Você está na página 1de 7

revisão

Complicações Respiratórias em Pacientes com


Encefalopatia Crônica Não Progressiva
Respiratory Complications In Patients with Chronic Non-Progressive Encephalopathy

Karolyny Alves Claudino¹, Lícia Vasconcelos Carvalho da Silva²

RESUMO ABSTRACT
Introdução. A encefalopatia crônica não progressiva (ECNP) é uma Introduction. The non-progressive chronic encephalopathy (NPCE)
doença que acomete o sistema nervoso central em fase de maturação is a disease that affects the central nervous system in the maturation
devido a uma lesão encefálica cujo quadro clínico depende da área stage due to a brain injury, whose clinic depends on the injured area,
lesada, do fator causal e sua sintomatologia. São achados comuns: alte- the causal factor and its symptoms. Are common findings: changes in
rações de tônus, posturais e de coordenação motora, retardo cognitivo tone, postural and the motor coordination, cognitive delay and swal-
e distúrbios de deglutição, reflexos primitivos persistentes, podendo lowing disorders, primitive reflexes persistent, may trigger respiratory
desencadear complicações respiratórias. Objetivo. Os objetivos deste complications. Objective. Our objectives are the description of the
trabalho são a descrição das alterações motoras da encefalopatia e sua motor disorders of encephalopathy and its relation to respiratory com-
relação com as complicações respiratórias. Método. Foi realizada uma plications. Method. It was performed a literature review, using articles
revisão literária, utilizando-se artigos, das bases de dados BIREME, of databases: BIREME, SciELO and MEDLINE, as well as books
SCIELO e MEDLINE, além de livros e periódicos, da língua portu- and periodicals, in Portuguese and English languages which described
guesa e inglesa que relatavam alterações neuromotoras e respiratórias neuromotor and respiratory changes of patients with NPCE using
de pacientes com ECNP, utilizando-se os descritores: paralisia cere- descriptors: cerebral palsy, respiratory disorders, motor disorders,
bral, distúrbios respiratórios, distúrbios motores, refluxo gastroesofágico, gastroesophageal reflux, pneumonia in neurological patients, aspira-
pneumonia em pacientes neurológicos, aspiração, pacientes pediátrico e tion, pediatric patients and respiratory complications. Results. We
complicações respiratórias. Resultados. Foram selecionados 19 artigos selected 19 articles published between 2002 and 2009 and 11 books
publicados entre 2002 e 2009 e 11 livros de 2000 a 2007, com três from 2000 to 2007, with three exception: one from 1978 and two
exceções: um de 1978 e dois de 1996 por serem literatura de referência from 1996 by reference to the world literature. Conclusion. It was
mundial. Conclusão. Concluiu-se que as alterações neuropsicomoto- concluded that neuropsychomotor changes arising from the ECNP
ras decorrentes da ECNP são fatores decisivos na ocorrência de distúr- are decisive factors in the occurrence of respiratory disorders compli-
bios respiratórios limitando e complicando o prognóstico e sobrevida cating and limiting the prognosis and survival of patients with this
dos portadores desta patologia. pathology.

Unitermos. Encefalopatia Crônica, Doenças Respiratórias, Sobrevida, Keywords. Chronic Encephalopathy, Respiratory Diseases, Survivor-
Prognóstico. ship, Prognosis.

Citação. Claudino KA, Silva LVC. Complicações Respiratórias em Citation. Claudino KA, Silva LVC. Respiratory Complications In
Pacientes com Encefalopatia Crônica Não Progressiva. Patients with Chronic Non-Progressive Encephalopathy.

