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A imaginação e a criatividade

Tal como foi referido na introdução, esta primeira seção do presente trabalho é
dedicada à psicologia da criação de artes visuais, por isso abordaremos questões
como: “o que é a criatividade e a imaginação?”, “de que é que depende a atividade
criativa?”, “qual o processo ou mecanismo psicológico subjacente à atividade
criativa?”; e relacioná-las-emos com exemplos no domínio específico das artes visuais.
Por sua vez, seguir-se-á uma breve exposição sobre o que é a psicologia da
representação pictórica dos processos psíquicos desenvolvida pelo psicólogo Carl
Gustav Jung e uma crítica à Psicologia Cognitivista por parte do Psicólogo Mihaly
Csikszentmihalyi no sentido de desmistificar a identificação errada do papel da
racionalidade em processos de pensamento complexos no domínio da criatividade. A
psicologia de Jung de certo modo complementa o tema da criatividade e imaginação
abordado por Vygotsky no sentido de esclarecer o processo mental no qual a
imaginação assume uma forma representativa durante a atividade criativa e de certa
maneira até acaba por contrariar Vygotsky e referir que a atividade criativa não tem
apenas começo na experiência porque também poderá surgir do inconsciente.

A atividade criativa é uma construção da mente ou uma criação de um mundo interno


