvolveu uma metodologia de
trabalho com o texto que ele chama de prática da memória. Eu já havia experimentado esse
procedimento de forma rápida, como participante de oficinas curtas ministradas por ele.
Também já tinha tido a oportunidade de verificar o resultado desse método ao assistir ensaios
e apresentações dos monólogos de Kahn. Tratava-se de lançar-me em um experimento de
maior fôlego aplicando a prática da memória desenvolvida por Kahn ao texto de Saramago.

Abordagem do texto por François Kahn: a prática da memória

No artigo Reflexões sobre a prática da memória no ofício do ator de teatro,


François Kahn (2009) chama a atenção para os riscos dos métodos de memorização de
texto, que afligem estudantes de teatro, mas que podem atingir também os atores
profissionais, tornando-se um problema mal resolvido:

[…] [os métodos normalmente praticados consistem em] uma infindável


repetição do texto em voz mais ou menos alta, uma cantilena acompanhada
de movimentos repetitivos, associados a uma perda quase total do sentido
do que está sendo enunciado; e para compensar o tédio que provoca esta
ladainha, se produz um tipo de ênfase emocional, o mais das vezes
totalmente convencional. Este procedimento provoca no jovem ator um tipo
de ambivalência neurótica combinando o desgosto destas longas horas
monótonas […], com um tipo de auto-satisfação narcísica por escutar a
própria voz. […] Quase sempre isto intensifica o medo dos atores: seu pavor
do “branco”, de perder o fio da meada. Por causa disso, os atores
invariavelmente, no começo dos ensaios, se agarram ao texto como se fosse
uma tábua de salvação. Isto não só cerceia consideravelmente a liberdade de
reação e de criação do ator durante os ensaios, mas também adia o momento
do ator se separar de seu texto. Portanto, uma memorização mal feita apenas
provoca no ator um excesso de tensão interior totalmente inútil, e não
resolve nem um pouco o verdadeiro problema: dizer o texto como se tivesse
sido pensado e falado pela primeira vez, renovado a cada performance e ao
mesmo tempo idêntico ao texto escrito: hic et nunc (KANH, 2009, p. 148, grifo
do autor).

Ressaltando que trata-se “meramente de um método” (KAHN, 2009, p. 149)


e não “uma metodologia absoluta” (KAHN, 2009, p. 151), Kahn explica que a
memorização de um texto ocorre em dois âmbitos: a prática da memória voluntária,
136
que é consciente, decidida (que diz respeito à memorização do texto) e a prática da
memória involuntária, que é ligada ao inconsciente, à intuição (que diz respeito à
improvisação estruturada). Em todo o processo de memorização não há fases
estanques e consecutivas, mas processos misturados. A divisão em fases se faz
necessária para efeito de análise. Esse método representa a possibilidade de
transformar “trabalho forçado, monótono, um mal necessário, mecânico, quase
passivo”, em oportunidade de exercitar a “inteligência do texto” (KAHN, 2009, p. 148)
e a inteligência da relação – de conquista, de apropriação – que se estabelece entre o
ator e o texto.

Na prática da memória voluntária, a memorização do texto ocorre em três


fases: escrita, pensada e composta. Na primeira fase, a memorização do texto é
realizada através da escrita à mão. Inicia-se copiando pequenos fragmentos, que vão
se somando – de frases a parágrafos – até que se possa escrever o texto completo79,
num ritmo fluido, sem hesitações ou erros, com atenção à ortografia e respeito à
pontuação. As vantagens desse tipo de memorização, com relação à memorização
falada, são que:

Aprendemos o texto num ritmo mais lento do que o ritmo da linguagem


falada. Com isso, temos tempo de refletir sobre o sentido do texto e além
disso, acolher as associações subjetivas que brotarem (música, imagem,
odores, sensações, lembranças, emoções...) Assim, podemos receber as
ressonâncias do texto em nós mesmos e entender o texto sem pronunciá-lo.
Compreende-se facilmente que essa memorização sem pronunciar ou
articular o texto, tem a vantagem fundamental de se fixar o texto, sem gravar
sua interpretação, sua enunciação, sua musicalidade ou seu ritmo. Isto é
essencial para o desenvolvimento em nós mesmos do trabalho, ou seja, para
os ensaios (KAHN, 2009, p. 149, grifo nosso).

Na segunda fase dessa prática, chamada de pensada ou mental, o ator deve


mentalizar o texto como quem faz um cálculo matemático “de cabeça”, sem escrever.
Essa fase exige grande concentração, uma vez que deve-se ter a ideia das partes (como
uma série de operações de uma equação) e do todo (o resultado final). Para Kahn (2009)
esse é o momento em que emerge o processo mental dominante das associações que
ocorrem aos atores. Para uns, o texto evoca imagens, para outros, o texto é percebido
como música e ritmo, para outros ainda, desperta sensações táteis. Em um segundo
momento da fase mental, é preciso passar da situação protegida de distrações, na qual
toda a concentração está em “passar” o texto mentalmente, a uma situação que exige
divisão da atenção, ou seja, “passar” o texto enquanto realiza atividades físicas

79
Quando se trata de um texto dialogado, torna-se inevitável aprender também as réplicas dos
personagens desempenhados pelos outros atores.

137
(correndo, nadando, etc.) ou atividades manuais de precisão (costurar, lavar a louça,
etc.). Nos dois casos é preciso manter o rigor, a precisão e a fluência do texto pensado.
Por fim, deve-se pensar o texto em ambientes dispersivos e perturbadores (por
exemplo, em uma sala cheia de gente falando ou próximo a uma rua movimentada) ou
situações de esforço físico prolongado (por exemplo, subindo uma ladeira de bicicleta).
A última fase da memorização voluntária, a fase composta, é aquela na qual se
cria a “partitura do ator” (KAHN, 2009, p. 151). É o momento em que, talvez, seja mais
perceptível a mistura entre o processo consciente e o inconsciente. A improvisação
estruturada — fase da memorização involuntária e intuitiva, em que surgem as ações
que irão se conectar à memorização voluntária do texto — seria o fragmento inicial da
“partitura do ator”.

Rapidamente, durante os ensaios, o texto começa a se associar a situações,


relações, ações com os outros atores, com o espaço, com o tempo. O ator cria
um tipo de partitura (como uma partitura musical) incluindo todos estes
fatores, os contatos com os outros, os ritmos, os movimentos e claro, todas
as associações subjetivas, as intenções, as nuances. O texto se torna
organicamente ligado a esta partitura e cria um tipo de frase, assim como um
instrumento numa orquestra tem sua própria frase, mas leva em conta as
frases dos outros instrumentos. Tudo isto se memoriza inconscientemente e
nos menores detalhes para o ator: é a partitura do ator (KHAN, 2009, p. 151).

