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A IMPLICAÇÃO: UM NOVO SEDIMENTO A SE EXPLORAR

NA GEOGRAFIA?

Ricardo Baitz*

“Perguntar-se-me-á por que, efetivamente, narrei


todas essas coisinhas inexpressivas, segundo o modo
de ver tradicional. Isto me atormenta, especialmente
se estou destinado a refletir sobre problemas mais
transcendentais. Respostas: essas coisinhas – nutrição,
lugar, clima, devaneios, a casuística total do egoísmo
– são infinitamente mais importantes de tudo aquilo
que até agora tem sido considerado como importante.
É precisamente aqui que convém mudar de método.
Tudo aquilo que até agora os homens têm considerado
seriamente não é nem mesmo a realidade, não é mais
do que imaginação, ou constitui mais precisamente
uma ladainha de mentiras, produzidas pelos maus
instintos de naturezas doentias, nefastas no mais amplo
sentido da palavra; assim como os conceitos de ‘Deus’,
‘alma’, ‘virtude’, ‘culpa’, ‘além’, ‘verdade’,
‘eternidade’... (...) Todos os problemas políticos,
sociológicos e educacionais são profundamente
falseados desde a origem, pelo fato de se tornarem os
homens mais nefastos como grandes homens,
ensinando-se o desprezo das ‘pequenas coisas’, isto
é, das coisas fundamentais da vida...”1

*
Geógrafo e mestre em Geografia Humana pelo DG/FFLCH/USP. Advogado
pela PUC/SP e OAB/SP. Pós-graduando em Direito Público pela Escola Superior
de Advocacia - ESA/SP.
1
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo, São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 64.

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RICARDO BAITZ

À exceção de alguns trabalhos, a pesquisa de campo é um


pressuposto na Geografia. Transcrição (descrição), representação
(Cartografia) e modificação (planejamento) são atividades
desempenhadas pelos geógrafos que se remetem, em algum
momento, ao trabalho no terreno. Por isto é possível dizer que
desenvolvemos, em nossa formação, uma intimidade quase tátil
com o campo, sendo-nos um grande prazer a ida ao campo.
Essa intimidade, entretanto, não nos torna totalmente livres
nas atividades de pesquisa, pois não vamos, simplesmente, ao campo.
A “ida” é precedida de muitas técnicas e tecnologias. Carregamos
certos instrumentos, como o diário de pesquisa, e sempre o
conhecimento das técnicas e procedimentos da análise.
Tais técnicas hoje estão tão interiorizadas nas múltiplas
ciências que se tornaram quase um novo pressuposto, tal como ir ao
trabalho de campo, e por isto são esquecidas enquanto um momento
histórico do conhecimento, pois foi num certo momento da história
que elas surgiram e se proliferaram. Enfim, as conhecidas técnicas
científicas se remetem à história do pensamento analítico, que em
sua tentativa fugaz de desvendar o mundo, “esquartejou-o” para
que houvesse partes a analisar. Caberiam muitas críticas a essa
abordagem, mas sua contribuição é inconteste à medida que ela
também sofreu um progresso e saiu do estágio primitivo da
separação, adentrando a articulação, que foi inicialmente externa
e posteriormente interna, chegando à dialética2.
Notado haver esse progresso, permanece a crítica ao método
da cisão por alicerçar-se na separação entre o sujeito e o objeto, o
que é bastante controverso nas Humanidades, onde se sabe não
existir uma nítida linha demarcatória entre o território do primeiro
e o do segundo (se é que tal linha, em quaisquer ciências, existiu
algum dia). Embora contestada, a prática da separação sujeito-objeto
infelizmente enraizou-se profundamente no ocidente, sendo aplicada
às massas indistintamente. Paulo Freire, para citar apenas o campo
da Educação, suplicou pela extinção da educação bancária; ou seja,

2
O apontamento de um progresso no modo de pensar e compreender o mundo
não significa que haja uma hierarquia entre os pensamentos. A história
demonstra o contrário, pois o movimento de progresso admitiu também o
retrocesso, especialmente quando da adoção de formas dogmáticas de
entendimento, fantasma que assombra até hoje o pensamento de esquerda.

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suplicou para que se pusesse fim à separação entre sujeito e objeto no


processo de ensino, no processo do conhecimento. Ele intensamente
declarou que o professor e/ou o conhecimento não são sujeitos face
aos alunos (que por sua vez não são objetos), mas que ambos estão em
relação, indo para além do método analítico na Educação. Embora
isso, o professor que se declara aprendiz na sala de aula nos dias de
hoje continua a ser visto com suspeição de incompetência e incapacidade
tanto pelos alunos quanto pelos pais de alunos ou pelos colegas de
profissão... “Professor e aluno não se confundem”, é o que eles dizem,
hierarquizando as relações e o próprio conhecimento, respaldando-se e
dando um uso à teoria de Piaget que o entristeceria3.
Se por um lado na Educação os exemplos beiram ao caricatural
(certa vez, durante uma aula um professor declarou-me como forma
de retomar sua autoridade no ensino “que o corpo docente não
conversa com o corpo discente”), por outro, na pesquisa de campo,
nem sempre ficamos atentos às práticas vexatórias impostas pelo
limite mais interno desse método calcado na lógica formal. Aproximar-
se demais do objeto, tornar-se parte dele, deixar-se invadir pela
pesquisa são posições condenáveis ou impeditivas pelo método
científico tradicional. O dentista, por motivos óbvios, não trata
seus próprios dentes. Mas pode o médico receitar a si mesmo
medicamentos (auto medicação)? Seria legítimo advogar em causa
própria? Pode um juiz julgar casos no quais reine seus interesses
pessoais? A resposta jurídica é taxativamente não. Igual impedimento
cabe ao pesquisador que se aproxima por demais do objeto, deixando-
se confundir a ele (morar numa tribo para pesquisá-la é permitido;
tornar-se índio, nunca – esse seria um princípio da etnografia).
Estes e muitos outros casos ferem a denominada objetividade

3
Piaget dedicou grande parte da sua vida a estabelecer as fases do
desenvolvimento cognitivo. Assim, ele pôde estabelecer e hierarquizar o
que uma criança de 5 anos consegue apreender e aquilo que lhe escapa por
questões de maturação cognitiva. Sua proposta, entretanto, não é a de
simplesmente estabelecer quais conhecimentos devem se dirigir a cada faixa
etária, mas a de desvendar os processos que adiantem essas etapas, permitindo
acelerar o ensino de conhecimentos complexos às crianças de menor faixa
etária. Ele vislumbra possibilidades, ainda que dentro da grade biológica,
daquilo que seria pré-programado no ser humano. Ele, de um modo ou outro,
superou sua teoria inicial, sendo esse o mérito de sua pesquisa.

