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Investigación original / Original research

Violência conjugal física contra a mulher


na vida: prevalência e impacto imediato
na saúde, trabalho e família
Milma Pires de Melo Miranda,1 Cristiane Silvestre de Paula 2,3
e Isabel Altenfelder Bordin 3

Como citar Miranda MPM, de Paula CS, Bordin IA. Violência conjugal física contra a mulher na vida: prevalência
e impacto imediato na saúde, trabalho e família. Rev Panam Salud Publica. 2010;27(4):300–8.

RESUMO Objetivos. Estimar a prevalência de violência conjugal física contra a mulher ao longo da
vida (VCFM) em uma comunidade urbana de baixa renda e avaliar o seu impacto imediato na
saúde, trabalho e vida familiar.
Métodos. O presente estudo de corte transversal foi realizado em Embu, Estado de São
Paulo, como componente do projeto multicêntrico internacional World Studies of Abuse in
the Family Environment (WorldSAFE). Foi utilizada uma amostra probabilística de conglo-
merados derivados de setores censitários, incluindo todos os domicílios elegíveis identificados
em cada um deles. Participaram 784 mulheres (16 a 49 anos) com pelo menos um filho
menor de 18 anos e marido/companheiro residente (ao longo da vida). Foi avaliada a ocorrência
de algum tipo de VCFM (tapa, chute, soco, espancamento, uso/ameaça de uso de arma, outras
agressões físicas espontaneamente referidas), de VCFM grave (mesmos itens, exceto tapa e ou-
tras agressões referidas) e de impactos imediatos na saúde, trabalho e vida familiar das vítimas.
Resultados. A prevalência de VCFM foi de 26,0% para algum tipo de violência e de 18,5%
para violência grave. Entre as vítimas de algum tipo de VFCM, 38,7% julgaram necessitar
cuidados médicos, 4,4% foram hospitalizadas, 18,1% ficaram incapacitadas para o trabalho
(remunerado ou doméstico), 51,5% separaram-se devido às agressões e 66,7% tiveram filhos
testemunhando a violência. Para a violência grave, essas taxas foram de 51,0, 5,5, 23,4, 59,3 e
75,9%, respectivamente. A vergonha e o medo de represália por parte do companheiro dificul-
taram o acesso à assistência médica.
Conclusões. A VCFM é frequente na comunidade estudada e produz impactos imediatos na
saúde, trabalho e vida familiar das vítimas. Esses impactos diminuem a capacidade da vítima
de buscar socorro e dificultam a interrupção do ciclo da violência.

Palavras-chave Violência doméstica; violência contra a mulher; prevalência; impactos na saúde;


impacto psicossocial; Brasil.

1
A violência contra a mulher é definida não sob o mesmo teto, atual ou pre-
Universidade Federal de Alagoas, Faculdade de
Medicina. Correspondência: Campus A. C. pela Organização das Nações Unidas gresso), é designada por diversos termos,
Simões, Faculdade de Medicina, Avenida Lourival (ONU) como qualquer ato de violência entre os quais “violência marital contra a
Melo Mota s/n, Tabuleiro, CEP 57072-900, Maceió,
AL, Brasil. E-mail: milminha@gmail.com
de gênero que resulte ou possa resultar mulher” e “violência conjugal contra a
2 Universidade Presbiteriana Mackenzie, Programa em dano ou sofrimento físico, sexual ou mulher”. O parceiro íntimo é o mais im-
de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvi- psicológico para a mulher (1). Quando portante perpetrador de violência física
mento, São Paulo (SP), Brasil.
3 Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), praticada por parceiro íntimo (marido, contra a mulher, mais frequente do que
Setor de Psiquiatria Social, São Paulo (SP), Brasil. companheiro ou namorado, vivendo ou todos os outros perpetradores reunidos

