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ASPECTOS
FILOSÓFICOS,
IDEOLÓGICOS E
EDUCACIONAIS
Tema
03
01
A ERA DO
CONHECIMENTO
Neste tema, vamos abrir uma perspectiva
ampla do mundo em que vivemos como a era do
conhecimento. A busca incessante do conhecimen-
to se apresenta como um caminho que viabiliza a
realização individual e coletiva. Portanto, é preciso
lançar-se com muita força e esperança na aquisição
do que temos como meio de conquistar o espaço que
nos cabe em um mundo de imensas contradições e
também de infinitas possibilidades.
É preciso fazer com que, através do co-
nhecimento, sejam ampliadas as facilidades e di-
minuidas as dificuldades da existência humana. A
grande meta deste novo milênio é a construção de
um mundo em que haja lugar para todos os habi-
tantes do planeta.
Objetivos da Aprendizagem
Ao terminar a leitura e as atividades do Tema 1,
você deverá ser capaz de:
compreender o conceito, o significado
e a importância do conhecimento filo-
sófico no conjunto dos conhecimentos
construídos pela humanidade;
identificar o que leva o ser humano
a construir o conhecimento em sua
relação com o mundo circundante;
identificar as características e os de-
safios de uma sociedade aprendente;
compreender a condição humana
atual a partir de suas contradições e
possibilidades.
1.1 O conhecimento filosófico
1 Hominizar diz respeito à geração de um ser humano do ponto de vista biológico, enquanto hu-
manizar se refere à construção de um ser humano em seus múltiplos aspectos a serem desenvolvidos.
12 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
A discussão em torno da origem do universo e do homem é uma temá-
A era do conhecimento
tica que se manifesta em múltiplias posições e de forma inesgotável. Há quem
entenda que tudo teria surgido por obra de um processo evolutivo. De formas
mais simples da matéria, uma complexificação cada vez mais elaborada teria
resultado no surgimento da vida sobre a terra e em níveis de consciência nos
seres humanos. Todos os seres que compõem o universo seriam, portanto, re-
sultantes de um processo evolutivo ascendente, de seres inferiores para seres
mais complexos e, portanto, superiores na escala evolutiva. Na contrapartida,
há quem defenda o creacionismo, isto é, a explicação de que o universo e tudo
quanto nele existe, especialmente o ser humano, teriam sido criados por Deus
em um tempo determinado.
O processo de hominização e de humanização acontece e exige dos se-
res humanos um incessante esforço de superação das dificuldades que se im-
põem a sua existência. O ser humano em parte coincide com a natureza e, em
outra parte, dela se diferencia. Sua existência, assim, se constitui num somató-
rio de dificuldades e de facilidades. Hominizar-se e humanizar-se são as tarefas
que o desafiam permanentemente. Para isso, o ser humano haverá de buscar
contínua e indefinidamente os múltiplos saberes necessários para se inserir em
um mundo que parte coincide com ele e, em outra parte, diferencia-se dele e
que precisa ser compreendido e ajustado. Portanto, todo o conhecimento será
resultado dessa relação do homem com o seu mundo, que precisa se arrumado
de acordo com sua condição de nele existir. Atualmente, a ação humana sobre
o mundo se intensifica e se acelera, sob alguns aspectos, de forma assustadora,
enquanto se pensa em um mundo bom para todos.
13
e necessária, desde o seu conceito mais simples do senso comum até o seu
significado mais amplo e profundo.
14 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
cimentos. Além da Filosofia, é preciso distinguir e destacar a Teologia, como a
A era do conhecimento
busca do conhecimento das coisas que remetem a humanidade para as ques-
tões transcendentais. Alguns grandes filósofos foram também grandes teólogos
como Santo Agostinho (354-430 d.C) e São Tomás de Aquino (1225-1274 d.C.).
Eram os filósofos que cuidavam da matemática, das ciências naturais,
da busca do entendimento dos fenômenos humanos, das práticas educativas e
tudo o que poderia dizer respeito às realidades do mundo e do homem. Com o
advento da Idade Moderna e a substituição da cosmovisão teocêntrica2 pela
perspectiva antropocêntrica, em que a fé passava a ser substituída pela razão
humana, os conhecimentos passam a se fragmentar cada vez mais, originando-
se o conhecimento científico, produto da razão humana.
Cada área do saber começa a apresentar as suas especificidades e seus
expoentes e pesquisadores. Os avanços da ciência e da técnica começam a se
apresentar cada vez mais rapidamente e o que a humanidade não progrediu ao
longo de milhares de anos, agora vai conhecer avanços cada vez mais acelera-
dos. A idade contemporânea chega e se afirma cada vez mais com a convicção
de que ciência e técnica finalmente resolveriam todos os problemas humanos.
A fragmentação dos saberes resultou em infindáveis listas de novas e
específicas áreas do conhecimento, de sorte que, no caminho da máxima espe-
cialização, o espaço dos generalistas3 foi perdendo o seu status e sua impor-
tância. Impôs-se o mundo dos especialistas. E diante da infinidade das novas
áreas do conhecimento e diante do volume imenso de novos conhecimentos a
aumentar cada vez mais rapidamente, resta a pergunta:
2 Cosmovisão teocêntrica é uma visão segundo a qual tudo era percebido e explicado como
sendo obra de deuses ou de Deus... isso quando não se atribuí a seres da natureza a condição de
divindade. Por exemplo, uma trovoada era compreendida como se fosse a presença de um deus
embravecido.... e que teria que ser apaziguado para que não viesse a punir os homens...
3 Generalista é aquele que procura saber tudo de tudo, enquanto o especialista é aquele que
procura saber tudo de um campo cada vez mais centrado e reduzido da realidade.
15
O filósofo não é mais aquele que detém todo o conhecimento, até porque,
diante da infinidade sem conta de novas áreas de conhecimento, seria absoluta-
mente impossível alguém ter a pretensão de ser um especialista em todos os conhe-
cimentos. Porém, a importância da Filosofia está na sua tarefa de pensar o mundo
e refletir sobre seu significado. Assim, um pensador se dobrará sobre o seu mundo
para percebê-lo com mais clareza a respeito de suas razões últimas.
