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Ivor F.

Goodson; Maria Inês Petrucci-Rosa

DOI:http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n13.p91-104

“OI IV, COMO VAI? BOA SORTE NA ESCOLA!” NOTAS


(AUTO)BIOGRÁFICAS CONSTITUTIVAS DA HISTÓRIA
DE VIDA DE UM EDUCADOR

Ivor F. Goodson
https://orcid.org/0000-0001-6839-9490
Guerrand-Hermès Foundation for Peace

Maria Inês Petrucci-Rosa


https://orcid.org/0000-0002-2504-614X
Universidade Estadual de Campinas

resumo O artigo trata de relações entre estórias e histórias de vida, abordan-


do para isso possibilidades de interlocução entre ideias já debatidas
sobre aprendizagem narrativa e sobre a experiência benjaminiana.
Como empeiria, revisita notas (auto)biográficas de um dos autores,
originadas de uma entrevista concedida e publicada em 2015, onde
sua infância narrada aponta para um tempo futuro no qual o educa-
dor mantém seu senso de propósito de justiça social. A história de
vida desse educador, agora configurada em mônadas benjaminianas,
possibilita reflexões sobre a natureza da (auto)biografia que se for-
talece como ponto de partida no sentido da luta por uma educação
que favoreça a valorização de aprendizagens tribais transmutadas
em aprendizagens narrativas calcadas em sentimentos, sonhos e
compaixão. Com essas considerações, pelo menos duas vertentes
teórico-metodológicas que operam com conceitos de narrativas são
conjugadas: aquela proposta por Ivor Goodson e aquela advinda da
contribuição intelectual de Walter Benjamin. Aproximar tais perspec-
tivas de diferentes origens, mas de propósitos convergentes, con-
figura-se numa fecunda oportunidade de pensar a educação como
forma de resistência e transformação num mundo marcado pela de-
sigualdade social.
Palavras-chave: Narrativa, História de vida. (Auto)biografia.

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“Oi Iv, como vai? Boa sorte na escola!” Notas (auto)biográficas constitutivas da história de vida de um educador

abstract “HI IV, HOW ARE YOU? GOOD LUCK AT SCHOOL!”


(AUTO)BIOGRAPHICAL NOTES CONSTITUTIVES OF A
TEACHER’S LIFE HISTORY
The article deals with relationships between stories and life histo-
ries, addressing for this the possibilities of dialogue between ideas
already debated about narrative learning and the Benjaminian ex-
perience. As empeiria, revisits (auto)biographical notes from one of
the authors, originated from an interview published in 2015, where
his narrated childhood points to a future time in which the educa-
tor maintains his sense of purpose for social justice. His life story,
now shaped by Benjamin monads, allows reflections on the nature
of (auto)biography that strengthens itself as a starting point for the
struggle for an education that favours the appreciation of tribal learn-
ing transmuted in narrative learning grounded in feelings, dreams
and compassion. With these considerations, at least two method-
ological-theoretical strands that operate on narrative concepts are
combined: that proposed by Ivor Goodson and that coming from the
intellectual contribution of Walter Benjamin. Bringing these perspec-
tives together from different origins but with converging purposes is
a fruitful opportunity to think of education as a form of resistance
and transformation in a world marked by social inequality.
Keywords: Narrative. Life history. (Auto)biography.

resumen “HOLA IV, ¿CÓMO ESTÁS? BUENA SUERTE EN


LA ESCUELA!” NOTAS (AUTO)BIOGRÁFICAS
CONSTITUTIVAS DE LA HISTORIA DE VIDA DE UN
EDUCADOR
El artículo aborda las relaciones entre estorias e historias de vida,
abordando así las posibilidades de diálogo entre ideas ya debatidas
sobre el aprendizaje narrativa y sobre la experiencia benjaminiana.
Como empeiria, revisita las notas (auto)biográficas de uno de los
autores, a partir de una entrevista concedida y publicada en 2015,
donde su infancia narrada apunta a un momento futuro en el que
el educador mantiene su sentido de propósito para la justicia so-
cial. La historia de su vida, ahora moldeada por mónadas benjami-
nianas, permite reflexionar sobre la naturaleza de la (auto)biografía
que se fortalece como un punto de partida para la lucha por una
educación que favorezca la apreciación del aprendizaje tribal trans-
mutado en el aprendizaje narrativo basado en sentimientos, sueños

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y compasión. Con estas consideraciones, se combinan al menos dos


hilos teórico-metodológicos que operan sobre conceptos narrativos:
el propuesto por Ivor Goodson y el que proviene de la contribución
intelectual de Walter Benjamin. Reunir estas perspectivas desde di-
ferentes orígenes pero con propósitos convergentes es una oportu-
nidad fructífera para pensar en la educación como una forma de re-
sistencia y transformación en un mundo marcado por la desigualdad
social.
Palabras-clave: Narrativa. Historia de vida. (Auto)biografía.