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(2), mesmo em regiões em grave instabili- cerca de US$ 1,7 bilhões foram consumi- mente se houver impacto na saúde men-
dade política ou social (3). Estudos na po- dos com perda de produtividade de víti- tal (20).
pulação geral situam a prevalência da mas não-fatais. Mais US$ 1 bilhão foram Quanto à família, são impactos imedia-
violência conjugal física contra a mulher perdidos com prejuízos à economia em tos a exposição dos filhos a um ambiente
durante a vida entre 10% (Paraguai) e função das vítimas fatais. Mesmo assim, de violência dentro do lar e as sepa-
69% (Manágua, na Nicarágua) (4). Essa esses dados ainda subestimam a im- rações. A separação do casal costuma ad-
amplitude de prevalências reflete tanto portância do impacto, pois desconside- quirir feições próprias num contexto de
características locais quanto diferenças ram outros prejuízos importantes, como violência, com maiores prejuízos econô-
entre as metodologias utilizadas nos di- aqueles relativos à saúde e à educação da micos e psicológicos e à saúde (2, 10).
versos estudos. Um estudo multicêntrico população infantil oriunda de famílias Esse agravamento é mediado principal-
da Organização Mundial da Saúde onde ocorre a violência. mente pelo maior comprometimento que
(OMS) (5), realizado tanto em comunida- São numerosos os estudos enfocando a violência produz na saúde da mulher e
des urbanas quanto em regiões rurais de o impacto da violência conjugal física na por aspectos legais envolvidos, como a
10 países, porém utilizando metodologia saúde da mulher vitimizada (4, 5, 15–17). custódia e a segurança dos filhos (2).
semelhante, também encontrou uma Esse impacto resulta de mecanismos Filhos que testemunham violência
grande variação na taxa de violência con- diretos e indiretos através dos quais entre os pais têm maior risco de apresen-
jugal física contra a mulher durante a a violência leva ao adoecimento da tar problemas de adaptação social, delin-
vida: de 13% na Cidade de Yokohama, mulher. O mecanismo direto envolve quência e transtornos mentais, tanto na
Japão, a 61% na região rural do Peru. No agressões físicas com ataques repetidos infância quanto posteriormente na vida
Brasil, esse mesmo estudo encontrou pre- ou de alta intensidade que causam trau- adulta (4, 21, 22), além de futuramente
valências de 27% na Cidade de São Paulo matismos (fraturas, hemorragias e defor- tornarem-se perpetradores ou vítimas de
e de 34% na zona da mata pernambucana midades físicas) ou problemas crônicos violência conjugal (transmissão interge-
(5, 6). (dor crônica e osteoartrite). O meca- racional) (8–10). Todavia, ainda não está
A literatura aponta o alto consumo de nismo indireto está relacionado ao es- bem estabelecido quais parcelas dessas
álcool pelo parceiro íntimo e a exposição tresse psicológico crônico, que contribui consequências podem ser atribuídas à ex-
de crianças à violência doméstica (no para o desenvolvimento de hipertensão posição à violência conjugal ou a outros
papel de vítima ou de testemunha) como arterial, problemas gastrintestinais e ge- fatores, como os ambientais, que acom-
fatores associados à violência conjugal fí- niturinários e transtornos mentais, e à panham a violência, e os genéticos (22).
sica contra a mulher, principalmente em adoção de comportamentos de risco que Na área da saúde são raros os estudos
comunidades pobres e em culturas que favorecem infecções e acidentes (15). integrativos com enfoque nos impactos