A postura do filósofo se revela pela capacidade de perguntar. É o afã
de construir permanentemente o que ainda não somos que nos leva ao questio-
namento a respeito de tudo o que nos cerca. Nenhum outro ser conhecido faz
uma pergunta. Repetindo o programa pré-determinado pela natureza, todos os
demais seres do universo simplesmente realizam o que para eles já foi progra-
mado pela natureza. Portanto, nenhuma nova indagação os inquietará.
O ser humano, desde que abre os seus olhos, pela primeira vez, já ma-
nifesta a sua inquietação que o fará buscar respostas enquanto viver. A crian-
ça pergunta insistentemente a respeito de tudo. Infelizmente, essas perguntas,
muitas vezes, são ridicularizadas, sufocadas e silenciadas. Muitos professores,
na escola, não gostam do aluno que faz muitas perguntas, enquanto os pais, na
família, sem saberem o que dizer, silenciam e também fazem calar.
Diante de tantos mecanismos que buscam silenciar desde uma criança até
adultos de todas as idades – um ser humano quieto não incomoda! – é preci-
so verificar se ainda somos capazes de nos indignar com tudo o que acontece
ao nosso redor. O filósofo ainda não morreu dentro da gente se ainda não nos
acostumamos com o inaceitável diante de nossos olhos.
Com que facilidade nos acostumamos com tudo e nada mais nos in-
comoda. É melhor ficar quieto. É melhor não reagir. É melhor não se envolver
em confusão. Uma encrenca sempre dá trabalho. E assim vamos morrendo por
dentro e vivendo no limite do inaceitável e intolerável. Porém, viver acostuma-
dos com os absurdos que nos rodeiam é abrir mão da própria dignidade que nos
faz sentir vivos, mais atores do que meros reatores diante dos acontecimentos.
16 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
Assim, o mundo dominante nos quer passivos e acomodados. Na antiguidade
A era do conhecimento
greco-romana, oferecia-se pão e circo para as massas populares manterem-se
passivas. Atualmente, basta oferecer o circo (futebol, novelas, etc.) e o povo se
diverte, inconsciente e manipulado. A reação à essa passividade é um desafio à
dignificação humana. Diante disso, a inquietação filosófica se coloca como um
meio de humanização e de preservação da cidadania.
O filósofo é alguém que busca viver e conviver com as diferenças. O dife-
rente é que nos instiga e encanta para além da acomodação. Já não existe mais um
filósofo dentro de alguém que não sabe conviver com um pensamento diferente,
com uma cultura diferente da nossa, de um credo, de uma cor, de um sabor ou de
um jeito diferente de ser. As diferenças sempre serão um desafio para aprender e
crescer. Jamais a atitude de nivelamento e de achatamento produzirá algo de sig-
nificativo e interessante para mover a realidade. A convivência com o diferente só
será possível se nos despojarmos de qualquer atitude preconceituosa e dogmática.
A postura filosófica brotará da saudável inquietude que nos leva a
questionar o mundo que nos cerca. Não se trata de uma inquietação neurótica e
de uma ansiedade patológica, mas de uma sensibilidade que se manifesta num
profundo sentido de alteridade. O filósofo é alguém que se ocupa e se preocupa
com o outro. Sua sensibilidade o faz perceber a alegria, a tristeza, o encanta-
mento, o desapontamento, o medo, a raiva, o desânimo, a força e tudo o mais de
que se compõe a personalidade humana. O filósofo se importa com o outro e tudo
que diz respeito ao seu mundo. Ele está atento a tudo que se passa ao seu redor
e buscará expressar essa percepção de alguma forma.
Naturalmente que a postura do filósofo não permanecerá somente ao
nível do senso comum, dos sentimentos e de uma mera sensibilidade inicial e
ainda descomprometida. O filósofo também se exercita e se constrói. Sua in-
quietação o levará a sair de sua zona de conforto e exercer uma prática liberta-
dora corajosa e transformadora.
17
é pedagógico. Historicamente, precisamos lembrar que as últimas décadas da
história brasileira foram marcadas por um obscurantismo cultural. Por oca-
sião da revolução militar de 1964, atendendo aos objetivos desenvolvimentis-
tas do capitalismo internacional, ajustou-se a educação aos modelos político
autoritário e econômico associado e excludente aqui implantados. Para isso,
excluiu-se das grades curriculares de todos os cursos médios e superiores
todo e qualquer espaço reflexivo. Concomitantemente, submeteu-se à cen-
sura tudo o que fizesse esse povo pensar, ou seja, os meios de comunicação
e toda expressão cultural. Resultou em um verdadeiro atraso cultural. Um
povo que não pensasse, não ouvisse e nada falasse, isso é, silencioso e passivo,
estaria facilmente subjugado e dominado. Por outro lado, nos espaços reflexi-
vos que ainda persistiram, ocupou-se o tempo em ler e decorar o pensamento
dos clássicos da Filosofia, da Sociologia, da História etc., de tal forma que os
estudantes passassem a rejeitar qualquer atividade cujo objetivo fosse des-
pertar as consciências e toda e qualquer sensibilidade criativa. Restou uma
educação a serviço de um modelo econômico determinado pela racionalidade
tecnológica e economicista. Por essas razões, é preciso recuperar os espaços
perdidos e fazer acontecer o despertar de um povo para a sua condição de
cidadãos, donos e senhores de sua própria história. Filosofia e Cidadania se
insere nesta busca e se constitui no espaço educativo cujo objetivo é aprender
a pensar para fazer acontecer a história individual e coletiva da melhor forma
possível. (Acesse a internet – no Google/You Tube – e escreva a pergunta O
que é Filosofia? Você encontrará uma sequência de vídeos sobre o tema).
Muito estudo. Estudar é ler o mundo e também ler o texto. Isso quer
dizer que, para se exercitar o filósofo, é preciso leitura. Ler é algo árido e muitas
vezes cansativo. Porém, somente quem lê muito, pensa bem, escreve bem e fala
bem. Os neurônios se exercitam e as habilidades intelectuais não são resultado
apenas de uma mera característica individual. É bem verdade que existem di-
ferentes inteligências. Alguns serão naturalmente mais reflexivos. Outros terão
uma habilidade especial para expressar seus pensamentos de forma verbal ou
de forma escrita. Outros serão ainda mais práticos e operativos. Todavia, nada
18 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
substitui a transpiração de quem se exercita em qualquer atividade humana. As-
A era do conhecimento
sim como uma habilidade física resulta de muito treinamento, também as habi-
lidades intelectuais e mentais são fruto e produto de muito esforço e empenho.