Caminhos opostos, resultados diferentes

Sob muitos aspectos, a abordagem do texto proposta por François Kahn parece
estar em contradição com a abordagem do TTB que vimos anteriormente. Claramente,
a comparação entre esses dois “métodos” é esquemática e reducionista. Na realidade,
nenhum deles apresenta fases estanques; são procedimentos empíricos, inseridos em
processos longos e complexos. Não são fórmulas ou receitas que garantem um
determinado êxito final.

A partir desse exercício de análise comparada entre ambos, porém, é possível


pensar que, se os pressupostos são diversos, os processos e os resultados também o
são. O ponto de partida da memorização de Kahn é o próprio texto escrito; o ponto de
partida do trabalho sobre o zangão é um modelo a ser imitado, – a gravação em áudio
de um outro texto –, dito por outra pessoa. Como vimos anteriormente, Kahn (2009)
aponta para os riscos narcísicos do ator que escuta a própria voz; o trabalho sobre o
zangão do TTB pressupõe que o ator escute a própria voz, uma vez que deve certificar-
se sobre a precisão da imitação do modelo. Kahn (2009) afirma que a memorização
escrita permite ao ator pensar no sentido do texto; no trabalho sobe o zangão o sentido
seria um problema a ser resolvido a posteriori, pelo espectador. Kahn (2009) afirma que

138
a principal vantagem da memorização escrita é não memorizar interpretação,
enunciação, musicalidade e ritmo do texto; o trabalho sobre o zangão do TTB baseia-se
justamente, na memorização da interpretação, da enunciação, da musicalidade e do
ritmo do modelo.

Da literatura à cena

Outro aspecto que aproxima meu experimento cênico sobre A Caverna do teatro
praticado por François Kahn é o fato de colocar em cena um texto literário, em uma encenação
intimista, reduzida ao essencial. Esse é o procedimento que caracteriza o projeto
TEATROdaCAMARA, criado por François Kahn em 1995, no qual se inserem os solos encenados
pelo artista. O TEATROdaCAMARA tem origem no período em que François Kahn vivia na Itália
e nasceu da necessidade de realizar espetáculos de forma totalmente autônoma ao circuito do
mercado teatral, apresentando-os em casas privadas. Kahn define assim o projeto:

Definiria o TEATROdaCAMERA como uma experiência prática no campo


da ecologia teatral; um projeto teatral, artístico e culturalmente muito
ambicioso, mas ao mesmo tempo, simplificado, reduzido ao essencial na
estrutura material, cênica e técnica que lhe é necessária. Não há mais a
barreira do palco, a distância reverencial, o trompe-l’oeil da cenografia,
somente a presença do ator e o fio do texto. O espectador torna-se assim
testemunha de um fato fora do ordinário, em um espaço que, para ele, é
cotidiano (KAHN, s/d, p. 3, tradução nossa).

Kahn criou diversos espetáculos com os mesmos pressupostos: adaptações de


textos de grandes autores da literatura mundial (Kafka, Proust, Nerval, Kleist, Ginsberg,
Kawabata, Joyce), para apresentações com público restrito, em espaços
(preferencialmente) não teatrais, na maioria das vezes, na casa das pessoas. Os
espetáculos são solos nos quais François Kahn se ocupa da adaptação do texto, da
direção e da atuação. Desde a criação até o momento da apresentação, a autonomia do
artista sobre sua obra é completa. Ele chega sozinho à casa do anfitrião que abriga o
espetáculo, com todos os elementos que lhe servem dentro de uma pequena mala, para
uma única apresentação para pouco mais de uma dezena de convidados.

O teatro em casa praticado por François Kahn proporciona-lhe a justa dimensão


para a exploração daquele tipo de atenção que associo à ideia de silêncio. Trata-se de
uma atenção que requer uma calma, uma demora, um tempo contemplativo que se
instaura no silêncio, como um aroma que preenche o espaço. Esse silêncio não significa
ausência de palavras, mas se refere a uma economia delas, bem como dos gestos,
reduzidos ao essencial.

139
A proximidade com os espectadores impõe, de forma muito concreta, um
determinado tratamento do texto por parte do ator, que Kahn descreve assim:

A ideia central do TEATROdaCAMERA é a proximidade entre espectadores e


atores, uma forma de intimidade espacial que permite ao ator um trabalho
muito delicado sobre a voz e o corpo, um trabalho direcionado a uma
compreensão nítida do texto e uma poética minimalista do gesto e da
imagem. Essa proximidade entre ator e espectador não apenas impõe ao ator
uma qualidade diferente de presença em cena, um esforço externo de
verdade, mas modifica também a relação de confiança e de disponibilidade
do espectador com relação ao ator e ao personagem que ele representa
(KAHN, s/d, p. 2, tradução nossa).

O crítico teatral italiano Franco Acquaviva (2016, grifo e tradução nossos) colhe
a essência do silêncio no trabalho de Kahn em A Dama do cachorrinho (criado em 2014)
(fig. 1), de Tchekhov:

Como sempre acontece com Tchekhov, mesmo sendo capturados na sua


trama sutil, tem-se a impressão de que não acontece nada de especial.
Tarefa árdua para o ator, portanto, para evitar ser vítima de pressa, ou ser
tentado a pular certas passagens excessivamente descritivas ou, pior ainda,
com objetivo de movimentar um pouco o tecido verbal do espetáculo,
sobrepor uma série de sequências de entonações pré-fabricadas – e, sem
dúvida, super-pessoais! Nada disso. A chave parece ser uma calma
soberana que permeia cada movimento e dicção do ator, mas uma calma
tensa, vibrante que, pode-se dizer, passa por cada palavra do texto
corroendo-a, descarnado-a, desnudando sua essencialidade, fazendo com
que cada frase, cada período, seja uma flecha que, bem disparada, chega
ao seu destino. Emerge dos espectadores, um silêncio denso, carregado de
atenção, que dura quase 75 minutos. Um silêncio verdadeiro (ACQUAVIVA,
2016, grifo e tradução nossos).

140
Figura 1: François Kahn no ensaio do espetáculo A Dama do cachorrinho, na Escola Neijing. Belo
Horizonte (MG), janeiro de 2017. Foto: Maria Duarte.

Como na maior parte de seus solos, em A Dama do cachorrinho, os


espectadores encontram-se bem próximos da área de cena e Kahn utiliza um volume de
voz bem próximo daquele usado em uma conversação cotidiana. Claramente, a
tonalidade baixa não é um artifício para criar um efeito; ela é consequência de um
processo interno do ator. Como diz Kahn:

Muitas vezes, notei nos atores que o grande volume dado à voz sufoca sua
capacidade de atenção auditiva (especialmente quando se trata de recordar
uma voz ouvida, uma situação vivida). Então, frequentemente peço ao ator
para trabalhar com uma voz “menor” que a sua voz natural, que seja apenas
suficiente para transmitir o sentido daquilo que ele tem a dizer e que, ao
mesmo tempo, permita que ele escute a voz interior da memória ou da
fantasia (sem cobri-la) (KAHN, 2018, p. 9).

