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DOI:http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n13.p91-104
Ivor F. Goodson
https://orcid.org/0000-0001-6839-9490
Guerrand-Hermès Foundation for Peace
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“Oi Iv, como vai? Boa sorte na escola!” Notas (auto)biográficas constitutivas da história de vida de um educador
Scherto Gill4 realizou uma entrevista5 com sociedade inglesa. Se você é filho de um traba-
Ivor, escutando sua narrativa de vida a par- lhador braçal, está até certo ponto à margem
tir de episódios marcantes que retratam com do sistema neste país, e esse sentimento de
suas escolhas e com os acontecimentos que, marginalidade é uma grande sorte em muitos
de certa forma, definiram sua trajetória de aspectos. Uma das vantagens, penso, é trans-
educador. Passaremos a apresentar trechos formar o que pode parecer infortúnio social em
dessa entrevista, como mônadas (BENJAMIN, um enorme ganho, porque é claro que isso lhe
1987; PETRUCCI-ROSA e col., 2011), a fim de dá um grande impulso para entender o centro.
mobilizarmos os aspectos mais importantes
que adensam sua estória, tornando-a história Mônada 2
de vida. Não havia livros em casa
O conjunto de dezesseis mônadas apresen- Cresci em uma casa onde não era ensina-
tado a seguir delineia um retrato narrativo do do a ler. Uma das razões pelas quais eu nem
educador, marcado por uma densidade temá- pensava em ler é que não havia livros em casa.
tica constituída de eventos, escolhas, sensibi- Meu pai tinha problemas com leitura, não lia
lidades e decisões. (Goodson, 2013) realmente. Minha mãe lia um pouco, mas não
lia para mim e não achava importante me en-
4 Dr. Scherto Gill é pesquisadora visitante na University
of Sussex e no GHFP- U.K.
sinar a ler, porque pensava, de várias manei-
5 A entrevista na íntegra está publicada no artigo Ex- ras, que era a narrativa e a cultura oral que
ploring History and Memory through Autobiographical
Memory, publicado na revista Historia y Memoria de
identificavam nosso grupo. Então aprendi a
la Educación 1 (2015): 265-285 ser um bom contador de histórias, não um lei-
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va a reação deles porque tinha um ambien- cola primária, ainda andando de bicicleta pela
te generoso. Se estivesse tentando escapar, zona rural, que não tinha um centavo no bolso
consideraria somente os bolos de lama, mas quando saía com meus amigos: eles precisa-
em semanas o cumprimento era: “Oi Iv, como vam comprar as bebidas, pagar a comida. Não,
vai? Boa sorte na escola!”. E essa negociação, eu não me sentia nada inteligente. Então, o
essa capacidade de carregar as pessoas com que fiz aos 15 anos? Deixei a escola para tra-
você, é algo que acho que aprendi. balhar em uma fábrica. Na verdade, não me
sentia privilegiado como garoto de escola se-
Mônada 11 cundária, exceto pela pura alegria de aprender
Solidariedade e sucesso que nunca me deixou.
Nasci em 1943, por isso, estamos falando da
Inglaterra no início dos anos 50, um país muito, Mônada 13
muito pobre, com enorme solidariedade entre Casacos azuis
as comunidades da classe trabalhadora e um A escola ficava entre Wokingham e Egeley,
propósito de auto empoderamento. Em 1945, o ambas áreas de classe média bastante res-
governo trabalhista valorizava as pessoas co- peitáveis. Portanto, apenas algumas pessoas
muns e tentava construir um mundo para elas, vieram das margens das vilas da classe traba-
com um sistema de assistência social; tentava lhadora ou das zonas rurais. Provavelmente
construir escolas e hospitais que seriam bons cinco por cento das crianças da escola eram
para todos. Existia um forte sentimento de da minha tribo. Existiam sinais que indicavam
uma classe de pessoas que estavam progressi- isso. Havia dois lugares para comprar o casaco
vamente vencendo. Portanto, a mobilidade so- do uniforme: na Jacksons, que era uma forne-
cial nesse contexto é um movimento bastante cedora de alta classe, ou na Co-operative. En-
ímpar e eu diria que, de certa forma, ainda é. tão, desde o início, era evidente quem eram os
No entanto, agora você enfrenta uma situação cinco por cento e, muito rapidamente, os casa-
em que esse sentimento de solidariedade e cos azuis de má qualidade perderam o azul e
sucesso de classe foi desmantelado como as ficaram esfarrapados, de modo que tudo ficou
fábricas. Então, agora, tudo o que você enfren- claramente marcado.