Introdução Das estórias às histórias de vida


Este artigo expressa mais um encontro entre O tempo das “grandes narrativas” do progresso
dois educadores que se interessam pelos estu- humano se encontra no passado. Como afirma
dos (auto)biográficos: Ivor. F. Goodson e M. Inês Williams (2005), a partir do século XIX, a rela-
Petrucci-Rosa. Nesse encontro, temos a inten- ção entre o progresso e as grandes narrativas
ção de promover reflexões acerca das poten- da história cresceu vertiginosamente. Nos dias
cialidades da narrativa (auto)biográfica como de hoje, no entanto, a ideia de grandes gru-
forma de transformar estórias em histórias de pos discutindo assuntos importantes parece
vida, tendo como foco o enraizamento em con- ficar cada vez mais inatingível. Já no século XX,
textos sociais, históricos, políticos e culturais acompanhamos o colapso das grandes narra-
mais amplos. Para isso, aspectos da biografia tivas, tanto nas ciências humanas quanto na
de um dos autores – I. F. Goodson – serão apre- psicologia de Freud, nas ciências positivistas,
sentados, pois sua história de vida, em conso- na consciência marxista de classe, entre ou-
nância com sua obra, constitui importante pa- tros. Com os usos indevidos da tecnologia em
trimônio de aprendizagem no campo da Edu- práticas relacionadas a genocídios, à elimina-
cação, com repercussão mundial. Sua história ção de etnias, ao holocausto e suas câmeras
de vida ressignifica a experiência educacional de gás, a história do século XX desmentiu as
ao mobilizar aprendizagens (auto)biográficas promessas de progresso material e científico,
e recuperar modos coletivos de vida. (SIKES e em sintonia com uma ordem moral superior.
DOWNES, 2019) As grandes narrativas passaram por cri-
Procuramos demonstrar como a memória ses profundas de credibilidade. Passamos a
(auto)biográfica ajuda a definir e localizar nos- acompanhar a emergência de um outro tipo de
sas narrativas de identidade pessoal. A (auto) narrativa, de âmbito bem mais restrito, indivi-
biografia provê orientação para a projeção das dualizado, que configura as estórias pessoais.
ações que investimos ao longo da vida e, as- Com a emergência de tais estórias expressas
sim, torna-se central para a existência huma- em pequenas narrativas, vimos também certo
na. As implicações de onde a memória (auto) regresso a princípios antigos e fundamentalis-
biográfica se localiza nesse espectro de pos- tas. No modo de vida contemporâneo, pode-
sibilidades são muito relevantes, consideran- mos constatar o estabelecimento da narrativa
do seu papel na construção e manutenção da de vidas individualizadas, configurando o que
identidade, bem como nas atividades associa- tem sido chamado de a “era da narrativa”, mar-
das de ensino e aprendizagem. cada por políticas narrativas, de modos nar-

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rativos e de identidades narrativas. Seria até to do mundo. [...] Obscurecendo os limites do


mais correto dizermos que ao contrastarmos o individualismo, tais testemunhos manifestam
período histórico que vivemos com os séculos frequente isolamento e alienação social” (AN-
que precederam a Idade das Luzes, estamos DREWS, 1991, p. 13).
na “era das pequenas narrativas”. Essas são questões que nos mobilizam à
Vemos aflorar, no cenário brasileiro con- medida que a era da narrativa progride. Se as
temporâneo, modos de identidade narrativa estórias de vida não alcançam contextos so-
marcados por retrocesso e ignorância. Pode- cioculturais, tampouco sua localização histó-
mos mencionar um exemplo no episódio da rica num dado tempo e lugar, passos largos
declaração do presidente Bolsonaro em rela- de retrocesso são dados no que se refere à
ção ao trabalho infantil: “Olha só, trabalhando dimensão política e coletiva mais abrangente.
com 9, 10 anos de idade na fazenda, não fui Defendemos que o escrutínio do contexto
prejudicado em nada. Quando algum moleque histórico é a ferramenta com a qual é possível
de 9 ou 10 anos vai trabalhar em algum lugar, enfrentar a questão da individualização e do
está cheio de gente aí (falando) ‘trabalho es- preconceito. Procurando formas de superação
cravo, não sei o que, trabalho infantil’. Agora, de tal perspectiva, é primordial abordarmos
quando está fumando um paralelepípedo de fatores históricos associados ao tempo e ao
craque, ninguém fala nada. Então trabalho não período dos acontecimentos, rompendo os li-
atrapalha a vida de ninguém.”, disse o presi- mites das pequenas narrativas ao entretecer-
dente1. Ou, ainda, quando o presidente Bol- mos contextos sociais e políticos mais amplos
sonaro vem a público e declara que os dados com as estórias de vida. Tal rompimento cami-
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais nha na direção do enraizamento das narrati-
(INPE) acerca do aumento do desmatamento vas, assim como propõe Frochtengarten:
nos últimos anos, em território brasileiro e,
O enraizamento pressupõe a participação de
em particular, na Amazônia, são mentirosos,
um homem entre outros, em condições bastan-
e que tais práticas vêm sendo produzidas por te determinadas. O homem enraizado participa
aqueles que desejam exercer oposição políti- de grupos que conservam heranças do passa-
ca a seu governo2. Esses são exemplos daquilo do. Podem ser transmitidas pelas palavras dos
que podemos chamar de “política narrativa”, mais velhos: um ensinamento, uma sugestão
produzida a partir de estórias. Como afirmado prática ou uma norma. Podem ser recebidas
como bens materiais: a paisagem de uma cida-
em Goodson (2015, p. 10), é “tudo uma questão
de, a terra revolvida pelos ancestrais, a casa por
de criar o tipo certo de estória”. eles habitada ou objetos que revivem feitos de
O ponto de vista “pessoal”, descompromis- antigas gerações. Em outros termos, diríamos
sado com contextos sociais, políticos ou cien- que a participação social do homem enraizado
tíficos, tem sido construído em alguns países está assentada em meios onde recebe os prin-
cípios da vida moral, intelectual e espiritual que
ocidentais como uma versão especial, calca-
irão informar sua existência. (Frochtengarten,
da numa perspectiva individualista e restrita
2005, p. 368). Para investirmos num trabalho de
do mundo. “Constitui, pois um ponto de vista tecer narrativas (auto)biográficas enraizadas
irreconhecível para uma grande parte do res- como forma de aprendizagem de vida, é ne-
1 Notícia veiculada por diferentes agentes de comuni- cessário não cairmos nas armadilhas de indivi-
cação, dentre eles, o jornal O Globo, em matéria pu- dualização e descontextualização. Dessa forma,
blicada em 04 de julho de 2019 (MAIA, 2019). parece-nos fundamental uma compreensão do
2 Notícia veiculada por diferentes agentes de comuni-
cação, dentre eles, o Portal de Notícias G1, em matéria contexto histórico e social, recolhendo estórias
publicada em 21 de julho de 2019 (LIS, 2019). de vida que se transformam em histórias de