Fernando Aleixo, que foi aluno em uma oficina ministrada por François Kahn,
registrou assim suas indicações a respeito do volume da voz:

François afirma ser importante o trabalho com a “voz baixa” (aqui se


referindo à intensidade-volume), como forma de perceber o que acontece
“dentro” do corpo. Também, como estratégia de o ator não se esconder atrás
do “barulho da voz”: “escutar o que acontece realmente no corpo e talvez
registrar o que possibilitou esse estado, como certa emoção por exemplo” […]
À medida que começamos o trabalho de dizer o texto passamos a atentar
para a necessidade de “acolher” a presença do outro. Ou seja, começamos a

141
direcionar o texto – um “falar com” – para as pessoas que estavam localizadas
próximas. Neste sentido, a ideia do “acolher” a presença e o olhar do outro,
aponta para um estado em que eu não “digo” ou “mostro” que estou olhando
o outro, eu apenas o olho e o vejo diante de mim (ALEIXO, 2014, p. 89, grifo
nosso).

“Não se esconder atrás do barulho da voz” (ALEIXO, 2014, p.89) equivale dizer
ao ator para não se esconder atrás de “entonações pré-fabricadas”, como disse
Acquaviva (2016). Penso que essas entonações prontas representam um filtro que
falseia a escuta interna de si, interferindo no processo de indução, na escuta do público
com relação ao ator. Paradoxalmente, o exercício da escuta de si passa por “falar com”.
De fato, François Kahn prefere ensaiar seus solos na presença de alguém e não de
espectadores imaginários, para poder “falar com”, realmente80.

Diferente de A Dama do cachorrinho, o espetáculo Viagem a Izú (fig. 2) –


baseado no conto A dançarina de Izú, de Yasunari Kawabata – foi concebido para ser
apresentado em um jardim, ao ar livre, com a luz natural do entardecer, sempre para
poucos espectadores próximos da cena. A motivação de Kahn para a montagem desse
espetáculo tem origem em sua juventude, no fascínio que o ator desenvolveu pela
cultura japonesa, despertado especialmente pela pintura:

Neste espetáculo, não busquei reproduzir os mestres de [estampa japonesa]


Ukiyoe e nem imitar o estilo do teatro tradicional japonês, ao invés disso,
tentei evocar as sensações e emoções que eu tinha experimentado em minha
adolescência, quando fui “capturado” pela poesia desse estranho universo: o
Japão (KAHN, s/d, p. 1, tradução e grifo nossos).

80
Quando realiza espetáculos no Brasil, Kahn se apresenta em português. Graças a suas vindas
frequentes ao país (desde 1987), para apresentação de espetáculos, condução de oficinas e realização
de palestras, François Kahn vem aperfeiçoando o domínio do português falado e expressa-se
fluentemente em nossa língua. Apresentações em língua estrangeira, porém, exigem do ator francês
tempo e esforço redobrados na memorização do texto e a presença de colaboradores durante os
ensaios, para auxiliar na correção de eventuais erros de tradução ou de pronúncia do português.

142
Figura 2: Francois Kahn no espetáculo Viagem à Izu, em apresentação no Festival de Ouro Preto e Marina.
Ouro Preto (MG), 2013. Foto: Maria Duarte.

Particularmente, considero esse “evocar”, de que fala Kahn no trecho acima,


como uma característica marcante de seu trabalho que se relaciona com o cultivo da
memória, com o desenvolvimento de uma capacidade de conexão com as próprias
sensações e emoções. Essa capacidade estaria relacionada mais à renúncia a
determinados processos mecânicos, do que à afirmação de técnicas ou estratégias para
atingir determinados objetivos ou efeitos. É como se, em seu trabalho artístico Kahn
procedesse por paradoxos, escolhendo o caminho da não-ação, do repouso e do
silêncio, para encontrar a justa medida da ação, do movimento e do som. Desse modo,
longe de uma atuação baseada em uma interpretação psicológica do texto, o ator se
vale de uma espécie de memória encarnada no corpo, como via de acesso ao
sentimento. Sobre Viagem à Izu, escreve Palazzi:

A qualidade refinada da representação não depende das sugestões evocadas


pelo lugar e pelas circunstâncias, mas, principalmente, da delicadeza na
abordagem de uma história feita de coisa nenhuma. A matéria impalpável
traduz-se em uma palpitante partitura de estados de ânimo, na qual tudo
permanece vago, acenado, ou então, cada detalhe sugere misteriosas
densidades que são comunicadas ao espectador. Paradoxalmente, essa
encenação feita unicamente de palavras solicita, principalmente, um
empenho físico de seu intérprete, que não se limita a poucos gestos alusivos
– as pétalas espalhadas no ar, o arroz jogado no tapete de palha simulando o
barulho da chuva – ou a mudanças de posturas com as quais são traçados os
vários personagens: é o corpo todo do ator que, mesmo em aparente
imobilidade, desenvolve uma tensão constante, dando espessura a uma
trama bem secreta de emoções (PALAZZI apud KAHN, s/d, p. 4, tradução
nossa).

143
Novo sentido no processo criativo

Figura 3: Priscilla Duarte durante primeira fase do experimento sobre A Caverna, na Escola Neijing. Belo
Horizonte (MG), 2016. Foto: Priscilla Duarte.

O experimento que realizei sobre o texto de Saramago passou por diversas


fases. A primeira delas foi completamente solitária (fig. 3) mas, houve também períodos
de trabalho em colaboração direta com François Kahn81. Discutiremos a seguir as
questões mais relevantes de todo esse processo.

Em um primeiro momento, trabalhando solitariamente sobre trecho do


romance A Caverna, eu dedicava parte do tempo à memorização escrita e outra às
improvisações das ações dos personagens no espaço, para levantar material para a fase
de composição da cena. Procurei manter uma atenção difusa com relação às ações, pois
pretendia evitar o automatismo de fixar partituras para sentir-me mais segura sobre o
que fazer, e enveredar pelo caminho da elaboração formal. Preferi manter uma
permeabilidade da estrutura a novos impulsos e associações que poderiam ainda se
apresentar.

81
O primeiro período de trabalho com François Kahn foi de uma semana, em Belo Horizonte (MG), em
janeiro de 2017. O segundo foi de quinze dias, em julho de 2017, durante viagem de estudos (doutorado
sanduíche), no formato de residência artística no Teatro Tascabile di Bergamo (Itália), como parte da
mostra Arcate d’Arte, organizada pelo TTB. Ao final, foram realizadas duas apresentações públicas dos
resultados da residência, sob o título La Brocca (O Cântaro). O trabalho foi apresentado em português,
precedido de uma introdução em italiano. O terceiro período foi de cinco dias, em julho, e de três dias,
em novembro, de 2019, em Ouro Preto (MG).