ta é uma espécie de classe baixa empobrecida,
a qual todos gostariam de evitar. Mas naqueles Mônada 14
dias, não. O nosso “h”
Na minha turma, havia um outro garoto
Mônada 12 que falava com sotaque bem claro de Berkshi-
A moto, as roupas, as namoradas re, onde soltava seus “h”, e é assim que con-
Tinha 15 anos. Queria ir para a universida- versávamos. Eu adorava telefonar para meu
de? Certamente não, porque todos os meus pai e conversávamos assim. Até certo ponto,
companheiros estavam voltando para casa perdi esse sotaque, mas, como digo, quando
com bons salários da fábrica enquanto eu es- estou bêbado, volto direto a ele. Portanto, ob-
tava andando em uma bicicleta de segunda viamente, um processo de edição aconteceu
mão. Todos tinham grandes motos com namo- com meu sotaque. Mas éramos os dois garotos
radas nas garupas e roupas de última moda. da escola que falavam assim, constantemente
Tinham tudo o que eu queria: a moto, as rou- sendo instruídos a evitarmos o nosso ‘h’ e a
pas, as namoradas. Era apenas o garoto da es- não falarmos assim.
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entre o saber do camponês sedentário e o sa- O futuro que postulamos para esse conflito
ber do estrangeiro, diferentes em tudo, menos ao longo da vida – entre o aprendizado tribal
na capacidade de transmitir a experiência. e a socialização escolar – é a “aprendizagem
A trajetória da criança e do jovem filho da narrativa”. O que queremos dizer com isso?
classe trabalhadora – que, inserido no con- Queremos dizer que o professor permane-
texto do trabalho na fábrica, ressignifica seu ce como um mediador independente entre a
contexto social e se torna um educador crítico aprendizagem tribal e a aprendizagem escolar.
e comprometido com causas relacionadas a E se tiverem sucesso, o professor procurará
solidariedade, sonhos e missões – é uma ex- mediar construindo uma narrativa que leve o
periência de lugares e tempos distantes que aluno para outro lugar, e é isso que queremos
se conjugam com as histórias que o intelectual dizer com “aprendizagem narrativa” e a he-
narra e vive em seu contexto de produção. Em rança do “capital narrativo”. É muito diferente
sua obra, o saber do camponês sedentário se do intercâmbio simbólico normal que ocorre
articula com o conhecimento do estrangeiro na escola, que usualmente se configura como
(PETRUCCI-ROSA, 2019). uma transmissão unidirecional direta da cul-
As mônadas aqui apresentadas refletem o tura dominante representada pela disciplina
que Benjamin conceitua como “experiência”, o escolar e pelo professor para a criança, sem
que chamaríamos de aprendizagem tribal. Essa qualquer mediação ou reconhecimento de
é a maneira indígena de saber que é trans- qualquer aprendizagem tribal que a criança já
mitida frequentemente em forma de história tenha.
entre os membros de uma tribo. Há muitos Para Benjamin, transmitir a experiência
exemplos de aprendizagens proporcionadas não é apenas repetir uma história, mas tam-
pelos pais na narrativa. A aprendizagem tribal bém transmitir às futuras gerações os sabe-
vai além das conversas dos pais – é parte da res de suas vivências, como é possível em
maneira de conhecer e de aprender, incluindo um currículo narrativo (GOODSON, 2007). A
aprendizados com amigos na rua, na vila e na narrativa sempre tem uma dimensão utilitá-
vida em geral. A aprendizagem tribal é como ria (BENJAMIN, 2007). Ao narrador se atribui a
conhecemos o mundo antes de encontrarmos capacidade de transmitir sua experiência de
as forças da socialização representadas, em forma útil e, numa dimensão mais elaborada,
certo sentido, pela escola e pela cultura em como um conselho. Nesse sentido, a narrati-
geral. Assim, pode ocorrer um conflito entre a va ensina.
aprendizagem tribal, que nos diz quem somos Contar histórias sempre foi a arte de contá-las
e quem fomos, e qual foi o nosso passado an- de novo, e ela se perde quando as histórias não
cestral e qual é o nosso futuro e as forças da são mais conservadas. Perde-se porque nin-
guém mais fia ou tece enquanto ouve a história.
socialização representadas pela escola e pela
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo,
cultura dominante. mais profundamente se grava nele o que é ou-
Por que isso é muito importante para a vido. Quando o ritmo do trabalho se apodera
educação? Porque, com muita frequência, dele, ele escuta as histórias de tal maneira que
particularmente na compreensão da “peda- adquire espontaneamente o dom de narrá-las.
