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Filosofia Geral: Problemas Metafísicos

Filosofia

Aula 1

Professor Rui Valese

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CCDD – Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico
Conversa Inicial
Olá! Este é o nosso primeiro encontro para o estudo da Metafísica. E,
para começo de conversa, iniciamos pela fala de José Ortega y Gasset num
curso de Metafísica proferido entre 1932 e 1933 na Universidade de Madri. Ao
iniciar o curso, Ortega y Gasset afirma que “estudar Metafísica (...) é uma
falsidade”. Parece estranho começar o estudo de algo afirmando que o mesmo
é uma falsidade. À primeira vista, isso parece ser um convite a não realizar tal
tarefa. No entanto, continuando a refletir com o filósofo espanhol, estudar algo
só não será uma falsidade se o fizermos porque sentimos necessidade de
aprender e apreender esse mesmo algo.
Corroborando com essa ideia, Agnes Heller (1983) em sua obra Filosofia
Radical, também fala de “carecimentos radicais”, quais sejam: o saber pensar,
saber viver e saber agir. Tais carecimentos somente serão atendidos por meio
de uma recepção completa da Filosofia. Assim, para que o estudo que ora
iniciamos não se confirme como uma falsidade, faz-se necessário que o mesmo
seja feito a partir de uma necessidade de aprender os conteúdos a partir de
agora expressos.
A mesma necessidade que tem movido os cientistas e investigadores em
seus processos de descobertas. Da mesma forma que pela necessidade de
satisfazer os carecimentos radicais apontados por Heller.
O percurso desta aula será o seguinte: iniciaremos por compreender
alguns conceitos básicos de Metafísica, conhecendo um pouco sobre algumas
questões metafísicas já apontadas pelos filósofos pré-socráticos chegando até
a metafísica platônica.

Preparado para dar início à disciplina de Filosofia Geral: Problemas


Metafísicos? Então vamos lá!
Bons estudos!!!

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O professor Rui Valese, no material online, nos explica sobre o estudo
da Metafísica, destacando sua importância na compreensão do que seja
filosofia. E você entenderá o porquê nos cursos de Filosofia ela acaba sendo
tratada como uma disciplina incompreensível, que trata de questões por
demais abstratas e sem “pé” na realidade.

Contextualizando
Quem sou eu? Diante desta questão, normalmente as pessoas tendem a
dizer o próprio nome, como se o mesmo tivesse vindo antes de nós mesmos e,
em certo sentido, já nos definisse. No entanto, quando nos perguntamos quem
somos nós, não se trata de se perguntar por qual nome nos chamam, mas de
refletirmos sobre o que nos define. Outra possibilidade de resposta é aquela que
a escola nos fez decorar: um animal racional, como se com essa definição
satisfizesse o que a pergunta inicial nos provoca a refletir. Ao longo desta rota,
refletiremos sobre algumas questões que nos ajudarão a compreender a
complexidade da pergunta “Quem sou eu?” ao mesmo tempo em que poderemos
formular algumas respostas para a mesma.

A seguir há dois links para você conferir um fragmento de texto do filósofo


espanhol Ortega y Gasset e um poema de Carlos Drummond de Andrade, na
voz de Paulo Autran, que refletem sobre alguns aspectos da pergunta inicial.
https://www.youtube.com/watch?v=Wr5uHxamScE
http://www.oocities.org/wellesley/atrium/4886/repente.htm

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Sobre a pergunta inicial “Quem sou eu?”, quais elementos podemos
fazer uso para responder à pergunta? Quais são as possibilidades de resposta
a partir de diferentes perspectivas? Confira a contextualização pelo professor
Rui no conteúdo online.

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Tema 1 – Origens e Aspectos Históricos


Antes de iniciarmos o estudo do que é Metafísica precisamos analisar
alguns aspectos históricos fundamentais, inclusive para compreendermos o seu
significado.
A palavra metafísica surgiu depois que as questões metafísicas
começaram a ser investigadas. Talvez possamos afirmar até mesmo que a
Filosofia nasceu primeiramente como metafísica. Segundo Reale (1990),
existem duas possibilidades para o aparecimento do termo metafísica, a saber:
a primeira é de que seria uma criação dos peripatéticos; outra hipótese, a mais
aceita, seria por obra de Andrônico de Rodes (c. 130-60 a. C.), por volta do
século I a.C., quando o mesmo editou as obras de Aristóteles (384-322 a. C.).

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Em sua edição, Andrônico separa as obras de Aristóteles em dois grupos:
os tratados que investigam as questões da física ou da natureza – em grego, tà
physica – e aquelas que se referem às questões investigadas após, isto é,
“depois de”, “após” – em grego, tà meta. Assim, à Metafísica – tà meta tà physica
– caberia investigar as questões ou, nos dizeres de Reale, das “realidades-que-
estão-acima-das-realidades-físicas”.

Peripatéticos: do grego, é a junção de duas outras palavras: peri-, que significa


ao redor de, mais patein, que significa caminhar, andar. Refere-se ao hábito de
os discípulos de Aristóteles se encontrarem e permanecerem ao redor das
colunas do Liceu de Atenas, escola de filosofia fundada por Aristóteles.

Não se trata de uma classificação sem fundamento ou intuitiva de


Andrônico, mas feita a partir de indicações do próprio estagirita: por investigar
as questões do “Ser enquanto Ser”, Aristóteles a chamou de Filosofia Primeira.
Segundo ele, existem três ramos das ciências, a saber: as ciências teoréticas,
que buscam o saber em si e das quais fazem parte a metafísica, a física (à qual
também pertence a psicologia) e a matemática; as ciências práticas, que tomam
o saber para o aperfeiçoamento moral: a ética e a política; e as ciências
poiéticas, cujo objetivo tendem é a produção das coisas. Se para Aristóteles, as
ciências teoréticas são as mais elevadas, a metafísica é a principal delas.

Estagirita: A expressão “estagirita” se deve ao fato de Aristóteles ter nascido em


Estagira, antiga cidade da Macedônia.