144
Antes de ter o texto completamente memorizado, comecei a esboçar
possibilidades de composição, dizendo trechos do texto enquanto improvisava as ações
físicas. Por não se tratar de um método dogmático, não é necessário que uma etapa
esteja completamente superada para iniciar a etapa sucessiva; não há uma progressão
linear. O pressuposto de base – memorizar o texto antes de começar a agir – permanece
como uma meta ideal, um farol que ilumina o caminho. Claramente é preciso atingir um
grau mínimo de memorização para que as ações possam se desenvolver com uma certa
liberdade com relação ao texto escrito. Em caso de lapso de memória, a consulta ao
texto escrito deve ser feita em modo tranquilo, buscando manter a concentração no
fluxo das ações.

François Kahn utiliza outros procedimentos para progredir com a memorização


e torná-la mais segura. Em uma fase mais avançada, ele me propôs falar o texto
enquanto jogávamos bola. O objetivo era que eu mantivesse o foco no sentido do texto
(tanto do ponto de vista do significado quanto da sua direção ao interlocutor) e no fluxo
da memória, sem indecisões ou falhas, enquanto lançava e recebia a bola do parceiro
(no caso, o próprio Kahn). Gradativamente, a memorização do texto foi se tornando
mais segura e a ansiedade, desaparecendo. Depois, voltava-se a experimentar dizer o
texto improvisando as ações e

[…] pouco a pouco, [é possível ao ator] compreender onde o texto e ação se


superpõem e onde se revezam […] os detalhes vão, gradativamente, achando
seu lugar no tempo e no espaço. A atenção, que no começo é caótica e
fragmentada, começa a se organizar em um fluxo contínuo. Em vez de saltar de
um assunto a outro, ela passa a caminhar em diversas direções ao mesmo
tempo. Em particular, o ator começa a seguir o que acontece no exterior sem
cortar o fio interior de sua evocação. Uma verdadeira partitura de impulsos se
cria e se inscreve no corpo, na voz e na mente do ator. O ator tem os olhos bem
abertos ao que se passa à sua volta e ao mesmo tempo está ancorado em sua
realidade (KAHN, 2009, p. 154).

Desse modo, de forma bastante gradual, quando chega o momento de falar,


em uma fase mais adiantada de composição da cena, é como se o sentido do texto, por
si só, encontrasse sua correspondência nas ações, constituindo aquilo que François Kahn
chama de “partitura de impulsos” ou “partitura do ator”. Até então, em minha
experiência de atriz, o processo de criação de partituras dava-se através da construção
de duas partituras – uma física e outra vocal – construídas separadamente, para serem
depois misturadas. Mas, tal como dois líquidos de densidades diferentes, é difícil tornar
essa mistura homogênea e há o risco de uma sobreposição das partituras, mais do que
uma real mistura. Nessa experiência de trabalho a partir do texto de Saramago,
conduzida por François Kahn, a criação da “partitura da atriz” foi vivida como um

145
processo integrado. Apesar da memorização do texto ser preparada em separado, a
forma de dizê-lo não é fixada de imediato. Por isso o texto permanece plástico o
suficiente para ser trabalhado em conjunto com as ações.

De acordo com a metodologia de trabalho proposta por Kahn, a “partitura da


atriz” foi se fixando aos poucos. Nos ensaios, ele interrompia a ação cada vez que eu me
punha a repetir um mesmo trecho onde havia ocorrido um erro. No modo de trabalhar
aprendido no TTB, a repetição é necessária para que a partitura possa, depois, adquirir
um fluxo próprio. Mas Kahn parece pensar que a repetição insistente pode “matar a vida”
da partitura. Repete-se, sim, mas apenas uma ou duas vezes e, depois, segue-se adiante.
A organicidade do fluxo da partitura se cria pelo seu acúmulo ao longo dos dias de ensaio,
e não por sua insistente repetição em um mesmo ensaio. É preciso ter calma. Não se
conquista o fluxo da organicidade em um único ensaio. É preciso deixar que eventuais
correções se depositem, se aquietem, em vez de repetir, de forma insistente, um mesmo
trecho. Por vezes, quando uma falha interrompia o fluxo da partitura, ao invés repetir
aquele trecho, Kahn propunha uma quebra: passar para outra coisa, como, por exemplo,
uma série de exercícios de yoga, que fazíamos juntos, em silêncio. Só depois, a cena era
retomada, a partir de um novo trecho. Deixava-se repousar o trecho onde tinha ocorrido
a falha, que só seria retomado no ensaio do dia seguinte. No início, esse procedimento
me deixava muito insegura, mas Kahn me tranquilizava dizendo: “Não se preocupe. Vai
chegar”.

Concordo com François Kahn (2009), que considera a presença de uma


testemunha como um dado importante no trabalho com o texto. É necessário falar com
alguém, realmente. A situação ideal é falar o texto ou fazer a cena sempre em presença
de uma pessoa que, não necessariamente, é o diretor. Nos períodos em que
trabalhamos juntos, Kahn foi a minha testemunha. É verdade que, na fase inicial desse
experimento, minha realidade foi outra, pois trabalhei absolutamente sozinha. Nesse
caso, minha estratégia foi agir com extremo cuidado com relação ao texto, adiando
tanto quanto possível o momento de falar em voz alta, para fazê-lo em presença de
alguém (para convidados ou apresentando em seminários acadêmicos, por exemplo).
Nos momentos em que estive só, privilegiava os ensaios com o texto apenas pensado e
não dito.

Outra questão que se colocou durante o trabalho com François Kahn, foi o
problema da emoção. Desde a biomecânica de Meyerhold e as pesquisas de Stanislávski
sobre as ações físicas, sabe-se que não é possível ao ator controlar as emoções, mas
apenas as ações. No TTB, a emoção era considerada como algo relacionado ao “eu
privado”, ao “eu psicológico”, coisa que não interessa ao espectador; o teatro é lugar do
“eu teatral”, um eu que é artificial. Renzo Vescovi, costumava ressaltar o aspecto

146
artificial e artesanal do teatro: “uma vez que o teatro é produto de um trabalho
artesanal, tudo aquilo que se refere a ele, com diversas características, resulta ‘arti-
ficial’” (VESCOVI, 2007, p. 117, tradução nossa). Dentro desse entendimento, a emoção
diz respeito ao espectador, como rasa, ou seja, como emoção estética, tal como explica
Tarlekar em comentário sobre o Natyasastra82:

Rasa, então, é o prazer do Sthayibhava (o estado de ânimo permanente),


experienciado pelo espectador. […] A experiência de diferentes emoções que
ocorre na vida real não é aquela que se obtém da representação. É “alaukika”,
isto é, pertencente à esfera da realidade imaginada pelo poeta. O sentimento
não está presente no ator. Ele simplesmente é o meio de transmitir os
sentimentos do drama para os espectadores. Portanto, o ator é chamado de
patra (isto é, pote). O pote não aprecia o sabor do vinho, mas é o meio para
servi-lo ao bebedor (TARLEKAR, 1999, p. 56, tradução nossa).