Fazer silêncio. Para refletir é preciso criar espaços de silêncio. É co-
mum que nossos estudantes tentem estudar com os fones de ouvido e o som
nos últimos decibéis suportáveis aos ouvidos humanos. Mesmo que haja quem
afirme que é assim mesmo que ele gosta de estudar, a super estimulação sonora
é incompatível com o funcionamento das células nervosas do cérebro no que
diz respeito à assimilação de conteúdos e da aprendizagem. Portanto, é preciso
criar espaços interiores para que possa desabrochar a criatividade, a sensibili-
dade e florescer o mundo das ideias.
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necessário decorar o que disse esse ou aquele pensador. Para beber na fonte
dos grandes pensadores, bastará ir ao encontro deles nos livros e textos que
deixaram.
20 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
conhecimento desde o senso comum até a ciência. Mostra como as questões
A era do conhecimento
que brotam da simplicidade de um conhecimento ingênuo, difuso, acrítico,
dogmático e simples, dá origem aos questionamentos que levam a um conhe-
cimento altamente fundamentado e que precisa retornar à sua origem como
um senso comum esclarecido.
21
1.2 As relações homem-mundo
22 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
circundante. Sua interpretação acabava sendo pela ótica do sagrado. A natureza
A era do conhecimento
e tudo o que ela continha era explicada através de uma perspectiva teocêntrica e
fideista. Todos os fenômenos eram fruto e produto da ação de Deus ou de deuses. O
que fundava esse conhecimento era um fideísmo, ou seja, a crença na presença e ação
de divindades.
Augusto Comte (1798-1857), filósofo positivista, afirma ter a humanida-
de atravessado três estágios no que diz respeito à explicação do mundo: o estágio
teocêntrico, o racional e o positivo. O teocentrismo caracterizou todo o período
pré-histórico, a Antiguidade e toda a Idade Média. Os povos primitivos e antigos
eram politeístas. Para eles, os deuses é que comandavam a vida e a morte de todos
os seres. A natureza era sagrada e imutável. Não se poderia tocar em algo que fos-
se determinado por uma divindade ou que até mesmo fosse identificando como
sendo a própria divindade. O Cristianismo trouxe a crença em um Deus único. O
monoteísmo cristão passou a determinar de vez a fé como explicação de toda a
condição humana: as relações sociais, políticas e econômicas. Tudo se justificava
em nome de Deus. A cultura estava circunscrita aos mosteiros e catedrais. Somen-
te tinham acesso ao conhecimento mais elaborado os monges e alguns nobres.
Esta visão teocêntrica e fideísta de mundo não combinava com o desen-
volvimento de uma ação mais efetiva sobre a natureza. Ao contrário, a crença no
sagrado infundia um sentimento de temor e um comportamento de submissão.
Quem ousasse pensar diferentemente do estabelecido pela ortodoxia vigente
era taxado de herege e punido severamente. Todavia, houve homens e mulheres
que tiveram a coragem de começar a questionar as verdades impostas e a du-
vidar de tudo o que não era explicado pela razão humana. A idade moderna, a
partir do século dezesseis, surge com a ação crítica de homens e mulheres que
tiveram a coragem de afirmar suas novas perspectivas. Um exemplo paradigmá-
tico se revela no pensamento de René Descartes (1596-1650). Um filósofo que
inaugura um método da dúvida. Nada mais será aceito sem que passe pelo crivo
da razão humana. Tudo precisava ser interpretado e compreendido através da
razão. Assim, a dúvida metódica se coloca como um marco de um tempo em que
a racionalidade humana vai conquistar e ocupar, cada vez mais, seu espaço na
construção do conhecimento, dando início a era moderna. Junto de Descartes,
outros pensadores vão concorrer para solidificar a revolução do pensamento
humano, como Leonardo Da Vinci (1452-1519), Galileu Galilei (1564-1642),
Francis Bacon (1561-1626), Giordano Bruno (1548-1600), etc.
23
Com uma nova compreensão de mundo, as transformações vão ocor-
rer em todos os setores da vida humana. A partir do momento em que se afir-
ma o heliocentrismo5, percebeu-se que daria para navegar sempre para a
frente e que não se cairia nas garras de monstros, habitantes de abismos pro-
fundos. Afirma-se o sistema planetário em substituição a uma compreensão
de uma terra plana como uma mesa. Empreendem-se as grandes navegações
e descobrem-se novas terras em todos os quadrantes do planeta. Afronta-se
o poder da igreja romana com os questionamentos dos reformadores protes-
tantes. Buscam-se inspirações na antiguidade greco-romana e a cultura dá
saltos de excelência, constituindo-se num verdadeiro renascimento nas artes,
na pintura, na escultura, na arquitetura, na música, na pedagogia etc. O de-
senvolvimento da ciência e da técnica produz uma revolução que afetará as re-
lações humanas sob todos os pontos de vista. O modo de produção se desloca
do setor primário para o setor secundário e, a partir de meados do século XIX,
a industrialização vai se constituir no mecanismo de produção de bens econô-
micos. Os pensadores iluministas disseminaram ideias de liberdade, de igual-
dade e de fraternidade. Por fim, os três séculos da idade moderna produzem
a derrocada do feudalismo, cuja estrutura garantiu os privilégios da nobreza e
do clero durante mil e trezentos anos. Com a revolução burguesa, surge a nova
ordem econômica e social do capitalismo e sua contrapartida socialista.
A princípio, a natureza era tida como um obstáculo intransponível, já
que era dominada por divindades que não permitiam que sobre ela se atuasse e
se modificasse o que era prerrogativa exclusivamente sua. Pela ótica do Cristia-
nismo medieval, sob a hegemonia da igreja romana, o conhecimento não pode-
ria chegar ao alcance do povo para que interpretações errôneas não induzissem
a heresias. Quem ousasse pensar diferente do que era estabelecido pela Igreja e
pela sociedade dominante de então, poderia ser levado para a fogueira inquisi-
torial. Muitos homens e mulheres, de fato, foram queimados, como a francesa
Joana D’Arc (1412-1431) e o monge italiano Giordano Bruno (1548-1600). Ela,
uma mulher guerreira, é queimada viva com a acusação de bruxaria, e ele, um
cientista, é queimado, em Roma, sob a acusação de que seus estudos científicos
eram contra a doutrina cristã. Na verdade, o que não se queria era correr o risco
da perda de privilégios e de poder.