Aristóteles deu quatro definições para os estudos de Metafísica:


 Investiga as causas e os princípios primeiros.
 Investiga o Ser enquanto Ser.
 Investiga a substância.
 Investiga Deus e a substância supra-sensível (REALE, 1990).

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No entanto, não são definições distintas, mas complementares. Ao se
perguntar sobre o Ser enquanto Ser, podemos partir, por exemplo, do Ser
sensível. Porém, em oposição a este, podemos nos perguntar também do Ser
supra-sensível, divino e, nesse ponto, se perguntar sobre Deus, ao mesmo
tempo em que se perguntar qual é a substância do Ser.
Contudo, nem todos concordam que metafísica seja o termo mais
adequado para tratar das questões de Filosofia Primeira. É o que pensa, por
exemplo, o filósofo alemão Jacobus Thomasius (1622-1684), que propõe a
palavra ontologia – onto e logia – como mais apropriada, uma vez que tà onta
significa “as coisas realmente existentes”. Assim, a palavra que melhor expressa
o estudo do Ser enquanto Ser e das coisas ou dos entes tais como são em si
mesmos é Ontologia.
Segundo Thomasius, o próprio Aristóteles afirmou que a Filosofia Primeira
estuda os princípios e causas primeiras dos seres e, portanto, tal estudo deve
vir antes de todos os outros já que é condição sine qua non dos mesmos. Assim,
o “vir antes” significa as investigações que estão acima das demais, e não
meramente o lugar no catálogo de determinadas obras escritas pelo estagirita.
Dessa forma, a palavra ontologia é a mais adequada, pois a mesma significaria
o estudo da essência das coisas.
A periodização mais aceita da história da metafísica é a que a divide em
três períodos. Cada período possui características próprias e, num sentido
dialético, podemos dizer que se propõem superar o anterior, conservando certas
terminologias ressignificadas.

1. De Platão e Aristóteles (IV e III a. C.) até David Hume (XVIII)


No primeiro período, a Metafísica se caracteriza por investigar a
realidade em si, prescindindo das experiências sensíveis (do que é empírico),
buscando apreender aquilo que é ou existe, tão somente pelo esforço intelectual.
Ao mesmo tempo, caracteriza-se por ser um conhecimento sistemático, na
medida em que cada um dos conceitos se relaciona uns com os outros,

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constituindo um coerente sistema de ideias interligadas. Além disso, distingue
ser de aparência.
O primeiro período termina quando David Hume (1711-1776) afirma que
os conceitos são o resultado de hábitos mentais ou psíquicos por meio dos quais
associamos ideias a sensações, a percepções e a impressões dos sentidos,
quando os mesmos se nos apresentam de maneira constante, frequente e
regular. E, portanto, não correspondem a nenhuma realidade externa e
independente de nós, existindo por si mesma.

2. De Kant (XVIII) até Husserl (XX)


Kant (1724-1804) inicia o segundo período afirmando a impossibilidade
de conhecermos a realidade em si por meio dos conceitos tradicionais da
metafísica. Até podemos utilizar tais conceitos, porém, de modo ressignificado,
na medida em que se trata não mais de investigar a realidade em si mesma e
por si mesma, mas da capacidade que nós temos de conhecer a própria
realidade, tomando essa como aquilo que existe para nós, enquanto sujeitos do
conhecimento.

3. Contemporânea (XX)
No terceiro período – Contemporâneo – a metafísica passa a ser chamada
de ontologia, procurando superar tanto a metafísica antiga, quanto a concepção
kantiana. No seu horizonte de investigação, coloca a relação mundo-ser
humano como seu objeto ontológico.
Possui as seguintes características: investiga os modos diferentes pelos
quais os entes ou seres existem, bem como sua estrutura, sentido ou essência;
que relações necessárias há entre a existência e a essência dos entes, bem
como o modo como os mesmos aparecem à nossa consciência. Manifestação
essa que se dá por diferentes e distintas maneiras.

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Por oferecer uma descrição das estruturas do mundo, bem como do nosso
pensamento, alguns filósofos consideram que melhor seria chamá-la de
descritiva, mais do que metafísica ou ontologia.

No material online, o professor Rui explora a caracterização de cada


período, confira com ele!

TEMA 2: Conceito de ser


O que é o Ser? O que faz com que um Ser seja um Ser e não outro
Ser, ou um não-Ser? O que é o não-Ser?
Quando observo as coisas e acontecimentos ao meu redor, observo que
há tanto mudanças quanto permanências. O que muda? O que permanece? As
coisas realmente mudam ou é apenas uma ilusão de minhas percepções? O que
faz com que haja mudança? Ou, o que faz com que haja permanência? O que
define o Ser: o que muda ou o que permanece? Como e por que percebo que
sou diferente das coisas que observo e me cercam? Ao mesmo tempo, por que
percebo que alguns desses seres que observo têm diferenças e semelhanças
em relação a mim, sem, no entanto, os mesmos serem coisas ou deixarem de
ser?
Essas e outras questões constituem o campo da Filosofia que
denominamos Metafísica ou Ontologia. O objetivo desse tópico é apresentar
algumas reflexões sobre o conceito de Ser a partir de diferentes autores. Vamos
lá!

Uma primeira questão a respeito do Ser está na sua própria origem grega
que, ao ser traduzido pelos latinos, causou certa confusão e acabou
determinando um sentido para a palavra metafísica, como Filosofia Primeira, que
não corresponderia à sua real atividade investigativa.

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Antes de continuarmos, porém, faz-se necessário observar que os gregos
não foram os únicos, nem os primeiros a elaborarem uma concepção de Ser em
sentido abstrato. O pensamento filosófico indiano, por exemplo, já apresentava,
muito antes dos primeiros filósofos gregos, três conceitos metafísicos
relacionados ao ser humano enquanto Ser.