Vescovi acreditava que esse “eu teatral” em oposição ao “eu privado”, tem sua
máxima expressão no teatro oriental que se baseia no “cancelamento consciente da
individualidade” (VESCOVI, 2007, p. 125). O ator oriental se utiliza de “uma técnica que
fixa na precisão do corpo os impulsos desordenados da psique” (VESCOVI, 2007, p. 103,
tradução nossa). De fato, como visto anteriormente, a noção de ator sem nome de
Renzo Vescovi nasce justamente de uma oposição à ideia de personagem como algo que
possa ser confundido (pelos espectadores) com o “eu privado” do ator, como uma
projeção na vida cotidiana do ator, que caracteriza a divinização: “No teatro tradicional
[…] há espaço para a divinização, isto é, espaço para a continuação do papel do
personagem fora da cena” (VESCOVI, 2007, p. 179, tradução nossa).

Em minha experiência com François Kahn sobre o texto de Saramago, em


nenhum momento a emoção foi tratada como material de trabalho. Kahn dizia que a
emoção é como um presente; o ator pode ser agraciado com esse presente, ou não. É
insensato forçar a emoção, mas, tampouco ela deve ser ignorada, quando
(eventualmente) se apresenta. Se a emoção não vier, não é um problema; mas, se ela
chegar, é preciso direciona-la cuidadosamente para dentro da partitura do ator, de
modo que não provoque autocomplacência, transformando o trabalho em uma “sopa

82
O Natyasastra é um antigo tratado sobre o teatro sânscrito, e ainda hoje referência fundamental para
a cultura cênica indiana. Sua autoria é atribuída ao mítico Bharata Muni, cuja existência nunca foi
comprovada historicamente. Muni quer dizer sábio, e bharata seria um acróstico de bhava
(sentimento), raga (melodia) e tala (ritmo). O mais provável é que o texto seja o resultado da
contribuição de diversos autores anônimos ao longo dos séculos. Igualmente incerta é a data de sua
escritura, que pode variar, segundo diferentes historiadores, entre os sécs. VI a.C. e II d.C. (GOMES,
2007).

147
sentimental”, expressão usada por Grotowski e lembrada por Kahn (2019, p. 53). A meu
ver, o que François Kahn chama de emoção é a manifestação de um fluxo subterrâneo.

Outro fator singular da experiência de trabalho vivida com François Kahn sobre
o texto de Saramago foi o valor adquirido pelo silêncio. A condição do silêncio, que
acompanha François Kahn desde os tempos do trabalho parateatral com Grotowski, é
aprofundada nos escritos mais recentes do ator e diretor francês83. A necessidade do
silêncio durante o trabalho da memorização escrita tornou-se patente. O silêncio não é
uma ausência de som, mas uma ausência de ruído. A calma que se instalava durante a
memorização escrita disseminava-se nos outros momentos do trabalho onde eram
previstos sons (da voz, da respiração, da movimentação do corpo no espaço, da
manipulação de objetos); como se, para propiciar uma condição criativa, fosse
necessário instaurar um não ruído dentro de cada som; uma não ação dentro de cada
ação. E assim, cada som, quando ocorre, não é uma interferência, mas torna-se uma
manifestação sonora única, absolutamente necessária, essencial. Através do silêncio
despertou-se uma sensibilidade de tipo quase sinestésico, principalmente pelo uso do
barro e da água, matérias primas do trabalho do protagonista do romance A Caverna. A
modelagem da argila84 (fig. 4) fez parte das improvisações e da composição das cenas e
contribuiu enormemente para conectar o meu trabalho de atriz ao ambiente e aos
personagens da história de Saramago.

83
A esse respeito, ver KAHN, François. DUARTE, Priscilla (tradução). A prática do silêncio no trabalho
teatral e parateatral. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG, p. 347-361.
maio 2018; e KHAN, François. DUARTE, Priscilla (tradução). O Jardim: relatos e reflexões sobre o trabalho
parateatral de Jerzy Grotowski de 1973 a 1985. São Paulo: É Realizações, 2019.
84
Durante doutorado-sanduíche na Itália, além de realizar ensaios sob a supervisão de Kahn, tive a
oportunidade de frequentar um curso livre de modelagem em cerâmica, com o mestre Luca Catò, no
laboratório da Associazione Tutti Gìu per Terra, em Bergamo.

148
Figura 4: Priscilla Duarte durante curso de modelagem em cerâmica no laboratório da Associazione Tutti
Gìu Per Terra. Bergamo (Itália), junho de 2017. Foto: Luca Catò.

Uma das ações presentes em O amor possível — a modelagem de uma cuia a


partir de uma bola de barro colocada na palma da mão — me remete ao valor da técnica
no artesanato teatral, à importância da obra e da dimensão que está além dela. Para
que um artefato seja eficaz para o uso a que se destina, a técnica utilizada para sua
confecção deve ser igualmente eficaz. Se, depois de pronta a cuia não puder conter o
chá, a técnica não foi precisa para propiciar o ato de beber. Apesar da matéria prima do
ator não ser algo inanimado (como o barro) e de ser discutível o estabelecimento de
uma eficácia para a obra de arte, a analogia se presta a enfatizar o caráter artesanal do
trabalho do ator. Na transcrição das conferências realizadas no Collège de France em
1997-1998, Grotowski enfatiza a importância da dimensão impecável da obra como
veículo para que o artista possa alcançar algo que está além dela:

[…] se a obra não tem uma validade, uma importância, uma força… alguma
coisa falhou. É um paradoxo: a obra, como obra, se a gente faz um espetáculo,
é um espetáculo, por exemplo, como obra, deve ser, de uma certa maneira,
impecável. Senão, tudo se torna rebaixado. E, aí… Podemos analisar até
porque. Por que nos dizemos: ‘Bom. Eu trabalho do domínio do, digamos,
acting, no domínio de um aspecto performativo. Mas, na verdade, são outras
as riquezas que eu busco’. Sim, mas, se nos dizemos isso… nós nos damos a
liberdade de não realizar o trabalho. De não realizar sua obra. De não chegar
a uma qualidade nisso que é o trabalho artístico. E, é, inevitavelmente brisa…

149
isso se torna desonesto. Então, é… aí é preciso sempre ser consciente. Sim.
Isso deve, isso pode ser, alguma coisa que ultrapassa a obra… que é esta porta
de ascensão dentro de nós mesmos. Mas… ou na direção de alguma coisa de
nós mesmos, ou na direção de alguma coisa… sim. Mas a obra enquanto obra,
deve ser impecável. É absolutamente necessário. Não tem nenhuma
justificativa que possa mudar isso. Se a gente faz, isso deve ser bem feito. Se
queremos realizar… realizar esse outro aspecto, é preciso realizar o primeiro
aspecto. Que deve ser impecável. É contra toda a nossa preguiça e contra
toda a nossa necessidade de fazer as coisas facilmente e rapidamente. Mas,
não existe outra estrada. Tem uma quantidade de estradas possíveis, dentro
das opções. Mas, não tem nenhuma estrada eficaz que seja, simplesmente,
fácil (GROTOWSKI, apud SODRÉ, 2014. p. 191-192).