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científica, bem como seus estatutos mais internos, e por isso tais
pesquisas não são consideradas como verdadeiramente “científicas”
pelos juízes, legisladores e políticos das ciências. Esses
“representantes” vêem mais que atos bárbaros nessas ações: tratar-
se-iam de crimes à ciência, especialmente porque essa hipótese, se
levada ao seu limite, significaria a admissão que o homem comum,
despreparado das refinadas técnicas de investigação científica, pode
também pensar, o que acabaria com a prerrogativa dos cientistas.
Sendo nossas ciências espelhos de nossa sociedade (ou melhor, mais
um momento de reprodução desta), não poderia ser diferente.
Problematizemos, numa visão crítica.
O que fazer, então, quando o objeto bate à nossa porta? E se
esse objeto for nossa própria casa, rua ou bairro? Podemos investigar
nosso próprio “habitat” (caso corriqueiro numa cidade invadida de
operações urbanas, desapropriações, revitalizações...) ou nos auto
analisar? A ética nos obriga a tomar distância e a nos afastar desse
“contato”, pois estaríamos “contaminados” por emoções e outros
sentimentos que ofuscariam a objetividade científica. A cientificidade
clássica tem respostas prontas: por seus estatutos, o ideal a ser
feito seria confiar o estudo a algum parceiro, que por manter a
distância necessária, analisaria melhor a situação, realizando um
parecer legítimo da cientificidade. Dizem que o engenheiro que age
desse modo na obra da sua casa demonstra que, além de ética,
possui amigos de profissão! O que se dirá, então, do médico, do
arquiteto, do advogado? O verbo do exercício da profissão sempre
se desdobra a um terceiro; nunca é [auto]reflexivo ao profissional
que o pratica; enfim, medica-se alguém que não o próprio médico,
advoga-se em prol de alguém que não o advogado (proibição da
advocacia em causa própria), etc.
A ética, contudo, é uma opção. Ela é instituída por nós, seres
humanos “razoáveis”, e nada nos compele a segui-la se aceitarmos
os “custos” de sua transgressão. O mesmo vale para a cientificidade.
Fazer uma ciência para além do bem e do mal exige, muitas vezes,
a transgressão de uma ética que não corresponde mais ao momento
em que a própria ciência se encontra! Quando os etnólogos saíram
do gabinete e passaram a realizar pesquisas de campo (Malinowski,
por exemplo), eles romperam com a ética instituída até então, que
se havia transformado na moral científica instituída. Alguns

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acadêmicos aplaudiram tal audácia, enquanto outros (a maioria,


talvez) condenaram a “nova” cientificidade que rompia com o
gabinetismo. Aos poucos tal prática foi assimilada, especialmente
porque – e isso é por demais importante – descobriu-se que ela não
rompia com a ciência, mas trazia à tona uma nova objetividade; ir
ao campo e “senti-lo” tornava mais complexa e completa a pesquisa,
além de suscitar questões ofuscadas até então. Tratava-se, enfim,
de um magnífico avanço, uma atualização da ciência!
A cisão entre sujeito e objeto tem seus motivos; isto a história
elucida. Investiguemos a ética. Ela se realizou objetivando ultrapassar
a moral, e para isso concebeu um pesquisador asséptico das impurezas
mundanas, que com seus instrumentos abraçaria uma verdade para
além do homem comum, homem este que não conquistara até então
o estatuto de sujeito, pois sua individualidade encontrava-se dissolvida
com o pertencimento comunitário. Quando esse regime quase
mitológico caiu, o pesquisador, assim como o rei, ganhou dois corpos4,
separando o homem mundano (corpo terrestre) do homem racional
e celestial (corpo divino, ligado ao exercício da atividade e reinado
por uma ordem não humana: a ciência!), habilitando o último a
praticar, no exercício da ciência, atos censuráveis à época sem
incorrer em crime, adotando o mesmo princípio aplicado hoje aos

4
Narro agora uma experiência pessoal, conveniente ao caso. Na minha primeira
atuação como banca de um trabalho científico, me surpreendi com o trabalho
em exame: o texto parecia ser redigido por duas pessoas. Nos
agradecimentos, a candidata abria seu quarto, com detalhes sobre o horário
que trabalhara o texto (sempre feito à noite), a música ambiente (Chico
Buarque e Chico Science, dentre outros), as valiosas companhias que
tornaram o trabalho possível (do animal de estimação aos pais,
irrestritamente), bem como o vivido cotidiano, especialmente o do trajeto
do seu ônibus. Passadas essas páginas o texto recrudescia: o outro “eu” da
candidata redigia e nele somente a ciência e a autoridade de Milton Santos
(o que lhe entristeceria) existiam. Embora trabalhasse bem o corpo teórico
daquele autor, faltava-lhe o vigor físico típico da juventude, que
curiosamente, fora apresentado nos agradecimentos! Eu não contava com a
teoria institucional naquele momento, mas o método de Lefebvre me fora
suficiente para identificar o fosso cavado e apontar a necessidade de cessar
essa tola separação (ato falho, não percebido). Sugeri que ela fizesse da
ciência uma aventura, com o método e a vontade dos agradecimentos.

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modernos presidentes de Estados quando do exercício da sua função5.


Razões às quais, mais que rir, deveríamos aplaudir, vez que na sua
ausência a ruim humanidade de hoje poderia estar muito pior,
confinada ainda às trevas.
Isso não significa que os ganhos tenham sido suficientes para
que nos acomodemos sobre esse degrau. Nietzsche reconhece um
ganho enorme ao fato do homem ter aprendido a amar seus inimigos;
mas ele é incisivo ao dizer que “O homem que aprendeu a amar
seus inimigos deve agora aprender a odiar seus amigos”. É ele que
demonstra a necessidade de uma potência, de ir além do seu tempo,
de não se acomodar sobre aquilo que não existe – o definitivo.
Nietzsche não é circular, mesmo porque “a vontade de sistema é
uma falta de retidão”6, e é por isto que o verbo odiar não pode ser
tomado em seu sentido literal, sob pena de ser um retrocesso. Quem
aprendeu a amar seus inimigos não vai simplesmente odiar os amigos.
Irá, igualmente, desconfiar deles, ou melhor, vê-los com o olhar atento
de quem considera os inimigos e por isso mesmo relativiza os amigos.
No nosso caso, não seria legítimo ao pesquisador que em devoção à
ciência tiver verdadeiramente aprendido a amar seu objeto possa passar

5
Cf. CAMY, Olivier. Les deux corps du Président. Texto disponível na internet,
www.droitconstitutionnel.net/lesdeuxcorps.htm. A cisão apresentada como
ilustração pode ser aprofundada, e os geógrafos possuem um objeto
privilegiado para esta análise. A história mostra que com o passar dos tempos
a casa se destacou da comunidade, tornando a vida do seu interior privada
da vida social através, por exemplo, de janelas e cortinas bem arquitetadas
que filtram a luz plasticamente, impedindo, de um lado, que o estrangeiro
veja o lar, e permitindo, por outro, que de dentro da casa se possa ver a
rua. Essa mesma casa aos poucos tem a vida íntima separada da social: a
sala de estar, quarto, cozinha e banheiros se separam. E com os múltiplos
quartos a vida íntima se autonomiza, tendendo ao individual. Hábitos se
modificam, bem como os móveis e sua função. Comer na mesa de trabalho?
Que horror! Até os menores espaços tendem a ganhar uma função. Violência
às vezes interrompida com a insurreição do uso (SEABRA, Odette Carvalho
de Lima. A insurreição do uso in MARTINS, José de Souza. Henri Lefebvre e
o retorno à dialética. São Paulo: HUCITEC, 1996), que liga à força aquilo
que foi separado: forma, função, uso, vida íntima, vida social, etc.
6
“Desconfio de todos os sistemáticos e me afasto de seus caminhos. A vontade de
sistema é uma falta de retidão” NIETZSCHE, Friedrich. O crepúsculo dos ídolos (ou
como filosofar com um martelo). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 13.

