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Introdução1
A pobreza é um dos principais problemas sociais da contemporaneidade e desde a
metade do século XX têm chamado a atenção dos governos como prioridade de ação pública
(COHN, 2009). Embora seja um fenômeno de escalas globais, a definição do que configura
ou não uma situação de pobreza é situada histórica, geográfica, culturalmente (CHAMBERS,
2008), e, portanto, em qualquer esforço analítico sobre o tema é preciso definir quais são as
carências e como elas determinam as vivências das pessoas em diferentes contextos sociais.
Já no século XXI, diversos países do Sul Global assistiram a uma drástica queda dos índices
de pobreza (em comparação aos patamares de décadas anteriores) (CEPAL, 2013; NERI;
SOUZA, 2012). No entanto, desde meados dos anos 2010, há uma nova tendência de
aumento da pauperização no mundo, especialmente entre as mulheres, intensificada
recentemente pelas consequências socioeconômicas da crise encadeada pela pandemia de
COVID-19 (ONU Mulheres; PNUD, 2020)2.
No campo de estudos da Sociologia, é possível dizer que existe um certo consenso de
que a pobreza configura-se como fenômeno constituído por meio de um processo social,
marcado por relações sociais e estruturas que compõem uma multiplicidade de dinâmicas que
excluem uma parcela da população de acessar serviços, oportunidades e recursos
(MARQUES, 2009). Assim, a definição de quem é pobre parte de uma construção social que
define os patamares de direitos e bens básicos a que toda cidadã e todo cidadão deve ter
acesso. Nas dinâmicas das relações de classe, há estigma produzido pela necessidade de
recorrer por assistência ao Estado ou outras entidades não-governamentais, o que se dá, na
visão de autores clássicos, pelo enquadramento das beneficiárias e beneficiários em
categorias definidas como público-alvo (SIMMEL, 1998; PAUGAM, 2005; CASTEL, 1997).
Ainda, para esses autores, a quebra (ou ausência) de vínculos sociais e a exclusão do mercado
1
Este trabalho emprega o artigo feminino como norma escrita, à medida que dialoga com uma epistemologia
feminista, que busca subverter as regras centradas no universalismo masculino.
2
A estimativa da ONU Mulheres e PNUD (2020) é que ao fim de 2021, 96 milhões de pessoas irão cair na
extrema pobreza (vivendo com menos de U$1.90 por dia), com 47 milhões das quais sendo mulheres e meninas.
de trabalho são elementos associados à pobreza como um processo situado no âmago do
capitalismo contemporâneo.
Assim, a situação de múltiplas carências não pode ser vista como circunstâncias
isoladas que afetam determinadas pessoas e famílias. Na contramão de uma visão liberal, que
considera a pobreza como faceta da “ausência de capacidades individuais”, o pauperismo está
inscrito, segundo uma visão crítica, nas regras que organizam a vida social (TELLES, 2001;
MARQUES, 2009). Nessa perspectiva, ser pobre significa ser desprovida de direitos, fator
que define a existência de grupos sociais marginalizados, com suas lógicas de sociabilidade,
num contexto marcado por barreiras ao pleno exercício da cidadania, e, portanto, da
democracia (TELLES, 2001).
Ademais, nos países latinoamericanos, é preciso considerar que as marcas deixadas
pelo racismo e pelo machismo engendram a reprodução de desigualdades sociais, ligadas,
entre outros aspectos, à escolarização e ao acesso a renda.. Nesse sentido, teóricas feministas
deslocam a discussão para o campo do político e chamam a atenção para a importância de
considerar as intersecções entre gênero e raça como definidoras e agravantes do estado de
múltiplas carências (BRONZO; COELHO, 2021; AGUILAR, 2011; SILVA, 2013). Nessa
linha, o fenômeno denominado como feminização da pobreza, na América Latina, é
complexificado pela lógica das díspares relações raciais, que tendem a marginalizar as
mulheres negras e indígenas, instaurando desigualdades entre as mulheres. No Brasil, as
mulheres negras ocupam a base da pirâmide social e apesar de representarem 28,7% da
população brasileira, são 39,8% daquelas abaixo da linha de U$5,50 do Banco Mundial,
tomado como indicador de pobreza por alguns organismos internacionais e nacionais (IBGE,
2020). A pobreza tem cor, negra, e gênero, feminino. Os motivos para tanto recaem sob a
divisão sexual e social do trabalho, além das heranças culturais e sociais do colonialismo
patriarcal e a escravidão (BRONZO; COELHO, 2021).