Endereço para correspondência:


Lícia Vasconcelos Carvalho da Silva
Faculdade Associação Caruaruense de Ensino Superior
Campus Universitário Tabosa de Almeida.
Trabalho realizado no curso de Pós graduação em Fisioterapia Neurofun- Av. Portugal, 1100 - Bairro Universitário
cional da Faculdade Integrada do Recife (FIR) Recife-PE, Brasil. CEP 55016-400, Caruaru-PE Brasil.
1.Fisioterapeuta, Pós-graduada em Fisioterapia Neurofuncional e Fisioterapia E-mail: liciavcarvalho@gmail.com
na UTI, Preceptora de Fisioterapia Cardiovascular, Pneumofuncional e Ge-
riatria da Faculdade ASCES - Associação Caruaruense de Ensino Superior,
Caruaru-PE, Brasil. Revisão
2.Fisioterapeuta, Mestre em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento, Recebido em: 07/09/10
Docente do curso de Fisioterapia da Faculdade ASCES - Associação Carua- Aceito em: 27/05/11
ruense de Ensino Superior, Caruaru-PE, Brasil. Conflito de interesses: não

94 Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100


revisão
INTRODUÇÃO desencadear sérias complicações respiratórias.
A Paralisia Cerebral (PC), ou mais corretamente, a Outros fatores que contribuem para desencadea-
Encefalopatia Crônica não Progressiva (ECNP), ou ainda mento de problemas respiratórios são: nível reduzido de
a Encefalopatia Crônica Infantil (ECI) é uma das pato- consciência, posturas anormais de cabeça e comprome-
logias neurológicas mais comuns do mundo, cuja inci- timentos na função respiratória (reduzida capacidade de
dência vêm se mantendo de forma constante nos últimos força vital forçada - tosse fraca, ou seja, tosse ineficaz para
anos entre 1,5 e 2,5 por nascidos vivos1. Esta encefalopa- realização da expectoração)5.
tia é comumente conceituada nos dias atuais como um A presença de doenças associadas à lesão cerebral,
grupo não progressivo, mas frequentemente mutável de como refluxo gastroesofágico (RGE), incoordenação oro-
distúrbios motores (tônus e postura), secundários à lesão faríngea (IOF) e acúmulo de secreção, além de convul-
do cérebro em desenvolvimento1. sões e a incoordenação motora, podem contribuir para
A origem das causas para o desenvolvimento da o aumento da ocorrência de complicações respiratórias6.
PC pode ocorrer durante o período pré-natal, perinatal A principal afecção respiratória nos portadores de
ou pós-natal, mas evidências sugerem que 70% a 80% se- paralisia cerebral é a pneumonia, predominantemente a
jam de origem pré-natal. As causas podem ser congênitas, aspirativa, mas também bacteriana ou viral, caracterizan-
genéticas, inflamatórias, infecciosas, anóxicas, traumáti- do-se pelo acúmulo de secreção, aumentando a resistên-
cas e metabólicas2. cia das vias aéreas, diminuição da complacência torácica,
O portador desta doença tem como características comprometimento da ventilação e das trocas gasosas6.