Atman, o eu, ou alma; karma, que seriam as ações humanas praticadas


em vida e orientadas por uma eficácia moral com vistas a moksha, que seria a
libertação: o mais alto ideal do existir humano. Assim, atman, o eu, teria que viver
o seu karma, isto é, realizar ações orientadas por uma eficácia moral com vistas
a libertar-se dessa vida material, alcançando moksha, a liberdade.

Para entender mais sobre a Filosofia hindu, confira o link:


http://www.estudantedefilosofia.com.br/filosofias/filosofiaindiana.php

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A palavra karma, aliás, tem sido usada no Ocidente, pelo senso comum
inclusive, com significado completamente pervertido, uma vez que por aqui o
entendemos como castigo, punição e/ou peso a ser carregado em vida pela
vontade de alguma divindade que resolveu nos castigar. Porém, seu significado
se aproxima à terceira lei de Newton: para toda ação corresponde uma reação
de mesma força e em sentido contrário. Tanto o pensamento teológico que dá
sustentação às religiões de matriz africana, quanto a Filosofia Espírita possuem
o mesmo fundamento: a lei do retorno. Assim, minhas ações devem ser
realizadas em sentido de libertar-se e não de aprisionar-se. Ou seja, colhemos
os frutos das ações que realizamos.
Somos o que fazemos... Dessa forma, nosso existir é um aprendizado.
Quando aprendermos nossas lições, nos libertaremos. Enquanto não as
aprendermos, precisaremos de outras vidas para realizar o aprendizado
necessário.
Já na filosofia chinesa, por exemplo, a preocupação não é com o Ser,
mas, com o processo. Assim, não existe uma categoria “tempo” que faz a divisão
entre presente, passado e futuro, mas, no sentido de um devir, de um processo
que é kairós – tempo propício. Diferente da tradição ocidental, que toma o tempo
e o divide em partes, pedaços, um intervalo entre dois momentos, por exemplo
– o presente é o intervalo entre o passado e o futuro – para o pensamento chinês,
o tempo é um processo, assim como o mundo não foi criado num determinado
tempo, mas é um processo autorregulado, isto é, que se desenvolve de acordo
com um momento propício e por si mesmo.

Para conhecer mais sobre filosofia chinesa, confira o link:


http://criticanarede.com/fil_china.html

Outro exemplo vem do continente africano e de sua filosofia ubuntu, esta


gestada na África Subsaariana. O princípio dessa filosofia é expresso na
seguinte frase: “uma pessoa é uma pessoa, junto com outras pessoas”.

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Ou, em termos metafísicos clássicos: um Ser é um Ser, junto com outros
Seres. Isto é, não se funda na exclusão, mas na inclusão, na interdependência.
O filósofo Martin Buber (1878-1965) em sua obra “Eu-Tu” afirma algo
semelhante: o Eu somente tem sentido e existência na presença de um Tu; não
o Tu dominando, não o Tu explorando, não o Tu violentando, mas existindo com
ele, (co)existindo.
Emanuel Levinas (1906-1995) e Enrique Dussel (1934-) refletem sobre o
conceito de alteridade na mesma perspectiva de Martin Buber.

Entenda um pouco mais sobre a filosofia ubuntu, conferindo os links:


https://www.youtube.com/watch?v=J5bgB2hXhtQ
http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-africana-que-
nutre-o-conceito-de-humanidade-em-sua-essencia

Porém, voltemos ao pensamento helênico. Tò on, em grego, significa “o


Ser”, aquele que é, em oposição àquele que parece ser, à aparência. Ocorre que
quando os pensadores e escritores latinos começaram a traduzir os escritos dos
gregos, não encontraram na língua latina uma palavra correspondente à grega
ousía, que significa o Ser das coisas. Assim, inventaram a palavra essentia,
derivando-a do verbo ser, que em latim se diz esse. Assim, o termo ousía,
traduzido para o português, depois de sua latinização, significa essência.
Portanto, o Ser de alguma coisa é a sua essência, a sua identidade, aquilo que
o torna distinto dos demais Seres, único.
O problema é que, algumas vezes, o Ser era tomado tanto como essência
quanto existência. Ao mesmo tempo em que, para alguns pensadores, o Ser era
um atributo de todas as coisas que são num mesmo sentido. Outras vezes, o Ser
era tomado em sentido tão geral que nenhuma substância poderia ser dita nada
mais do que simplesmente que ela “é”.

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E outra questão relativa ao Ser é o sentido que o mesmo é tomado: se
verbo ou se substantivo. No primeiro caso, o Ser é aquilo que faz com que o
sentido substantivo do Ser – o ente, seu segundo sentido – seja.
Por exemplo: sou alto ou sou baixo, sou homem ou sou mulher,
sou brasileiro ou sou sul-africano e, assim por diante.
Já o sentido substantivo diz respeito a identificar que características
possuo e que me diferenciam de qualquer outro Ser. Isto é, que características
cada Ser possui que o torna único, não se confundindo, mas diferenciando-o dos
demais Seres. O que o torna distinto e caracteristicamente próprio, não se
assemelhando ou se confundido com outros Seres. O que lhe é inerente, isto é,
que é próprio dele, Ser em si, e de mais nenhum outro Ser. Que lhe é intrínseco.
Em outras palavras, a identidade de um Ser é aquilo que é próprio dele e que
não depende de nenhum outro ser ou circunstâncias para sê-lo tal qual é.
Tomemos, para ilustrar a reflexão sobre o que é o Ser, o conceito de ser
humano em alguns períodos históricos e distintos pensadores.
No pensamento platônico, por exemplo, o ser humano é constituído de
um corpo e uma alma. O primeiro é um entrave para que a segunda contemple
as Ideias. O objetivo da existência humana é controlar o corpo e elevar a alma
ao Mundo das Ideias. Já na Europa medieval, por exemplo, muito influenciada
pela cultura judaico-cristã, o ser humano é entendido como filho de Deus, porém,
possuindo um corpo, que é fonte de pecado e que, portanto, deve renegá-lo para
salvar a alma, que é perecível. Para Descartes (1596-1650), por exemplo, o ser
humano é constituído de uma mente – substância pensante – e um corpo –
constituído de matéria, que pode ser explicada por meio de leis científicas e
fórmulas matemáticas. Já para o sistema capitalista iniciado com a Revolução
Industrial no século XVIII, segundo Marx (1818-1883), o ser humano é uma
máquina de produzir mercadorias com vistas à produção do lucro, por meio da
extração de mais-valia.