É preciso ter em mente que a construção de distintas interpretações sobre a pobreza
(aqui vista como generificada e racializada), pela academia e pela administração pública, tem
o poder de informar quais serão os respectivos instrumentos e estratégias desenhadas para
solucionar o problema (LADERCHI, SAITH; STEWART, 2003). Na seara de ações públicas
para combater a pobreza, destacam-se as políticas de transferência de renda, as quais
disseminaram-se na década de 2000-2010 em escala mundial a partir de experiências
bem-sucedidas no México e no Brasil (FISZBEIN; SCHADY, 2009; MOLYNEUX, 2006;
KABEER, PIZA; TAYLOR, 2013). Nesse contexto, o programa mexicano Oportunidades
inaugurou um modelo de transferência que focaliza na mulher, a mãe, como titular direta do
benefício ao compreender que ela otimizaria o recurso pois levaria em conta os interesses da
família (MOLYNEUX, 2006; LAVINAS; COBO; VEIGA, 2012; BRADSHAW, 2008).
No Brasil, o Programa Bolsa Família foi criado em 2004 e a lei3 que o institui prevê
que a mulher deve ser a titular do cartão (BRASIL, 2004), sendo elas responsáveis também
pelo cumprimento das condicionalidades - ligadas a matrícula e frequência de crianças e
adolescentes na escola, além do acompanhamento da saúde básica (SACHETT; CARLOTO;
MARIANO, 2020; MARIANO; CARLOTO, 2009). Por conta disso, as mulheres
representam 94% das titulares e 68% delas são negras - o que reforça, mais uma vez, o
aspecto racializado da pobreza brasileira (DELGADO; TAVARES, 2020).
Tal configuração incide sobre as relações de gênero, pois o trabalho do cuidado, no
âmbito privado e familiar, tem sido reforçado historicamente como um espaço generificado
(HIRATA, 2016), isto é, protagonizado por mulheres. No caso de políticas sociais que
seguem uma lógica “familista” ou “maternalista”, outorga-se à mãe uma série de
responsabilidades, que garantem o “sucesso” da sua implementação (JENSON, 2009; JELIN,
1995; FRASER, 2009).
No caso do Bolsa Família, uma série de pesquisas buscou diagnosticar os seus efeitos
no bem-estar e na qualidade de vida das mulheres beneficiárias (LAVINAS; COBO; VEIGA,
2012; MARIANO; CARLOTO, 2009; PIRES, 2012; REGO; PINZANI, 2014; PASSOS;
WALTENBERG, 2016; SACHETT; CARLOTO; MARIANO, 2020). Tais produções
discutem as consequências empíricas do desenho das políticas de transferência de renda nas
relações de gênero, havendo uma tensão entre uma visão que defende a existência de ganhos
de autonomia para as mulheres e outra que argumenta que há um reforço dos papéis
tradicionais de gênero, já que essas políticas instrumentalizariam a mulher, em seu papel de
cuidadora e como responsável pela reprodução social como peça-chave para o “sucesso” das
políticas (FARAH, 2004; ARRIAGADA, 2005; BRADSHAW, 2008; MOLYNEUX, 2006).
Em relação ao Bolsa Família, há, inclusive, um discurso narrativo oficial que reforça o papel
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No parágrafo 14 do artigo 2 da Lei 10.836 lê-se: “ O pagamento dos benefícios previstos nesta Lei será feito
preferencialmente à mulher, na forma do regulamento.” (BRASIL. 2004)
da mulher, mãe, como fundamental para garantir alimentação e itens básicos às crianças, ao
mesmo tempo que defende a titularidade do benefício contribui para o “empoderamento
feminino” e o “aumento do poder de barganha” (MARINS, 2017)4. É possível dizer que há
riscos e oportunidades para as mulheres beneficiárias diretas das políticas de transferência de
renda (MOLYNEUX, 2006). Afinal, como as relações de gênero seriam afetadas se os
homens fossem os titulares do dinheiro?5.
Para fins do presente estudo, parte-se da ideia de que a incorporação de uma
perspectiva relacional na análise dos s fenômenos da pobreza e da autonomia é um caminho
analítico alternativo passível de diálogo com a literatura que discute desigualdade de gênero e
autonomia em programas de transferência de renda (MOLYNEUX; JONES; SAMUELS,
2016; KABEER, 1999; MOLYNEUX, 2002). Isso porque os laços sociais não só organizam
a vida das pessoas em sociedade como também podem condicionar experiências distintas
para aquelas em posições semelhantes na estrutura social (MARQUES, 2009; ESPINOSA,
1995). A adoção de uma visão relacional desafia a tradicional abordagem atomista (liberal)
sobre os conceitos de pobreza e autonomia, a qual isola as mulheres de suas interações,
afetos e laços sociais (MARQUES, 2009; REDSHAW, 2014; FRIEDMAN, 1997;
MACKENZIE, 2019; BIROLI, 2016).