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vida ao serem narradas em processos colabo- Movendo-se em um caleidoscópio, a mô-


rativos, à medida que incorporam informações, nada é partícula que junto a outras, traz pos-
dados e outras versões advindas de processos
sibilidades de compreensão de contextos
de contextualização. Como afirmado em Good-
sociais, culturais e políticos. Para Benjamin,
son (2015), ao nos deslocarmos das estórias de
vida para as histórias de vida completas, incor- apoiado em Leibniz, cada mônada pode ser
porando a análise do curso de vida, estamos um “espelho do universo”, que harmoniza em
valorizando o potencial para a compreensão do si o infinito e o particular (BENJAMIN, 2007).
modo como o tempo e o contexto demarcam as No texto Infância em Berlim por volta de 1900,
“vidas de aprendizagem” das pessoas, com foco
Benjamin apresenta uma série de pequenas
na inserção a narrativa de vida individual num
contexto coletivo. Nesse processo, procuramos narrativas que remetem à sua infância, nas
emendar a ruptura entre a narrativa de vida in- quais, vislumbra-se a articulação entre o vi-
dividual e a experiência coletiva e histórica. vido particular e esferas sociais mais amplas,
resgatando a experiência do passado infan-
Com essa aposta nas potencialidades das
til, ressignificado a partir do olhar adulto. O
“vidas de aprendizagem”, que buscam inserir
sujeito que ali se revela é imbuído de uma
a narrativa individual num tempo e lugar co-
dimensão social ampliada, pois, como afirma
letivo e histórico, passamos a apresentar no-
Jeanne-Marie Gagnebin, “renunciando à clau-
tas (auto)biográficas de um dos autores. Essa
sura tranqüilizante, mas também à sufocação
iniciativa se justifica à medida que se trata de
da particularidade individual, é atravessado
um educador com uma trajetória de mais de
pelas ondas de desejos, de revoltas, de de-
quarenta anos no campo da educação, com
sesperos coletivos” (GAGNEBIN, 2004, p. 74-
uma obra de repercussão mundial (SIKES e DO-
75). Os pequenos textos memorialísticos são
WNES, 2019).
chamados de mônadas, à medida que refle-
tem em suas particularidades os elementos
A abordagem teórico- desse universo social.
metodológica proporcionada
A mônada revela-se como uma chave para que
pelas mônadas se mantenha o equilíbrio entre um individua-
Narrativas são maneiras de relatar nossas ex- lismo idiossincrático e hermético, que não se
comunica com o mundo exterior, e uma cons-
periências, que podem ser materializadas no
ciência social ilusória que pretenda abarcar
que chamamos de mônadas, movidos pela ins- os sujeitos desprezando suas especificidades.
piração produzida pela leitura de A Infância Nesse sentido, a mônada pode revelar o cará-
em Berlim por Volta de 1900 (BENJAMIN, 2007). ter singular da experiência educativa realiza-
Mônadas são fragmentos narrativos ima- da, sem perder de vista suas articulações com
o universo amplo da cultura em que ela está
géticos, que exibem os matizes de um todo,
imersa e com o olhar subjetivo do pesquisador.
da mesma forma como ocorre com um calei-
(PETRUCCI-ROSA e col., 2011, p. 205)
doscópio. Na relação entre sua natureza frag-
mentária e o universal, que a mônada é cons- Do ponto de vista benjaminiano, a narra-
tituída por um elemento temporal de parali- tiva ressignifica própria experiência, na rela-
sação e de congelamento do fluxo da história, ção entre o eu e o outro, fortalecendo a ideia
como um flash ou snapshot3, guardando em si de que narrar é aconselhar. Operar com nar-
uma tensão. rativas não é produzir relatórios repletos de
informações a serem classificadas ou catego-
3 Emprestamos aqui a expressão snapshot utilizada por
José Machado Pais (PAIS, 2003). rizadas.

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Esses são os princípios assumidos na abor- Retrato Narrativo de Ivor


dagem teórico-metodológica que sustenta a
Mônada 1
nossa análise. Na perspectiva analítica, é im-
Detalhes da vida
portante considerar que para Benjamin (2007)
Penso que há certas continuidades no meu
quem adensa a narrativa é o ouvinte, o que
senso de propósito e na minha busca por sig-
implica assumir a busca de densidades temá-
nificado e, como diz Francesca, do filme As
ticas (GOODSON, 2013) que emergem a partir
Pontes de Madison (1995), de Clint Eastwood, é
dos episódios narrados em diferentes abran-
sempre uma combinação de detalhes diários:
gências e profundidades. Com esse princípio
os detalhes da vida. No filme, ela fala sobre
metodológico, organizamos os fragmentos
sonhos maravilhosos e, em seguida, volta aos
narrativos compondo um “retrato”, onde as
detalhes de sua vida e os abraça. Eu diria que
densidades temáticas se evidenciam conju-
há muitos detalhes em minha vida, mas o que
gadas com possibilidades imagéticas sobre o
os une é uma espécie de continuidade de an-
que é narrado. Outro aspecto importante a ser
seios em torno de questões de justiça social,
destacado no modo analítico da escuta das
igualitarismo – tratando as pessoas igualmen-
narrativas, é considerar os enraizamentos das
te diariamente e também ideologicamente.
histórias de vida em contextos sociais mais
Portanto, existe uma espécie de continuidade
amplos.
de crença, desde o início em que isso come-
çou. Essa crença de que as pessoas devem ser
Notas (auto)biográficas do tratadas igualmente certamente começou nas
educador minhas origens, que estavam nas margens da