É preciso lembrar que o apreço de Renzo Vescovi, diretor do TTB, pela técnica
e pelo âmbito formal estava em consonância com a consciência plena do valor do
artesanato do trabalho do ator para que esse possa ser preenchido por uma qualidade
que está além da técnica. Como ocorre frequentemente em sua trajetória artística, seu
ponto de referência para essa reflexão é a tradição clássica indiana. Vescovi refere-se à
taça — ou patra (pote) mencionado por Tarlekar (1999, p. 56) — e à graça que se
deposita dentro dela:

Nas culturas tradicionais, o cuidado meticuloso do artesão era percebido


como o seu hábito profissional natural. A imagem clássica de referência alude
à modelagem da taça: o artesão aplica sobre ela a técnica do seu ofício para
que o objeto manufaturado resulte liso e capaz de conter [o líquido]. Mas o
amrta, o elixir divino, o néctar da imortalidade para o qual a taça foi
preparada, é um dom gratuito dos deuses. No âmbito do teatro, a diferença
entre esse artesão e o artista pressupõe, naturalmente, a perícia técnica do
performer como sua condição sine qua non: o seu êxito final, o valor artístico,
por fim, comporta uma forma de transcendência (a ‘part de Dieu’ de Gide) da
qual o ator resulta mais uma testemunha do que um autor. A questão da
técnica, crucial para qualquer atividade artística, é obviamente decisiva para
o teatro ocidental também (VESCOVI, 2007, p. 201-202, tradução nossa).

A adaptação do texto: do romance ao espetáculo solo

Quando eu e François Kahn iniciamos o trabalho de adaptação do romance A


Caverna, tínhamos um romance de trezentos e cinquenta páginas que deveria se
transformar em um texto de cerca de quinze laudas. Ponderamos que a história do
romance era demasiado complexa para um espetáculo solo. Optamos então por focar
em uma história secundária à história principal. Assim teríamos apenas três
personagens: Cipriano, Isaura e o cachorro Achado. Decidimos extrair do texto todas as
cenas com diálogos, mantendo trechos de narração na introdução e na conclusão de
cada cena. Cada versão do texto era testada com uma leitura em voz alta. Foi

150
especialmente difícil escolher os detalhes que costuravam a trama, privilegiando as falas
e ações dos personagens principais e cortando as partes excedentes. Por fim, chegamos
a uma versão final do texto, com quinze laudas divididas em oito cenas. Em todas essas
ocasiões de trabalho, além de dividirmos a adaptação do texto, François Kahn
comportou-se quase como um diretor, embora ele prefira nomear a sua função como
colaboração artística. Me fez notar que, na realidade, a diretora era eu, uma vez que a
concepção do espetáculo era minha. Depois de La Brocca (O Cântaro) (fig. 5), o título
definitivo da adaptação do texto ficou sendo O amor possível. O título nasce da
observação de Aranda (2015, p. 92) sobre como Saramago trata do amor em seus
romances:

[…] o amor que o autor expõe é sempre assim: possível. Amores fortes,
passionais mas sem rupturas, sem o acréscimo de sofrimentos desmedidos
nem tarefas irrealizáveis. “Nos meus romances não costuma haver exageros”,
diz referindo-se a esse romance contemporâneo em que todos os amores
estão estragados, como também no cinema. Tudo tem que ser levado ao
limite, quando na vida normal nem tudo atinge esses limites extremos. A vida
às vezes é muito mais normal que tudo isso. “Os meus romances são
romances de amor porque são romances de um amor possível, não
idealizado; um amor concreto, real, entre as pessoas” (ARANDA, 2015, p. 92).

Figura 5: Priscilla Duarte no ensaio geral de La Brocca (O Cântaro), conclusão de residência artística com
François Kahn no Teatro Tascabile di Bergamo. Bergamo (Itália), julho 2017. Foto: Ricardo Gomes.

151
O sentimento como aroma na maturidade artística

Por que realizar um espetáculo? Essa talvez seja uma das questões mais
fundamentais que se apresenta para a minha própria maturidade artística. Fazer teatro,
como atriz, foi sempre a busca por uma dimensão do sensível, um caminho de
conhecimento e de transformação de si. Qual seria então a qualidade, o “aroma do
tempo” (Han, 2016), que emerge da minha trajetória, em busca dessa dimensão? Os
estudos gudijeffianos oferecem uma pista ao apontar o sentimento como “instrumento
essencial no conhecimento” (SALZMANN, 2015, p. 79). Claramente a analogia entre o
trabalho do ator e o trabalho sobre si em Gurdjieff tem seus limites: seus objetivos e
seus meios são diferentes. Porém, a definição do que seja o sentimento no trabalho
proposto por Gurdjieff parece bastante pertinente àquilo que compreendo como
caminho em direção ao conhecimento no trabalho do ator:

[…] pensamos que sabemos o que é um sentimento. Ele é uma qualidade


inteiramente nova que tem a capacidade de conhecer. Quando ele aparece,
meu pensamento abandona a sua autoridade, e meu corpo, liberado de sua
influência, relaxa. A energia liberada encontra o seu próprio movimento, e
meu corpo se submete para encontrar uma relação justa para com ela. Esse
sentimento por aquilo que sou reúne em si aquilo que é visto e aquilo que vê.
Não existe mais um objeto e um observador. Eu sou ambos quem vê e que é
visto. Quando me abro inteiramente a minha Presença, quando “Eu Sou”,
entro em um mundo diferente onde nem o tempo nem o espaço existem. Eu
sou um, um todo. Os pensamentos cessam e a razão desaparece. Eu sinto o
“Eu” (SALZMANN, 2015, p. 79).