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a “odiar” a ciência que o mediou, e de certa forma, impediu por muito


tempo sua aproximação? Não seria justo que o pesquisador, tendo
conquistado o objeto desejado, passasse a lhe prestar fidelidade e
examinasse quais foram os motivos mais internos que o conduziram
até lá, de forma aberta, interrogativa, e portanto, desconfiada?
A verdade é que ninguém gosta de ser objeto de análise; nem
mesmo as ciências e os cientistas. A epistemologia fez suas tentativas,
mas nem todas vingaram e tampouco foram suficientes, e por isso
ainda vale, no mundo científico atual, o ditado popular “em casa de
ferreiro, o espeto é de pau”. Nem todos estão dispostos a arcar
com o peso de suas próprias verdades... Analisar os motivos mais
íntimos de uma pesquisa implica deixar se examinar, deslocar o
campo de coerência do objeto e incluir-se nele7.
É assim que a implicação se põe. Essa palavra-valise significa,
em primeira análise, que o pesquisador capaz de examinar um objeto
através da separação sujeito objeto pode agora aproximar-se e
incluir-se na jornada de pesquisa. Como Hess dita a respeito da
primeira acepção do termo implicação:

“No sentido de implicar-se, a palavra implicação


reenvia a uma forma de comportamento do
pesquisador que tenta romper a distância instituída
entre ele e seu objeto.”8

7
Mais uma experiência pessoal pertinente ao caso: como morador do bairro
de Pinheiros há mais de 20 anos, me negava pesquisá-lo dada essa condição.
Por andar muito na região, conhecia bem o lugar, o que tornaria
(aparentemente) mais simples assumir sua pesquisa. Dois motivos, contudo,
me afastavam: o primeiro, subjetivo, de se apresentar como pesquisador
de “fundo de quintal”, quando haveria coisas mais importantes a desvendar
(!). O segundo, de ordem mais objetiva, era a percepção de que
compulsoriamente, para ser fiel ao que acredito, teria que primeiramente
desvendar a todos quem eu era, já que durante a pesquisa meu olhar estaria
“comprometido”, vez que, como morador, meu olhar era implicado. Hoje
vejo com certa vergonha – e graça – esses tolos motivos; mas eles fazem
agora parte do passado, estão interiorizados e bem resolvidos vez que de
uma forma ou outra tive que lidar com eles durante a pesquisa do mestrado
e sua redação. “Para uma egogeografia” registra esse momento.
8
HESS, Remi. Centre et Peripherie, ed. Edouard Privat, 1978, p. 199.

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O que não implica um retorno ao que se falsamente convencionou


chamar de pensamento primitivo, a saber, o pensamento sincrético,
que a tudo mistura impedindo a análise. A implicação significa reunião, e
seu pressuposto é a divisão, que deve ser trabalhada de modo a remontar
a unidade cindida, agora em outro patamar, de forma complexa, com as
partes costuradas pelo seu interior9. Implicação significa, primeiramente,
que não se pode isolar certas peculiaridades da pesquisa em si mesmas;
que o pesquisador faz parte da pesquisa (no campo, ele é mais um elemento
do conjunto, portanto, mais um elemento a analisar) e que ele, consciente
ou não, está imerso nessa relação e desempenha um mandato social
muito especial, algo que discutiremos adiante. Nos termos de Lourau,

“A análise organizacional define a posição do sociólogo-


especialista em termos que significam distanciamento em
relação ao objeto. A análise institucional, ao contrário,
contrapõe a implicação do analista a tal distanciamento.
(...) A implicação deseja pôr fim às ilusões e imposturas da
‘neutralidade’ analítica, herdadas da psicanálise e, de modo
mais geral, de um cientificismo ultrapassado, esquecido de
que, para o ‘novo espírito científico’, o observador já está
implicado no campo da observação, de que sua intervenção
modifica o objeto de estudo, transforma-o”.10

Sabemos que o universo dos pesquisadores não se limita aos quadros


formais. Ao lado do pesquisador burguês (aquele, dos dois corpos) temos o
intelectual orgânico (Gramsci) e o intelectual compromissado (Sartre). A

9
Convém aqui recuperar o significado do pensamento complexo de Morin. Com
a palavra, o autor: “O conhecimento, sob o império do cérebro, separa ou
reduz. (...) O problema-chave não é reduzir nem separar, mas diferenciar e
juntar. O problema-chave é o de um pensamento que una, por isso a palavra
complexidade, a meu ver, é tão importante, já que complexus significa ‘o
que é tecido junto’, o que dá uma feição à tapeçaria. O pensamento complexo
é o pensamento que se esforça para unir, não na confusão, mas operando
diferenciações.” MORIN, Edgar. Por uma reforma do pensamento in PENA-
VEGA, Alfredo e NASCIMENTO, Edgar Pinheiro do. O Pensar complexo: Edgar
Morin e a crise da modernidade. Garamond, Rio de Janeiro, 1999, p. 33.
10
LOURAU, René. Objeto e método da Análise Institucional in ALTOÉ, Sonia (org.). René
Lourau: Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec: 2004, p. 83.

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implicação conduziria ao intelectual implicado, aquele que se aproxima tanto


do objeto que torna ele mesmo parte da sua pesquisa. Intelectual ciente que
sua vida não foi um ocaso e que tampouco foi um acaso a escolha do objeto
que ele pesquisa. Intelectual, enfim, consciente dos motivos íntimos ou alheios
(ainda há mestres que insistem em determinar aquilo que se deve ou não
pesquisar) que o moveram a pesquisar e a chegar ao campo11.
A exposição desses motivos íntimos faz com que a implicação
conduza à intimidade, e a uma escrita mais íntima12. É comum nos
escritos implicados o surgimento da primeira pessoa, sem que isso
seja, contudo, um mero recurso linguístico. Pessoalmente sinto um
imenso prazer em escrever diretamente ao leitor, e narrar-lhe certas
particularidades (como a minha relação com o campo, com a

11
Quando decidi que minha dissertação seria sobre Pinheiros, tinha a pretensão
primeira de demonstrar que esse bairro mudara com o tempo, e que a “aura”
burguesa da região seria de um período muito recente. Queria pôr em discussão
o violento processo que varreu aquele lugar, higienizando-o e carregando em sua
vassoura os amigos com quem durante mais de dez anos convivi. Os colegas do
tempo de colégio haviam partido; por motivos diversos não conseguiam mais se
reproduzir no bairro que se tornou rapidamente “nobre”, e eu pretendia contar
essa história, para dizer que a condição da metrópole é da completa vulnerabilidade
da vida, com cada geração se criando em outro lugar, normalmente mais longínquo
que o que fora permitido aos seus pais. Com o passar dos dias a pesquisa se
demonstrou mais complexa, mas esse foco sempre esteve latente.
12
Em outra banca, agora de graduação, tive o prazer de conversar sobre o trabalho
de um grande amigo. Sua pesquisa, sobre futebol, bastante original, explorava a
implicação “in natura”. A escrita, com poucas interdições, fluía como um rio que
corre para o mar. Do encontro das águas jorrava energia. Ele praticara, em
muitos momentos, o que Lefebvre denominava transdução. O mais explêndido
era o fato do texto não ter essa preocupação: a espontaneidade do candidato e a
gentileza da orientadora em não interditar sua escrita permitiram à banca o
contato com um trabalho extremamente rico e aberto, e, portanto, frágil aos
olhares clássicos. Minha intervenção se fez especialmente sobre esse aspecto,
apresentando a implicação de modo que ele tomasse conhecimento da beleza do
que produzira e tivesse elementos para continuar firme no caminho conquistado.
O candidato preenchia todos os requisitos, mas faltava-lhe consciência não do
método, mas do quanto sua escrita era provocativa e seu provável rechaço,
fosse outra a banca. Cabia-me aprová-lo e apresentar as armas necessárias
(implicação, transdução, momentos, deriva) para que ele prosseguisse com êxito
a vida acadêmica, coisa que deve fazer, formalmente, em breve, no mestrado.