favorecem um menor empoderamento Transtorno de estresse pós-traumático, ocupacionais e familiares da violência
feminino (7–10). Nesse contexto, diver- depressão (com ou sem suicídio) e abuso conjugal física. Buscando contribuir com
sos fatores geram tensões que levam a e dependência de substâncias são trans- evidências, o projeto multicêntrico World
agressões físicas, como a iniquidade tornos psiquiátricos frequentes entre as Studies of Abuse in the Family Environment
econômica entre homens e mulheres mulheres vítimas de violência conjugal (WorldSAFE) conduziu estudos sobre a
dentro do lar, a dependência econômica física (15, 17, 18). violência doméstica em 16 comunidades
feminina, impasses que levam a uma ne- O impacto na saúde da mulher envolve de cinco países em desenvolvimento
cessidade de afirmação masculina (como ainda indicadores inespecíficos, tais como (Brasil, Chile, Egito, Índia e Filipinas)
desemprego) e dificuldades de comuni- má saúde geral, má qualidade de vida e através de colaboração multinacional e
cação entre o casal no tocante às tomadas uso frequente dos serviços de saúde (10, transdisciplinar (23). O presente estudo
de decisões na família (11). Na Albânia, 15, 17, 18). Como nem sempre a mulher é fruto do componente brasileiro do
por exemplo, são agredidas as mulheres relaciona os problemas vivenciados WorldSAFE (Brazilian Studies of Abuse in
com nível educacional maior do que o do (tanto os de saúde quanto os ocupacio- the Family Environment/BrazilSAFE ou
companheiro e aquelas com alto status nais ou familiares) à violência sofrida, já Estudo Brasileiro de Violência Domés-
ocupacional (12), enquanto na Nigéria as que podem surgir ou agravar-se cronolo- tica contra a Criança e o Adolescente4) e
mulheres que têm idéias “avançadas” gicamente distantes das agressões, é cabí- tem os seguintes objetivos: estimar a pre-
sobre o papel feminino são as que estão vel a classificação dos impactos em ime- valência de violência conjugal física con-
em maior risco de sofrer violência conju- diatos e de médio ou longo prazo. tra a mulher ao longo da vida, perpe-
gal física (13). São impactos imediatos no trabalho o trada pelo marido ou companheiro atual
O impacto socioeconômico da violên- absenteísmo, os atrasos, a queda de pro- ou pregresso, em uma comunidade ur-
cia conjugal contra a mulher assume pro- dutividade (14, 19) e os distúrbios pro- bana de baixa renda; avaliar o impacto
porções importantes no mundo inteiro, e vocados diretamente pelo companheiro imediato da violência conjugal física
a complexidade do tema torna difícil no local de trabalho (2, 19). Esses impac- contra a mulher na saúde, no trabalho e
mensurá-lo em todas as suas dimensões. tos geram grandes repercussões a longo na vida familiar; identificar fatores que
Nos Estados Unidos, estimou-se em 5,8 prazo, na forma de instabilidade laboral, impedem a mulher agredida de buscar
bilhões de dólares o custo anual total da subemprego e empobrecimento da mu- assistência médica quando necessita;
violência conjugal contra a mulher em lher vitimizada (4, 19, 20). A dificuldade
1995 (estupros, violência física e ame- para manter o emprego costuma afetar
aças) (14). Desse montante, quase US$ mais fortemente as vítimas de classes so- 4 Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa
4,1 bilhões foram gastos com cuidados à ciais mais desfavorecidas do que as de do Estado de São Paulo/FAPESP (Processo no.
saúde física e mental, enquanto que maior status socioeconômico, principal- 00/14555-4).