principais alterações de tônus muscular (hipertonias ou hi- Uma das principais etiologias dos distúrbios da
potonias) e a manutenção de posturas não funcionais, estas deglutição, dentre os quais o RGE e a aspiração direta de
devido aos padrões anormais de movimento, bem como alimentos são as doenças do sistema nervoso, incluindo a
por persistência de reflexos e reações primitivas, que vão lesão cerebral por hipóxia, como a encefalopatia crônica
variar em cada portador de acordo com a área lesada e o não progressiva7.
tamanho da lesão1. A reabilitação e prognóstico dos pacientes com pa-
Diante da concisa descrição das principais caracte- ralisia cerebral são muito limitados, mesmo naqueles bem
rísticas do quadro clínico dos pacientes com paralisia cere- tratados, devido às frequentes infecções respiratórias resul-
bral, pode-se perceber que existem entre eles deficiências tantes das diversas alterações neurológicas dos mesmos8.
ou distúrbios de movimento e de tônus muscular, além de A presença das disfagias orofaríngeas pode oca-
movimentos involuntários e reflexos anormais, que aca- sionar implicações significativas para o desenvolvimento
bam por comprometer a biomecânica global do indivíduo global, nutrição, hidratação, e estabilidade clínica, prin-
portador da lesão encefálica em questão. Este quadro pode cipalmente no sistema respiratório. Dessa forma, torna-se
variar consideravelmente, desde uma leve monoplegia com necessário o adequado diagnóstico e o conhecimento so-
o intelecto normal à espasticidade total corporal grave e bre tais alterações, podendo assim minimizar os impactos
retardo mental3. clínicos9.
Os pacientes com paralisia cerebral apresentam ain- A incidência de encefalopatia está em torno de
da como características distúrbios motores bucofonatórios, 2:1000 nascidos vivos nos países desenvolvidos, frequên-
de modo a apresentarem distúrbios da fala, mastigação, de- cia que não vem se modificando nos últimos anos10, diante
glutição, controle da saliva e alterações respiratórias4. desta grande incidência, da gravidade e do mau prognós-
Logo, nos pacientes com PC além dos diversos tico que podem advir da associação das afecções respirató-
déficits motores como as alterações de tônus e trofismo, rias com os distúrbios motores nos pacientes neurológicos
podemos observar distúrbios de deglutição que, associa- surgiu o interesse por este estudo.
das às deformidades posturais que podem resultar de um Esta pesquisa objetiva descrever a relação entre dis-
mau posicionamento de cabeça, de membros superiores túrbios motores, dentre os quais, as alterações de tônus,
e de tórax, principalmente a cifoescoliose, podem vir a trofismo, movimentos involuntários e reflexos e reações
Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100 95
revisão