Este enquadramento teórico considera a autonomia não como sinônimo de
independência (abordagem liberal), mas como uma autonomia marcada pela interdependência
(abordagem feminista) (BIROLI, 2016). Tendo isso em vista, este trabalho parte de histórias
orais de mulheres beneficiárias do Bolsa Família para investigar como se configuram as suas
dinâmicas relacionais e, assim, entender como estas afetam a sua autonomia, tendo o
potencial de contribuir para que transcendam desigualdades de gênero.
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Isto está presente nos documentos produzidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social (Cadernos de
Monitoramento), as avaliações de impacto do programa (AIBF I e II) e mesmo o discurso político dos antigos
presidentes petistas.
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O caso da reparação do desastre de Mariana é ilustrativo para pensar este cenário. No caso, os homens
representam 66% dos titulares do auxílio financeiro emergencial, transferência de renda destinada a garantir
uma resposta para sobrevivência das pessoas atingidas. As mulheres, nesse caso, foram cadastradas como
“dependentes” dos maridos e companheiros e não tiveram as suas atividades produtivas reconhecidas (como
auxiliares da pesca, limpadoras de peixe, vendedoras etc.). Tal configuração pode ter contribuído para o
aumento de divórcios, casos de violência doméstica e perda da autonomia das mulheres, não reconhecidas como
atingidas (FGV, 2019; 2021).
O debate sobre cuidado, gênero e autonomia nas políticas sociais
Autoras feministas que discutem como as ações do Estado incidem sobre as relações
de gênero, defendem que a política social no continente latino-americano não é (e nunca foi)
“cega ao gênero” (gender blind), pelo contrário, os sistemas de proteção social no continente
se organizaram a partir de concepções sociais ancoradas na lógica familiar, patriarcais e
paternalistas (MOLYNEUX, 2006). O movimento feminista, em ebulição nos anos 1990,
passa a discutir as problemáticas das categorias maternalistas produzidas pelos agentes
estatais para “enquadrar” as mulheres como público-alvo de políticas sociais (JENSON,
2009).
Embora a emergência de demandas de gênero possa ser vista como uma conquista no
pós-consenso de Washington, Jenson (2009) sinaliza que é preciso ter cuidado para
construirmos políticas sociais mais igualitárias. Na visão dessa autora, há uma “via de mão
dupla” da focalização em mulheres, sobretudo as pobres e negras, pois a política usualmente
instrumentaliza a maternidade e o trabalho do cuidado como uma forma de garantir o sucesso
da implementação, à medida que a “mãe” saberia melhor como alocar os recursos para
sobrevivência de suas filhas. O conceito de política “familista” ou “maternalista” é
compartilhado por diversas autoras feministas (FRASER, 1994, 2013; ORLOFF, 2009;
JENSON, 2009; BRADSHAW, 2008; MOLYNEUX, 2006; JELIN, 1995) que buscam
analisar as políticas sociais sob uma perspectiva de gênero. Para Bradshaw (2008, p. 201), as
políticas de transferência de renda se organizam sob a premissa de que as mulheres são as
“soluções” para os problemas (dos homens) e, por isso, há uma focalização dos recursos nas
suas “mãos”. A instrumentalização do trabalho do cuidado reforça, portanto, papéis de gênero
que relegam as mulheres a responsabilidade de manutenção da família, no âmbito da esfera
doméstica. As políticas condicionadas, por exemplo, ao exigir contrapartidas para a
manutenção do pagamento do benefício, tendem a sobrecarregar as mulheres na tarefa de
cumprir os requisitos pré-definidos pelo Estado (MARIANO; CARLOTO, 2009).
Um aspecto central da crítica feminista é que o “familismo” norteia políticas que
substituem a preocupação real com o empoderamento das mulheres, pela defesa de políticas
que fortaleçam as famílias - centralizadas na figura da mãe (JELIN, 1995; FRASER, 2013).