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identificar fatores que levam mulheres informações sobre sua vida particular Os seguintes temas sobre o impacto
que se separam do companheiro agres- devido ao tráfico de drogas na região. imediato da violência conjugal física na
sor por causa das agressões físicas a re- Assim, 813 mães completaram o ques- vida da mulher foram abordados logo
tornarem à vida conjugal; e identificar os tionário. Entretanto, a subamostra utili- após as perguntas sobre os maus-tratos
principais locais para onde se dirigem as zada no presente trabalho refere-se às sofridos: a) julgamento da própria
mulheres vítimas de violência conjugal 784 mulheres que tinham, ou tinham mulher quanto à necessidade de atendi-
física durante os períodos de separação. tido, pelo menos um marido ou compan- mento médico devido à violência so-
heiro residente, ou seja, aquelas que frida; b) procura e obtenção do atendi-
PARTICIPANTES E MÉTODOS estiveram expostas ao risco de sofrer mento; c) impossibilidade de realizar
violência conjugal física em algum mo- tarefas domésticas e trabalho remune-
Este estudo de corte transversal foi mento de suas vidas, e para as quais rado devido à violência sofrida; d) pre-
conduzido em 2002 e 2003 no bairro Jar- havia dados completos sobre violência sença dos filhos no momento da
dim Santo Eduardo, na Cidade de Embu, conjugal física na vida (sendo que das agressão; e) separações do casal motiva-
localizada na região metropolitana de 813 mulheres apenas uma foi excluída das pela violência física e f) motivos que
São Paulo, capital do estado mais desen- pela ausência de dados completos sobre levaram as mulheres que se separaram
volvido do Brasil. Em 2002, Embu era um violência). a voltar à convivência com o marido/
município com 225 629 habitantes, total- O estudo foi aprovado pelo Comitê de companheiro agressor. A separação con-
mente urbano, composto em sua maior Ética em Pesquisa da Universidade Fede- jugal foi definida como a mudança de
parte por moradias de baixa renda, com ral de São Paulo (UNIFESP). Todas as residência da mulher para uma casa
altos índices de violência urbana (100,8 normas éticas foram cumpridas, inclusive diferente daquela onde vivia o marido/
homicídios/100 000 habitantes/ano con- a assinatura de termo de consentimento companheiro, podendo essa separação
tra 38,9 homicídios/100 000 habitantes/ livre e esclarecido e o encaminhamento ser temporária ou definitiva.
ano para o Estado de São Paulo) (24). das vítimas de violência aos serviços es- Os motivos que levaram à interrupção
Vale ressaltar que as evidências de pecializados da região. Para garantir se- das separações foram agrupados em três
violência conjugal ao longo da vida en- gurança e privacidade, todas as entrevis- categorias, aqui denominadas sentimen-
contradas em 1999 no estudo piloto tas foram realizadas individualmente na tais, maternais e desamparo, podendo
(n = 86) (25) justificaram a realização do unidade básica de saúde local. um mesmo motivo ter sido incluído em
estudo completo (BrazilSAFE, n = 813), O desfecho clínico do estudo (violên- mais de uma categoria. Os motivos sen-
do qual a presente pesquisa é decorrente. cia conjugal física contra a mulher ao timentais incluíram ciúme, vingança,
O presente estudo baseou-se em uma longo da vida por parte do marido ou amor pelo marido/companheiro e espe-
amostra probabilística por conglomera- companheiro, atual ou pregresso) e o im- rança de recompor a família, entre ou-
dos, onde todos os domicílios elegíveis pacto imediato das agressões físicas na tros. Os motivos maternais considera-
foram identificados. Em 24 conglomera- saúde, família e trabalho da mulher ram razões expressamente relacionadas
dos constituídos com base nas unidades foram investigados por meio de questio- ao bem estar dos filhos, tais como não
censitárias para o bairro estudado e ran- nário padronizado, elaborado pelo co- querer abandoná-los, criança sentindo
domicamente selecionados pelo Instituto mitê diretor do WorldSAFE.5 O instru- a falta do pai, acreditar na importância
Brasileiro de Geografia e Estatística mento foi aplicado face a face por da figura paterna para a criança e nova
(IBGE), foram visitados 1 545 domicílios. entrevistadoras treinadas. gravidez. A categoria desamparo abar-
Foram identificados 996 domicílios elegí- Considerou-se como violência conju- cou os motivos passíveis de interferên-
veis (residência de pelo menos uma mu- gal física contra a mulher a ocorrência de cia direta do Estado (por meio de ação
lher de 15 a 49 anos, mãe de pelo menos pelo menos uma das seguintes agressões policial, auxílio-moradia, colocação em
um menor de 18 anos também resi- por parte do marido/companheiro: tapa, emprego), tais como ameaças do com-
dente). Quando mais de uma mulher em chute, soco, espancamento, uso/ameaça panheiro à vida da mulher, dos parentes
um mesmo domicílio preenchia os crité- de uso de arma e outros. A ocorrência ou dos filhos, dependência econômica e
rios de elegibilidade, uma delas era es- dessas agressões foi investigada com per- falta de um abrigo para si e para os
colhida por sorteio para fazer parte da guntas diretas e explícitas, por exemplo: filhos.
amostra. Com base nesses critérios, o nú- “Deu soco em você?”, exceto na categoria A classe social foi determinada por
mero de mulheres elegíveis foi de 987, “outros”, que agrupou todas as manifes- meio do Questionário de Classificação
por haverem sido excluídas da amostra tações de violência física mencionadas Econômica Familiar da Associação Brasi-
nove mulheres que não mais residiam espontaneamente pelas mulheres a par- leira de Empresas de Pesquisa (ABEP),
com um filho menor de 18 anos, que tir das seguintes perguntas: “Machucou que avalia o poder de compra familiar
apresentavam problemas graves de você fisicamente de alguma outra forma? (26). A análise estatística foi realizada
saúde que impediam a comunicação ou Qual?”. Definiu-se violência física grave com auxílio do programa Statistical Pack-
por correrem risco de vida se participas- como ocorrência de chute, soco, espanca- age for the Social Sciences (SPSS® versão
sem das entrevistas devido a ameaças de mento ou uso/ameaça de uso de arma. 10.0), por meio de tabelas de frequência
traficantes locais. Desse número ocorre- simples e tabelas cruzadas, utilizando-se
ram 174 (17,6%) perdas, causadas princi- os testes do qui-quadrado (χ2) e razão de
palmente por recusas em participar (84; 5 A versão brasileira do Questionário WorldSAFE risco com intervalo de confiança de 95%
48,3%) e mudança de domicílio (56; foi desenvolvida por Isabel A. Bordin e Cristiane S. (IC95%), quando apropriado. Testes com
Paula em 1999. O questionário pode ser obtido
32,2%). Boa parte das recusas esteve as- diretamente dessas pesquisadoras pelos e-mails P < 0,05 foram considerados estatistica-
sociada ao medo das mães de fornecer iasbordin@gmail.com e csilvestrep@uol.com.br. mente significativos.