primitivas, além das alterações posturais e as possíveis predominantemente sensoriomotoras, interferindo em


complicações respiratórias como doenças restritivas cau- três fatores de controle normal de postura: na alteração de
sadas por deformidades de tórax, bem como a diminui- tônus, nos graus e variedades da inervação recíproca e nos
ção da ativação do centro respiratório (bulbo) e por fim a padrões posturais de coordenação12. Sendo os padrões mo-
ocorrência de broncoaspiração em crianças com encefalo- tores do paciente com Paralisia Cerebral (PC) resultantes
patia crônica não progressiva. da interação desta distonia aos reflexos anormais resultan-
tes da lesão encefálica.
MÉTODO As alterações anatomopatológicas da encefalopatia
O presente estudo caracterizou-se como uma pes- crônica variam de acordo com a enfermidade desencade-
quisa bibliográfica, a partir de referências teóricas publi- ante e com o momento do desenvolvimento do SNC em
cadas em artigos, livros, dissertações e teses, como foi re- que ocorre. A classificação das encefalopatias crônicas da
alizado no trabalho em questão. infância pode ser feita de várias formas, levando em conta
Para tanto, utilizou-se a seguinte estratégia de bus- o momento e o local da lesão, a etiologia, a sintomatolo-
ca: levantamento bibliográfico em três bancos de dados gia ou a distribuição topográfica da doença13.
BIREME, SCIELO e MEDLINE com os descritores pa- Quanto às alterações de tônus do portador desta
ralisia cerebral, distúrbios respiratórios, distúrbios motores, encefalopatia podemos distribuí-lo de acordo com as se-
refluxo gastroesofágico, pneumonia em pacientes neurológi- guintes classes: espásticos (tônus alto), hipotônico e atá-
cos, aspiração, pacientes pediátricos e cerebral palsy e compli- xico (baixo tônus), atetóide e misto (tônus flutuante)1.
cações respiratórias. O aumento do tônus, mais conhecido como es-
A busca foi realizada desde maio de 2009 até maio pasticidade, decorre de lesão piramidal e é constituinte da
de 2010, os critérios de inclusão dos estudos foram a abor- síndrome do neurônio motor superior (NMS) de modo
dagem direta do tema nos idiomas inglês e português, cujas a estabelecer aumento de reflexos flexores e exacerbação
datas de publicação priorizadas foram as mais recentes a da excitabilidade dos neurônios motores alfa, pela perda
partir de 2000 até 2009. Incluíram-se também artigos ex- do controle inibitório sobre estes neurônios. Adicionam-
perimentais cujos delineamentos (critérios de inclusão, de se ainda como sintomas da síndrome do NMS, reflexos
exclusão e aspectos éticos) foram claramente estabelecidos, tendíneos rápidos, sinal de babinski, reflexos cutâneos
e por fim, estudos de revisão com temas relacionados de exagerados, perda de precisão no controle autonômico e
forma direta com o assunto proposto neste artigo. padrões dissinérgicos de movimentos14.
A hipotonia, ou seja, a diminuição do tônus mus-
RESULTADOS cular, presente no indivíduo com paralisa cerebral ocorre
Foram selecionados 980 artigos cujos temas esta- devido às lesões no NMS que afetam o cerebelo ou tratos
vam relacionados aos descritores utilizados na pesquisa, extrapiramidais, levando a um quadro de postura “lar-
porém, destes foram selecionados 19 artigos publicados gada” e frouxidão ligamentar, precário controle cefálico,
de 2002 a 2009, além dos quais foram selecionados 11 incapacidade de produzir força muscular suficiente para
livros, de 2000 a 2007, com três exceções, um livro de funcionalidade e, sobretudo, para vencer a gravidade14,15.
1978 e dois de 1996, por se tratarem de livros de referên- Quanto àqueles que apresentam tônus flutuante,
cia para a fisioterapia sem edição mais recente. no caso dos atetóides (lesão em núcleos da base) ou do
tipo misto (no caso de lesão no SNC difusa) ocorrem os-
DISCUSSÃO cilações intermitentes de tônus e movimentos que pare-
A encefalopatia crônica não progressiva ou Paralisia cem ser involuntários, como crises de extensão corporal
Cerebral é uma patologia consequente de uma lesão está- (ataques distônicos)15.
tica que pode ocorrer no pré, peri ou pós-natal, afetando o O comprometimento neuromotor na paralisia ce-
sistema nervoso central (SNC) a nível do encéfalo, em fase rebral pode envolver partes distintas do corpo, resultan-
de maturação estrutural e funcional, com manifestações do em classificações topográficas específicas (quadriple-
96 Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100
revisão
gia, hemiplegia e diplegia), como também pode ter sua de atelectasias e compressão de partes do pulmão, e por