Nos estudos gurdjieffianos, corpo, mente e sentimento são forças que devem
ser harmonizadas para permitir uma conexão estável com uma força mais alta; somente
então uma transformação pode ter lugar (RAVINDRA, 2001). Observando meu percurso
artístico, no entanto, percebo que por muito tempo, houve uma desarmonia entre essas
três forças: o corpo assumiu o comando, como se esse pudesse ser separado da mente
e como se ambos não tivessem relação com o terceiro elo da corrente, o sentimento.
Penso que um dos sinais concretos da chegada da maturidade é que ela impõe uma
reavaliação quanto ao uso do corpo; o avançar da idade traz desgastes e limitações
físicas. Essa reorganização das relações entre corpo e mente poderia abrir espaço para
que o sentimento pudesse se instalar. No processo de criação do espetáculo solo O amor
possível, é como se esses três fatores estivessem buscando uma reorganização em torno
da busca de novos caminhos expressivos. Sendo o sentimento “uma qualidade mais
intensa de sensação” (SALZMANN, 2015, p. 81), a demora sobre ele poderia, talvez,
significar a possibilidade de uma maturidade artística “com aroma”, parafraseando Han
(2016). Teríamos, portanto, uma maturidade artística que permite ao sentimento

152
perdurar, para que possa ocupar seu espaço, tal como o aroma do incenso chinês, que
arde ao mesmo tempo que conserva suas cinzas.

Referências

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VESCOVI, Renzo. Scritti dal Teatro Tascabile. Org: Mirella Schino. Roma: Bulzoni, 2007.

154
Ficha Técnica
PPGAC/unirio e Escola de Teatro da UNIRIO
apresentam:
NA UNIRIO
Agradecimentos Em 2009, nos 10 anos de morte de Grotowski,
Reitor: Ricardo Silva Cardoso
Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Evelyn Andréa Beltrão, Marieta Severo, José Luiz Coutinho, Flavia organizamos o primeiro Seminário Internacional
Goyannes Dill Orrico Gomes, Luiz Henrique Sá, Carolina Bassi de Moura, Juliana
Grotowski e agora, em 2019, fazemos uma segunda
Manhães, Jorginho de Carvalho, Eurides Lourenço, Márcio

uma cultura ativa


Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Jorge de Paula Costa Avila
Decana do CLA: Carole Gubernikoff Avenida Leandro Oliveira, Paulo Barbeto, Anderson Ratto, Clarisse edição. Embora, as datas de homenagem sejam
Diretor da Escola de Teatro: Luiz Henrique Sá Terra, Edinho, Da Guia, Francisco de Lima, Lino Rocca, Priscilla importantes, não é isso que nos move, porque o
Coordenador do PPGAC: Adilson Florentino Duarte, Jair Ramos, , Dayse Farid, Maria Clara Migliora e a
todxs que ofereceram suas casas em hospedagem solidária. interesse não está em um Grotowski “datado” ou
NO SEMINÁRIO “finalizado” ao qual seremos mais ou menos fiéis,

grotowski 2019:
Curadoria e coordenação geral: Tatiana Motta Lima mas em um Grotowski pesquisador, autocrítico,
Coordenação: Carla Pollastrelli, Fernando Mencarelli, Lidia Olinto, capaz de mudanças radicais de rumo. Interessa-nos
Luciano Matricardi, Michele Zaltron e Ricardo Gomes.

INTERNACIONAL
Coordenação regional (itinerâncias): Alice Stefânia e Lidia Olinto aquele Grotowski das “palavras praticadas”, palavras
(UNB), Daniel Plá (UFSM), Fernando Mencarelli e Monica Ribeiro nascidas da prática e endereçadas à prática não
(UFMG), Ricardo Gomes e Paulo Maciel (UFOP).
como receitas ou dogmas, mas como perguntas que
COMITÊ CIENTÍFICO podem nos interessar enquanto pesquisadores que
Formado pelos professores Antonio Attisani, Dariusz Kosiński, escola de teatro da unirio também somos. Ao nos depararmos com a cultura
Tatiana Motta Lima, Adilson Florentino, Fernando Mencarelli, avenida pasteur, 436 - fundos - urca
ativa, por exemplo, tema de nosso seminário, vemos
Monica Ribeiro, Ricardo Gomes, Paulo Maciel, Cassiano Quilici,
teatro poeira uma noção que, vinda do campo da arte, pode nos
Matteo Bonfitto, Renato Ferracini, Lidia Olinto, Luciana rua são joão batista, 104 - botafogo

seminário
Hartmann, Alice Stefânia Curi, Rita de Cássia de Almeida auxiliar a um pensar/fazer relacional mais lúcido
Castro, Fernando Villar, Daniel Reis Plá, Silvana Baggio, Flavio escola de capoeira angola renascer
de Campos Braga, Gilberto Icle, José Tonezzi e ainda por Carla rua Cândido mendes, 476 - glória e cidadão, pois ela nomeia ações artísticas que
Pollastrelli e François Kahn convocam à experiência de uma potencialização da
vida na contramão da pasteurização da sensibilidade
CONVIDADOS MARCA
ESCOLA DE TEATRO

cotidiana contemporânea. Nessas experiências, a


ESTENDIDA

realização
FUNDO CLARO

Antonio Attisani, Carla Pollastrelli, François Kahn, Guilherme


Kirchheim, Luciano Mendes de Jesus, Magda Złotowska, Mario Performance aparece como ação transformadora,
Biagini, Priscilla Duarte e Teo Spychalski
vinculada a uma política do sensível. A aventura
EQUIPE DE PRODUÇÃO de Grotowski é tão mais interessante quanto menos
Coordenação geral: Tatiana Motta Lima, com colaboração de MARCA
ESCOLA DE TEATRO
ESTENDIDA
procuramos certezas, e quanto mais nos deixamos
Luciano Matricardi e Michele Zaltron
FUNDO ESCURO

interrogar (ao interrogá-lo). Sejam bem-vindos e


Design gráfico: Alice Cruz
Gestor de Marketing Digital: Jhonattan Reis bom trabalho!
Analista de Marketing Digital: Whiverson Reis
Coordenação de comunicação virtual e impressa: Jeff Lyrio parcerias
Equipe de Assessoria de Imprensa: Ana Pinto e Marcia Fixel
Coordenação de Foto e Vídeo: Bruna Trindade e Thais Inácio
Equipe de Foto e Vídeo: Gabi Matos, Lia Rodrigues, Suellem
Fernouz, com colaboração de Pedro Martins e Vitor Medeiros.
Equipe de Tradução: André Grabois, Andreia Tamanini,
Caetano da Motta Lima Souza Ramos, Franciele Castilho,
Giovanna Ferrari, Luciáh Tavares, Priscilla Duarte, Ricardo
Gomes, Tatiana Motta Lima, Yasmin Piorino.
Equipe de Luz: Luma Wyżykowska, com colaboração de Jorge
Oliveira e Kay Lima
20/11
Equipe de Som: Akauã Santos e Heitor Acosta
-
25/11
PRODUÇÃO EXECUTIVA
Coordenação de Produção UNIRIO: Letícia Carvalho e Jai apoios
Gonçalves, com colaboração de Jeff Fagundes
Coordenação de Produção Teatro Poeira: Marcelo Miguez e
Walace Pinheiro
Coordenação de Produção E.C.A. Renascer: Bruna Trindade escola de teatro da unirio
Equipe: Anderson Caetano, Bruna Trindade, Camila Zampier,
Elyseu Rodrigues, Emanuel Cecchetto, Fellipe Estevão, Franciele
Castilho, Gabi Matos, Giovanna Ferrari, Heitor Mota, Isabelle teatro poeira
Cardoso, Jansen Castellar, Jeff Lyrio, Lucas Menezes, Luciáh
Tavares, Manuel Figueiredo, Renata Asato, Suellem Fernouz,
Esse evento foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Thauane Oliveira, Valentina Cárcano, Valentina Miranda, Walace
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 escola de capoeira angola renascer
Pinheiro, Whiverson Reis e Yasmin Piorino
programação 22 /11 14:00 às 16:00 Entrevista Pública
teatro poeira
22:30 ÀS 00:30 Coro Aberto
Escola de capoeira angola RENASCER
Mario Biagini Mario Biagini
Mediação: Lidia Olinto | Tradução: Yasmin Piorino
9:00 às 11:00 Oficina
20/11
Entrevistadores: Daniel Plá + Carla Andrea Lima
teatro poeira
A Voz Viva 17:30 às 20:30 Palestra seguida de