Na América Latina, autoras sinalizam que o conceito de pobreza que mobiliza está pouco
associado a históricas discussões sobre a subordinação das mulheres e o papel que exercem
na esfera doméstica (JELIN, 1995; MOLYNEUX, 2006). A centralidade da família na
historicidade das relações de gênero latinoamericanas é um ponto explorado pelo Estado no
desenvolvimento de políticas sociais. Assim, no limite, a mulher só preferencialmente a
titular do benefício pois representa a “mãe”, que cuida de suas filhas, da casa e do marido.
Em consonância, Auyero (2011, p, 24) considera que as mulheres são vistas como
submissas “clientes” do Estado, enquanto aos homens cabe a figura de sujeitos inseridos no
mercado de trabalho. O autor acredita que o Estado não só reproduz uma relação hierárquica
com as mulheres pobres, majoritariamente negras, mas o dia a dia da ação estatal estrutura e
reforça as desigualdades de gênero (AUYERO, 2011). Mais do que isso, as “mães” que
falham tendem a ser estigmatizadas como “ruins” (MOLYNEUX, 2006; JENSON, 2009;
BRADSHAW, 2008).
Kabeer, Piza e Taylor (2013) destacam que o gênero é responsável por mediar os
efeitos das políticas de transferência de renda na vida de todas as pessoas beneficiárias. Isso
porque homens e mulheres têm prioridades distintas no momento de realocar os recursos, o
que pode influenciar o padrão de como o dinheiro é utilizado pela família (LAVINAS;
COBO; VEIGA, 2012). Como já mencionado, nas sociedades capitalistas contemporâneas, as
mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho do cuidado (HIRATA, 2016) e, por
isso, efeitos de realocação do tempo despendido no trabalho e efeitos de substituição tendem
a ser definidos pelo gênero do titular do benefício (MOLYNEUX, 2006; KABEER, PIZA;
TAYLOR, 2013; SACHETT; CARLOTO; MARIANO, 2020).
Segundo dados da PNAD Contínua de 2019, as mulheres dedicam 21.4 horas
semanais aos afazeres domésticos contra apenas 11 horas no caso dos homens (BRONZO;
COELHO, 2021). No Brasil, as intersecções entre gênero, raça e classe são importantes para
compreender as lógicas do cuidado. A pobreza é feminina e negra, justamente pela definição
das lógicas da divisão sexual, racial e social do trabalho (BRONZO; COELHO, 2021; SILVA,
2013).
As mulheres negras, que representam a maioria das pessoas pobres, trabalham muitas
vezes como empregadas domésticas, babás, enfermeiras, técnicas de enfermagem etc., e,
portanto, se responsabilizam, em suas horas produtivas, pelo cuidado de crianças, idosos e
pessoas enfermas - deixando as suas filhas aos cuidados de outras “mães da favela”. As
mulheres brancas contratam o trabalho destas mulheres negras, de forma precarizada, a fim
de “terceirizar” o cuidado para que possam participar do mercado de trabalho (hooks, 1981) -
dinâmica que levou Hirata e Kergoat (2007) ao argumento de que na nova divisão sexual do
trabalho, “tudo muda, mas nada muda”.
É impossível discutir o binômio autonomia e reforço dos papéis de gênero sem
considerar as dinâmicas das relações raciais, principalmente em um país como o Brasil.
Diversas autoras feministas já sinalizam que a categoria “mulheres”, vista de forma universal,
esconde uma série de fissuras e experiências distintas. Isso porque, enquanto as mulheres
brancas reivindicavam sua autonomia econômica e o “direito” a realizar trabalho produtivo
durante a segunda onda do feminismo (FRASER, 2009; HIRATA; KERGOAT, 2007), as
mulheres negras já vivenciavam a realidade da dupla (às vezes tripla) jornada de trabalho
(BIROLI; MIGUEL, 2015;; HIRATA; KERGOAT, 2007; BIROLI, 2018; HOOKS, 1981;
CARNEIRO, 2011). A complexidade das divisões de raça e classe tornam ainda mais difícil
analisar as condições e oportunidades de acesso a espaço e a recursos, logo, a autonomia das
mulheres.
Conforme teoriza Carneiro (2011) a situação social da mulher negra no Brasil pode
ser compreendida sob o termo “matriarcado da miséria”, isto é, a expressão cotidiana da
intersecção entre raça, classe e gênero na vida das mulheres (mães) negras. Este fenômeno,
segundo a autora, produz uma série de barreiras para o efetivo exercício da autonomia destas
atrizes sociais, à medida que existem desdobramentos psicológicos, ligados a sequelas
emocionais, solidão, menor índice de casamentos etc. (CARNEIRO, 2011, p. 127). As
beneficiárias das políticas sociais focalizadas são preferencialmente essas mulheres negras,
em alguns casos mães solteiras, que residem nas periferias urbanas das capitais. Como pensar
a sua autonomia como apenas a falta de capacidades individuais?