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O conceito de ser humano, que pode ser pensado em termos
metafísicos, assume significados objetivos e diferenciados quando o
analisamos em determinado período histórico ou num determinado pensador.
Veja o que o professor Rui tem a nos dizer sobre essas questões no material
online!

TEMA 3: Substância, essência e existência


O que caracteriza o Ser em si? O que compõe a sua natureza intrínseca?
Para responder a essas questões, faz-se necessário refletir sobre três conceitos:
substância, existência e essência. Ainda que distintos, esses três conceitos se
relacionam e são interdependentes. Vamos entender cada um, acompanhe.

SUBSTÂNCIA

A palavra substância vem do Latim substantia e significa “o que está


debaixo de”, ou seja, constitui aquilo que do Ser não aparece; ficando à mostra
as qualidades ou acidentes desse mesmo Ser. Quando se pensa em substância,
não se está a pensar nos aspectos físico-químicos de algum Ser, por exemplo,
quando esse ser for algo material. Um Ser qualquer é constituído de substância
e qualidade ou acidentes. Enquanto a substância é aquilo que permanece, que
não muda, as qualidades ou acidentes são as que estão em movimento. Porém,
o fato de uma qualidade ou acidente modificar-se não significa,
necessariamente, que a substância do Ser acompanhará a mudança.
Tomemos o caso de uma pessoa qualquer: antes de nascer, após a
fecundação, ocorre um processo de divisão celular até formar o embrião; a partir
deste momento, todo o futuro ser humano que está, utilizando uma linguagem
aristotélica, em potência, irá se desenvolver até chegar o momento de seu
nascimento. Após o nascimento, o processo de desenvolvimento continuará até
a morte.

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Se pegarmos as primeiras imagens da divisão celular e a compararmos
com as demais fases, observaremos várias “qualidades” que foram se
modificando, aparecendo ou desaparecendo, da fase celular até a fase adulta.
Se as qualidades mudam, o mesmo não ocorre com a essência dessa pessoa,
que constitui o seu Ser.
E quando há mudança de substância, o que ocorre é a passagem de uma
substância a outra. A substância é aquilo sem o qual o Ser não é, nem é o que
é. Nesse sentido, substância equivale à essência do Ser; sua realidade
constante de necessária.

Para Aristóteles, a substância é a primeira categoria do Ser.

Para continuarmos nossa reflexão, faz-se necessário esclarecer algumas


diferenças entre substância e acidente. Enquanto a primeira determina o Ser,
o segundo apenas lhe dá as características externas, mas não o determina. É
contingente. Quando pensamos, por exemplo, uma figura geométrica qualquer
(círculo), o seu tamanho (grande, pequeno ou médio) é irrelevante. Se o mesmo
é feito de metal, mineral ou somente desenhado sob uma superfície qualquer, é
irrelevante. O que interessa é sua definição: trata-se de uma figura plana, cuja
circunferência está toda a igual distância de seu centro. Se a figura geométrica
à qual nos referirmos não tiver estas últimas características, não poderemos
chamá-la de círculo. Se qualquer uma das primeiras não aparecer ou for
modificada, a mesma figura geométrica continuará sendo o que é.
Aristóteles identifica nove categorias de acidentes:
1. a quantidade: dois metros, três quilos;
2. a qualidade: negro, italiano, quéchua;
3. a relação: o dobro, metade, dois terços;
4. o lugar: na escola, na fábrica, na rua;
5. o tempo: hoje, amanhã, depois;
6. a posição: deitado, em pé, sentado;

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7. a posse: armado;
8. a ação: cortar, andar, ferir;
9. a passividade: estar machucado, estar cortado.

Quanto à substância, Aristóteles distingue dois tipos: uma, que ele identificou
como Substância Primeira, e outra, como Substância Segunda, que deriva da
primeira.
A Substância Primeira é o que predica o primeiro Ser, de onde derivam
todos os indivíduos que fazem parte desse Ser. Entenda melhor com o exemplo
a seguir.
Ao triângulo primeiro posso aplicar-lhe o nome “triângulo”, com o
qual afirmo algo do triângulo individual – figura geométrica constituída de
três ângulos. Porém, se o triângulo primeiro constitui sua substância
primeira, o nome “triângulo” não é mais sua substância primeira. As
características apontadas da figura geométrica acima indicada dão
substancialidade ao triângulo. Dizer-se que o mesmo é feito de metal,
mineral ou apenas desenhado sob uma superfície qualquer constitui os
predicados acidentais do mesmo. Enquanto as qualidades acidentais têm
seus respectivos opostos – branco-negro, alto-baixo, pequeno-grande, etc.
– as substâncias primeiras não têm nenhum contrário.

Mas, nem tudo que podemos afirmar da substância primeira é substância


segunda. No entanto, aquilo que afirmamos da substância primeira, que se
parece com ela, é substância segunda. Tanto as substâncias primeiras, quanto
as segundas, não fazem parte de um sujeito determinado. Veja outro exemplo a
seguir.

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Quando se afirma que Maria é ser humano, a
humanidade que afirma de Maria não constitui
uma parte sua. No entanto, se afirmo que
Maria é afro-brasileira, ou professora, ou líder
sindical, ou empresária, isso que afirmo dela
constitui uma parte sua.
Fonte da imagem:
http://www.revistaforum.com.br/2015/07/25/mulheres-sobre-o-25-de-julho-a-luta-
contra-a-invisibilidade-e-constante/

Após algumas reflexões sobre o que é a substância, vejamos um pouco


sobre o que seja essência e existência. Primeiramente, faz-se necessário dizer
que de tais categorias não pensaremos como os existencialistas as pensaram:
qual delas é anterior.
Uma primeira concepção de essência a encontramos em Platão. Segundo
o discípulo de Sócrates, essências são os modelos que estão no Mundo das
Ideias, às quais alcançamos e compreendemos por meio do uso da razão. É a
realidade verdadeira, enquanto o que captamos pelos sentidos, são meras
aparências, representações dos modelos ideais.