14:00 Às 16:00 Mesa de Abertura


Guilherme Kirchheim lançamento de livro
unirio - PALCÃO
25/11
UNIRIO - PALCÃO 9:00 às 11:00 ENCONTRO TEÓRICO O Jardim - Alguns motivos do trabalho parateatral
teatro poeira François Kahn
Carla Pollastrelli, Daniel Reis Plá, Fernando 9:00 às 11:00 Oficina
Mencarelli, Lidia Olinto, Luciano Mendes de Jesus, Liberdade como tentação primária (Grupo 1) Mediação: Letícia Carvalho | Tradução: Tatiana Motta Lima TEATRO POEIRA
Michele Zaltron, Ricardo Gomes e Tatiana Motta Magda Złotowska
A Voz Viva
Lima Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: André Grabois 22:30 ÀS 00:30 Ensaio do Coro Aberto Guilherme Kirchheim
Escola de capoeira angola renascer
16:30 Às 18:30 Palestra 10:00 àS 12:00 Exibição de Filme Mario Biagini 14:00 às 16:00 Mesa-Redonda
UNIRIO - PALCÃO unirio - AUDIOVISUAL TEATRO POEIRA
Cidadania e arte: questões sobre a François Kahn, Magda Złotowska e Teo Spychalski
contemporaneidade 14:00 às 16:00 Palestra
Em conversa com: Tatiana Motta Lima + Fernando Mencarelli
Mario Biagini TEATRO POEIRA

24/11
Tradução: André Grabois e Giovanna Ferrari
Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: Yasmin Piorino Atravessar os anos 70 com Grotowski: incertezas,
miragens, descobertas
17:30 às 19:30 Palestra
19:30 ÀS 21:30 Espetáculo Teo Spychalski
TEATRO POEIRA
UNIRIO - PALCÃO Mediação: Fernando Mencarelli | Tradução: Tatiana Motta Lima 9:00 às 11:00 Oficina Pensamentos de improviso - Um olhar sobre as
Episódio I: Uenda-congembo (morrer) TEATRO POEIRA discussões e vivências realizadas no seminário
Solo de Luciano Mendes de Jesus 17:30 às 19:30 Entrevista Pública
A Voz Viva Antonio Attisani
unirio - PALCÃO
Guilherme Kirchheim Mediação: Ricardo Gomes | Tradução: Luciáh Tavares
Carla Pollastrelli
Mediação: Zeca Ligiero | Tradução: Andreia Tamanini 9:00 às 11:00 ENCONTRO TEÓRICO 20:30 ÀS 22:30 Espetáculo

21/11
Entrevistadores: Ricardo Gomes + Fernando Mencarelli TEATRO POEIRA TEATRO POEIRA
Liberdade como tentação primária (Grupo 3) MOLOCH - Testemunha: Allen Ginsberg
20:00 ÀS 22:00 Ensaio Aberto conversa Magda Złotowska Solo de François Kahn
unirio - PALCÃO
Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: André Grabois
10:00 às 12:00 Palestra O Amor Possível
teatro poeira Solo de Priscilla Duarte 10:00 à 12:00 Exibição de Filme
Parateatro e Teatro das Fontes: experiências e textos Mediação: José Tonezzi unirio - AUDIOVISUAL
Carla Pollastrelli
Mediação: Patricia Furtado de Mendonça 14:00 às 16:00 Palestra antes e depois do seminário
Tradução: Andreia Tamanini TEATRO POEIRA
FRT Workcenter - Os atuais eventos
14:00 Às 16:00 Espetáculo
teatro poeira
23 /11 performativos do Focused Research Team in Art
as Vehicle
18 e 19/11
10 às 13:00 e 15 às 18:00
MOLOCH - Testemunha: Allen Ginsberg Guilherme Kirchheim unirio
Solo de François Kahn 9:00 às 11:00 Oficina Mediação: Camillo Scandolara Minicurso Grotowski Pós-Teatral
TEATRO POEIRA
Ministrado por Lidia Olinto e Tatiana Motta Lima
17:30 às 19:30 Palestra A Voz Viva 17:30 às 20:30 Mesa REDONDA
unirio - palcão Guilherme Kirchheim UNIRIO - palcão
Antes, durante e depois do teatro (pensando em Mestres e Doutorandos com pesquisas em 26/11
Grotowski e além) 9:00 às 11:00 ENCONTRO TEÓRICO Grotowski 14:00 às 18:00
Antonio Attisani TEATRO POEIRA Carolina de Pinho Magalhães (UFOP/UFMG), colégio leopoldo - nova iguaçu
Mediação: Michele Zaltron | Tradução: Ricardo Gomes Liberdade como tentação primária (Grupo 2) Daniele Sampaio (UNICAMP), Evelin Reginaldo
Magda Złotowska (UNIRIO), Ilda Andrade (UNESP), Letícia Carvalho Encontro Mario Biagini e Tatiana Motta Lima
(UNIRIO), Liége Müller (UNIRIO), Maria Lyra com os grupos do Rede Baixada Em Cena a convite
20:00 Às 22:00 Encontro Prático Mediação: Tatiana Motta Lima | Tradução: André Grabois
(USP), Silvana Baggio Ávila (UFRGS) e Thiago de Lino Rocca
unirio - sala 602
10:00 àS 12:00 Exibição de Filme Miguel Sabino (UNESP)
Cantos Vissungos apresentação de documentário
Luciano Mendes de Jesus unirio - AUDIOVISUAL Mediação: Simone Shuba
Rede Baixada em Cena - História de um teatro periférico

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