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universidade, com certos colegas) serve-me para uma auto-análise


(e a uma auto-crítica), bem como ajuda me a criar parceiros, ao
tornar-me um alguém mundano, e portanto, aberto ao mundo. Mas
essa escrita, especialmente no meio acadêmico, cria muitos inimigos,
onde qualquer menção a si mesmo é tratada como “exibicionismo”,
“narcisismo” ou “egocentrismo”; embora seja exatamente seu
oposto, pois como o amigo Hess explica,

“Toda escrita, dentro da produção institucionalista, é ao


mesmo tempo uma escrita autobiográfica. Falando das
instituições, falo também de mim e de minha relação com
as instituições. Paradoxalmente, todas as nossas produções
teóricas se tornam autobiográficas no momento em que a
autobiografia, no sentido tradicional, se torna impossível”13.

Como nem todos possuem essa leitura, é muito fácil ser


confundido14. Em meu mestrado esforcei-me para que cada parágrafo
da “Egogeografia” tratasse não da minha história, e sim daquela de
Pinheiros, e nem por isso fui poupado por um membro da banca que
me rechaçou dizendo que trata-se de uma egohistória, e sendo eu
um autor diminuto, desinteressante a ele15!

13
HESS, Remi. 1978 apud RODRIGUES, H.B.C. Do Arrependimento dos
Intelectuais ao Triunfo da Rosa. Análise Institucional francesa, Estado e
Direitos Humanos. Psicologia em Revista. Belo Horizonte, PUC/MG, vol. 9,
nº 13, jun/2003, p. 100.
14
A implicação tem como projeto permitir a todos os prazeres da pesquisa.
Ela dissolve a condição de especialista do pesquisador comum. Daí de se
dizer que a palavra pesquisador precisa ser reinventada com a implicação.
Esse é também o motivo das duras críticas dos agrimensores do saber. Bem
ou mal eles sabem o que perdem com a implicação, de modo que a palavra
“confundido” do texto merece ser relativizada.
15
Por sua vez, outro membro da banca contribuiu ao perguntar-me sobre uma
obra que desconhecia, a Egogeografia de Jacques Levy (LEVY, Jacques.
Egogeographie. Paris: Harmattan, 2003). Não tive acesso, até o momento,
a essa obra; porém as resenhas que li revelam tratar-se, curiosamente,
nem de uma egogeografia, nem de uma egohistória: o livro faz um balanço
sobre o que o autor anarquista produziu até o momento, em homenagem aos
seus 50 anos de vida, mas a vida em si não está posta em questão (ou análise).

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Os detalhes obtusos de como se dá a pesquisa ou sobre como


se age no campo arregalam os olhos de muitos amigos, que parecem
até hoje desconsiderar como a política e as lingüiças são feitas. A
chamada escrita sinistra16 (ou escrita da mão esquerda) deveria
propiciar menos objeções que a escrita destra, não fosse o fascínio
das ciências pelo acabado, pelo perfeito, pela mercadoria. A verdade
é que tanto a implicação quanto a escrita implicada se vinculam
mais à teoria dos momentos 17 e à deriva18 que ao pragmatismo
acadêmico. Contra o academicismo que leva o conhecimento a servir
o capitalismo, a implicação recupera o pesquisador enquanto sujeito
vivo, ativo e festivo. Através da implicação a pesquisa ganha vida, e
o pesquisador, prazer ao pesquisar, algo que sentimos ao ler os
textos implicados!

16
A escrita canhota, feita de modo quente, é um estilo, e em Centro e Periferia,
Hess comenta que “Lefebvre fala de estilo! Para Henri Lefebvre, o que
conta, no nível pessoal, não é tanto a moral ou o imoralismo, mas sim o
estilo. O estilo é a afirmação de sua particularidade, da sua singularidade,
de sua aparência periférica! (...) O estilo é o direito à diferença contra a
padronização vinculada ao processo de atomização social generalizada...
(...) O estilo é o direito de se dizer, não com as palavras do Centro, mas
com as palavras da periferia, isto é, de se afirmar para permitir assim a
outrem existir dentro de sua diferença. (...) Esse estilo, o discurso do Estado
tentará reduzir ao folclore, à marginalidade, à marginalização”. HESS, Remi.
Centre et Peripherie, ed. Edouard Privat, 1978, p. 171 e 172.
17
Vide a obra de Henri Lefebvre, em especial “La somme et le reste” e
“Tiempos equívocos”. Há, na internet, uma entrevista de Lefebvre
comentando o momento face a situação situacionista. “Henri Lefebvre na
Internacional Situacionista” está no site http://orbita.starmedia.com/
~novosdebates/Lefebvre/Lefebvre2.htm.
18
A Deriva é uma prática espacial desenvolvida, dentre outros, pela
Internacional Situacionista. Ela aparece em diversos escritos situacionistas,
em especial na revista de vanguarda Potlach. Esses textos, de domínio
público, estão na internet, alguns já traduzidos para o português. É o caso
de “Teoria da Deriva”, de Debord. http://www.midiaindependente.org/pt/
blue/2006/03/348635.shtml.

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PESQUISADOR IMPLICADO
“No sentido de ‘estar implicado’, a palavra implicação
remete aos múltiplos pertencimentos institucionais de
uma pessoa. Tais pertencimentos implicam a pessoa,
isto é, determinam lá e acolá, ainda que
inconscientemente.”19

Falemos agora mais sobre o mandato social do pesquisador.


É necessário primeiramente lembrar que a ciência, nos seus
primórdios, servia de diversão a uma elite, especialmente quando o
assunto era “como os outros povos agem” (alguns etnólogos
preservam essa tradição, mas agora pesquisam “o outro” no quintal
de suas casas: o melhor exemplo são os guetos urbanos). Adiante,
lembremos que esse divertimento não era fortuito: o conhecimento
sempre foi usado para os mais diversos fins, inclusive como um
facilitador de dominações, o que expande o conjunto das “ciências
aplicadas”. Diferentemente do que julgavam muitos dos nossos
antecessores, a ciência não é neutra, e muitos pesquisadores
inteligentíssimos se desculparam publicamente pelo uso dado aos
seus estudos. Daí de existir um arrependimento dos intelectuais. Se
estivesse vivo, Marx não se arrependeria de ter escrito parte de
suas obras20? Afinal, seu meticuloso trabalho demonstrou qual era a
tendência do capital; o que também possibilitou que a ciência
econômica e política desenvolvessem um freio ou contorno a tal
tendência. Enfim, há uma contra-transferência do saber, e é
necessário desvendar – ou ao menos indagar-se sobre – quem usará
esse novo “produto”21.

19
HESS, Remi. Centre et Peripherie, ed. Edouard Privat, 1978, p. 199.
20
Os escritos de Marx foram realizados, em sua maior parte, fora da
universidade. A própria linguagem era anti-acadêmica, e objetivava a
transformação do mundo, e não apenas seu entendimento. As academias
demoraram – e muito – a incorporar o marxismo, e quando disso, fizeram
ao seu modo, utilizando-o das mais diversas formas.