No entanto, é Aristóteles quem melhor definirá o que seja essência. Para


o estagirita, essência é o quê de alguma coisa. É o que faz com que alguma
coisa é, seja, seu sentido real. Num segundo sentido, lógico, a essência é um
predicado por meio do qual se afirma o que uma coisa é. Muitas vezes, diz-se a
essência de alguma coisa por meio de predicados. Porém, dizer um predicado
de alguém ou de alguma coisa, não é necessariamente dizer-lhe sua essência.
Dizer que “Mônica é uma excelente estudante” não é dizer-lhe sua essência, mas
algo que lhe é contingente, como poderia dizer que é loira, ou negra, ou magra,
ou ainda alta.

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No entanto, se digo que Mônica é ser humano, estou afirmando um
predicado essencial de si. No entanto, outros seres existentes – Pedro, José,
Maria, Lúcia – também são seres humanos.

Viu só? Afirmar que Mônica é ser humano não é ainda afirmar dela algo
que é só dela. Isso reside no fato de que é difícil afirmar a essência de um
indivíduo. Nesse caso, o mais comum é reunir uma classe de indivíduos e afirmar
uma essência que seja comum aos indivíduos dessa classe: Pedro, José, Maria,
Lúcia são seres humanos, isto é, partilham entre si a humanidade. Quando ainda
afirmo que os seres humanos são seres racionais, estou distinguindo-os dos
demais seres ou classe de seres.

Nesse ponto, cabe uma questão: a essência basta a si mesma? Isto é,


independe da existência ou essa lhe é necessária? Reflitamos um pouco
sobre a relação entre ambas.

Para Tomás de Aquino (1225-1274), o fato de haver distinção entre


essência e existência nos seres criados significa que a última seja um acidente
da primeira. Vejamos sobre isso a seguir.
Tomás de Aquino opõe-se a Avicena (980-1037), para quem a essência
deve ser tomada em si mesma. Para esse, a essência é o que é e deve ser
considerada em seu estado metafísico (em si mesma), em seu estado físico ou
real (singularidade) e no seu estado lógico (no pensamento). Francisco Suárez
(1548-1617), Averroes (1126-1198), Guilherme de Ockham (1285-1347) afirmam
que essência e existência não são realidades distintas. Para Leibniz (1646-
1716), toda essência tende à existência. Já para Hegel (1770-1831), o absoluto
primeiro aparece como ser e depois como essência. Essa, a essência, é o
movimento próprio e infinito do ser.

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Para o filósofo alemão, a essência desenvolve-se, dialeticamente, em três
fases: em primeiro lugar, ela aparece em si como reflexão; num segundo
momento, emerge como existência; já num terceiro momento, forma uma
unidade com sua existência, chamada por Hegel também de efetividade.
Enquanto a essência é o que é, a existência é “o que está aí”. A
existência, para Aristóteles, é a substância primeira e, quando essa se une
essência, temos um ser. O que podemos saber de um ser, sabemo-lo porque
sabemos que ele é. Enquanto alguns filósofos consideram a existência um
predicado da essência, Kant (1724-1804) afirma o contrário. Uma coisa é dizer
de algo que o mesmo é vermelho, alto, pesado; outra coisa é dizer que a
existência é o predicado de uma essência.

Com essas ideias, veja no material online o professor Rui explorando os


conceitos de substância, essência e existência, bem como os problemas da
intolerância.

TEMA 4: Metafísica pré-socrática


O que os pensadores pré-socráticos pensaram já pode ser
considerado uma reflexão metafísica? Ou seria uma investigação sobre a
natureza, ou uma cosmologia, ao invés de especulações abstratas?

Para alguns historiadores da Filosofia, o que os pré-socráticos fizeram


não se encaixaria no campo das investigações metafísicas, mas de
investigações do campo da physis (natureza), ou no máximo da cosmologia. Já
para outros, tais reflexões podem sim ser consideradas metafísicas, na medida
em que algumas afirmações que fazem, como também alguns questionamentos
que levantam têm caráter metafísico. Seguiremos essa segunda tendência,
mesmo entendendo que as reflexões dos pré-socráticos não têm ainda o mesmo
peso e aprofundamento das reflexões posteriores.

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Antes de prosseguirmos, cabe esclarecer, primeiro, o que os gregos
antigos entendiam por physis. Esta não tem relação com a Física Moderna, que
tem como objeto de investigação as relações entre sistemas materiais e entre
esses e os campos de força. Busca também reconhecer as propriedades de tais
sistemas e estabelecer as leis de comportamento que os regulam.

Quando os filósofos pré-socráticos se perguntam sobre o princípio que é


fonte e origem de todas as coisas, não estão simplesmente se perguntando
sobre os aspectos físicos e materiais da natureza, mas querem compreender a
essência das coisas.
Trata-se já de um rompimento com uma consciência mítica, que reduzia
todos os acontecimentos à vontade dos deuses. Tanto os acontecimentos da
natureza, como os que ocorrem com os seres humanos eram entendidos como
de vontade dos deuses, não tendo o ser humano nenhum controle ou
conhecimento sobre os mesmos.

Os pré-socráticos são os primeiros a buscarem romper com essa


dependência dos seres humanos e colocá-los no domínio de suas existências a
partir do uso da razão. Fazem uso da razão para compreender
metafisicamente a realidade, o universo, ainda que atribuam, por vezes, a
elementos presentes na natureza (água, fogo, terra, ar, etc.) o fundamento, o
princípio, a arché de todas as coisas. Infelizmente, a maioria de seus escritos se
perdeu na antiguidade.