classificação de acordo com as alterações clínicas do tono fim, rigidez da parede torácica e a ineficiência funcional
muscular e no tipo de desordem do movimento, podendo dos músculos respiratórios21.
produzir o tipo espástico, discinético ou atetóide, atáxico, Diante de todas estas alterações, comumente ocor-
hipotônico e misto. Quanto à gravidade, o comprome- re elevação na pressão na artéria pulmonar, que somada
timento neuromotor pode ser caracterizado como leve, à hipoxemia pode desenvolver uma congestão venosa e
moderado ou severo, baseado no meio de locomoção da edema periférico, tendo como consequência infecções
criança16. pulmonares intercorrentes, como a pneumonia ou insufi-
Os distúrbios de movimento característicos da en- ciência respiratória.
cefalopatia juntamente com as modificações adaptativas Nos pacientes com ECNP as alterações de tônus,
do comprimento muscular, frequentemente, tem como levam à movimentação em padrões globais e em resposta
consequências deformidades ósseas. Estas deformida- à ação reflexa patológica, promovendo movimentação de-
des ósseas que podem estar presentes naqueles com PC sorganizada de membros superiores e cabeça, tendo como
atém-se não só aos membros superiores ou inferiores, mas consequência, distorções torácicas responsáveis por altera-
também em nível de tórax e coluna vertebral, causando ções da distribuição de fluxo aéreo e diminuição da funcio-
principalmente a cifoescoliose, dificultando assim a eficá- nalidade da musculatura respiratória, devido às alterações
cia ventilatória, e mais diretamente a expansão torácica e biomecânicas do diafragma e da caixa torácica22.
pulmonar dos pacientes em questão17,18. A espasticidade presente em alguns portadores de
O surgimento de deformidades na paralisia cere- PC promove um desequilíbrio tóraco-abdominal, visto
bral é comum, principalmente na espasticidade, visto que que a fixação dos membros superiores encurta a muscula-
esta condição ocorre devido a um desequilíbrio muscular tura inspiratória, e devido à tensão e fraqueza abdominal,
entre agonistas e antagonistas, e contração/tensão excessi- os músculos abdominais não são capazes de estabilizar a
va dos músculos espásticos que distendem e enfraquecem caixa torácica, mantendo-a elevada, dificultando assim,
seus antagonistas19. a aceleração do fluxo expiratório, já que o recuo elástico
O funcionamento do sistema respiratório pode es- desta estrutura está comprometido devido à sua fixação.
tar comprometido por fatores restritivos, dentre os quais Além destas alterações, o pescoço mantém-se curto com
as deformidades posturais, como as cifoescolioses, “pectus elevação da cintura escapular, também contribuindo para
carinatum”, “pectus excavatum”, tórax assimétrico, tórax a elevação do tórax e projeção esternal em todo o ciclo
paralítico e o tórax raquítico. A correção destas deformi- respiratório22.
dades seja por meio de técnicas de cinesioterapia realiza- Já nos pacientes com encefalopatia que apresentam
das pelo fisioterapeuta, seja por intervenção cirúrgica, faz- hipotonia, esta diminuição de tônus leva a uma diminui-
se necessária visando à melhora da mecânica respiratória, ção severa da capacidade pulmonar total, imobilidade
principalmente no tocante à complacência20. geral, musculatura respiratória deficiente, com perda de
As doenças da parede torácica são consideradas sua capacidade inspiratória, mas principalmente da expi-
patologias respiratórias restritivas e uma das principais ratória pela passividade desta fase respiratória em detri-
deformidades limitantes da função respiratória é a cifo- mento à maior atividade do processo inspiratório, rigidez
escoliose, que vem a ser uma curvatura lateral da coluna torácica e tendência à cifoescoliose. O conjunto destas
associada a uma curvatura posterior da mesma14,21. alterações mecânicas leva ao estabelecimento de micro-
As alterações respiratórias mais comuns nestes atelectasias pulmonares, aspiração, capacidade de tossir
casos vêm a ser a dispnéia de esforço, com aumento da reduzida levando à dificuldade de eliminação de secre-
frequência respiratória (FR) e redução dos volumes pul- ções. Além de apresentarem limitação da expansibilida-
monares, podendo desencadear hipoxemia devido à desi- de torácica com elevação da caixa torácica, havendo uma
gualdade de ventilação-perfusão, e eventualmente, reten- predominância de expansibilidade lateral, já que esta não
ção de dióxido de carbono (CO2) e cor pulmonale, além tem grande dificuldade de vencer a gravidade23.
Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100 97
revisão