24 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
Com o advento das idades moderna e contemporânea, a natureza passa
A era do conhecimento
a ser investigada em suas entranhas e seus princípios passam a ser dissecados.
Surgem a ciência e a técnica. Os seres humanos não se submetem mais à na-
tureza, mas aprendem com ela e a tornam coadjuvante em seu desenvol-
vimento. Por fim, chega-se a um mundo em que a natureza é dominada.
Desenvolvem-se imensas possibilidades de se criar um verdadeiro céu neste
planeta. As ciências vão dissecando os mistérios mais profundos de todos os
fenômenos e a técnica instrumentaliza os seres humanos, conferindo-lhes um
extraordinário poder de transformação. As dificuldades são minimizadas sob
todos os pontos de vista. As facilidades para se viver cada vez mais e em condi-
ções cada vez melhores aumentam significativamente.
25
• o grande fascínio da humanidade foi e continua sendo o fantásti-
co desenvolvimento tecnológico. O seu resultado se transformou
numa parafernália que encanta homens e mulheres em todas as
idades. Ficou muito mais fácil se viver no que diz respeito ao trans-
porte, às comunicações, à manutenção da saúde e à cura de do-
enças, à alimentação mais saudável, ao lazer com o aumento do
tempo liberado de tarefas antes braçais e opressivas, o acesso ao
conhecimento e à educação etc. Atingiu-se a culminância da enge-
nhosidade humana com o desenvolvimento de uma tecnologia que
substitui não somente a mão humana, mas o próprio pensamento
humano. A rapidez com que tudo acontece, o ritmo alucinante das
mudanças e inovações, criam um admirável mundo novo, na ex-
pressão do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963);
6 Filogenia diz respeito à origem e evolução da humanidade, enquanto ontogenia diz res-
peito à origem e evolução do ser humano individual.
26 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
antiguidade, idade média, de adolescência – idade moderna, e de adultez, idade
A era do conhecimento
contemporânea, também um ser humano individual passa pelas mesmas fases. As-
sim como a evolução de toda a humanidade foi determinada pela forma como foi
compreendendo e atuando sobre o mundo, também o crescimento individual se
dará pela maneira como ele se relaciona com o seu mundo. Assim, cada indivíduo
vai até onde acredita que pode ir e terá o tamanho de seu pensamento. O que deter-
mina grandemente o crescimento ou a estagnação pessoal são as crenças que cada
um fixa em sua mente a respeito de seu mundo. Muitos indivíduos acreditam que
nasceram para sofrer e que é vontade de Deus a sua condição de miséria e sofrimen-
to. Todavia, quando alguém desperta e compreende que ninguém nasce para sofrer
e que a miséria não é vontade de Deus, ele assume a tarefa histórica da transfor-
mação pessoal e coletiva. Passa a estabelecer horizontes ilimitados e vai à busca da
realização de seus projetos e propósitos. Portanto, desmistificar e desfazer crenças
limitadoras para o próprio crescimento é um desafio que se impõe a todo ser hu-
mano para romper com as amarras internas e externas. Assim como a humanidade
foi avançando em seu processo de desenvolvimento, cada ser humano individual
precisa compreender que, dentro do contexto em que ele se insere, é preciso que
cada um seja o sujeito, dono e senhor de sua própria história.
27
Assim se apresenta a realidade paradoxal de nosso mundo: um uni-
verso de infinitas possibilidades e de aspectos assustadores e ameaçadores da
própria condição de sustentabilidade da sobrevivência do próprio planeta. To-
davia, é preciso encarar tudo o que se apresenta de forma realista: esse é o nosso
mundo. Ele não é melhor e nem pior do que já foi ou que poderá vir a ser. Tudo
vai depender de como haveremos de nos posicionar diante do que está posto.
Assumir uma postura positiva e decisória frente ao mundo é uma necessidade
fundamental. Isso quer dizer que precisamos encarar a realidade em sua verda-
deira dimensão de fragilidade e de potencialidades. Novamente se nos impõe
o desafio histórico de minimizar as dificuldades e ampliar as facilidades. Tudo
isso resultará da postura e do engajamento de homens e mulheres conscientes,
dinâmicos, e que acreditam na utopia de um mundo melhor para todos. Isso é
que representa a postura de cidadãos a exercer a sua cidadania como um com-
promisso ético fundamental. Toda a posição que prenuncia uma terra arrasada
precisa ser abandonada e substituída pela esperança construída de que o mun-
do é transformável, de que ainda há tempo e que a utopia de um mundo em que
caibam todos pode ser transformada em realidade.
28 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
A era do conhecimento
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro
Ibero-Americano, 1963.
O filósofo espanhol José Ortega Y Gasset faz uma análise de todo o processo
de desenvolvimento da ciência e da técnica, desde a afirmação inicial de que o
ser humano é o único que não recebeu a vida pronta e acabada e que, portan-
to, terá que se fazer permanentemente, já que ele é o que ainda não é.
29
1.3 A sociedade aprendente
30 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
papel transformador. Já que o mundo não lhe é dado pronto, cabe-lhe modificá-
A era do conhecimento
-lo na perspectiva de sua realização plena. Isso significa que a condição humana
exige a busca do conhecimento para superar suas adversidades e assim desabro-
char todas as suas potencialidades.
31
retornem para o cotidiano da vida das pessoas, na forma de uma disseminação
das conquistas científicas.