Alguns fragmentos chegaram até nós, principalmente por citações e


resumos de outros pensadores. A partir de tais fragmentos é possível reconstituir
parte do pensamento dos mesmos.

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Vamos ver e analisar pelo menos alguns dos principais nomes. Para uma
melhor compreensão, vamos fazê-lo a partir das escolas que os agrupam: Escola
Jônica, Escola Itálica, Escola Eleática, Escola Atomística. Além do espaço
geográfico, os respectivos filósofos compartilham os mesmos problemas
discutidos por eles.

ESCOLA JÔNICA

A preocupação dos filósofos jônicos é com o princípio originador e


ordenador de tudo, de onde todas as coisas derivam. Ainda que alguns deles
busquem em elementos da natureza o princípio (arché) de tudo, não os tomam
no sentido estrito, físico, mas em seu sentido transcendental, ontológico mesmo.
Assim, quando Tales de Mileto afirma que a água é o princípio originário, ele não
está falando tão simplesmente de uma substância físico-química que, em
estando presente nas coisas, indica vida ou, em sua ausência, também signifique
ausência de vida. Quando Tales afirma a água como o princípio fundante de
tudo, entende que “o ‘princípio’ pode ser definido como aquilo do qual provem,
aquilo no qual se concluem e aquilo pelo qual existem e subsistem todas as
coisas” (REALE, 2003, p. 18).

Tales também afirma, num de seus fragmentos, que “tudo está cheio de
deuses”.
Com essa afirmação, queria dizer que todas as coisas eram animadas,
isto é, possuíam alma e, por isso, estavam vivas. Usa o exemplo do imã que atrai
o ferro para justificar sua tese: a alma seria a força do imã atraindo o ferro.

Já Anaximandro de Mileto, discípulo de Tales, irá se contrapor,


apresentando uma reflexão que em certa medida supera alguns limites da tese
central de seu mestre.

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Para Anaximandro, um princípio (arché) para tornar-se todas as coisas,
as quais são diferentes entre si, tanto por qualidade, quanto por quantidade
precisa ser indefinido qualitativamente e infinito espacialmente. Assim, o
conceito que congrega essas qualidades é o ápeiron. Para ele, a água já é uma
derivação. Enquanto o princípio é infinito e indefinido. Assim, o ápeiron – palavra
grega que significa “o que está privado de limites” – é o princípio que pode dar
vida a todas as coisas.
Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, porém, irá afirmar que o princípio
(arché) de tudo é o ar. A razão pela qual rejeita tanto o ápeiron de seu mestre,
quanto a água como elementos primordiais, está no fato de que ele considera
que o ar é um elemento que está mais suscetível “às variações e transformações
necessárias para fazer nascer as diversas coisas” (REALE, 2003, p. 21).

Também pertencente à Escola Jônica, vejamos Heráclito de Éfeso. Para


ele, real, existente é o devir. Afirma ele: “Tudo escorre”, “Tudo se move”, para
dizer que tudo está em movimento contínuo, que nada está parado. De um de
seus fragmentos mais famoso temos o fundamento e o princípio da dialética:
“Não se pode descer duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes
uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e
da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai. (...) Nós
descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos”.

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Escola Itálica

A Escola Itálica tem em Pitágoras de Samos seu principal nome. Para


ele, o princípio de tudo são os números. Isso porque, segundo ele, todos os
fenômenos acontecem segundo uma realidade que é mensurável e que pode ser
expressa em números. Não são, porém, os números em si o elemento
fundamento e último da realidade, mas seus elementos constitutivos – “o ‘limite’
(princípio determinante e determinado) e o ‘ilimitado’ (princípio indeterminado)”
(REALE, 2003, p. 25).
Ao observarem o mundo, os acontecimentos, os pitagóricos percebem
certas regularidades, que podem ser expressas em números e em leis
numéricas. Para os mesmos, os números pares, por predominarem neles o
indeterminado, são menos perfeitos; já os números ímpares, por prevalecerem
neles o elemento limitante, são mais perfeitos. Fruto, provavelmente de uma
mentalidade patriarcal, os pitagóricos irão dizer que os números ímpares
correspondem ao masculino, enquanto os números pares correspondem ao
feminino.
Escola Eleática

A escola Eleática tem três principais nomes. Veja qual o pensamento de


cada um destes filósofos:
Xenófanes: inicia seu pensamento criticando o antropomorfismo que
atribui “aos deuses formas exteriores, características psicológicas e paixões
iguais ou análogas às que são próprias dos homens, apenas quantitativamente
mais notáveis, mas não qualitativamente diferentes” (REALE, 2003, p. 30). Em
decorrência desse pensamento, afirma que o cosmos é Deus, que tudo vê,
pensa e ouve, mas que está imóvel. Já a origem da Terra e de tudo que nela
habita deve-se a dois elementos: a água e a terra. “Tudo nasce da terra e na
terra termina”; “Todas as coisas que nascem e crescem são terra e água”, afirma
ele.

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Parmênides: o segundo filósofo dessa escola e, talvez o mais importante,
é Parmênides. Para ele, “o ser existe e não pode não existir”, e, como
consequência, “o não-ser não existe”. Como para ele é impossível pensar o
nada, fora do ser, não existe nada. Afirma também que o ser é não-gerado e
incorruptível. Caso contrário, seria gerado pelo não-ser ou acabaria por se tornar
não-ser. Como não tem passado e nem futuro, vive um eterno presente e,
portanto, é imóvel, homogêneo, perfeito e uno.

Zenão: Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, compartilhava de sua


ideia da não existência do movimento e da multiplicidade.

Escola Atomística

O principal nome da Escola Atomística é Demócrito de Abdera. Para ele,


assim como para os demais filósofos atomísticos, o princípio (arché) de tudo é o
átomo, isto é, o indivisível. Isso porque, segundo eles, as coisas nascem por um
processo de agregação de infinitos corpos que são invisíveis e, ao morrer, ocorre
o processo inverso – a desagregação – até chegar ao átomo, que é a menor
parte de uma coisa, porque não é mais divisível.