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RESULTADOS TABELA 1. Características sociodemográficas das participantes de estudo sobre violência con-
jugal no Município de Embu (SP), Brasil, 2002 e 2003
As mulheres da amostra (n = 784) ti-
No.
nham idade entre 16 e 49 anos, com
Característica (n = 784) %
média de 33,4 ± 7,6 anos. Mais da me-
tade (413; 52,7%) não havia completado Idade (anos)
o ensino fundamental, com média de 16 a 19 11 1,4
7,1 ± 3,3 anos de escolaridade. Na época 20 a 29 254 32,4
30 a 39 338 43,1
da entrevista, 401 (51,1%) tinham tra- 40 a 49 181 23,1
balho remunerado. Outras característi- Escolaridade (última série que completou)
cas sociodemográficas da amostra en- Nunca estudou/1a série do ensino fundamental incompleta 21 2,7
contram-se resumidas na tabela 1. Entre 1a e 7a série 392 50,0
8a série 113 14,4
A tabela 2 descreve a prevalência dos 1a ou 2a série do ensino médio 84 10,7
vários tipos de agressão. Das 204 mu- 3a série do ensino médio 143 18,2
lheres que sofreram algum tipo de Superior ao ensino médio 31 4,0
violência conjugal física, 145 (71%) sofre- Trabalho remunerado
ram violência grave, 46 (22,5%) foram Sim 401 51,1
Não 383 48,9
agredidas a tapas sem outro tipo de Classe Social
agressão física e 13 (6,4%) relataram A–B 164 20,9
exclusivamente agressões físicas classifi- C 401 51,1
cadas em “outros”. Essa categoria englo- D–E 217 27,7
Sem informação 2 0,3
bou agressões espontaneamente mencio- Tipo de domicílio
nadas pelas mulheres, como apertos, Próprio ou pagando prestação 489 62,4
empurrões, mordidas, puxão de cabelo, Alugado 162 20,7
queimaduras, tentativas de estrangula- Ocupação ou empréstimo 131 16,7
mento e arremesso de objetos contra o Outros 2 0,3
Número de maridos/companheiros residentes ao longo da vida
corpo da mulher. 1 679 86,6
As 176 mulheres que já haviam 2 99 12,6
sido agredidas a tapas pelo marido/ 3 6 0,8
companheiro apresentaram maior pro-
babilidade de ter sofrido violência con-
jugal física grave (OR = 57,5; IC95%: 34,0
a 97,2; P < 0,001) do que as 608 mulheres TABELA 2. Prevalência de violência conjugal física contra a mulher ao longo da vida, Município
de Embu (SP), Brasil, 2002 e 2003
nunca agredidas a tapas. As mulheres
agredidas a tapas também apresentaram Prevalência ao longo da vida
probabilidade 24 vezes maior de ter sido No.
ameaçadas com arma ou sofrido violên- Tipo de agressão sofrida (n = 784) % IC95%
cia pelo uso de arma, em comparação
com as mulheres nunca agredidas a Tapa com a mão aberta 176 22,4 19,4 a 25,4
Soco 89 11,4 9,1 a 13,7
tapas (IC95%: 12 a 46; P < 0,001). A tabela Chute 79 10,1 8,0 a 12,2
3 mostra a frequência dos vários tipos de Espancamento 60 7,7 5,8 a 9,6
comportamento fisicamente agressivos Uso/ameaça de uso de arma 69 8,8 6,8 a 10,8
do marido ao longo da vida (uma/duas Outrosa 51 6,5 4,7 a 8,3
vezes ou três ou mais vezes). Algum tipo de violência conjugal físicab 204 26,0 22,9 a 29,1
Violência conjugal física gravec 145 18,5 15,7 a 21,3
A tabela 4 descreve os impactos ime- Tapa sem outro tipo de agressão física 46 5,9 4,2 a 7,6
diatos da violência conjugal sofrida pelas
a Relatos espontâneos envolvendo: apertos, empurrões, mordidas, puxão de cabelo, queimaduras, tentativas de estrangula-
mulheres. Entre as 79 mulheres vítimas
mento e arremesso de objetos contra o corpo da mulher.
de algum tipo de violência que julgaram b Uma ou mais das agressões mencionadas acima.
necessitar de cuidados médicos, 49 c Chute, soco, espancamento ou uso/ameaça de uso de arma.