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A implicação assume que a ciência e o conhecimento não são


neutros, e abre a possibilidade ao pesquisador para que ele rompa seu
mandato social e faça uma pesquisa política às avessas, vez que seus
estudos serão aplicados de uma forma ou outra. A implicação, voltada à
análise da relação do pesquisador com a ciência, investiga e descobre os
atos falhos da pesquisa. Ela desvenda que o pesquisador comum é mais um
espelho social, que seu estudo tem um uso: reproduzir essa mesma
sociedade. Mas o mundo é possibilidade, e não determinação. Esclarecido
de seu caráter reprodutor na sociedade, o pesquisador implicado muitas
vezes se rebela e nega o exercício desse papel no seu sentido mais estrito.
Abro um parêntese: para a Análise Institucional o pesquisador encontra-se
em relação com a Instituição. Ele é originalmente o Instituinte, aquele que
cria a instituição (sempre móvel) e/ou aquele que almeja se instituir
(institucionalização). Existe também um terceiro termo, o instituído, termo
forte porque existente, que tende a centralizar todas as relações entre o
instituinte e a instituição, de modo a se auto-reproduzir quase que
infinitamente, como uma verdade absoluta. Esses três termos estão em
relação, e em metamorfose. O instituinte de hoje pode vir a ser o instituído de
amanhã, o que relativiza a noção de instituição. “Com seus três momentos:
instituído, instituinte e institucionalização, o conceito de instituição inscreve-se
como instrumento de análise das contradições sociais”22 e passa a ter seu

21
O exemplo, evidentemente, deve ser tomado de forma jocosa. Nós, pesquisadores
burgueses, somos prepotentes. Damos ao nosso pensamento uma potência que
ele não tem: a de conduzir o mundo. O processo não é guiado por homens com
plena ciência do que fazem, como muitos acreditam. Tampouco nossas ciências,
construídas sobre esse pilar, realizam-se por completo, “atingindo o alvo”
vislumbrado à frente. O processo tem seus meandros, e é o pensar admitindo
esses meandros que divide os cientistas entre materialistas e idealistas. Digo
com isto que o pensamento não se realiza, como querem os amigos idealistas,
objetivamente. Não se molda a realidade tão facilmente quanto uma pedra de
sabão. O inverso (determinismo) é igualmente difícil de sustentar. O pensamento
e o concreto devem ser trabalhados em relação; sob essa condição, ambos são
tomados em transformação e se tornam simultaneamente produtos e produtores,
o que relativiza idealismo e materialismo vulgar sem cair no ecletismo. Enfim, a
superação dessas formas precedentes do pensar se dá através da abolição das
unilateralidades e inserção da relação em termos dialéticos, um terceiro termo.
22
LOURAU, René e LAPASSADE, Georges. Chaves da Sociologia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1972, p.147.

37
RICARDO BAITZ

sentido histórico avaliado. A instituição é por vezes negada. O negativo


dialético faz surgir o novo, e reportamos aqui a uma nova instituição,
que se apresenta enquanto virtualidade para o instituinte, que não desiste
da necessidade de se instituir. Se a instituição existente não lhe é suficiente,
que se criem novas: esse é o sentido do seu agir. Fecha-se o parêntese.
Ele deixa, assim, de ser um capitalista do conhecimento.
Nos casos mais extremos ele reivindica sua condição de indivíduo e
esconde certos conteúdos. Em nossa sociedade, somente os loucos
deixam-se invadir em sua mais profunda intimidade. Seria justo exigir
que os pesquisadores escrevam tudo aquilo que descobrem, mesmo se
esses conteúdos forem favoráveis àquilo que ele busca combater, e
portanto, contributivos a uma aceleração do processo em andamento?
Discutir a pesquisa com amigos selecionados é coisa bem distinta de
redigir e depositar em biblioteca pública. Estar implicado é também
esclarecer-se dos seus pares, que nem sempre estão na academia.

IMPLICAÇÃO SEM LIMITES E SOBREIMPLICAÇÃO


Como mencionei anteriormente, existe um vínculo muito forte
entre implicação, teoria dos momentos e deriva. O que mais me
agrada, nessas três formas complementares e associadas de pesquisar,
é que todas remetem ao pesquisador enquanto um sujeito ativo no
campo. A experiência implicada é muitas vezes dramática, pois
quanto mais se implica mais se deseja implicar-se. A verdadeira
implicação, orgânica, é percebida pelo corpo como um prazer.
Quando se interrompe um momento, uma deriva ou uma
implicação? Nós desconfiamos quando o momento acabou, quando
a deriva não é mais produtiva, ou quando a implicação cessou; mas
nem sempre aceitamos esse fato. A tentativa de prolongar por demais
uma deriva ou de implicar-se irrestritamente nos traz grandes
perigos. A revista da Internacional Situacionista, em 1958, expôs
esse tema quanto à deriva de Ralph Rumney, que em sua tentativa
de desvendar a cidade foi vencido por Veneza23.

23
“Veneza venceu Ralph Rumney” in JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da
Deriva. Casa da Palavra: Rio de Janeiro, 2003, p. 78.

38
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 84, p. 25-50, 2006

Com a implicação não é diferente. Alguns colegas acabam se


esquecendo de seus próprios corpos e passam a implicar-se a todo
custo, abandonando a necessária espontaneidade do método.
Confundem implicação com o grau de ativismo ou comprometimento
(a ser medido, em horas ou em dinheiro!) em certa tarefa ou
instituição. Ranço moral e imoral: há casos registrados de participação
mecânica e de participação feita à força!
Algumas vezes parece existir uma competição entre quem
participa mais. Fala se tanto de implicar (quando se quer dizer
participar) em certas rodas que se esconde o real sentido do termo24.
Implicar-se não é participar do partido político de manhã, das reuniões
do departamento à tarde e da política estudantil à noite, como se
fosse bonito trabalhar ou implicar-se à exaustão (sobretrabalho e
sobreimplicação 25). Lourau, após classificar atos como esse de
sobreimplicação, analisa que

“Do ponto de vista da análise institucional, a


sobreimplicação não só produz sobretrabalho, estresse
rentável, doença, morte e mais-valia, como também
cash-flow – benefício absolutamente nítido consagrado

24
“Falar muito de si mesmo pode ser também um modo de se esconder”.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do
futuro. São Paulo: Hemus, 1976, p. 102. “Se o sistema fala de implicações,
é para impedir que sejam desveladas. ‘Implique-se, reimplique-se, porém
não analise suas implicações’, faz dizer Guigou ao sistema”. LOURAU, René.
Implicação e sobreimplicação in ALTOÉ, Sônia (org). René Lourau: Analista
institucional em tempo integral. Hucitec: São Paulo, 2004, p. 189.
25
“A sobreimplicação é o plus, o ponto suplementar que o docente atribui ao
trabalho do aluno se encontra esmero em seus cadernos (foi assim que
minha filha trouxe para casa, triunfalmente, um 21 sobre 20 em matemática,
matéria que ela já brilhava). A sobreimplicação é composta igualmente de
virtudes exigidas dos empregados, hierarquizadas em grades de avaliação.
(...) Trata-se de exigir um suplemento de espírito, garantia de um
sobretrabalho diretamente produtor de identificação com a instituição e
indiretamente produtor de mais-valia em favor do empregador – e não em
favor do trabalhador coletivo, cuja cooperação repousaria minimamente, ainda
e sobretudo, na resistência. É a autogestão ou a co-gestão da alienação”.
LOURAU, René. Implicação e sobreimplicação in ALTOÉ, Sônia (org). René Lourau:
Analista institucional em tempo integral. Hucitec: São Paulo, 2004, p. 192.