Mais uma vez, as autoras feministas propõem uma solução teórica: a incorporação da
ideia de que a autonomia é um fenômeno intrinsecamente relacional e que, portanto, não pode
ser pensado fora das relações de interdependência das pessoas e grupos sociais (BIROLI,
2016). Essa abordagem considera que as relações sociais, comunitárias e aspectos estruturais
são centrais para a realização plena da autonomia da mulher (FRIEDMAN, 1997, p. 40, o
desloca a ideia de dualidade entre esfera pública e privada, e, portanto, é dado enfoque às
relações sociais de gênero tanto no âmbito doméstico quanto no público (BIROLI, 2016). A
noção liberal e moral de autonomia como uma simples escolha por preferências esbarra nas
estruturas sociais que condicionam a situação de pauperização de milhares de mulheres
negras, no Brasil e na América Latina.
Por esse motivo, Biroli (2016) defende que a autonomia é intrinsecamente imperfeita,
pois existem filtros, estereótipos, estigmas e preconceitos sociais que moldam as percepções
de agência dos distintos grupos sociais. Esses últimos estão ligados, portanto, a socialização e
internalização de diferentes tipos de opressão e não são facilmente excluídos do imaginário
coletivo e individual, permanecendo “mesmo quando as mulheres agem cada vez mais como
pessoas que não estão sob o comando de um direito de um homem” (FRASER, 1994, p. 235).
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Bairros localizados na Zona Noroeste em Santos,próxima a região portuária e de manguezal, e possuem altos
índices de vulnerabilidade social. As palafitas são os principais tipos de moradia em ambas localidades, sendo
construídas sob vigas em cima do estuário. As dinâmicas territoriais são marcadas pela precariedade
habitacional, o risco de inundação das casas pela maré, incêndios, além de violências produzidas pela presença
do tráfico de drogas (RIBEIRO, 2018). O Dique Vila Gilda é a maior favela de palafitas da América Latina, com
mais de 26 mil residentes e representa um desafio para gestão pública municipal (GARCIA; RICHMOND,
2020). O Alemoa, ocupação mais recente, vizinha ao Dique (ocupado inicialmente em 1960).
uso do método de história oral (PATAI, 2010)7, a partir de entrevistas realizadas em outubro
de 2020 com treze mulheres beneficiárias do Bolsa Família, residentes de moradias sobre
palafitas em regiões marcadas por alto grau de vulnerabilidade. Além disso, foram
conduzidas entrevistas com três assistentes sociais que trabalham nos CRAS (Alemoa e
Rádio Clube) frequentados pelas mulheres beneficiárias a fim de apreender questões mais
amplas, que intercruzam as histórias de vida.
O uso desta metodologia para realização deste trabalho se justifica pois ao rememorar
as suas vidas, as pessoas tendem a dar ênfase a aspectos importantes da sua experiência. Com
o objetivo de investigar a autonomia de mulheres pobres, as histórias de vida se transformam
em um substrato importante para identificar as percepções que elas mesmas têm sobre si e
sobre a realidade que vivem. Esse tipo de esforço dialoga com uma perspectiva crítica sobre
os estudos de pobreza, que hegemonicamente tendem a valorizar as análises quantitativas e
numéricas. Ao dar centralidade ao que as mulheres pobres têm a dizer sobre as suas vidas,
reconhece-se a agência histórica que elas possuem, mas que tende a ser silenciada (PATAI,
2010). O aspecto subjetivo da pobreza é assim passível de ser apreendido por meio da
sistematização dessas histórias (SANTOS, 1996). O feminismo encontra a história oral
justamente como uma forma de produzir “outras histórias” (PATAI, 2010; PERROT, 2006), e,
assim, “tornar públicas conversas que são privadas” (BOURDIEU, 2017).
Nessa linha, as palavras, frases e constructos de sentido são os substratos da coleta e
análise de dados – o que vai ao encontro da acepção de que a realidade social é
constantemente construída e transformada pelas interpretações produzidas sobre ela. A
abordagem de narrativas foi utilizada para análise dos dados aqui discutidos (GEMIGNANI,
2014), apresentando-se as histórias relatadas pelas beneficiárias entrevistadas em meio a
discussão teórica, com destaque as temáticas convergentes e divergentes nas narrativas
recolhidas, assim como feito em Delgado e Tavares (2020) e Rego e Pinzani (2013).