(62,0%) não chegaram a receber assistên-


cia médica e uma (1,3%) não soube infor-
mar. Entre as 74 mulheres vítimas de da agressão nas tarefas domésticas. As 49 tiveram medo de comprometer o marido/
violência grave que julgaram necessitar mulheres vítimas de algum tipo de companheiro e no caso de uma (6,1%) o
de cuidados médicos, 46 (62,2%) não che- violência que julgaram necessitar de cui- marido/companheiro ou familiares não a
garam a receber assistência médica e uma dados médicos, mas que não os recebe- deixaram ir, entre outros motivos menos
(1,4%) não soube informar. Das 46 mulhe- ram, alegaram os seguintes motivos: 17 frequentes. Nenhuma mulher deixou de
res que foram agredidas exclusivamente a (34,7%) tiveram vergonha de expor o pro- buscar o serviço de saúde por ter recebido
tapas, apenas uma (2,2%) julgou necessi- blema, 16 (32,7%) disseram ter mudado atendimento domiciliar, assim como ne-
tar de cuidados médicos, recebendo aten- de idéia e preferido não procurar atendi- nhuma alegou problemas de acesso aos
dimento extra-hospitalar. Nenhuma des- mento, cinco (10,2%) tiveram medo de re- serviços de saúde por dificuldades com
sas 46 mulheres referiu impacto imediato presália por parte do marido, três (12,5%) transporte ou distância.

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TABELA 3. Frequência de comportamentos agressivos do marido ao longo da vida no estudo mulheres vítimas de violência grave com
sobre violência conjugal no Município de Embu (SP), Brasil, 2002 e 2003a duas ou mais separações, duas (5,0%) se
separaram definitivamente. Finalmente,
1 ou 2 vezes 3 ou mais vezes
12 (26,1%) das 46 mulheres agredidas a
Tipo de agressão sofridab No. % No. % tapas na ausência de outros tipos de
Tapa com a mão aberta 102 13,0 74 9,4 agressão física se separaram. Dessas 12
Soco 49 6,3 40 5,1 mulheres, 10 (83,3%) se separam uma
Chute 44 5,6 35 4,5 única vez e duas (16,7%) se separaram
Espancamento 24 3,1 36 4,6 duas ou mais vezes. Entre as 10 que se
Uso/ameaça de uso de arma 55 7,0 14 1,8
Outrosc 41 5,2 10 1,3
separaram uma só vez, a separação foi
definitiva para cinco (50%), enquanto
a n = 784.
b
que as duas mulheres (100%) que se
Possibilidade de respostas múltiplas.
c Relatos espontâneos envolvendo: tentativas de estrangulamento, apertos, mordidas, empurrões, puxão de cabelo, queima- separaram duas ou mais vezes voltaram
duras e arremesso de objetos contra o corpo da mulher. a residir com o marido/companheiro
agressor.
Como motivos para o retorno à vida
O impacto imediato da violência con- heres que se separaram duas ou mais conjugal com seus agressores, das 67
jugal física sobre a capacidade de reali- vezes. Das 105 vítimas de algum tipo de mulheres que se separaram do marido/
zar atividades remuneradas foi avaliado violência conjugal física que se separa- companheiro por ter sofrido algum tipo
apenas para as mulheres que trabalha- ram, 60 (57,1%) o fizeram uma única vez de violência, mas que não levaram
vam na época das agressões. Entre as 162 e 45 (42,9%) se separaram duas vezes ou adiante a separação, 38 alegaram razões
mulheres que exerciam uma atividade mais. Entre as 60 mulheres que sofreram sentimentais (56,7%), 24 alegaram razões
remunerada e foram vitimizadas por algum tipo de violência conjugal física e maternais (35,8%) e 31 alegaram desam-
algum tipo de violência conjugal física, se separaram uma única vez, a separação paro (46,3%). Das 55 mulheres que se
111 sofreram violência física grave. A foi definitiva para 36 (60,0%). Entre as 45 separaram do marido/companheiro por
taxa de incapacitação para o trabalho re- mulheres vítimas de algum tipo de ter sofrido violência grave, mas que não
munerado dessas 111 mulheres foi de violência com duas ou mais separações, levaram adiante a separação, 31 também
16,2%. Nenhuma das 42 mulheres que apenas duas (4,4%) se separaram defini- referiram razões sentimentais (56,4%), 20
exerciam atividades remuneradas e que tivamente. Além disso, entre as 86 víti- alegaram razões maternais (36,4%) e 29
foram agredidas exclusivamente a tapas mas de violência grave que se separa- alegaram desamparo (52,7%).
referiu impacto imediato no trabalho. ram, 46 (53,5%) se separaram uma única Na maioria das separações, tanto na-
Quanto ao impacto imediato da vez e 40 (46,5%) se separaram duas vezes quelas causadas por algum tipo de
violência conjugal física sobre a vida fa- ou mais. Entre as 46 mulheres que sofre- violência conjugal física quanto naquelas
miliar, a taxa de separação definitiva foi ram violência grave e se separaram uma decorrentes de violência conjugal grave,
maior entre as mulheres que se separa- única vez, a separação foi definitiva para foram as mulheres que deixaram a casa.
ram uma única vez do que entre as mul- 29 (63,0%), enquanto que entre as 40 A tabela 5 mostra os locais procura-