Scherto Gill4 realizou uma entrevista5 com sociedade inglesa. Se você é filho de um traba-
Ivor, escutando sua narrativa de vida a par- lhador braçal, está até certo ponto à margem
tir de episódios marcantes que retratam com do sistema neste país, e esse sentimento de
suas escolhas e com os acontecimentos que, marginalidade é uma grande sorte em muitos
de certa forma, definiram sua trajetória de aspectos. Uma das vantagens, penso, é trans-
educador. Passaremos a apresentar trechos formar o que pode parecer infortúnio social em
dessa entrevista, como mônadas (BENJAMIN, um enorme ganho, porque é claro que isso lhe
1987; PETRUCCI-ROSA e col., 2011), a fim de dá um grande impulso para entender o centro.
mobilizarmos os aspectos mais importantes
que adensam sua estória, tornando-a história Mônada 2
de vida. Não havia livros em casa
O conjunto de dezesseis mônadas apresen- Cresci em uma casa onde não era ensina-
tado a seguir delineia um retrato narrativo do do a ler. Uma das razões pelas quais eu nem
educador, marcado por uma densidade temá- pensava em ler é que não havia livros em casa.
tica constituída de eventos, escolhas, sensibi- Meu pai tinha problemas com leitura, não lia
lidades e decisões. (Goodson, 2013) realmente. Minha mãe lia um pouco, mas não
lia para mim e não achava importante me en-
4 Dr. Scherto Gill é pesquisadora visitante na University
of Sussex e no GHFP- U.K.
sinar a ler, porque pensava, de várias manei-
5 A entrevista na íntegra está publicada no artigo Ex- ras, que era a narrativa e a cultura oral que
ploring History and Memory through Autobiographical
Memory, publicado na revista Historia y Memoria de
identificavam nosso grupo. Então aprendi a
la Educación 1 (2015): 265-285 ser um bom contador de histórias, não um lei-

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tor. Portanto, um aspecto da marginalidade é classe trabalhadora. O que mais me lembro


esse sentimento de empoderamento precoce, dessa casa era a imagem de papai dormindo
se você vê a leitura como empoderamento, a na poltrona depois de um dia de trabalho; ma-
alfabetização como empoderamento. mãe provavelmente no trabalho ou conversan-
do com vizinhos e eu provavelmente fora, na
Mônada 3 maior parte do tempo. Eu era um grande apre-
Cansado ciador da rua!
Eu não via muito meu pai porque ele tra-
balhava seis dias por semana, às vezes até Mônada 6
no domingo de manhã. Estava sempre cansa- Pequenos atos delinquentes
do quando chegava em casa e, portanto, não Passei muito tempo indo a um centro de
falava muito porque estava constantemente recreação. A partir das sete, todas as noites,
exausto. A única vez em que eu o via com mais eu estava lá, jogando futebol, jogando cartas,
frequência era nas férias de uma semana por brincando, fazendo coisas levemente trans-
ano. Minha mãe trabalhava como garçonete ou gressoras. Tive problemas com a polícia al-
na fábrica de munições, o que também fazia gumas vezes por fazer algazarras – serrando
com que eu não a visse muito. a bicicleta do mestre escoteiro ao meio, por
exemplo, e observando encantado quando ele
Mônada 4 subiu nela e metade dela quebrou... A polícia
A fábrica como destino apareceu para averiguar... Havia todo tipo de
Até os seis anos de idade eu não frequen- pequenos atos delinquentes. Era um garoto ra-
tava a escola, não confiávamos particularmen- zoavelmente orientado para a rua, um garoto
te nas escolas da minha vila. As escolas eram bastante rude, e todos os meus amigos eram
um lugar onde todos frequentavam e todos exatamente iguais.
fracassavam. No final, o destino era uma fábri-
ca de qualquer maneira. Havia uma profunda Mônada 7
desconfiança nas escolas na comunidade em Diferente dos meus amigos da escola
que cresci. É isso que representa a margina- Aprendi a ler quando tinha oito anos, por-
lidade. Isso significa que todas as crenças da que o professor foi até minha casa e disse à
sociedade – de que a alfabetização é uma coi- minha mãe e ao meu pai que eles deveriam
sa boa, a educação é uma coisa boa, as escolas tentar me ensinar a ler, que deveriam comprar
são uma coisa boa e assim por diante – não alguns livros para mim. Logo, aprendi a ler e
funcionam porque não são acessíveis às pes- comecei a adorar ler, tornando-me diferente
soas à margem. dos meus amigos da escola. Todos os amigos
da rua foram para a escola local, que era uma
Mônada 5 escola secundária moderna à época, e eu pas-
Grande apreciador da rua sei no 11+ 6, para meu próprio espanto e para o
Eu era filho único, meu pai era único filho espanto de todo mundo. Acredito que só havia
homem com doze irmãs e minha mãe era uma uma outra pessoa em nossa vila já havia pas-
entre oito... Nossa casa era uma moradia de sado no 11+.
tamanho razoável. Papai era um trabalhador 6 Nesse período, o exame 11+ (eleven plus) era destina-
muito atencioso e consciente. Então, de cer- do a estudantes do último ano do ensino primário,
para ingresso nas escolas secundárias que utilizavam
ta forma, éramos uma família respeitável da a seleção acadêmica.