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A história oral é uma metodologia interdisciplinar, usualmente ligada aos estudos historiográficos (MEIHY,
2006), que parte da coleta de narrativas de um grupo social que divide, entre si, experiências em comum a serem
contadas, inclusive por meio do recurso da memória.
Pobreza, maternidade e violência de gênero: a importância da ideia de autonomia
relacional8
Um dos principais dramas extraídos das histórias orais das mulheres entrevistadas diz
respeito à maneira como as relações se estabelecem entre elas e homens ao longo de suas
vidas. Desde a infância, é possível reconhecer a existência de conflitos com figuras
masculinas, seja o pai (muitas vezes ausente), avô ou padrasto. Ademais, o casamento
aparece como uma alternativa para “sair da casa dos pais”, aos 15 ou 16 anos, a partir do
desejo de “arranjar um bom marido". Nice, mulher branca de 36 anos, migrante vinda de
Sergipe para a Baixada Santista, conta que sofreu ameaças de abuso por parte do seu padrasto
e saiu de casa “para sofrer na mão de outro homem depois”. Hoje, com sete filhos, relata sua
trajetória:
Mas fui morar na casinha de meu finado avô, num fui nem morar com minha mãe,
porque ela morava com meu padrasto, que tentou abusar de mim, e abusou da minha
irmã. Ela (minha irmã) quis casar para sair da casa de minha mãe e fugir das garras
do meu padrasto. Eu quis sair, mas fui viver minha vida, arrumar emprego, fazer
minhas coisas. Casar não é futuro não, filha. [...] Aí quando eu conheci uma pessoa,
eu achei que ia descansar, pensava que agora que estava casada eu ia descansar,
porque trabalhei demais para sobreviver. Mas depois de 10 anos ele me abandonou
filha, fazer o quê, né? (Nice)
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Todos os nomes das entrevistadas são pseudônimos a fim de garantir o anonimato e a confidencialidade
previstos pelo Termo de Consentimento, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Pessoas da
FGV-EAESP.
mantêm de “rolos” e “confusão”. Já na experiência das mulheres casadas, são os silêncios que
descrevem melhor a sua situação conjugal: várias foram interrompidas e constrangidas pela
presença do marido no momento da entrevista, encerrando-a de forma abrupta. As relações
com a figura masculina aparece sob o signo da violência, subordinação e dependência.
Lá foi [a] época que eu conheci o pai do meu filho, né? E a minha situação era uma
época ruim porque lá não tinha água, não tinha luz, e ele me judiava, ele me batia,
eu era novinha, e ele era muito ciumento, né? Eu tinha uns 17 anos, por aí. Para sair
de lá foi difícil. Eu fui morar na casa de uma vizinha, aí nunca mais voltei pra ele,
ele me judiava muito, eu não fazia nada de errado. Eu sofri muito na mão de homem,
ai hoje eu penso duas vezes antes de me envolver com alguém, de casar, morar.
(Thaís)
Ele tá preso (risadas), já tem um mês e alguns dias. Eu tô sozinha com os meninos,
graças a Deus. Me sinto muito melhor sozinha. Apesar que quando ele foi preso, a
gente já estava separado. Mas quando ele estava na rua, ele era chato, ficava
perturbando minha mente. [...] (Alice)
Meu, ele era muito ciumento, a gente brigava pra caramba. Ele era muito chato, a
gente saía na mão de vez em quando. Muita coisa feia, xingamento, era uma coisa
meio chata, agora tá tudo tão bem, tão na paz. Nunca rolou essa paz na minha vida.
Espero que a gente continue nessa paz, porque senão meu filho, ele vai voltar pra lá
porque agora tem Lei Maria da Penha. (Graziella)
Uma das assistentes sociais considera que a violência doméstica sofrida por mulheres
beneficiárias do Bolsa Família é “gritante, embora velada”, à medida que é naturalizada,
pouco comunicada, mas presente em muitas relações conjugais que ela acompanha no Centro
de Referência da Assistência Social.