Quanto aos portadores de ECNP do tipo atetóide para a faringe, a reduzida contração faríngea, as altera-
e misto, as alterações respiratórias presentes oscilam entre ções estruturais laríngeas, a coordenação anormal entre
as consequências dos tipos hipotônicos e espásticos, ha- motilidade orofaríngea e o fechamento glótico e a pre-
vendo predominância daquelas que se fazem mais presen- sença de resíduo após a deglutição podem ser associados
tes pelo predomínio do tônus em questão. com aspiração, todavia há um grande número de crianças
Outro fator que complica o quadro respiratório do com essas anormalidades que não aspiram. A ocorrência
portador de ECNP vem a ser a disfagia neurogênica, asso- de aspiração pode ser dependente não somente de anor-
ciada ao refluxo gastroesofágico (RGE) tem como princi- malidades específicas da fase faríngea, como também da
pal incidência manifestações respiratórias como pneumo- coordenação da deglutição com a respiração28.
nia única ou repetitiva ou crises apnéicas24. Em outros estudos, 39% a 56% das crianças com
A dificuldade motora básica dos portadores de pa- problemas crônicos do desenvolvimento, dentre eles a pa-
ralisia cerebral pode afetar também a função motora oral, ralisia cerebral, apresentam ou irão desenvolver um dis-
influenciando no desempenho das funções alimentares de túrbio da deglutição, apresentando como sintomas: re-
sucção, mastigação e deglutição, desenvolvendo também gurgitação, dificuldade de deglutir a própria saliva, tosse
alterações articulatórias e respiratórias25. As crianças com no momento da alimentação e instabilidade respiratória
desordens motoras de tônus postural e movimentos apre- ou apnéia. Em seu estudo, na amostra de indivíduos com
sentam dificuldade em coordenar movimentos de língua paralisia cerebral, 77% apresentaram disfunção motora
e na deglutição26. oral29.
Várias doenças predispõem a disfagias, no entanto, Os distúrbios de deglutição são mais graves e pre-
as causas neurológicas são as mais frequentes e as que cau- valentes em pacientes neurológicos e em especial os que
sam maior repercussão na dinâmica da deglutição, tendo apresentam encefalopatias devido à incoordenação de de-
como principal consequência a pneumonia aspirativa, glutição, a uma possível lesão do núcleo central do vago,
esta podendo ser identificada em 11% dos casos27. capaz de alterar difusamente a motricidade do trato di-
A deglutição é um processo neuromuscular dinâ- gestivo, além de uma possível postura de opistótomo que
mico, que compreende quatro fases: pré-oral e oral (volun- se trata de uma contração dos músculos extensores do
tárias); faríngea e esofágica (involuntárias). Os distúrbios pescoço e do tronco, assumindo uma postura hiperdis-
da deglutição das fases oral e faríngea são muito comuns tendida, abrindo vias aéreas e favorecendo a aspiração da
em crianças com comprometimento neurológico, porém saliva e de alimentos durante a alimentação14.
muito pouco estudados28. A postura viciosa de opistótomo pode desencade-
A disfagia neurogênica compreende as alterações ar doença de refluxo gastroesofágico (DRGE) que se ex-
da deglutição, que ocorrem em virtude de uma doença pressa mais frequentemente no sistema respiratório, com
neurológica, com os sintomas e complicações decorren- broncoespasmo recorrente, crises apnéicas e quadros de
tes do comprometimento sensório-motor dos músculos infecções “atípicas” de vias aéreas superiores30.
envolvidos no processo da deglutição. A disfagia neurogê- Associando-se as alterações que podem ser encon-
nica é particularmente debilitante, com consequente des- tradas nos portadores de encefalopatia crônica não pro-
nutrição e problemas pulmonares crônicos, decorrentes gressiva pode-se perceber como estas desencadeiam com-
da aspiração traqueal. Várias afecções neurológicas cur- plicações respiratórias: a complacência, definida como a
sam com disfagia orofaríngea, a qual é subdiagnosticada. distensibilidade das estruturas constituintes do tórax res-
As mais comuns são: encefalopatias crônicas28. ponsáveis pela abertura desta estrutura, inflando os pul-
Chega-se assim à conclusão de que a patogênese da mões, está comprometida, visto que a musculatura inspi-
aspiração e penetração laríngea em crianças com ECNP ratória está encurtada e a expiratória alongada mantendo
permanece incerta. A aspiração pode acontecer antes, du- o tórax numa posição estática, diminuindo sua expansi-
rante e após a deglutição, podendo esta ocorrer em qual- bilidade e distensibilidade, além da maior suscetibilidade
quer um destes momentos. O escape precoce de contraste aos processos infecciosos, em especial a pneumonia, pelo
98 Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100
revisão
processo de aspiração e refluxo gastroesofágico, pela ma- REFERÊNCIAS
1.Gianni M, Paralisia cerebral. In:Teixeira E, Sauron F N, Santos L S B, Oli-
nutenção de posturas patológicas fixas, e também disfa-
veira M C de. AACD: Terapia ocupacional na reabilitação física. São Paulo,
gias pela incoordenação da musculatura da deglutição31. Roca, 2003, 571p.
2.Zanini G, Cemin N F, Peralles S N. Paralisia cerebral: causas e prevalências.