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Mônada 8 queridos por mim (obviamente, quando você


Lone Pine 5 é filho único, conhece seus pais dessa ma-
Lembro-me do cheiro das tábuas da biblio- neira específica), influenciou a maneira como
teca em que minha mãe me levou para pegar respondi. As dificuldades que as passagens
o primeiro livro. Lembro-me do primeiro li- de fronteira colocavam eram consideráveis
vro de Leonard Gribble que tirei da prateleira na família da classe trabalhadora.
e li. Lembro-me do cheiro e da excitação que
os livros provocavam em mim. Lembro que Mônada 10
minha mãe me levou à William Smith, uma li- «Oi Iv, como vai? Boa sorte na escola!»
vraria, para comprar livros, porque meus pais O maior problema, é claro, era a reação
foram instruídos a me comprarem livros. Tive dos meus companheiros e, provavelmente,
permissão para escolher dois livros. Comprei entender a continuidade do meu sentido de
o Lone Pine 5, de Malcolm Saville, que ainda identidade. Pensar sobre como é ser o úni-
tenho, e me lembro de estar sentado e lendo... co garoto da vila que veste um casaco azul
Há uma brecha entre esse garoto desleixa- turquesa com um chapéu amarelo com pin-
do das ruas, de nariz arrogante, que adorava gentes, para atravessar a zona rural para ir à
brincar com bolas de futebol e sair com ga- escola. Ainda posso ouvi-los gritando “verme
rotas, e esse outro que ficava sozinho, lendo, secundarista” e jogando bolos de lama em
absolutamente absorvido no mundo de Lone mim no meu primeiro dia de ir à escola. E,
Pine 5, sendo transportado para outro lugar é claro, no segundo dia, tirei o casaco, tirei
por um livro. Portanto, desde o início, existe o chapéu e fui para a escola. O que sempre
uma estranha dupla face em minha personali- pude de alguma maneira fazer foi enfrentar
dade, que continua até hoje: de um lado está essa reação, que é um medo coletivo da al-
esse grande amor pela vida de rua romântica e teridade. Lá, a tribo estava expressando que
transgressora, e, do outro, um tipo acadêmico um dos desertores estava tentando escapar e
profundamente isolado e fechado em si mes- esse era eu, que tinha sido selecionado para
mo. Ambos são parte de mim. fazer isso. E como lidei com isso? Suponho
que essa é a chave para me entender agora:
Mônada 9 apenas lidei com isso! Dentro de semanas,
Filho único eu estava entrosado com eles novamente e
Minha mãe era uma mulher profunda- nunca mais fizeram aquilo. Na verdade, meus
mente inteligente, como era meu pai de melhores amigos, quando eu consegui passar
certa forma, mas ela realmente adoraria ter na universidade, costumavam me levar para
tido uma vida acadêmica criativa. Sempre beber e não me deixavam pagar – eles di-
tive consciência disso e eu ficava com mui- ziam que era para eu conseguir permanecer
ta pena da frustração que ela sentia com sua na universidade. Assim, meio que encontrei
vida. Quando ela chegou aos 104 anos, ainda uma maneira de negociar minha diferença
estava tentando encontrar uma maneira de e, provavelmente, tenho um senso exagera-
ser criativa. Então, de certa forma, acho que do de valorizar pessoas assim – pessoas co-
meu projeto de vida estava parcialmente re- muns que podem lidar com a sua diferença
lacionado ao sentimento de frustração dela, e, em certo sentido, sua rota de fuga e lidar
e parcialmente guiado por ele, também. Por- com isso com tanta beleza. Desde então, es-
tanto, cada um dos meus pais, que são muito tou tentando honrar essas pessoas. Valoriza-

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va a reação deles porque tinha um ambien- cola primária, ainda andando de bicicleta pela
te generoso. Se estivesse tentando escapar, zona rural, que não tinha um centavo no bolso
consideraria somente os bolos de lama, mas quando saía com meus amigos: eles precisa-
em semanas o cumprimento era: “Oi Iv, como vam comprar as bebidas, pagar a comida. Não,
vai? Boa sorte na escola!”. E essa negociação, eu não me sentia nada inteligente. Então, o
essa capacidade de carregar as pessoas com que fiz aos 15 anos? Deixei a escola para tra-
você, é algo que acho que aprendi. balhar em uma fábrica. Na verdade, não me
sentia privilegiado como garoto de escola se-
Mônada 11 cundária, exceto pela pura alegria de aprender
Solidariedade e sucesso que nunca me deixou.
Nasci em 1943, por isso, estamos falando da
Inglaterra no início dos anos 50, um país muito, Mônada 13
muito pobre, com enorme solidariedade entre Casacos azuis
as comunidades da classe trabalhadora e um A escola ficava entre Wokingham e Egeley,
propósito de auto empoderamento. Em 1945, o ambas áreas de classe média bastante res-
governo trabalhista valorizava as pessoas co- peitáveis. Portanto, apenas algumas pessoas
muns e tentava construir um mundo para elas, vieram das margens das vilas da classe traba-
com um sistema de assistência social; tentava lhadora ou das zonas rurais. Provavelmente
construir escolas e hospitais que seriam bons cinco por cento das crianças da escola eram
para todos. Existia um forte sentimento de da minha tribo. Existiam sinais que indicavam
uma classe de pessoas que estavam progressi- isso. Havia dois lugares para comprar o casaco
vamente vencendo. Portanto, a mobilidade so- do uniforme: na Jacksons, que era uma forne-
cial nesse contexto é um movimento bastante cedora de alta classe, ou na Co-operative. En-
ímpar e eu diria que, de certa forma, ainda é. tão, desde o início, era evidente quem eram os
No entanto, agora você enfrenta uma situação cinco por cento e, muito rapidamente, os casa-
em que esse sentimento de solidariedade e cos azuis de má qualidade perderam o azul e
sucesso de classe foi desmantelado como as ficaram esfarrapados, de modo que tudo ficou
fábricas. Então, agora, tudo o que você enfren- claramente marcado.
ta é uma espécie de classe baixa empobrecida,
a qual todos gostariam de evitar. Mas naqueles Mônada 14
dias, não. O nosso “h”
Na minha turma, havia um outro garoto
Mônada 12 que falava com sotaque bem claro de Berkshi-
A moto, as roupas, as namoradas re, onde soltava seus “h”, e é assim que con-
Tinha 15 anos. Queria ir para a universida- versávamos. Eu adorava telefonar para meu
de? Certamente não, porque todos os meus pai e conversávamos assim. Até certo ponto,
companheiros estavam voltando para casa perdi esse sotaque, mas, como digo, quando
com bons salários da fábrica enquanto eu es- estou bêbado, volto direto a ele. Portanto, ob-
tava andando em uma bicicleta de segunda viamente, um processo de edição aconteceu
mão. Todos tinham grandes motos com namo- com meu sotaque. Mas éramos os dois garotos
radas nas garupas e roupas de última moda. da escola que falavam assim, constantemente
Tinham tudo o que eu queria: a moto, as rou- sendo instruídos a evitarmos o nosso ‘h’ e a
pas, as namoradas. Era apenas o garoto da es- não falarmos assim.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 13, p. 91-104, jan./abr. 2020 99
“Oi Iv, como vai? Boa sorte na escola!” Notas (auto)biográficas constitutivas da história de vida de um educador