Como exceções de relações tensionadas com homens, as narrativas de Nicole e Ana se
destacam, sendo as duas as mais novas entre as entrevistadas e, também, aquelas que
herdaram o cadastro do Bolsa Família de suas mães. Em ambos os casos, o marido é descrito
como “trabalhador” e “caseiro”, ajudando nas tarefas de cuidado das filhas pequenas. Ana e
Nicole, representantes da segunda geração do Bolsa, sonham em estudar (Medicina e
Enfermagem, ambas profissões ligadas ao cuidado), mas disseram estar “sem tempo” por
conta das exigências da maternidade. Uma hipótese desta diferença é que ambas [com 20
anos] estariam no início da “trajetória padrão” das relações matrimoniais, em uma espécie de
“lua de mel”, em que os homens desempenham um papel positivo, de provisão financeira e
segurança emocional. Ademais, embora o padrão homem provedor-mulher cuidadora seja
mantido, sugere-se, ainda que sem violência, uma inexistência de grandes avanços em termos
de redução de desigualdades de gênero. Outra hipótese poderia estar relacionada ao fato de
que ambas foram “filhas do Bolsa” e completaram o Ensino Médio [inclusive como
condicionalidade ao benefício], assim como seus companheiros [que conheceram na época da
escola], os quais trabalham diariamente em empregos fixos, conforme relatado por elas. As
duas também são as únicas entrevistadas que trabalham, Ana como manicure e Nicole como
lojista. O fato de trabalharem está associado à ideia de autonomia da mulher, que conquista
espaço na esfera do trabalho produtivo, e, nestes dois casos, dividirem as tarefas domésticas e
de cuidado com os maridos.
As narrativas permitem apreender que independente do status civil, o “encontro
relacional” com homens produz uma consequência comum a todas as mulheres: a gravidez
(muitas vezes precoce) e, portanto, uma nova identidade de “mãe”. Nas histórias delas, está
presente no encadeamento dos fatos, marcados temporalmente pelo nascimento de suas
filhas. Assim, a maternidade é catalisadora, para elas, de um senso de responsabilidade, pois
são desafiadas com o cuidado de filhas. Nesse sentido, o trabalho do cuidado organiza a
maioria das narrativas e o tempo despendido com tarefas domésticas, “responsabilidades da
maternidade” e de familiares idosos ou doentes aparece como restritivo à inserção no
mercado de trabalho produtivo – tendência encontrada também em outras pesquisas
(SACHETT; CARLOTO; MARIANO, 2020; MARIANO; CARLOTO, 2009; PASSOS;
WALTENBERG, 2016; LAVINAS; COBO; VEIGA, 2012). Quando perguntadas sobre o que
fazem no tempo livre, a maioria das entrevistadas respondeu gostar de sair com amigas, ir à
praia, “curtir” a família e as crianças e também “ficar sozinha”. Outras, inclusive, reforçaram
que não têm “tempo para si”, pois tudo gira em torno do bem-estar das crianças. A título de
exemplo, destacam-se os seguintes trechos das histórias de vida das mulheres entrevistadas:
E também, menina, eu fiz filho então agora eu tenho responsabilidade por eles, não
posso ficar deixando por aí para as pessoas cuidarem, eu tenho que assumir essa
responsabilidade. [...] Nós dois somos que nem gato e cachorro, sabe quando um
chega perto do outro, arria o pelo, a gente fica se pegando em briga o tempo todo.
Há uns anos, vou te dizer que a gente se pegava mesmo, de sair no pau, mas eu não
perdia não, batia também. Nós temos os nossos atritos e discordamos de várias
coisas. Quando eu me casei, parei de sair, mas antes, filha, estava todo dia metida na
balada, não tinha responsabilidade, agora tenho casa, muita coisa para cuidar.
(Juliana)
Eu mudei muito dos meus tempos de menina para cá, ganhei responsabilidade,
depois que vira mãe, a gente sei lá, muda, tu vai ver quando chegar a sua vez. Todo
mundo que me conhece desde pequena fala que hoje eu sou outra pessoa, muito mais
madura e eu sinto isso também de mim, me sinto mais confiante. (Nicole)
Limpar a casa, cuidar das filhas e dos maridos torna-se a rotina dessas mulheres,
condicionadas as responsabilidades da maternidade. As condicionalidades do Bolsa Família,
política que funciona como uma estratégia de sobrevivência alternativa à renda dos maridos e
companheiros (especialmente importante para as mulheres solteiras e desempregadas), são
vistas pelas entrevistadas como uma forma de “organizar” as obrigações e responsabilidades.
Nesse sentido, os resultados aqui encontrados vão ao encontro com outros estudos que
discutem o reforço dos papéis de gênero - esposa, mãe, cuidadora - em lares pobres e
extremamente pobres, ocupados por mulheres beneficiárias do Bolsa Família (MARIANO;
CARLOTO, 2009).