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Agora, acompanhe no material online a explicação do professor Rui
sobre alguns fragmentos dos filósofos pré-socráticos sobre o elemento
fundante.

TEMA 5: Metafísica platônica

Quando Platão (428/427-348/347 a.C.) viveu, a Filosofia já tinha


alcançado um status na sociedade grega bastante relevante. É claro que ainda
enfrentava alguns problemas com aqueles que queriam preservar as tradições e
guiarem-se pela consciência mítica e pelas mitologias. Como consequência,
alguns filósofos sofreram perseguições, como é o caso de Anaxágoras que foi
expulso de Atenas. E Sócrates, que foi condenado à morte por “corromper a
juventude e falar contra os deuses antigos”. Assim, Platão vive um momento da
Filosofia em que esta é mais especulativa. Essa fase havia sido iniciada pelos
sofistas, que tinham como principal objetivo formar os cidadãos atenienses para
a política, entendida essa como “vida na pólis”.
Platão busca uma síntese e, ao mesmo tempo, uma superação de dois
pensamentos anteriores a ele: a ideia de movimento, preconizada por Heráclito
(Tudo flui) e a ideia de permanência, preconizada por Parmênides (O ser é e o
não-ser não é). Seu objetivo é encontrar uma solução que torne possível a
coexistência do uno e do múltiplo, do ser e do não-ser.

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Para Platão existem dois mundos: o mundo das ideias (ou Mundo
Inteligível) e o mundo das aparências ou representações (ou Mundo
Sensível). No mundo das ideias encontram-se as essências de todas as coisas.
Essas são perfeitas e imutáveis e só podem ser alcançadas por meio do uso da
razão, isto é, do exercício filosófico. Transcendem a experiência e são
universais. As ideias são classificadas hierarquicamente e, no topo, está a ideia
do Bem, considerado por Platão, a realidade suprema. Todas as demais ideias
dependem dela.

O mundo em que vivemos é o mundo das aparências, cópia imperfeita do


mundo das ideias, sombra do Mundo Inteligível que captamos por meio dos
sentidos. É mimesis, imitação. Como os sentidos são falhos, não são confiáveis.
Assim como todas as artes miméticas que, ao invés de nos apresentarem o que
as ideias são em si, nos mostram apenas imitações, passando-se pelo original.
Confira um exemplo:
Um marceneiro, ao fabricar buma cama, não fabrica a cama,
conceito ideal de cama que se encontra no mundo das ideias, mas uma
cama que ele concebe a partir de suas experiências sensíveis. Já um
pintor, ao desenhar uma cama, fá-lo-á a partir de uma cama já existente
materialmente. Por conseguinte, tanto o marceneiro, quanto o pintor
estarão afastados dois e três graus da verdade, respectivamente.

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O verdadeiro conhecimento é aquele alcançado por meio do uso da
razão. O mundo das aparências é corruptível, imperfeito, mutável e particular.
Assim, quando vejo um animal qualquer – um cavalo, por exemplo – não vejo o
cavalo, mas um cavalo. Quando vemos ou ouvimos a palavra cavalo, cada um
de nós pensa num cavalo particular: grande/pequeno,
branco/malhado/marrom/preto/cinza ou outra cor qualquer, que é captado por
meio de um dos nossos órgãos dos sentidos. Porém, nenhum desses é o cavalo,
que seria o conceito que está presente no mundo das ideias e ao qual chegamos
por meio de um exercício racional.
Entre o mundo das ideias e o mundo das aparências, estão o Demiurgo e
as almas. No diálogo Timeu, Platão defende a ideia de que um ser inteligente,
belo e bom, ordenou o caos e criou a vida cósmica. A esse ser, chamou de
Demiurgo. Para Platão, esse último é superior à matéria, porém, inferior às
ideias. No entanto, faz uso do modelo das mesmas para ordenar a matéria e
transformar o caos em cosmos.
O Mundo Sensível é criado por Demiurgo a partir do Mundo Inteligível.
Dessa forma, o que Demiurgo cria no Mundo Sensível, que consideramos como
Bom ou Belo, os são por participarem tanto do Bom e do Belo em si, que se
encontram no Mundo Inteligível. Para Platão, então, as coisas e as formas em si
dão realidade ao Mundo Sensível. Da mesma forma, se alguma coisa que existe
no Mundo Sensível não encontrar uma contrapartida no Mundo Inteligível é falso
ou inexistente.
Quanto às almas, essas também têm papel mediador entre as ideias e a
matéria; por meio da ação do Demiurgo, a alma transmite, para a matéria,
movimento, vida, ordem e harmonia. Concebe-a como eterna, possuindo
natureza espiritual e inteligível. Para Platão, a alma é prisioneira do corpo, ao
qual foi submetido e do qual precisa libertar-se. No Livro X de A República,
Platão narra o Mito de Er, onde expõe de que maneira a alma habita um corpo e
o que acontece com a mesma após a sua morte.

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Da mesma forma, argumenta a importância da Filosofia como forma de
realizar esse processo de libertação da alma, já que é ela quem conhece o
mundo das ideias e não nosso corpo.
Platão também concebe três tipos distintos de almas, as quais ele
relaciona com cada um dos tipos de cidadãos que deveriam formar a cidade
ideal. Veja:

Alma racional
Está localizada na cabeça e, na cidade ideal, seria representada pelos
magistrados e reis filósofos. O objetivo da alma racional é controlar as outras
duas, alcançando assim a sabedoria e a prudência, características fundamentais
de um bom governante.

Alma irascível
Localiza-se no coração e simboliza a força, a coragem e a impetuosidade,
correspondendo aos soldados e guardiões que devem proteger os cidadãos dos
ataques estrangeiros.

Alma concupiscente
Localizada no baixo-ventre e que é responsável por satisfazer os apetites
e desejos sexuais e alimentares, correspondendo àqueles cidadãos
encarregados de proverem todas aquelas coisas necessárias ao sustento da
cidade ideal.