39
RICARDO BAITZ

ao reinvestimento e, portanto, ao crescimento


indefinido da empresa-instituição” (...) A morte por
trabalho não deveria espantar os pesquisadores
sobreimplicados no trabalho do conceito de implicação!”26

Implicar-se não é separar algumas horas do dia para um


assunto. Implicar-se é estabelecer uma relação muito íntima com o
objeto, sem se remeter à noção de distância tradicional. Não é por
menos que René Lourau se dizia Analista Institucional em período integral,
vez que sua implicação com a profissão o obrigava a refletir, 24 horas
por dia, todos os dias do ano. Tanto que sua obra Sociologue à plein
temps (Epi, 1976), “aspirava a mostrar que não se faz sociologia das
oito horas ao meio-dia, e das quatorze às dezoito horas. O objeto do
sociólogo o atravessa: ele é parte de seu objeto, tanto de dia como à
noite. Por definição, a escolha do ofício implica ‘tempo integral’.”27.
A implicação enquanto um movimento é percebida durante todo
o dia. É um aproximar-se vivo, que contraditoriamente obriga a um
distanciamento igualmente vivo. Como dito no começo desse artigo, a
implicação pressupõe a cisão, e um dos seus perigos é o retrocesso ao
pensamento sincrético. Implicar-se sem as devidas ressalvas é viajar sem
planos de volta, é deixar de ser pesquisador, e de certo modo, desistir da
idéia de progresso e superação possível contida na dialética positiva.
Às vezes a implicação é interrompida para que se redija o
texto “destro”, compondo a tese, o livro, o artigo... Momento
necessário mas frustrante, especialmente quando se está por demais
envolvido com o assunto e se é obrigado a congelá-lo em vez de
perseguir seus desdobramentos. Mas essa interrupção, tão custosa,
é momentânea. A escrita destra é apenas uma etapa da pesquisa –
e talvez a mais custosa e menos prazerosa dentre todas. Se feita de
bom modo é capaz de demonstrar ao leitor que o redator encontra-
se envolto, que não deixou de implicar-se, e portanto, que aquele
momento não é um aparte da sua vida. O leitor se envolve na
trama, se põe a pensar, a concordar e discordar, a ter uma atitude

26
LOURAU, René. Implicação e sobreimplicação in ALTOÉ, Sônia (org). René Lourau:
Analista institucional em tempo integral. Hucitec: São Paulo, 2004, p. 195.
27
HESS, Remi. O movimento da obra de René Lourau in ALTOÉ, Sônia (org). René
Lourau: Analista institucional em tempo integral. Hucitec: São Paulo, 2004, p. 28.

40
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 84, p. 25-50, 2006

ativa frente ao texto. Essa é a tentativa – e isso percebemos muito


cedo – de muitos escritos socianalistas28.
Feito o registro, a implicação continua. Mesmo porque nos
inquietamos e descobrimos muitas outras coisas entre o depósito do
texto e sua publicização (seja a banca de defesa, seja a publicação).
De modo que seria justo falarmos, quando da apresentação de qualquer
texto, sobre as inquietações surgidas entre sua redação e o momento
atual, expondo o “estado da arte” – e não o registrado – à banca e aos
ouvintes da ocasião. E existem tentativas nesse sentido!
A implicação, invadindo o pesquisador, se desdobra sobre a relação
entre o candidato e a banca, para terror de ambos. Quem analisa quem,
nessa situação? Quem aprova quem, agora? Às vezes uma relação de
poder se instaura, possibilitando a Análise Institucional e até mesmo a
intervenção socianalítica. Outras vezes o diálogo flui, a banca se põe na
condição do candidato e adentra seu trabalho, se implica... Comumente
ocorre os dois, e ambos casos podem conduzir a momentos...

IMPLICAÇÃO E PEDAGOGIA
No início deste artigo mencionei Paulo Freire e seus suplícios
por uma educação que colocasse conteúdos, educando e educador
em relação, suprimindo as hierarquizações no ensino. A Análise
Institucional há muito se debruçou sobre esse tema, e o acervo
institucionalista é hoje bastante amplo nesse campo. Respostas
definitivas? Não, elas não existem. Mas há apontamentos. A implicação
é uma delas. Esse método não-diretivo traz em seu bojo a
possibilidade de todos serem pesquisadores, pois à medida que ela
dita que aspectos mínimos e íntimos do pesquisador podem – e
devem – vir à tona, todas as pessoas são convidadas a fazer ciência,
a serem cientistas, e o importante: a refletir sobre essa atividade.
É um duro golpe à ciência burguesa e aos pesquisadores de sangue

28
“A definição tradicional da socianálise está a seguir: ‘Análise
institucional em situação de intervenção’. Esta fórmula poderia ser
substituída pela seguinte: ‘A socianálise é, em situação, a análise da
instituição intervenção’.” HESS, Remi. Centre et Peripherie, ed. Edouard
Privat, 1978, p. 213.

41
RICARDO BAITZ

puro. Golpe que se torna fugaz quando desdobrado na segunda etapa


da pesquisa, a saber: a exposição29.
Tornar o texto sinistro (também chamado de Extra-Texto –
ET), redigido no campo, às pressas, sem o tratamento e o polimento
costumeiros em texto expositivo é, nos dizeres de Lourau, um
“empreendimento de peso”. Empreendimento voltado a demonstrar
que a exposição é montagem, e que sua feitura não existe sem o
processo que a precede, que é cheio de dúvidas, brechas, indagações
não resolvidas, conduzido dialeticamente com avanços e retrocessos.
Pessoalmente vejo tal prática com bons olhos. Sua prática é
compatível com uma universidade de massas, como as de hoje.
Posição que defendi em 2004 (Egogeografia, p. 9), dois anos antes
de ter acesso ao “Produzir sua obra: o momento da tese”30 de Remi
Hess, que é um belo manual a todos envoltos com a produção do
conhecimento. A propósito desse livro, um momento quente do texto
é o da página 75 e seguintes, onde Hess, após ter apontado as
transformações universitárias com o advento das massas na França
(redução de prazos para mestrados e doutorados, aumento do número
de inscrições e conseqüentemente do trabalho do professor,
impossibilitando atuar do “modo antigo”, tal como Lefebvre fez com
ele), apresenta alguns dispositivos que tornam possível o trabalho digno
nessas condições. Estes envolvem, direta ou indiretamente, a exposição
de certa individualidade como condição de uma ajuda possível. Além
das reuniões coletivas (necessárias nas massas), Hess aposta na escrita
individual (de volta à implicação) de modo a “recriar uma pedagogia
onde o sujeito tenha o direito de utilizar seu tempo de formação para
se construir enquanto pessoa e cidadão”31. Ele incentiva seus alunos a
tentarem “exprimir alguma coisa que faça com que sua inscrição em
tese não seja uma coisa burocrática, mas uma real entrada na escrita”.

29
É Lefebvre quem indica, a respeito do método mais clássico, que “após a
análise, vem a exposição. Se esta se realiza com êxito, a vida do objeto
considerado e o movimento da matéria estudada refletem-se nas idéias
expostas. A tal ponto que os leitores imaginam, por vezes, encontrar-se
perante uma construção a priori do objeto”. LEFEBVRE, Henri. O Marxismo.
Portugal: Livraria Bertrand, 1975, p. 35.
30
HESS, Remi. Produzir sua obra: o momento da tese. Brasília: Liber Livro, 2005.
31
HESS, Remi. Produzir sua obra: o momento da tese. Brasília: Liber Livro, 2005, p. 79.