Assim se teceu a rede em que está guardado o
gogia do oprimido” (FREIRE, 1987), a diferen-
dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje
ça entre aprendizagem tribal e aprendizagem
por todos os lados, depois de ter sido tecida, há
escolar é o dilema central que os professores milênios, em torno das mais antigas formas de
enfrentam. trabalho manual (BENJAMIN, 2007, p. 91).
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justiça social. Apresentamos, também, apon- AS PONTES de Madison [The Bridges of Madison
tamentos (auto)biográficos de um dos autores, County]. Direção de Clint Eastwood. Universal City,
com o intuito de demonstrar a potencialidade Califórnia: Amblin Entertainment e Malpaso Pro-
ductions, 2005. 1 DVD (135 min.).
da narrativa que se configura como história de
vida, à medida que dialoga com um tempo his- BENJAMIN, W. The Storyteller. In: BENJAMIN, W. Illu-
tórico e um contexto social mais amplo. minations. New York: Schoken Books, 2007. p. 83-110.
Com esses apontamentos, defendemos a
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Ja-
emergência e a consolidação de práticas cur-
neiro: Paz e Terra, 1987.
riculares voltadas para a aprendizagem narra-
tiva, que ao romper com as estórias e firmar FROCHTENGARTEN, F. A memória oral no mundo
as histórias, estabelecem os processos cola- contemporâneo. Estudos Avançados, São Paulo, v.
19, n. 55, p. 367-376, set./dez. 2005. Disponível em:
borativos como eixo de uma educação estética
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apoiada numa cultura ética.
t&pid=S0103-40142005000300027>. Acesso em: 12
Nesse contexto, padrões de individualida-
mar. 2020.
de podem se transformar e mudar a nature-
za da existência humana. Mesmo que nossas GAGNEBIN, J. M. História e Narração em Walter Ben-
narrativas sejam reconstruídas, pelo menos jamin. São Paulo: Perspectiva, 2004.
gado e desenvolvido para relacionar narrativas GOODSON, I. F. Developing Narrative Theory: Life
pessoais a outras de propósito social mais am- Histories and Personal Representation, London:
plo. Nesse sentido, esse capital necessitará ser Routledge, 2013.
estendido ao recorrente individualismo que as
GOODSON, I. Explorar la historia y la memoria a
novas economias flexíveis estão demandando,
através de la memoria autobiográfica. Historia y
pois, no novo futuro social, nossas capacida- Memoria de la Educación, Sociedad Española de
des narrativas carregam uma das possibilida- Historia de la Educación, 1, 2015. p. 263-284.
des de perspectiva que nosso mundo poderá
GOODSON, I. F. Narrativas em Educação: a Vida e a
vir a ter.
Voz dos Professores. Porto: Porto Editora, 2015.
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MAIA, G. Bolsonaro defende trabalho infantil, mas PETRUCCI-ROSA, M.I. Narrative theory and narrative
diz que não propõe descriminalização para não ser curriculum: steps of resistance and refraction. In:
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vel em http://www.curriculosemfronteiras.org/vo- Aprovado em: 20.03.2020
Ivor. F. Goodson trabalha na Guerrand-Hermès Foudation for Peace em Brighton – U.K. Desenvolve pesquisas e estudos,
há cerca de 40 anos, sobre questões importantes e cruciais do campo da Educação, em termos de políticas educacio-
nais, estudos históricos das disciplinas escolares, teorias narrativas, estudos de história de vida, profissionalismo e
carreira docente (www.ivorgoodson.com). Já trabalhou em instituições de pesquisa educacional em vários países como
EUA, Canadá, Estônia, entre outros, além da Inglaterra. E-mail: ivorgoodson@gmail.com
Maria Inês Petrucci-Rosa é Livre-Docente em Educação Escolar, é professora Associada no Departamento de Ensino e
Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Atua nos Programas de Pós Gra-
duação em Educação e Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática, desenvolvendo pesquisas com temáticas
relacionadas a narrativa, currículo, políticas curriculares e histórias de vida. Coordena o Grupo de Estudos de Práticas
Curriculares e Narrativas Docentes (www.geprana.com) e é bolsista Produtividade CNPq, nível 2. E-mail: minespetrucci@
gmail.com
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