que é experienciada e observada no seres humanos e tem uma função adaptativa na
nossa espécie, nomeadamente garantir a sobrevivência face a qualquer mudança nova
ou inesperada no meio envolvente que nunca ocorreu na experiência passada. Esta
atividade está bastante relacionada com a habilidade humana para lidar com a
mudança uma vez que o cérebro humano combina criativamente elementos da
experiência prévia em novas situações ou comportamentos. Caso contrário a atividade
humana estaria limitada a reproduções daquilo que já passou e um indivíduo apenas
teria em conta o passado e só se poderia adaptar ao futuro se este reproduzisse
acontecimentos passados. Essencialmente, a criatividade de uma pessoa permite-lhe
atender ao passado e ao futuro, recriá-los ou criá-los e mudar a visão do presente, e
um exemplo muito claro disso mesmo é a pintura em óleo sobre madeira denominada
“A Morte do Avarento”, produzida por Hieronymus Bosch, na qual é desenha e pintada
uma imagem de um futuro. Geralmente não são reproduzidas impressões exatamente
iguais ao que foi experimentado antes, nem simplesmente foram renovados traços de
estímulos prévios que chegaram ao cérebro, aliás, Bosch nunca chegou a visionar no
mundo físico aquela imagem do futuro porque o que autor continha na mente era
precisamente uma representação subjetiva decorrente da sua imaginação.
A imaginação é a habilidade combinatória do nosso cérebro, é a base de qualquer
atividade criativa e faz igualmente parte da vida cultural que inclui tanto a arte, a
ciência e a criatividade técnica. Neste sentido, o que verdadeiramente distingue todo o
mundo da cultura do mundo natural é o facto de o primeiro ser um produto da
imaginação humana e de quase todos os objetos da vida comum serem cristalizações
da imaginação (por exemplo, um fósforo, primeiro um simples palito de madeira que
sofreu uma série de invenções que nos permitiram chegar à eletricidade que
conhecemos hoje-em-dia e a evolução depende bastante dessas longas séries de
mudanças nas formas descritas tendo em conta mil combinações imaginadas e
diferentes).
Ora, agora que sabemos o quanto a imaginação é fundamental na existência humana
são levantadas as questões “como é que esta atividade criativa de combinações
imaginadas ocorre? E em que condições? A que leis é sujeita?”. Uma vez analisada
psicologicamente, a atividade criativa é um fenómeno complexo, desenvolve-se de
forma lenta e gradual (a partir de formas mais simples e elementares que se
complexificam, e cada idade expressa a sua própria forma de criatividade), emerge
numa dependência direta com outras formas de atividade e em grande parte graças à
acumulação de experiência. A relação entre fantasia e realidade no comportamento e
pensamento humano é a chave para compreender o mecanismo psicológico da
imaginação e a atividade criativa associada ao mesmo: qualquer criação da imaginação
provém sempre de elementos que são extraídos da realidade e integrados na
experiência prévia de um indivíduo (cada pessoa extrai e integra esses elementos de
forma única em função da sua vontade, desejo, personalidade, experiência passada,
motivação e por isso é que, apesar de vivermos todos no mesmo “númeno” kantiano
(Morujão, 1981), o ser humano interpreta a realidade física, atribui-lhe um significado,
cria o seu mundo próprio à la Uexküll (von Uexküll, 1964) e é nesse e em função desse
mesmo mundo que cria de forma tão individualizada e diferenciada dos seus restantes
semelhantes). No que diz respeito à lei que determina a atividade criativa: a atividade
criativa da imaginação depende primariamente de uma experiência variada e rica;
quanto mais rica a experiência, mais material a imaginação tem ao seu dispor e é por
isso mesmo que, ao contrário da crença comum, o adulto tem mais imaginação que
uma criança. Quase todos os artistas podem ser um exemplo da assertividade desta lei
na criação de artes visuais; apelando mais uma vez à obra de Hieronymus Bosch, é
claro toda a obra baseia-se na variedade e quantidade de experiências vividas por
Bosch ao longo da vida e na sua interpretação idiossincrática dessas mesmas
experiências, o pintor nunca executaria a tétrica pintura de óleo sobre madeira a que
nomeou “O Prestidigitador” ou “A Extração da Pedra da Loucura” senão tivesse tido o
mínimo contato com as realidades expressas nesses quadros (espetáculo burlão,
sensacionalista e traiçoeiro da vida quotidiana, e crenças patetas, mal fundamentadas
e apoiadas pelo clero, que digamos que quando eram colocadas em prática os
resultados não eram os melhores, respetivamente), ou até mesmo apenas alguns
elementos dessas realidades, constituíram pináculos para sustentar a divagação
criativa posterior do pintor.
Assim é claro que existe um mecanismo psicológico da imaginação responsável pelo
processo criativo que resulta de uma maturação interna extensa e é semelhante em
todos os pintores. A descrição do processo aqui apresentada não será exaustiva mas
será o suficiente para ilustrar a complexidade do fenómeno de criação artística. Numa
primeira fase, as nossas perceções internas e externas formam a base da experiência e
são o matéria-prima a partir do qual serão construídas as fantasias; de seguida temos o
processo complexo de reformular ou recriar esse material no qual são fulcrais os
componentes de dissociação e associação de impressões sensoriais porque cada
impressão é um todo complexo composto por numerosas partes (na dissociação
dissocia o todo em partes e a associação funciona precisamente no sentido inverso);
depois segue-se o componente de alteração, que remete para as dinâmicas da nossa
excitação nervosa interna e a coordenação de imagens; concretizadas estas fases, o
pintor associa os elementos dissociados e os elementos alterados e esta associação
pode ser realizada de formas diversas ao unir imagens subjetivas com conteúdos de
ciências objetivas (exemplo: a representação geográfica muito explorada nos trabalhos
de Bosch); e por fim, depois de combinar as diversas formas num sistema ou imagem
complexa, a imaginação cristaliza-se no mundo externo (Bosch pinta numa tela o que
imaginou com todo o material artístico que carateriza a sua maneira de cristalizar uma
imagem complexa e de facto obtemos uma bela obra de arte para comtemplar
anteriormente invisível ao olho humano e ao mundo).
Agora foquemos a psicologia da representação pictórica desenvolvida pelo psicólogo
Carl Gustav Jung para complementar a descrição do mecanismo psicológico subjacente
à atividade criativa e que vai no sentido de compreender o processo mental no qual a
imaginação assume uma forma representativa durante esta atividade e que esta
poderá surgir do inconsciente e não apenas graças à acumulação de experiência. Jung
refere que a criação arte não-objetiva tem origem no inconsciente e não na
consciência uma vez que esta contém imagens de objetos que são vistos geralmente e
cuja aparência tem necessariamente de se conformar com as expetativas gerais, por
isso as representações pictóricas não-objetivas são tão diferentes que não se referem
de todo a nenhum objeto da experiência exterior e consequentemente não se apoiam
num centro mental orientado para o mundo exterior e submetido aos cinco sentidos
como a chamada consciência (neste caso, da perceção visual). As representações de
não-objetos, ao contrário das representações conscientes de objetos, são simbólicas, e
dada a sua simbologia é impossível determinar qualquer significado com algum grau
de certeza num único instante isolado, assim a possibilidade de compreensão do
significado apenas surge do estudo comparativo das variadas imagens não-objetivas e
caso contrário o indivíduo sentiria estranheza e não saberia o que a imagem poderá
realmente significar nem o que estaria a ser representado (Jung, 1951).