Os mitos se constituíram no grande esforço de explicação do mundo
exercido pelas comunidades primitivas. Esse legado nos vem até hoje numa lin-
guagem metafórica, simbólica e que contem, em germe, a semente dos conheci-
mentos que foram evoluindo ao longo dos tempos. O fenômeno da mitificação
ainda se apresenta nos dias atuais na forma de manipulação e mascaramento
da realidade. Criam-se mitos – pessoas, lugares, ideias etc. – para apresentar
uma realidade fantasiosa que preenche as necessidades das massas carentes de
tudo e que transferem para a magia do pensamento a satisfação não atingida na
realidade. O risco disso tudo está no fato de que essas carências tornam as pes-
soas presas fáceis de entendimentos equivocados da realidade e a manipulação
do consumismo e da exploração de povos inteiros. Portanto, enquanto os mitos
do passado se constituíram em semente do conhecimento moderno, o mundo
da ciência e da técnica deslocou o seu significado e os instrumentalizou como
ferramentas de manipulação e de controle. Portanto, é preciso aproveitar o que
os mitos nos ensinam e desmascarar o que através deles nos é transmitido sub-
liminarmente.
O conhecimento religioso, resultante da revelação divina, de acordo
com a crença das diferentes religiões, projeta o sentido de transcendência para
todos os seres humanos. Apresenta-se uma contradição aparente na medida em
que a construção humana resulta do conhecimento científico e este é fruto da
razão. Todavia, é preciso compreender que a visão religiosa não projeta o mes-
mo objeto da perspectiva científica. A primeira confere um significa de infinito
ou transcendente e a segunda busca a significação e o controle do finito ou ima-
nente. Portanto, o que ambas busca não se contradiz, até porque são conheci-
mentos diferentes. Bem colocados em suas tarefas, os conhecimentos religioso e
científico não coincidem e não são excludentes, mas podem e devem se conciliar
tanto na explicação de todas as realidades existentes, quanto na vida concreta de
todos os seus habitantes. À religião cabe a tarefa de conferir o significado à vida
humana e à ciência cabe explicar o mundo material que nos cerca. Portanto, são
objetos diferentes que concorrem para a construção e realização da condição
humana em sua pluridimensionalidade bio-psico-social-espiritual-material.
Assim, a construção da utopia de um mundo bom para se viver, um
mundo sustentável, ou um mundo onde caibam todos os seres existentes, resul-
32 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
tará da simbiosinergia de toda a teia da vida em que se constitui nosso planeta e
A era do conhecimento
todo o universo. Será através da evolução de todos os saberes e de sua colocação
a serviço da realização da utopia de um mundo melhor que uma nova realidade
poderá emergir.
33
Para muitos, a única possibilidade de se furar o bloqueio dos mecanismos de
exclusão social é através do conhecimento. Portanto, temos que despertar
para o esforço individual e coletivo para que todos tenham acesso à educação
e ao conhecimento. Ao se conseguir acessar os meios formais e informais de
crescimento intelectual, é preciso que sejam aproveitadas todas as oportuni-
dades que se apresentem para que se consiga avançar e conquistar espaços
pessoais e profissionais.
O segundo pilar sobre o qual haverá de se estruturar o desenvolvimento
do novo milênio será o aprender a fazer. Serão as habilidades exigidas por um
mundo complexo que precisam ser treinadas. A multiplicidade de áreas técnicas
que surgem em um mundo cada vez mais sofisticado exige empenho para a aqui-
sição de suas especificidades. Um conhecimento sólido precisa vir acompanhado
da capacidade de aplicar o que se aprendeu teoricamente. Tanto as escolas quanto
o esforço individual precisam concorrer para que cada indivíduo possa ser um
profissional competente e capaz de responder à demanda de um mundo cada vez
mais tecnificado e exigente em suas diversidades e complexidades.
O mundo dos generalistas foi substituído pelo mundo dos especialis-
tas. Isso representou grandes ganhos e também algumas limitações. Ainda ne-
cessitamos de uma massa imensa que se dedicará aos serviços gerais. Porém, é
preciso que haja uma evolução no que diz respeito à valorização dessas ativida-
des que não exigem maior preparo técnico. Como veremos à frente, o labor é tão
necessário e importante quanto as atividades da alta especialização. Todavia, o
mundo precisa aprender a valorizar as atividades que se restringem a esses afa-
zeres. A possibilidade maior de avanço em um mundo tecnológico está na espe-
cialização para responder às demandas e exigências atuais. Aprender a fazer é a
chave maior para a inclusão no universo do trabalho cada vez mais exigente em
suas especificidades. Todavia, o saber especializado não pode perder de vista o
saber holístico, ou seja, a percepção do todo. Por exemplo, um especialista da
área da saúde não pode esquecer que estará tratando um ser humano e não ape-
nas uma doença. Precisa lembrar que uma doença não é apenas uma limitação
de um único órgão do corpo, mas resultado da disfunção da totalidade do or-
ganismo que se manifesta em seu ponto mais fraco. A reunificação dos saberes
se coloca como uma busca de reintegração do que se fragmentou em demasia.
Dentre os quatro pilares de sustentação do desenvolvimento para o
mundo de um novo milênio, o terceiro a ser apontado é o aprender a conviver.
34 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
Verifica-se um avanço tecnológico que possibilita um mundo de infinitas possi-
A era do conhecimento
bilidades ao lado de dificuldades primárias no que diz respeito às relações entre
os seres humanos. Tanto nas relações interpessoais de nossos espaços cotidia-
nos quanto as relações entre os povos, o que se verifica são dificuldades imensas
e que as remete à condições rigorosamente primárias e, por vezes, até mesmo
a uma verdadeira barbárie humana. Vivemos em um mundo de entredevora-
mentos primitivos e incompreensíveis diante do maravilhoso potencial humano
que se desenvolve na atualidade. Para fazer acontecer o avanço para um mundo
onde haja lugar para todos e em que todos possam viver em paz, faz-se neces-
sário o aprender a conviver. Especialmente a educação precisa se constituir no
principal espaço e instrumento de convivência humana. Iniciando-se na família
e formando-se na escola, a sociedade necessita de homens e mulheres que sai-
bam conviver em harmonia, fazendo de todas as diferenças possibilidades de
enriquecimento individual e coletivo, com vistas a um mundo bom para se viver
para todos os habitantes do planeta.
O quarto pilar a ser erigido pela sociedade atual é o do ser. O mundo redu-
ziu o ser humano somente ao ter. Os direitos fundamentais do ser humano acaba-
ram por serem suplantados unicamente pela necessidade de produzir e consumir.