TABELA 4. Impacto imediato da violência conjugal física ao longo da vida na saúde, trabalho e vida familiar da mulher no estudo sobre violência
conjugal no Município de Embu (SP), Brasil, 2002 e 2003

Vítimas de violência conjugal física na vida Número de vítimas em


Algum tipoa Grave relação à amostra
(n = 204) (n = 145) total (n = 784)
Impacto imediato No. % IC 95% No. % IC 95% No. % IC 95%

Na saúde
Julgou necessitar de cuidados médicos 79 38,7 31,9 a 45,5 74 51,0 46,9 a 55,2 79 10,1 8,0 a 12,3
Chegou a receber cuidados médicos 29 14,2 9,3 a 19,1 27 18,6 12,1 a 25,1 29 3,7 2,4 a 5,1
Já foi hospitalizada por causa das agressões 9 4,4 1,5 a 7,3 8 5,5 1,7 a 9,3 9 1,2 0,4 a 2,0
No trabalho
Incapacitada para tarefas domésticas 29 14,2 9,3 a 19,1 26 17,9 11,6 a 24,3 29 3,7 2,4 a 5,0
Por 1 semana ou mais 16 7,8 4,0 a 11,6 14 9,7 4,8 a 14,5 16 2,0 1,0 a 3,0
Incapacitada para trabalho remunerado 18 8,8 4,8 a 12,8 18 12,4 7,0 a 17,9 18 2,3 1,2 a 3,4
Por 1 semana ou mais 7 3,4 0,9 a 5,9 7 4,8 1,2 a 8,4 7 0,9 0,2 a 1,6
Incapacitada para trabalho remunerado ou
domésticob 37 18,1 12,7 a 23,5 34 23,4 16,4 a 29,1 37 4,7 3,2 a 6,2
Na vida familiar
Separação conjugalc 105 51,5 44,5 a 58,5 86 59,3 51,2 a 67,4 105 13,4 11,0 a 15,8
Separação definitiva 38 18,6 13,1 a 24,1 31 21,4 14,5 a 28,2 38 4,9 3,4 a 6,4
Filhos presenciaram agressões 136 66,7 60,1 a 73,3 110 75,9 68,8 a 83,0 136 17,3 16,1 a 18,5
a Engloba as vítimas de violência grave.
b Inclui as mulheres com e sem trabalho remunerado na época das agressões.
c Inclui separações temporárias e definitivas.