Platão descreveu esta teoria das almas no Livro IV de A República. Outra


analogia que Platão faz com as almas, ele a descreveu no diálogo Fedro, por
meio do “Mito do Cocheiro”, conheça-o:
O Mito do Cocheiro diz que o ser humano seria como uma carruagem
puxada por dois cavalos (um negro e outro branco), guiada por um
cocheiro. O cocheiro seria a alma racional e a carruagem o nosso corpo. O
cocheiro, por meio das rédeas seria nossos pensamentos (o que conduz a
carruagem) e nosso corpo, de modo a fazer com que os dois cavalos (o
negro, de alma concupiscível e o branco, de alma irascível) puxassem a
carruagem harmonicamente, não cedendo nem a um, nem a outro. Ao ceder
ou dar preferência a qualquer um deles, o mais provável é que caminhemos
em círculos e acabemos por não sair do lugar.

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Conduzindo bem as duas almas, isto é, agindo com equilíbrio e
moderação, a alma racional alcançará a felicidade. Caso contrário,
encontrará somente sofrimento e infelicidade, ficando escravo de suas
paixões e vícios.

Chegamos ao último tema de estudo desta aula, confira a explicação do


assunto com o professor Rui no conteúdo online!

Trocando ideias
Nessa rota de aprendizagem, vimos algumas questões centrais e iniciais
sobre a Metafísica, bem como de que maneira os pré-socráticos e Platão
refletiram as questões do Ser. Da mesma forma, procuramos refletir sobre
pensamentos filosóficos não helênicos. Agora acesse o Ambiente Virtual de
Aprendizagem (AVA) e poste sua resposta à pergunta:

Filosofia é uma invenção grega ou outras sociedades,


contemporâneas ou anteriores aos gregos, também realizaram
especulações que podemos chamar de filosóficas e/ou metafísicas?

Debata e aprenda!

Na Prática
Discutindo sobre amor e diversidade sexual a partir do “Mito da Origem
da Humanidade” e do “Mito de Eros” presentes no diálogo “O Banquete”, a
questão da diversidade sexual é um tema bastante interessante e, ao mesmo
tempo, de bastante polêmica.

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Discuti-lo em sala de aula, a partir de conceitos filosóficos e de referências
clássicas da Filosofia, é uma forma de romper os preconceitos com relação ao
tema; tanto os impregnados por algumas religiões/religiosos, quanto pelo senso
comum/tradição.
A ideia central a ser discutida é o conceito de amor. Qual é a essência do
amor? Não se pode perder de vista este foco, sob pena de se ficar nos
“achismos”, bem como na reprodução de preconceitos, sejam do senso comum,
sejam religiosos. Assim, podemos iniciar esta prática com a pergunta:

O que você entende por amor?


Após refletir sobre a pergunta anterior, busque exemplos de como o
mesmo é representado em letras de música de diferentes gêneros, como
também no cinema e nos folhetins.

Síntese
Quem sou eu? Como podemos nos definir? Quando nos colocamos esta
questão, nossa tendência inicial foi responder a partir das reflexões do senso
comum, “da doxa”, como diriam os gregos. Porém, quando a refletimos em
termos ontológicos, percebemos que as características individuais inicialmente
apontadas – nome, filho de quem, o que faço, como sou, do que gosto, de onde
vim, idade, peso, altura, etc. – não dão conta de responder à pergunta “quem
sou eu?”.
Assim, para darmos um tratamento ontológico a essa questão, é preciso
se concentrar naquilo que me define enquanto Ser, qual é a minha essência,
aquilo que me define e ao mesmo tempo me diferencia de todos os demais seres.

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Que me torna único, com uma substância que é própria de minha identidade, de
minha existência.

Enquanto os pré-socráticos estavam preocupados em descobrir um


princípio fundante, Platão nos definirá como um Ser dotado de corpo e alma.
Quanto ao primeiro, trata-se da representação de um conceito – a ideia de ser
humano – presente no Mundo das Ideias e que capta as outras representações
presentes no mundo que vivemos. A alma é a que pode compreender os
conceitos tais quais são, por que é capaz de pensar e fazer uso da razão. Porém,
para Platão, nem todas as almas são iguais. A partir de livros como Fedro e A
República, podemos perceber que as almas podem ser classificadas a partir de
suas características principais: umas são dotadas de uma maior capacidade
racional, noutras predominam a força e a coragem, enquanto que em outras,
predominam as habilidades responsáveis por proverem o sustento da
coletividade.
Além disso, como no Mito do Cocheiro, num mesmo Ser estão presentes
as três almas – a racional, a irascível e a concupiscente – às quais compete ao
cocheiro – alma racional – saber conduzir as outras duas, para uma vida
equilibrada e harmônica.

Chegamos ao fim deste encontro, se você sentiu dificuldades em entender


algum ponto, retome-o! Agora é a vez do professor Rui fazer uma sintetização
sobre tudo o que você estudou até aqui. Confira no material online.

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Referências

Mensagem do professor John Volmink à Academia Ubuntu.


<https://www.youtube.com/watch?v=rHbJG8u_Yn0> Acesso em 11/abr./2016.
Ubuntu pra você! Filosofia Africana.
<https://www.youtube.com/watch?v=J5bgB2hXhtQ> Acesso em 11/abr./2016.
Ubuntu filosofia africana. <https://www.youtube.com/watch?v=yDc6G6cjUt4>
Acesso em 11/abr./2016.
SBARDELOTTO, Moisés. “Eu só existo porque nós existimos”: a ética
Ubuntu.
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article
&id=3691&secao=353>. Acesso em 11/abr./2016.
DA LUZ, Natalia. Ubuntu: a filosofia africana que nutre o conceito de
humanidade em sua essência.
<http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-africana-que-nutre-
o-conceito-de-humanidade-em-sua-essencia>. Acesso em 11/abr./2016.
DOMINGUES, Joelza Ester. “Ubuntu”, o que a África tem a nos ensinar.
<http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/ubuntu-o-que-a-africa-tem-a-nos-
ensinar/>. Acesso em 12/abr./2016.

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