Mônada 15 mesmo, embora pudesse perceber todas as


Professores desviados implicações sociais, não consegui sufocar meu
Em inglês, eu não falava do jeito que eles profundo fascínio pelo aprendizado.
queriam, por isso falhei. Não aceitaria essa
gramática e não perderia meu dialeto. Em ou-
História de vida, possibilidades
tras palavras, não trairia minha tribo. Simples-
mente não faria. Sempre fui teimoso assim.
da aprendizagem narrativa e
É mais complicado do que isso, porque dois experiência benjaminiana
ou três dos professores da escola não eram Defendemos que uma experiência curricular
professores convencionais de gramática. Eles que considerasse sonhos, dilemas e desejos
eram socialistas. Um deles era um socialista das crianças e dos jovens possibilitaria a su-
galês, Dai Rees, que era um homem realmente peração do presenteísmo e do individualismo,
brilhante. O outro deles era Joe Petit, coorde- fortalecendo um propósito de futuro coletivo
nador da campanha local pelo desarmamento e social. A aprendizagem narrativa pode ser
nuclear. Portanto, havia dois ou três professo- vista como fundamental para a compreensão
res desviados dentro da escola que queriam de um modo diferente de produção de conhe-
desesperadamente levar as crianças da classe cimento. Se a escola passasse a exercer esse
trabalhadora adiante. papel no âmbito da cultura e da política, não
restaria espaço para um currículo previamen-
Mônada 16 te estruturado e definido sem diálogo com as
Selvagens nobres histórias de vida. Uma saída possível é o favo-
De fato, depois que saí da escola aos 15 recimento da aprendizagem narrativa, definida
anos para trabalhar na fábrica, Dai Rees veio como o aprender a ser um ser social, aprender
à fábrica e me pediu para voltar à escola. Ele sobre si mesmo e sobre o mundo. As mônadas
meio que me adotou. Há cerca de vinte anos, do retrato narrativo de “Iv” demonstram essa
falei com ele para agradecê-lo por tudo e ele nossa asserção.
disse: “Cristo, você era uma criança difícil, A passagem para essa forma de aprendiza-
mas era inteligente! Pude ver que você era um gem parece nos aproximar daquilo que Benja-
selvagem nobre e estava determinado a não min chama de “experiência”. A matéria-prima
fracassar, estava decidido que eles não o for- do narrador é a experiência (Erfahrung), di-
çariam a sair”. Portanto, quero dizer que não mensão artesanal da vida, que se torna poten-
existia um sistema monolítico de classe social te para a aprendizagem narrativa.
para nos purificar, a reprodução da classe mé- Benjamin configura a origem do narrador
dia, mas havia alguns professores, como sem- (Erzähler) em duas figuras: a do camponês, mo-
pre existem, que estavam preparados para se rador de um lugar e conhecedor das tradições;
rebelar contra isso e para tentar nutrir alguns e a do viajante, que traz histórias insólitas
dos selvagens nobres da classe trabalhadora de lugares longínquos. Para ele, a conjunção
que se arrastavam pela porta. Então havia um dessas duas figuras possibilitou um modo de
grupinho de nós, mas eu era o único que se produção de conhecimento, na Idade Média,
destacava. Fui o único que foi para o sexto ano em função da forma como as pessoas circula-
e depois o único que foi para a universidade. vam entre as cidades. Nesse sentido, a partir
Adorei o sexto ano, adorei absolutamente! Era dessas considerações, é possível definir que o
algo que eu não conseguia sufocar em mim narrador tradicional é resultado da conjunção

100 Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 13, p. 91-104, jan./abr. 2020
Ivor F. Goodson; Maria Inês Petrucci-Rosa