42
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 84, p. 25-50, 2006

IMPLICAÇÃO E “FOCO” NA PESQUISA


Alguns parágrafos atrás mencionei o pensamento complexo de
Morin. Poderia ter invocado o rizoma de Guattari e Deleuze (Mil
platôs: Rizoma). A implicação, à medida que se abre a todas as
condições da pesquisa e do pesquisador, teria similiaridades com
esses métodos? A resposta é sim e não. Na verdade, os “padrinhos”
da implicação e da análise institucional não desconsideravam a obra
desses três autores. Guattari é tido, inclusive, como um analista
institucional, e Morin, por sua vez, é mencionado diretamente por
Lourau. Essa proposição nem lhes foi levada a sério, já que para
eles o conhecimento seria, antes de mais nada, social. O que torna
a busca da paternidade algo sem grande importância.
É possível, entretanto, perceber uma grande diferença entre
esses pensamentos. Em especial quando de sua utilização pelos
pesquisadores. O pensamento complexo, muitas vezes deturpado, é
compreendido como somatória de retalhos, transformando o
empreendimento em um “vale-tudo”, vez que qualquer coisa
compulsoriamente se remeteria a outra (como o exemplo é quase
caricatural, obrigo-me a registrar que Morin não trabalha dessa
forma; outrossim sua teoria é, às vezes, assim interpretada). A
conjunção “e, e, e, e, e...” de Guattari e Deleuze também é tomada
desse modo em muitas ocasiões, embora com menor freqüência.
Horizontaliza-se por demais, abraçando o mundo, e esquece-se de
verticalizar alguns dos pontos mais sérios, críticos.
A implicação, por sua vez, corre o mesmo risco. Se tomada de
qualquer modo conduz a certas extravagâncias: somatórias que nunca
se concluirão e cifras que pouco informam. Seu pilar, entretanto, se
bem explorado e compreendido, evita esses desdobramentos. A
análise implicada é feita sobre uma relação: relação entre o
pesquisador e o objeto, entre o pesquisador e as instituições, entre
o pesquisador e a ciência... A aproximação se faz como combate à
propensa (e inexistente) neutralidade e é revelada como forma de
se obter maior objetividade.
Relações que espelham as bases da nossa sociedade, as quais
Lourau, com seu bom humor, enaltecia aos colegas, com seriedade:

43
RICARDO BAITZ

“Não esquecer nunca a base material, nem a


ideológica, mas tampouco a base libidinal...”32

A frase não é nada exaustiva, mas estabelece um pensamento


triádico combinando marxismo e psicanálise, num estilo que lembra
bastante Oswald de Andrade quando da sua fase filosófica (vide
Marx e Freud na utopia antropofágica). Com olhar atento às relações
sociais e a sua forma de se reproduzir, a implicação admite a
conjunção “e, e, e, e...” sem encerrar-se sobre um quadro mural
sem hierarquias, disperso. Ao contrário: seu projeto é anti-
hierárquico, e por isso põe em relevo todas as formas hierárquicas,
as subordinações e, por assim dizer, os constrangimentos desse
mundo, visando à superação. Os fragmentos suscitam o todo, e o
banal conduz, fio a fio, lentamente, ao essencial.
É ao mesmo tempo fascinante e perturbador notar que as
pesquisas implicadas desembocam em um núcleo quase comum33.
Por que? A questão se desdobra em alternativas:
a) Os pesquisadores implicados sofrem, todos eles, de uma
mesma patologia;
b) A implicação desses pesquisadores tem conduzido
acertadamente a um denominador a ultrapassar, sendo o volume
das obras e os anos de pesquisa somados a expressão do tamanho
do obstáculo a ser transposto;
c) Alternativas A e B estão corretas.

32
LOURAU apud MARTIN, Alfredo. René, analisadores históricos, loucas da
praça de maio... in ALTOÉ, Sonia e RODRIGUES, Heliana de Barros Conde.
SaúdeLoucura 8: Análise Institucional. São Paulo: Hucitec, 2005, p. 174.
33
O núcleo ao qual me refiro – e nego a explicitar – não nos é exclusivo. Muitos
outros pesquisadores já se debruçaram sobre seu tema. Além dos autores
citados, esse núcleo é tema quase central da obra dos situacionistas e de
Raoul Vaneigem, ainda vivo e ativo. Oswald de Andrade é outro autor
importantíssimo, especialmente por ter feito da sua vida uma luta mortal
contra todas as formas desse núcleo.

44
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 84, p. 25-50, 2006

A [IM]POSSIBILIDADE DA IMPLICAÇÃO
“Também considero a impossibilidade da implicação, assim
como considero a da deriva. O urbano e as instituições
parecem exigir de nós condutas menos claras, mais
traiçoeiras... é para pensar. É como se todos nós devêssemos
ser transgressores também, como uma exigência atual”34

Após essas laudas, o leitor persistente certamente deve estar se


indagando sobre a possibilidade da implicação. Minha pequena experiência
permite afirmar que, enquanto uma técnica de pesquisa, ela contém
todos os elementos para que as coisas dêem errado. Paradoxalmente é
por isso que a implicação funciona! Até mesmo o pesquisador implicado
se dá conta dos “problemas” (palavra propositalmente ambígua) atuais
da implicação em seu meio, bem como a maneira de contorná-los35.

34
E-mail de Flávia Elaine Silva a respeito de uma versão desse texto, datado
de 30 de maio de 2006.
35
Minha pesquisa implicada sobre Pinheiros em um dado momento naufragava.
Pessoas próximas, como meu irmão, rebatiam a idéia, expondo especialmente o
risco de aquele trabalho ser confundido. A situação agravou-se e beirou o
insuportável. Foi quando me conscientizei que o texto até então preparado (três
capítulos) corria sérios riscos de ser interpretado erroneamente, e a solução foi
iniciar outra dissertação, menos implicada, e portanto, menos comprometida. O
assunto continuava a ser Pinheiros, mas o olhar deveria ser estrangeiro, com suas
decorrências. O tempo era escasso, mas consegui concluir antes do prazo limite.
Tranqüilo por ter finalizado a dissertação, acabei por me sobreimplicar: retomei o
texto implicado até que ele fosse concluído; não como havia concebido originalmente,
mas dentro das possibilidades. Tracei uma maneira de entregá-lo como uma
dissertação de mestrado, e com a permissão da orientadora (uma recompensa por
ter feito direito o dever de casa?), o fiz. Essa foi a forma, nada polida, que encontrei
de contornar a instituição quando do meu mestrado. Defendi, por assim dizer,
duas dissertações, imaginando a possibilidade de ser, como Oswald, reprovado
pela audácia. Fui aprovado com distinção não por minha performance no dia (sempre
fui contra esse tipo de exposição), mas como reconhecimento do esforço em pensar
e pelas novidades reveladas na pesquisa. Todo esse percurso me fora extraordinário,
vivo, pulsante. As dificuldades foram superadas pelo prazer, e o que resgato dessa
experiência é uma admiração irrestrita daqueles que gentilmente me aceitaram
enquanto uma experiência, enquanto um devir, enquanto minha obra. O
agradecimento se volta especialmente ao professor Dieter e à Amélia Luisa.