Por último, quero apelar à crítica de Csikszentmihalyi feita à Psicologia Cognitiva a fim
de desmistificar a compreensão errada dos processos criativos e uma vez que a
corrente cognitivista é umas das perspetivas que mais vigora no nosso espírito do
tempo, penso que é necessário refletir sobre o seu reducionismo e teor mecanicista. A
objeção destinada ao Cognitivismo é a seguinte: os cientistas cognitivistas que
modelam o pensamento criativo em computadores reivindicam que a habilidade dos
seus programas para replicar a descoberta de leis científicas (por exemplo, a 3ª lei de
Kepler a partir dos dados de Brahe) quer significar que o pensamento criativo dos
humanos não é mais nada para além do tipo de heurísticas a que estes computadores
recorrem ou apenas algo que permite resolver problemas. Csikszentmihalyi refere que
a ideia de que o pensamento criativo não é nada mais que resolução de problemas só
expressa uma mistificação baseada na incompreensão da criatividade, nas replicações
irrealistas das condições iniciais presentes na génese do processo criativo e numa
identificação errada do papel da racionalidade em processos de pensamento
complexos no domínio da criatividade. Ora o psicólogo crítico argumenta que
“problem finding” e “problem solving” não são o mesmo processo, apesar de ambos
envolverem operações análogas e poderem ser alternados funcionalmente; e
Csikszentmihalyi fundamenta a sua argumentação com base em numerosos estudos
(Getzels & Jackson, 1962; Getzels & Csikszentmihalyi 1976; Csikszentmihalyi, Getzels, &
Kahn, 1984; Csikszentmihalyi & Robinson, 1986) que demonstram como o pensamento
criativo corresponde à habilidade de descobrir novos problemas antes que sejam
formulados, o que é bastante independente da capacidade racional de resolução de
problemas. Ainda outros autores corroboram as mesmas conclusões dos referidos
estudos, por exemplo Guilford (1967) que distingue processos de pensamento
divergente e convergente. (Csikszentmihalyi, 1988). Mais importante que o espírito do
tempo é o espírito crítico, e o estudo de Csikszentmihalyi, apesarde pouco explorado
neste trabalho, revela-nos que a metáfora computacional não abarca uma série de
fenómenos mentais que tem lugar no Homem e não em máquinas.

A psicologia de artes visuais foca dumas temáticas bastante distintas mas claramente
complementares: a criação da obra de arte e a apreciação da obra de arte. Como o a
psicologia da criação da obra de arte foi pouquíssimo explorada nas aulas de Psicologia
de Arte, decidimos focar as duas primeiras secções deste trabalho nessa mesma área.
A primeira seção é dedicada à imaginação e à criatividade porque são dumas temáticas
muito exploradas noutros domínios como a filosofia (Husserl, Sartre, etc.) ou religião,
porém existe pouca investigação na psicologia neste âmbito dado a complexidade do
seu estudo. A minha intenção com a exposição e reflexão acerca do trabalho de
Vygotsky nesta área é elucidar certas questões bastante recorrentes na psicologia da
arte, como “o que é a atividade criativa?”, “quais as fases que constituem esse
processo?”. Outros dois psicólogos serão abordados neste trabalho, nomeadamente
Carl Gustav Jung e Mihaly Csikzentmihalyi, e as ideias aqui apresentadas prendem-se
com a representação pictórica e uma crítica à Psicologia Cognitiva, respetivamente. No
sentido de recordar e partilhar a relevância dos trabalhos destes autores e os seus
contributos para a psicologia da criação de arte pretendo levar o leitor a refletir sobre
a pertinência e inspiração que estes estudos nos podem provocar para a avançar esta
área tão pouco explorada.

Jung, C. G. (1951). The collected works of CG Jung. New York: Pantheon Books.

Csikszentmihalyi, M. (1988). Motivation and creativity: Toward a synthesis of structural and energistic
approaches to cognition. New Ideas in psychology, 6(2), 159-176.

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