CONCLUSÃO Fisioter Mov 2009;22:375-81.


3.Wongprasartsuk P, Rosenbaum P. Cerebral palsy and anaesthesia. Paediatr
A encefalopatia crônica não progressiva, ou, como Anaesth 2002;12:296-303.
é mais conhecida, a paralisia cerebral é uma das doen- http://dx.doi.org/10.1046/j.1460-9592.2002.00635.x
4.Ribeiro J, Caon G, Beltrame J.S. Perfil motor de criança com encefalopatia
ças neurológicas mais incidentes na atualidade. Tal fato
crônica não progressiva- implicações para a intervenção profissional. Dyn rev
justifica-se pelos avanços na assistência neonatal que per- tecno- científ 2008;3: 42-45.
mitem maiores condições de sobrevivência das crianças 5.Furkim AM, Behlau MS, Weckx LLM. Avaliação clínica e videofluoroscópi-
ca da deglutição em crianças com paralisia cerebral tetraparética espástica. Arq
expostas a complicações pré, peri ou pós-natais, porém,
Neuro-Psiquiatr 2003;61:611-616.
não asseguram boa qualidade de vida a esses indivíduos. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2003000400016
As modificações do tônus muscular, as posturas 6.Mello SS, Marques RS, Saraiva RA. Complicações respiratórias em pacien-
tes com paralisia cerebral submetidos à anestesia geral. Rev Bras de Anestesil
patológicas fixas resultantes de reflexos e reações primiti-
2007;57: 455-464.
vas, a falta de coordenação de contração muscular, princi- 7.Rozov T. Doenças pulmonares em pediatria: diagnóstico e tratamento. São
palmente no tocante à musculatura torácica, do pescoço, Paulo, Atheneu; 2004, 720 p.
8.Lianza S. Medicina de reabilitação. 3ª ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koo-
membros superiores e músculos da deglutição, além da
gan, 2001, 463p.
alteração de resposta do centro respiratório acabam por 9.Lucchi C, Flório CPF, Silvério CC, Reis TM. Incidência de disfagia oro-
desencadear uma disfunção do sinergismo muscular res- faríngea em pacientes com paralisia cerebral do tipo tetraparéticos espásticos
institucionalizados. Rev soc bras Fonoaudiol. 2009;14:172-176.
piratório, um dos principais responsáveis pelo processo
10.Maranhão MVM. Anestesia e paralisia cerebral. Rev. Bras. Anestesiol
de ventilação pulmonar e de controle da mesma, além da 2005;55:680-702.
maior probabilidade de aspiração decorrente da disfagia 11.Cervo AL, Bervian PA, Silva R da. Metodologia científica. 6ª ed. São Paulo,
Pearson Prentice Hall, 2007, 176 p.
característica deste indivíduo.
12.Bobath B, Bobath B. Atividade postural reflexa anormal causada por lesões
Portanto, o quadro clínico que pode ser desencade- cerebrais. Tradução: Elaine Elisabetsky. 2ª ed. São Paulo: Manole, 1978, 132p.
ado devido à lesão encefálica no portador desta encefalo- 13.Rotta NT. Paralisia cerebral, novas perspectivas terapêuticas. J Pediatr
2002;78:Suppl 1:S48-54.
patia crônica torna a incidência de complicações respirató-
http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572002000700008
rias comum nestes indivíduos, diminuindo sua qualidade 14.O’sullivan SB, Schmitz TJ Fisioterapia : avaliação e tratamento.Tradução
de vida e em contrapartida aumentando sua morbidade Fernando Augusto Lopes e Lília Breternitz Ribeiro. 4ªed. Barueri, SP, Manole,
2004, 1152p.
e mortalidade visto que o desencadeamento de doenças
15.Shepherd RB. Fisioterapia em pediatria. 3ed. São Paulo, Editora Livraria
respiratórias nestes pacientes é de difícil controle devido Santos, 1996, 421p.
a todos os comprometimentos neuromotores já descritos, 16.Mancini MC, Fiúza PM, Rebelo JM, Magalhães LC, Coelho ZAC, Paixão
ML, et al. Comparação do desempenho de atividades funcionais em crianças
sendo assim a prevenção o melhor tratamento.
com desenvolvimento normal e crianças com paralisia cerebral. Arq. Neuro-
Para uma melhor abordagem desse paciente e pre- Psiquiatr 2002;60:446-452.
venção de fatores desencadeantes de processos infecciosos http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X2002000300020
17.Levitt S.O. Tratamento da paralisia cerebral e do retardo motor.3ª Ed. São
que comumente afetam o trato respiratório, faz-se neces-
Paulo, Ed. Manole, 2001, 286p.
sário o conhecimento dos fatores específicos desta pato- 18.Gregório CSB, Pinheiro ECT, Campos DEO, Alfaro EJ.Evolução neuro-
logia que contribuem para o desencadeamento das com- motora de um recém-nascido pré-termo e a correção com os fatores perinatais.
Fisiot Brasil 2002;3:250-255.
plicações respiratórias nos mesmos, contribuindo assim
19.Amaral PP, Mazzitelli C. Alterações Ortopédicas em Crianças com Paralisia
para a diminuição do número de internações e índices de Cerebral da Clínica-Escola de Fisioterapia da Universidade Metodista de São
mortalidade destes indivíduos. Paulo (Umesp). Neurociências 2003;11: 29-33
20.Azeredo CAC. Fisioterapia respiratória moderna. 4ª ed. São Paulo, Manole,
2002, 253p.

Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100 99


revisão

21.West JB. Fisiopatologia pulmonar moderna. 4ª ed. São Paulo, Manole, fluoroscópica. Pró-Fono R Atual Cien 2008;20:231-6.
1996, 214p. 27.Yamada EK, Siqueira KO, Xerez D, Koch RH, Costa MMB. A influência das
22.Borges MBS, Galigali AT, Assad RA. Prevalência de distúrbios respiratórios fases oral e faríngea na dinâmica da deglutição. Arq Gastroenterol 2004;41:18-23.
em crianças com paralisia cerebral na clínica escola de fisioterapia da Universi- http://dx.doi.org/10.1590/S0004-28032004000100004
dade Católica de Brasília. Fisiot Mov 2005;18:37-47. 28.Manrique D, Melo ECM, Buhler RB. Alterações nasofibrolaringoscópi-
23.Stokes M. Neurologia para fisioterapeutas. Tradução: Terezinha Oppido. cas da deglutição na encefalopatia crônica não-progressiva. J. Pediatr. (Rio J.)
São Paulo, Premier, 2000, 402p. 2002;78:67-70.
24.Jesus LE, Monteiro PCC, Siqueira RR, Marinho EB, Nogueira PAV. Gas- http://dx.doi.org/10.1590/S0021-75572002000100014
trostomias e fundoplicaturas: estudo retrospectivo de 5 anos em pacientes pedi- 29.Aurélio SR, Genaro KF, Macedo Filho ED. Análise comparativa dos pa-
átricos no Hospital Municipal Jesus/RJ. Col Bras Cir 2003;30:84-91. drões de deglutição de crianças com paralisia cerebral e crianças normais. Rev.
25.Vivone GP, Tavares MMM, Bartolomeu RS, Nemr K, Chiappetta ALML. Bras. Otorrinolaringol 2002;68:167-73.
Análise da consistência alimentar e tempo de deglutição em crianças com para- 30.Jesus LE, Monteiro PCC, Siqueira RR, Marinh EB, Nogueira PAV. Opistó-
lisia cerebral tetraplégica espástica. Rev CEFAC 2007;9:504-11. tono como sinal de refluxo gastroesofágico grave em pacientes pediátricos. Rev
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462007000400011 Ped Mod 2002;38:470-4.
26.Marrara JL, Duca AP, Dantas RO, Trawitzki LVV, Lima RAC, Pereira JC. 31.Kisner C, Colby LA. Exercícios Terapêuticos: fundamentos e técnicas. Tra-
Deglutição em crianças com alterações neurológicas: avaliação clínica e video- dução Lília Breternitz Ribeiro. 4ªed. Barueri, São Paulo: Manole, 2005, 841p.

100 Rev Neurocienc 2012;20(1):94-100

Você também pode gostar