O ser humano precisa se desenvolver em seus múltiplas dimensões. Enquanto não
houver a possibilidade de um indivíduo crescer sob todos os pontos de vista – bio-
lógico, material, intelectual, social, espiritual, emocional, ético, estético etc. – não
existirá um ser humano inteiro e feliz. Essa perspectiva da integralidade do ser hu-
mano se constituirá na grande meta para a qual deverão concorrer todas as forças
de que se compõe a realidade de nossa existência nesse planeta.
35
Esse processo de desenvolvimento integral, caracterizando-se uma so-
ciedade aprendente, haverá de acontecer ao longo de toda a vida. O mundo que
se apresenta, em um ritmo vertiginoso de desenvolvimento, exige que as buscas
do conhecimento, das habilidades do fazer, do aprender a conviver e da cons-
trução do ser, façam-se ao longo de toda a vida. Não existe mais a possibilidade
de alguém pensar que, uma vez formado em algum curso, estará pronto para
sempre e que não precisará mais nada fazer para responder às exigências que se
apresentarem. Essas exigências se modificam a cada instante e respondê-las é
um desafio permanente de atualização e de renovação. Portanto, os cidadãos de
um novo mundo são e serão cada vez mais homens e mulheres atentos a tudo de
novo que, a cada dia, está a se apresentar e a exigir respostas inovadoras. So-
mente assim será possível inserir-se em uma realidade paradoxal e desafiadora
de uma sociedade aprendente.
36 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
A era do conhecimento
DELORS, Jacques et al. Educação: um tesouro a descobrir. 5. ed. São Paulo:
Cortez, 2001.
O renomado físico austríaco Fritjof Capra, radicado nos Estados Unidos, es-
tabelece uma relação entre os diferentes paradigmas científicos e os rumos
do desenvolvimento de uma perspectiva holística para os saberes do mundo
contemporâneo.
37
1.4 A condição humana
O ser humano é o único que tem que construir a sua vida e ela só avança
na medida em que se perseguem metas consideradas, por vezes e de imediato,
impossíveis e irrealizáveis. Nossa utopia é a de um mundo bom para se viver.
É preciso construir uma realidade cada vez melhor para todos. Nossa reflexão
filosófica vai percorrer os caminhos na busca da iluminação da utopia de um
novo homem e de uma nova sociedade. Haveremos de nos questionar sobre
quais aspectos e por quais razões partimos do pressuposto de que o mundo
que temos carece urgentemente de mudanças profundas. Buscaremos com-
preender que somente uma postura de uma autêntica cidadania poderá levar
à realização de um mundo mais justo e mais equitativo.
Labor
38 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
Desde então, para suprir as necessidades básicas da sobrevivência, executando
A era do conhecimento
tarefas servis, era preciso designar indivíduos como escravos, reduzindo-os à
condição de animais domésticos. Estes, por força do que realizavam, não pode-
riam ser considerados seres humanos. Esta era a condição do labor. “Laborar
significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condi-
ções da vida humana” (ARENDT, 2007, p. 94). Para conquistar a liberdade era
preciso escravizar outros indivíduos para executar as tarefas braçais e que eram
consideradas indignas de um ser humano. Diferentemente dos tempos moder-
nos, em que a escravidão tinha como finalidade a busca de mão de obra barata e
de lucro, na antiguidade a escravização significava “a tentativa de excluir o labor
das condições da vida humana. Tudo o que os homens tinham em comum com
as outras formas de vida animal era considerado inumano” (ARENDT, 2007, p.
95). O escravo era conhecido como o animal laborans 1510.
Mais tarde, na conceituação moderna, as atividades humanas serão
divididas – segundo Arendt (2007, p. 96 e 98), de forma não menos preconcei-
tuosa – em trabalho manual e intelectual e trabalho produtivo e improdutivo.
O labor é movido pelas necessidades imediatas de sobrevivência. Desta forma,
tão logo ele é realizado, desaparece tão depressa quanto o esforço despendido e
consumido para executá-lo. Um bom exemplo é a atividade do cozinhar. Pron-
ta a comida, todos se alimentam e nada mais resta da demorada e cansativa
atividade de quem ocupa o espaço da cozinha. Incluem-se aqui a gama imensa
de atividades conhecidas como de serviços gerais, que não exigem maior espe-
cialização, que são pouco consideradas e muito pouco valorizadas. Aqueles que
as executam, raramente por escolha e satisfação pessoal, mas por necessidade
e obrigação, sentem-se envergonhados do que fazem, sua autoestima é baixa e
sua autoimagem é minúscula. Nesta condição, questiona-se sobre a possibilida-
de de recuperar a cidadania de quem se sente menos e é visto como um indiví-
duo de segunda categoria.
Arendt (2007) destaca, com o advento da teoria marxista, o processo de
mudança desta mentalidade que colocava a atividade humana de sobrevivência
(labor) da forma pejorativa como foi caracterizada. De acordo com a visão mar-
xista, todo o trabalho é resultado da força humana, produzindo um excedente,
isto é, além do necessário para a sobrevivência. Enquanto o sentido da vida hu-
10 Homo laborans é o homem cuja atividade é o labor cotidiano, simples, repetitivo, cansa-
tivo e pouco valorizado em nossa sociedade.
39
mana se reduz à produção de bens para construir o próprio corpo, desaparecem
todas as concepções diferenciadas das atividades humanas. Tudo será trabalho,
independente de sua qualificação e, portanto, precisará ser valorizado equitati-
vamente. “Se o labor não deixa atrás de si vestígios permanentes, o processo de
pensar não deixa coisa alguma tangível” (ARENDT, 2007, p. 101). Mesmo o re-
sultado da produção intelectual necessitará das mãos para se evidenciar, tanto
no que diz respeito ao pensamento em si mesmo, quanto na sua concretização
em uma realidade material. De sorte que, de acordo com a perspectiva marxista,
nada justifica a divisão e a hierarquização das diferentes tarefas humanas em
trabalhos mais ou menos nobres.
A condição humana individual se dará sempre a partir de um contex-
to de mundo pré e pós-existente à sua chegada e à sua partida. A sua vida se
constituirá no “intervalo de tempo entre o nascimento e a morte” (ARENDT,
2007, p. 108). A vida biológica se dará em um movimento que repete os ciclos
predeterminados pela natureza para todos os seres vivos. Dentro deste tempo,
o ser humano fará acontecer a sua história. O processo biológico da vida humana
e o crescimento e declínio do mundo se constituem no eterno ciclo da natureza
que se repete. É neste movimento que se dá a atividade do labor, encerrando-se
somente com a morte desse organismo. Esta é a permanente tarefa denominada
labor, prover a subsistência dos processos vitais, num movimento incessante, can-
sativo e repetitivo. É o labor humano que busca preservar as condições dos seres
vivos mediante o interminável movimento de crescimento e declínio de tudo o que
existe. Manter limpo o mundo e evitar o seu declínio é a implacável tarefa humana.