45
RICARDO BAITZ

A implicação encontra-se entre o possível e o impossível, eis


a verdade. Ela não se realiza por completo, pois isso só se dará em
outros tempos – muito almejados. Tal efetividade pressupõe outra
ciência, com outros obstáculos a superar que não os atuais. A
distância, entretanto, não nos exime de pôr o projeto na pauta do
dia. Ao contrário. Ela evoca, “sobretudo, uma sombria guerrilha,
cheia de emboscadas, fugas e camuflagens imprevistas, uma
guerrilha onírica [grifos nossos, FES e RB] da qual estão excluídos o
princípio da identidade e outras garantias aristotélicas, tornando
definitivamente irrisórias as antigas estratégias em termos de
programas, de disputas eleitorais ou de ‘unidade de ação’ [o exemplo é
político, mas o leitor saberá adaptá-lo ao contexto científico. RB]”36

ENCERRAMENTO
Como encaminhamento, encerrarei expondo minha implicação
nesse texto. Além dos fatores externos (vide “Gênese do texto”) e
do meu envolvimento com o tema, motivei-me a escrever sobre a
implicação por suspeitar que a situação na qual as ciências se
encontram desde o final do século XX não é boa. O século XX que uso
é tomado de maneira plástica, como vários historiadores fazem: ele
acabou bem antes do ano 2001. Assim, a situação que menciono já
dura mais de uma década.
Redijo essa parte do texto sentado num banco da Faculdade
de Direito; portanto, meu olhar parte agora daqui. As andanças
pelas bibliotecas e livrarias especializadas revelam que muita coisa
aconteceu nos últimos tempos. Quantitativamente, o número de
trabalhos cresceu e o tempo que cada aluno passa no curso diminuiu;
esse dado, desdobrado sobre o número quase constante de
professores, revela um aumento do número de alunos por orientador,
sobrecarga de trabalho etc. Qualitativamente se percebe uma
mudança nos temas (algo que certos orientadores aceitam mais
facilmente que outros) quando não de abordagem dos temas
recorrentes. Algumas pesquisas são invadidas de ecletismo. Contudo,

36
LOURAU, René. O instituinte contra o instituído in ALTOÉ, Sônia (org). René Lourau:
Analista institucional em tempo integral. Hucitec: São Paulo, 2004, p. 65.

46
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 84, p. 25-50, 2006

inquieta-me – e eis aqui minha maior implicação – o aumento de


certo pragmatismo no Direito, fenômeno que não lhe é exclusivo (convido
o leitor a fazer suas próprias pontes e mediações quanto à situação da
Geografia). Eis aqui a crise da reprodução. Nos últimos tempos tornou-
se tão difícil produzir qualquer coisa que se passou a simplesmente
reproduzir tudo – inclusive pesquisas – em escala ampliada37.
O problema já sério, quanto à prática, agora adentra a teoria.
Em certos casos parece não haver possibilidade outra senão a de
reproduzir a teoria existente. Mas qual é o sentido da citação quando
ela é feita mecanicamente? Em 1969 Lefebvre nos alertou sobre o
ciberantropo38. Ele vestiu novas roupagens, se atualizou e está agora
entre nós. Mais perfeito que os antropos, sua linguagem, sempre
correta, elegante e límpida, encanta39. Ele é igualmente mais eficaz
no emprego dos conceitos e os articula melhor, esquivando-se de falar
em seu próprio nome. Que não se enganem aqueles que se julgam por
demais espertos. O ciberantropo também é capaz de levar mais adiante
tudo aquilo que nós já produzimos “classicamente”: sua reprodução é
uma reprodução ampliada, e não de uma reprodução simples.
De volta à Geografia, essa simpática ciência que tanto nos
agrada, parece-me que ela mudará bastante com a chegada desse
elemento. Já tem mudado. Daí a hipótese que ela, tal como
conhecemos, desapareça. É o que impõe a Geografia ciberantropa.
A luta territorial não admitirá qualquer convivência pacífica.
Se a tendência se confirmar, em breve a “antropogeografia”
que conhecemos travará seus combates e perderá as batalhas iniciais.
Como o inimigo encontra-se no interior (a cibergeografia esteve,
desde longa data, contida na Geografia), tal luta se modificará e
passará a ser subterrânea. A batalha do tudo ou nada chegará, e
para que se tenha chances de vitória será necessário que ela se
despoje do seu estatuto de nobreza. Terá então que se reinventar nas
diversas batalhas, e surpreender o inimigo com novas armas, dentre
37
O que apresento é uma tendência percebida; tendência não se efetivou, é
preciso ressalvar. E mesmo quando ela se efetivar, haverá resíduos que
escorrerão por suas grades, como a história tem demonstrado.
38
Vide LEFEBVRE, Henri. Posição: contra os tecnocratas. São Paulo:
Documentos, 1969.
39
Vide Esquecer Foucault de Jean Baudrillard (BAUDRILLARD, Jean. Esquecer
Foucault. Rio de Janeiro: Rocco, 1984).

47
RICARDO BAITZ

elas a implicação. Essa última será igualmente reinventada, sob pena


de, estancada, servir ao inimigo. Esta é uma visão bastante pessoal,
particular, e sua apresentação se faz como uma espécie de “provocação”.
Não sou apocalíptico, como crêem colegas desavisados.

PROPOSIÇÕES
O passar dos dias encarregou-se de pôr um fim a esse artigo.
Ele precisa ser entregue, e embora isso tenciono-me a refletir outros
tópicos. Comentarei dois deles, na impossibilidade de sua redação.
O primeiro seria sobre a implicação e a questão da “estabilidade”
da pesquisa. O outro, sobre o preço da implicação.
Planejava, para discutir o primeiro item, recuperar um
colóquio transcrito para o português em 1971, onde Henri Lefebvre
apresenta sinteticamente o conceito de estrutura em Marx40. Ele
habilmente demonstra que o marxismo não refuta a estrutura; que
ela de fato existe, mas é móvel. Algo semelhante acontece com a
pesquisa. Em alguns momentos ela necessita de uma forma e tende a
ganhar uma estabilidade. Estabilidade parcial, pois a pesquisa se desloca
e coloca novas questões mesmo durante seu registro. A discussão desse
tópico se voltaria, assim, à estrutura, sua estabilidade e o movimento.
Quanto ao segundo item, planejava recuperar um texto já
citado, sobre o arrependimento dos intelectuais. No sistema
capitalista tudo tende a ganhar um preço, e o custo de certa
irreverência na pesquisa é bastante alto. Não ser tomado como
uma pessoa séria por certos colegas é algo comum. HESS, em seu
“Produzir sua obra”, comenta que a Análise Institucional francesa
nos círculos acadêmicos foi tida por muito tempo como uma coisa
de “maluco”. A repulsão pode levar ao ostracismo. Mas os parceiros
surgem, e dos lugares menos esperados. A aceitação da implicação
parece ser maior fora da academia, fora dos círculos de especialistas.
Fora dos bunkers institucionalistas as coisas são mais difíceis; mas

40
LEFEBVRE, Henri. O conceito de estrutura em Marx in BASTILE, Roger
(coordenador). Usos e sentidos do termo “estrutura” (nas ciências humanas
e sociais). São Paulo: Herder, Universidade de São Paulo, 1971, p. 101-107.
Agradeço a Carlos Eduardo Silvério Barbosa pela localização dessa obra.

48
BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA, SÃO PAULO, nº 84, p. 25-50, 2006

não impossíveis. Por isso tenho levado, pessoalmente, alguns sacos


de areia para formar trincheiras no Direito (de onde redijo hoje
esse texto) e na Geografia (à qual pretendo regressar, em breve).
Toda ajuda nesse sentido é bem vinda.
Esses breves parágrafos devem auxiliar o leitor a refletir
sobre suas próprias implicações e a praticá-las. O convite está feito.

BIBLIOGRAFIA
ALTOÉ, Sônia (org). René Lourau: Analista institucional em tempo
integral. Hucitec: São Paulo, 2004.
BAUDRILLARD, Jean. Esquecer Foucault. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
BAITZ, Ricardo. Para uma Egogeografia - Pinheiros: aspectos de um
bairro metropolitano vol. 2 (dissertação de mestrado). São Paulo.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento
de Geografia, 2004.
BAITZ, Ricardo. O Metrô chega ao Centro da Periferia: Estudo do
Concurso Público Nacional de Reconversão Urbana do Largo da Batata
e da Operação Urbana Faria Lima em sua nova fase. São Paulo.
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento
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