entre o saber do camponês sedentário e o sa- O futuro que postulamos para esse conflito
ber do estrangeiro, diferentes em tudo, menos ao longo da vida – entre o aprendizado tribal
na capacidade de transmitir a experiência. e a socialização escolar – é a “aprendizagem
A trajetória da criança e do jovem filho da narrativa”. O que queremos dizer com isso?
classe trabalhadora – que, inserido no con- Queremos dizer que o professor permane-
texto do trabalho na fábrica, ressignifica seu ce como um mediador independente entre a
contexto social e se torna um educador crítico aprendizagem tribal e a aprendizagem escolar.
e comprometido com causas relacionadas a E se tiverem sucesso, o professor procurará
solidariedade, sonhos e missões – é uma ex- mediar construindo uma narrativa que leve o
periência de lugares e tempos distantes que aluno para outro lugar, e é isso que queremos
se conjugam com as histórias que o intelectual dizer com “aprendizagem narrativa” e a he-
narra e vive em seu contexto de produção. Em rança do “capital narrativo”. É muito diferente
sua obra, o saber do camponês sedentário se do intercâmbio simbólico normal que ocorre
articula com o conhecimento do estrangeiro na escola, que usualmente se configura como
(PETRUCCI-ROSA, 2019). uma transmissão unidirecional direta da cul-
As mônadas aqui apresentadas refletem o tura dominante representada pela disciplina
que Benjamin conceitua como “experiência”, o escolar e pelo professor para a criança, sem
que chamaríamos de aprendizagem tribal. Essa qualquer mediação ou reconhecimento de
é a maneira indígena de saber que é trans- qualquer aprendizagem tribal que a criança já
mitida frequentemente em forma de história tenha.
entre os membros de uma tribo. Há muitos Para Benjamin, transmitir a experiência
exemplos de aprendizagens proporcionadas não é apenas repetir uma história, mas tam-
pelos pais na narrativa. A aprendizagem tribal bém transmitir às futuras gerações os sabe-
vai além das conversas dos pais – é parte da res de suas vivências, como é possível em
maneira de conhecer e de aprender, incluindo um currículo narrativo (GOODSON, 2007). A
aprendizados com amigos na rua, na vila e na narrativa sempre tem uma dimensão utilitá-
vida em geral. A aprendizagem tribal é como ria (BENJAMIN, 2007). Ao narrador se atribui a
conhecemos o mundo antes de encontrarmos capacidade de transmitir sua experiência de
as forças da socialização representadas, em forma útil e, numa dimensão mais elaborada,
certo sentido, pela escola e pela cultura em como um conselho. Nesse sentido, a narrati-
geral. Assim, pode ocorrer um conflito entre a va ensina.
aprendizagem tribal, que nos diz quem somos Contar histórias sempre foi a arte de contá-las
e quem fomos, e qual foi o nosso passado an- de novo, e ela se perde quando as histórias não
cestral e qual é o nosso futuro e as forças da são mais conservadas. Perde-se porque nin-
guém mais fia ou tece enquanto ouve a história.
socialização representadas pela escola e pela
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo,
cultura dominante. mais profundamente se grava nele o que é ou-
Por que isso é muito importante para a vido. Quando o ritmo do trabalho se apodera
educação? Porque, com muita frequência, dele, ele escuta as histórias de tal maneira que
particularmente na compreensão da “peda- adquire espontaneamente o dom de narrá-las.
Assim se teceu a rede em que está guardado o
gogia do oprimido” (FREIRE, 1987), a diferen-
dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje
ça entre aprendizagem tribal e aprendizagem
por todos os lados, depois de ter sido tecida, há
escolar é o dilema central que os professores milênios, em torno das mais antigas formas de
enfrentam. trabalho manual (BENJAMIN, 2007, p. 91).

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05, n. 13, p. 91-104, jan./abr. 2020 101
“Oi Iv, como vai? Boa sorte na escola!” Notas (auto)biográficas constitutivas da história de vida de um educador

Com as tecnologias contemporâneas, ve- tiva, o professor é o mais poderoso do grupo.


lhas fronteiras desapareceram. Podemos es- Prover a maioria das pessoas com uma vida
crever juntos estando em diferentes lugares razoável, pagar às pessoas mais pobres um sa-
no Brasil e na Inglaterra, entretecendo nossas lário digno, são demandas possíveis e exequí-
histórias. Toda a noção de espaço está sendo veis que se apresentam aos ricos do mundo.
redefinida, e Benjamin nos alertaria para ser- Isso não seria uma coisa absurda, pelo con-
mos sensíveis a isso, pois muitas dessas fron- trário, poderia ser o custo de alguns foguetes
teiras não estão relacionadas ao espaço exter- espaciais produzidos nos Estados Unidos. Em
no, mas sim ao interior das pessoas. São luga- outras palavras, seria o suficiente para per-
res secretos onde as pessoas decidem sobre mitir acesso a todas as pessoas no mundo a
os próprios modos de julgamento, decidem uma alimentação necessária e suficiente, bem
quem elas são, decidem quem querem ser e como a uma educação razoável. Num mundo
decidem sobre seus projetos de identidade. de absoluta inexpressão, descompaixão, des-
No memorial em homenagem a W. Benja- consideração, anticristão, anti-islâmico, isso
min, erguido no pequeno vilarejo de Portbou, aconteceria? É inadmissível constatarmos que
na Espanha7, próximo à fronteira com a França, aqueles que têm tanto não estejam prepara-
há a seguinte inscrição: “a construção históri- dos para darem um pouco. A compaixão seria
ca concentra-se na memória daqueles que não uma forma generosa de exercer o poder que
têm um nome”. usualmente é ganancioso e profundamente
Para nós, uma questão emergente é: para implacável.
quem produzimos conhecimento? Tradicional- Há relações possíveis entre uma cultura
mente, as pesquisas são feitas para as pes- ética e uma educação estética, que abrangem
soas, ao contrário de serem desenvolvidas essas aspirações de ações sociais. Há uma es-
com as pessoas, que poderiam ser identifica- tética humana que permite às pessoas o con-
das como os “sem nome”: migrantes, sem-teto, tato com suas emoções, seu espírito e sua
mulheres, crianças etc. Se trabalhamos com alma, revestindo-as de bondade. A questão
elas em diálogo permanente, a pesquisa passa central é compreendermos os limites postos
a produzir uma aprendizagem narrativa, que é entre cultura, educação e ensino, a ponto de
colaborativa. Há um grupo que precisa muito
não conseguirem entrar em contato com os
aprender – não os “sem nome” – mas os explo-
sentimentos e as emoções.
radores que cometem violência com os “sem
Com essas considerações, deparamo-nos
nome”. Os poderosos precisam aprender mais
com o desafio de desenvolvermos experiên-
(GOODSON, 2007, p. 69)
cias educacionais e intelectuais que permitam
Certamente, os poderosos não precisam
às pessoas se aproximarem mais de suas emo-
aprender a operar o poder, pois isso já sabem.
ções e de seu espírito.
No entanto, precisam aprender a exercê-lo de
forma compassiva. Não é possível conceber-
mos um mundo onde o poder não exista, pois À guisa de conclusão
ele é parte da condição humana. Por exemplo, Neste artigo, apresentamos questões relacio-
em uma situação de aprendizagem colabora- nadas aos modos de vida contemporâneos,
7 Memorial de autoria do artista israelista Dani Kara- ressaltando especialmente a emergência da
van, inaugurado em 1994, em homenagem a Walter era das pequenas narrativas e seus efeitos
Benjamin, na localidade onde aconteceu seu faleci-
mento (PASAJES KARAVAN, s.d.). negativos sobre as práticas voltadas para a