A mudança de bairro, a perda na qualidade da estrutura habitacional, a quebra de
laços sociais e, sobretudo, a entrada no Bolsa Família como alternativa ao espiral processo de
vulnerabilização e exclusão social, ilustram como múltiplas carências se reproduzem a partir
das relações desiguais (e violentas) de gênero (SILVA, 2013; ABRAMO, 2004;
MOLYNEUX, 2006). A inserção na política social aparece justamente neste “pior” momento
da vida das mulheres entrevistadas, que é ilustrado inclusive, em alguns casos, pela mudança
para as moradias sobre palafitas.
Pelo menos da minha parte o Bolsa me ajuda bastante, mas tem muita gente que nem
liga se perder. Se eu perder, me prejudica muito. Que nem agora, meu barraco está
caindo, eu vou ver se consigo arrumar. (Juliana)
Com o Bolsa mudou muito, meu pai do céu. Assim, como eu pago aluguel é uma
benção, é o gás, o aluguel, é a feira. As coisas básicas. (Nice)
Aí somos eu, minha mãe e meu filho, ninguém trabalha, eu que sustento a casa com o
dinheiro do Bolsa e uns bicos que eu faço por aí. Vivemos do dinheiro do Bolsa e do
bico. Querendo ou não do Bolsa Família porque ninguém tem uma renda, minha mãe
também é aposentada, e assim a gente tá sobrevivendo. (Thais)
O Bolsa veio ajudar na alimentação mesmo. Foi bom sentir que eu estava recebendo,
é pouquinho, mas foi bom, melhor do que nada. (Josefa)
Considerações finais
O presente estudo argumenta a partir da síntese de histórias orais de mulheres
beneficiárias do Bolsa Família que sua autonomia é imperfeita (BIROLI, 2016), uma vez que
as dinâmicas produzidas no ciclo intergeracional da pobreza e as múltiplas carências e
violências (com destaque às de gênero) não são rompidas após a inserção delas no programa,
e, portanto, continuam condicionando as suas experiências cotidianas. Nas narrativas, a
constituição de uma nova família e a maternidade apresentam-se como a concretização de um
desejo associado à “melhora de vida”, e à superação das condições precárias da infância. Ao
mesmo tempo, a concretização do sonho é narrada como uma “responsabilidade”, como um
“aprisionamento” derivado dos novos deveres associados ao cuidado com a família, na maior
parte das vezes assumido apenas pelas mulheres. Em contraposição a uma adolescência mais
“livre”, as relações familiares são marcadas pela violência doméstica e pelo reforço dos
papéis no cuidado das crianças.to
Os resultados sugerem que a situação de pobreza é continuamente reproduzida e a
inserção das entrevistadas na política social se dá, majoritariamente, no momento que
atingem o “fundo do poço” de suas vidas. Não obstante, a pobreza é reproduzida em espiral e
a ausência da provisão financeira masculina aparece como catalisador de processos de
exclusão social (quebra de laços sociais, mudanças contínuas de moradia, precarização da
habitação, violência doméstica etc.). A contínua ruptura e construção de laços sociais para
além da esfera familiar coloca-se como um fenômeno dual, representando a potencialidade de
amizades e redes de ajuda mútua e afeto, que, ao mesmo tempo, não é duradoura ou forte o
suficiente para romper barreiras de dependência e violência. Assim, o presente estudo dialoga
com a tensão na literatura sobre transferência de renda e gênero e avança ao argumentar que
existem avanços e barreiras à autonomia das mulheres beneficiárias do Bolsa Família, as
quais só podem ser entendidos dentro de uma perspectiva relacional já que a ideia de
independência é incapaz de capturar a realidade das mulheres (principalmente as pobres) na
sociedade contemporânea.
A autonomia alcançada é imperfeita e permeada por barreiras que condicionam a
mulher ao papel de mãe, cuidadora, esposa, dependente do marido-provedor e ainda a expõe
a uma série de violências. Esta configuração, percebida nas histórias das mulheres
entrevistadas, não permite transcender as desigualdades de gênero e a situação de carências
múltiplas. O benefício aparece como uma estratégia alternativa à provisão financeira
masculina, mas, ainda assim, não é capaz de fazer com que essas mulheres rompam ciclos de
violência ou construam novos laços sociais para além da esfera doméstica - o que poderia se
transformar em redes de ajuda mútua entre mulheres. Ao contrário, as mulheres solteiras
sofrem uma forte estigmatização por parte das casadas, e sentem-se isoladas do tecido social
que prioriza a família com o homem-provedor mulher-cuidadora como ideal a ser alcançado.
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