Eis aí o seu significado e sua importância. Portanto, o labor sempre poderá ser e
será impregnado do exercício da cidadania. Por mais simples que seja a atividade
humana, ela é importante e necessária e quem a executa precisa ser valorizado e
dignificado como um cidadão.
Para se recuperar o significado e a importância das atividades laboriosas,
é preciso que se faça acontecer uma profunda mudança de mentalidade. A força de
uma herança histórica e cultural é poderosa. O preconceito com relação ao trabalho
manual vem da moral dos senhores e dos escravos de Aristóteles, na antiguidade
grega. Somos herdeiros de uma cultura greco-romana. Até hoje, temos profunda-
mente enraizada em nossas mentes e corações a imediata distinção valorativa em
relação às diferentes atividades humanas. Basta alguém se apresentar como exe-
cutor de serviços gerais e sua apreciação social já se faz espontaneamente depre-
40 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
ciativa. Quando, porém, em nossa perspectiva funcionalista, que avalia as pessoas
A era do conhecimento
por aquilo que tem e fazem, alguém se apresenta como um trabalhador de alta
especialização, logo assume um status orgulhoso e, não raras vezes, de arrogância e
prepotência em relação à todas as atividades mais simples e aqueles que as execu-
tam. Portanto, estamos diante de um desafio ético que remonta a tempos pretéritos
e, por isso, de difícil modificação em seus aspectos negativos e preconceituosos.
Trabalho
41
Todavia, existe certa similaridade entre o labor e o trabalho no que diz
respeito aos seus produtos. Ambos serão consumidos. Uns de forma imediata
e outros mais lentamente. Este último, porém, é provido de certa reificação,
ou seja, mantém a sua durabilidade enquanto é cuidado através de constante
manutenção, podendo ser usado por muito tempo. A universalização consiste
em fabricar algo a partir da matéria prima e colocá-lo a serviço, como instru-
mento, para suprir necessidades humanas específicas. Enquanto o homo labo-
rans está submetido à natureza, o homo faber aprende com ela, descobre os seus
princípios, atua sobre ela e a domina, tornando-se seu senhor. Neste processo
de humanização, ou seja, de impressão das marcas humanas sobre a natureza,
sempre haverá certa ação destruidora. O homem se serve da natureza para so-
breviver e, para isso, acaba exaurindo-a com certa violência. Trata-se, porém,
da força engenhosa de seus instrumentos, criados para submetê-la e colocá-la
sob seu domínio. Já não se nutre mais com o suor de seu rosto, mas com a soli-
dez das ferramentas por ele fabricadas.
Outro aspecto da fabricação, apontado por Arendt (2007), refere-se ao
modo como se dá a criação de instrumentos. O que precede a criação de um
instrumento é sua concepção mental. Esta, por sua vez, depois que se efetivou a
sua realização, permanece como modelo teórico para futuras aplicações e multi-
plicações. Isto quer dizer que antes de qualquer coisa ser fabricada, ela já existe
na forma de uma imagem e permanece depois como um modelo mental para
futuras fabricações. Assim, a característica da fabricação e que a distingue das
demais atividades humanas, está no fato de ter um começo e um fim bem de-
finido. Além disso, outra característica é a reversibilidade do processo de produ-
ção. Alguma coisa que venha a ser fabricada pode perfeitamente ser destruída e,
portanto, deixar de existir, de acordo com a vontade do homo faber.11
Assim como o labor, o universo do trabalho também se constitui em
uma das mais importantes questões a desafiar o mundo contemporâneo: de um
lado penoso à instrumentalização tecnológica altamente desenvolvida e sofisti-
ca facilitou-se enormemente a condição humana. Todavia, paradoxalmente, na
medida em que aumenta a afluência incomensurável, em todo o mundo, de uma
massa trabalhadora em busca de um bom trabalho, na contrapartida, a tecno-
logia libera um contingente proporcionalmente da mesma medida. Resultam,
11 Homo faber é o homem que fabrica instrumentos mais duráveis e os dissemina para uso
de todos e em todos os lugares.
42 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
como espaço de trabalho ocioso, ou as tarefas simples e desgastantes do labor
A era do conhecimento
ou, então, os espaços da mais alta e seletiva especialização. Restam as questões
de ordem econômica, política, social e ética: o que haverá de fazer profissional-
mente essa massa humana, especialmente de jovens, no presente e no futuro
que se vislumbra? Enquanto um número cada vez maior procura trabalho, a
quantidade que é liberada ou que sequer tem acesso ao trabalho cresce nas mes-
mas proporções.
Ação
Um dos maiores desafios do séc. XXI é encontrar um bom lugar para todos os
seres humanos afluentes no mundo do trabalho, especialmente jovens e adul-
tos excluídos. O que haverão de fazer essas multidões, tanto as que não tem
acesso à educação, quanto aqueles que chegam ao nível educacional superior,
em uma realidade onde os espaços de trabalho diminuem e a afluência é cada
vez maior? É preciso pensar que não se trata de não haver o que fazer. O
mundo está para ser construído e melhorado. O que importa é que tudo o que
43
precisa ser feito tem que ser valorizado de forma justa e equitativa. Portanto,
jamais deixe que entre em sua mente a ideia de que você não vai conseguir
ser bem sucedido porque o mercado está saturado. Ele está saturado para
uma realidade de exclusão e de injustiça social. Todavia, precisamos pensar
em um mundo de inclusão e onde todos os espaços não sejam produto de um
mercado, mas um direito garantido a cada cidadão habitante deste planeta.
44 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
A era do conhecimento
Como fazer acontecer esta utopia de uma nova condição humana, ou seja, de
homens e mulheres que agem e se comunicam na intensidade de fazedores
da história individual e coletiva, ou seja, como cidadãos em pleno exercício
de sua cidadania?
45
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007.