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Ivor F. Goodson; Maria Inês Petrucci-Rosa

justiça social. Apresentamos, também, apon- AS PONTES de Madison [The Bridges of Madison
tamentos (auto)biográficos de um dos autores, County]. Direção de Clint Eastwood. Universal City,
com o intuito de demonstrar a potencialidade Califórnia: Amblin Entertainment e Malpaso Pro-
ductions, 2005. 1 DVD (135 min.).
da narrativa que se configura como história de
vida, à medida que dialoga com um tempo his- BENJAMIN, W. The Storyteller. In: BENJAMIN, W. Illu-
tórico e um contexto social mais amplo. minations. New York: Schoken Books, 2007. p. 83-110.
Com esses apontamentos, defendemos a
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Ja-
emergência e a consolidação de práticas cur-
neiro: Paz e Terra, 1987.
riculares voltadas para a aprendizagem narra-
tiva, que ao romper com as estórias e firmar FROCHTENGARTEN, F. A memória oral no mundo
as histórias, estabelecem os processos cola- contemporâneo. Estudos Avançados, São Paulo, v.
19, n. 55, p. 367-376, set./dez. 2005. Disponível em:
borativos como eixo de uma educação estética
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
apoiada numa cultura ética.
t&pid=S0103-40142005000300027>. Acesso em: 12
Nesse contexto, padrões de individualida-
mar. 2020.
de podem se transformar e mudar a nature-
za da existência humana. Mesmo que nossas GAGNEBIN, J. M. História e Narração em Walter Ben-
narrativas sejam reconstruídas, pelo menos jamin. São Paulo: Perspectiva, 2004.

em parte, no interior de nossas mentes, elas GALZERANI, M. C. B. Imagens Entrecruzadas de in-


também serão negociadas no espaço social. fância e de produção de conhecimento histórico em
A centralidade das narrativas individuais nas Walter Benjamin. In: FARIA, A. L. G.; DEMARTINI, Z. B.
novas políticas, na economia e na nova arena F.; PRADO, P. D. (Orgs.). Por uma cultura da infância:
tecnológica apontam para o papel absoluta- metodologias de pesquisa com crianças. Campinas:
mente vital na negociação do nosso futuro so- Autores Associados, 2002. p. 49-68.

cial. (Goodson, 2013) GOODSON, I. F. Currículo, narrativa e o futuro social.


Esse é o meio no qual as pessoas agora vi- Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.
vem. Para lutar contra a captura das narrati- 12, n. 35, p. 241-252, maio/ago, 2007. Disponível em:
vas individuais na nova ordem mundial, é vital <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
compreendermos nossos recursos narrativos. t&pid=S1413-24782007000200005>. Acesso em: 12
Nosso capital narrativo necessita ser empre- mar. 2020.

gado e desenvolvido para relacionar narrativas GOODSON, I. F. Developing Narrative Theory: Life
pessoais a outras de propósito social mais am- Histories and Personal Representation, London:
plo. Nesse sentido, esse capital necessitará ser Routledge, 2013.
estendido ao recorrente individualismo que as
GOODSON, I. Explorar la historia y la memoria a
novas economias flexíveis estão demandando,
através de la memoria autobiográfica. Historia y
pois, no novo futuro social, nossas capacida- Memoria de la Educación, Sociedad Española de
des narrativas carregam uma das possibilida- Historia de la Educación, 1, 2015. p. 263-284.
des de perspectiva que nosso mundo poderá
GOODSON, I. F. Narrativas em Educação: a Vida e a
vir a ter.
Voz dos Professores. Porto: Porto Editora, 2015.

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vel em http://www.curriculosemfronteiras.org/vo- Aprovado em: 20.03.2020

Ivor. F. Goodson trabalha na Guerrand-Hermès Foudation for Peace em Brighton – U.K. Desenvolve pesquisas e estudos,
há cerca de 40 anos, sobre questões importantes e cruciais do campo da Educação, em termos de políticas educacio-
nais, estudos históricos das disciplinas escolares, teorias narrativas, estudos de história de vida, profissionalismo e
carreira docente (www.ivorgoodson.com). Já trabalhou em instituições de pesquisa educacional em vários países como
EUA, Canadá, Estônia, entre outros, além da Inglaterra. E-mail: ivorgoodson@gmail.com

Maria Inês Petrucci-Rosa é Livre-Docente em Educação Escolar, é professora Associada no Departamento de Ensino e
Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Atua nos Programas de Pós Gra-
duação em Educação e Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática, desenvolvendo pesquisas com temáticas
relacionadas a narrativa, currículo, políticas curriculares e histórias de vida. Coordena o Grupo de Estudos de Práticas
Curriculares e Narrativas Docentes (www.geprana.com) e é bolsista Produtividade CNPq, nível 2. E-mail: minespetrucci@
gmail.com

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