O século XXI é e será cada vez mais uma era marcada pelo conhecimento. É
preciso que sejam atingidas e ultrapassadas todas as fronteiras entre o que
conhecemos e o que ainda não se conhece. É um desafio individual e coletivo
para que se possa ajustar o mundo à condição humana plena. As abordagens
na leitura do mundo se multiplicaram ao infinito através do desenvolvimento
das mais diferentes áreas dos saberes. À filosofia cabe o papel de se dobrar
sobre todo o mundo vivido e refletir sobre todas as realidades em busca de
sua significação mais profunda. Todo o conhecimento se dará numa relação
intensa entre o ser humano e seu mundo. Essa relação que, ao longo dos tem-
pos, transitou entre uma atitude de submissão diante da natureza até uma
ação predatória e destruidora, precisa voltar a ser uma relação de respeito e
de colaboração. O ser humano não poderá mais transitar pelo planeta como
46 Filoso ia e Cidadania
Tema | 01
se fosse o primeiro, o único e o último habitante. Muitas gerações já nos an-
A era do conhecimento
tecederam e outras tantas ainda haverão de chegar. Todos precisam herdar
um mundo melhor para se viver e, sobretudo, um mundo onde caibam todos.
Assim, a condição humana terá que se constituir na utopia de uma realidade
equitativa, justa e solidária, o que equivale a dizer que precisamos construir
um novo homem e uma nova sociedade. Todos os habitantes do planeta pre-
cisam ocupar os dias de sua travessia de forma realizadora e feliz, seja onde e
como desenvolverem sua ação, desde as formas mais simples e laboriosas ao
universo dos trabalhos mais sofisticados e altamente especializados. Todos os
seres humanos haverão de se constituir em donos e senhores de sua própria
história individual e também fazedores da história coletiva.
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01 O que é preciso para que permaneça vivo o filósofo que temos dentro de
nós?
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04 Seriam os que executam o labor menos felizes do que aqueles que, tendo
suprido suas necessidades básicas, se abrem para um leque imenso de
outras necessidades artificiais e de uma sofisticação exuberante?
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48 Filoso ia e Cidadania
05 De acordo com a UNESCO, os quatro pilares da Educação para o século
XXI, são: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e
aprender a ser. Como relacionar esta perspectiva educacional com a disci-
plina de Filosofia e Cidadania? Marque a resposta correta:
a A disciplina de Filosofia e Cidadania se justificam pela lucidez da pers-
pectiva da UNESCO com relação à educação para o século XXI, pois
somente uma reflexão crítica séria e um engajamento de cidadãos re-
sultará na utopia de um novo homem e uma nova sociedade.
b As perspectivas educacionais da UNESCO são utópicas demais para se-
rem levadas a sério e serem concretizadas.
c Uma sociedade aprendente prioriza o conhecimento. Portanto, não é pre-
ciso relacionar outros valores nessa construção que não seja conhecer.
d A disciplina de Filosofia e Cidadania tem objetivos que não se relacio-
nam com as perspectivas da UNESCO para a educação no novo milênio.
e A Filosofia e a Cidadania tratam de temas que não se aproximam das
perspectivas da UNESCO, preconizadas para o séc. XXI, mas somente
de conteúdos que se referem à história, à política é à economia.
49
na busca da significação mais profunda de todas as construções hu-
manas da atualidade.
c A Filosofia continua sendo o campo de conhecimento que contém to-
dos os saberes humanos. O filósofo é assim chamado por ser o amigo
da sabedoria. Portanto, sua tarefa é ser um especialista que emite juí-
zos a respeito do todas as áreas do conhecimento humano construído
pela humanidade no mundo contemporâneo.
d Definitivamente, a Filosofia desapareceu diante dos avanços tecnoló-
gicos do mundo contemporâneo. A realidade atual exige a objetividade
do mundo científico e técnico e, sobretudo, ninguém mais sobrevive só
do pensar. É preciso agir, ser prático, produzir e consumir.
e A Filosofia, diante do enorme desenvolvimento da racionalidade tec-
nológica, perdeu por completo o seu significado e sua importância. O
mundo atual exige que os seres humanos sejam eminentemente práti-
cos e se constitui em algo anacrônico pretender ser reflexivo.
50 Filoso ia e Cidadania
sua base científica, resultado de um aprofundamento crítico atento e
meticuloso.
09 O que leva o ser humano, o único ser que não recebeu a vida pronta e acaba-
da, a produzir conhecimento é... (completar com a sentença correta).
a somente a necessidade de concorrer com os adversários para vencer na
competição da existência de que se compõe a sua travessia.
b apenas a vaidade que lhe é inerente como ser competitivo e consumista.
Verifique no AVA as respostas do exercício.
51
c o princípio da acomodação a um mundo que já se lhe apresenta prati-
camente completo e no qual há pouco a modificar.
d a necessidade de ajustar o mundo à sua condição humana, dimi-
nuindo as dificuldades e aumentando as facilidades e, com isso,
criando condições nas quais ele possa viver e se realizar cada vez
mais plenamente.
e por ele ser movida pelo simples diletantismo de alguns indivíduos mais
curiosos e mais afeitos a uma busca de novos saberes, na satisfação de
seus prazeres individuais.
11 Uma sociedade movida por uma máquina de exclusão tem como conse-
quência as mais graves situações enfrentadas por uma massa excluída da
participação de tudo, como... (completar a sentença).
Verifique no AVA as respostas do exercício.
52 Filoso ia e Cidadania
a desemprego em massa, salários aviltados e aumento da pobreza extrema.
b oportunidades sociais democratizadas.
c distribuição de renda equitativa e justa.
d oportunidades para todos que queiram participar dos bens da terra.
e a possibilidade de enriquecimento de todo aquele que se empenha, que
é inteligente e dedicado: enriquecer, nesta sociedade, é só uma questão
de esforço pessoal.
53
e Acreditar que a educação poderá ser a grande força social de mudança
e de construção de um novo homem e de uma nova sociedade é uma
ilusão. As mudanças sociais não passam pela educação, mas apenas
pelos aspectos econômicos e políticos.
54 Filoso ia e Cidadania
Use a sua criatividade e registre aqui as ideias principais presentes no
conteúdo estudado, buscando construir uma síntese pessoal sobre o tema.
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