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TABELA 5. Locais procurados pelas vítimas de violência conjugal física que se separaram, mente concomitantes com outros tipos
estudo sobre violência conjugal no Município de Embu (SP), Brasil, 2002 e 2003 de agressão física investigados. Além
disso, a coleta de dados, realizada na pri-
Violência conjugal física
vacidade da unidade básica de saúde
Algum tipo Grave local por entrevistadores exclusivamente
(n = 105) (n = 86)
do sexo feminino favoreceu a sinceri-
Locala No. % No. %
dade no relato de violência. Contudo,
Casa de parentes da mulher 67 63,8 54 62,8 pela natureza íntima do assunto pesqui-
Ficou em casa e marido/companheiro saiu 16 15,2 14 16,3 sado, não se pode afirmar que os resulta-
Foi para outra casa própria ou alugada 16 15,2 12 14,0 dos não tenham sido subestimados.
Casa de amigos da mulher 7 6,7 7 8,1
Na fase piloto do BrazilSAFE (25), as
Casa de parentes do marido/companheiro 2 1,9 2 2,3
Hotel/motel/pensão 1 1,0 1 1,2 taxas de violência conjugal física na vida
Foi morar com outro homem 1 1,0 1 1,2 [algum tipo: 33,7% (IC95%: 32,7 a 34,7);
Abrigos 0 0,0 0 0,0 grave: 22,1% (IC95%: 13,3 a 30,9)] foram
Igreja/templo 0 0,0 0 0,0 mais elevadas que as observadas no pre-
Centro comunitário 0 0,0 0 0,0
sente estudo. Como as duas amostras
a Foram aceitas respostas múltiplas. populacionais eram provenientes de
bairros vizinhos e apresentavam compo-
sição socioeconômica muito semelhante,
dos por essas mulheres para residir sem sofrido violência conjugal física na é mais provável que as variações encon-
ao saírem de casa. Nenhuma mulher vi- vida (fazendo aumentar o número de tradas se devam à menor precisão das
timizada que se separou em função mulheres vitimizadas de 204 a 288), a taxas de prevalência do estudo piloto,
da violência referiu o acolhimento por taxa de prevalência de violência conjugal decorrentes do pequeno tamanho da
abrigos, igrejas/templos ou centros seria de 32,1%, valor próximo do limite amostra (n=86) do que a reais diferenças
comunitários. superior do IC95%, de 22,9 a 29,1, encon- entre as comunidades estudadas.
trado na presente pesquisa. Outro ponto Em comparação às prevalências en-
DISCUSSÃO a ser considerado é o fato de o foco deste contradas em populações urbanas dos
estudo ter sido uma amostra populacio- demais países participantes do World-
Este trabalho encontra-se entre os nal de mães, com exclusão das mulheres SAFE (28), a taxa de algum tipo de
raros estudos de prevalência de violên- sem filhos, que também são passíveis de violência conjugal física na vida encon-
cia conjugal física contra a mulher em sofrer violência conjugal física. Portanto, trada no presente trabalho (26%; IC95%:
população geral no Brasil e tem o mérito o recorte do estudo poderia levar a re- 22,9 a 29,1) mostrou-se similar à encon-
adicional de ser o primeiro estudo epide- sultados subestimados nas taxas de pre- trada no Chile (24,9%), próxima das
miológico brasileiro a estudar o impacto valência encontradas. No entanto, sendo taxas encontradas nas Filipinas (21,2%) e
dessa violência enfocando três diferentes a nuliparidade uma condição infre- em Vellore, na Índia (31,0%), inferior às
áreas da vida das mulheres vitimizadas. quente na faixa populacional estudada de duas outras comunidades da Índia
No entanto, algumas limitações preci- (27), é razoável supor que a prevalência (Lucknow, 34,6%, e Trivandrum, 43,1%)
sam ser reconhecidas. O conceito de encontrada não seria alterada de forma e superior à encontrada no Egito (11,1%).
violência conjugal física utilizado pode significativa. Finalmente, o desenho A prevalência de violência conjugal fí-
ter subestimado a prevalência dessa si- transversal do estudo foi adequado para sica contra a mulher no presente estudo
tuação, uma vez que outras manifes- estimar a prevalência de violência conju- situa-se em nível inferior ao da maioria
tações de violência (como empurrar, be- gal física contra a mulher ao longo da das populações urbanas dos países em
liscar, puxar o cabelo, torcer o braço) não vida, mas levou a limitações nas medi- desenvolvimento estudados pela OMS
foram ativamente pesquisadas, ficando das de impacto, por viés de recordação. (Tanzânia, 32,9%; Bangladesh, 39,7%;
sua identificação dependente de um re- A definição de violência conjugal fí- Peru, 48,6%), na mesma faixa de Sérvia e
lato espontâneo por parte das mulheres, sica contra a mulher utilizada nesta pes- Montenegro (22,8%) e Tailândia (22,9%)
reunidos na categoria “outros”. Como quisa favorece a comparação com impor- e bem superior aos 12,9% encontrados
esses atos nem sempre são considerados tantes estudos de prevalência realizados no desenvolvido Japão (5). A prevalência
pelas mulheres como violência, muitas em outros países, sendo similar à defi- encontrada no Município de Embu é
podem ter deixado de mencioná-los, nição utilizada pelo mais recente estudo compatível com a taxa identificada para
minimizando a ocorrência de violência multicêntrico da OMS (5) e equivalente à a Cidade de São Paulo (27,2%; IC95%:
conjugal. do estudo WorldSAFE (28) realizado no 23,9 a 30,6) no mesmo estudo da OMS
Quanto à possibilidade de perda Chile, Egito, Índia e Filipinas. Embora as (5), e previsivelmente inferior à encon-
amostral seletiva, as principais causas de publicações do WorldSAFE tenham ex- trada na zona da mata pernambucana
perda foram recusas e mudança de do- cluído os itens “uso/ameaça de uso de (33,8%; IC95%: 30,8 a 36,7) (6). As regiões
micílio e, de fato, não é possível saber se arma” e “outros” da definição de violên- rurais costumam apresentar números
as 85 mulheres que se recusaram a parti- cia conjugal física, pois nem todos os paí- mais elevados, provavelmente em de-
cipar do estudo eram ou não vítimas de ses participantes os investigaram, este corrência de características mais patriar-
violência conjugal física. Se essas tives- fato não comprometeu a comparabili- cais nas relações de gênero, muitas vezes
sem participado do estudo (para uma dade dos dados do presente trabalho, entrelaçadas a menor renda e nível edu-
amostra total de 897 mulheres) e tives- por serem essas agressões frequente- cacional baixo (11, 29). Outro trabalho

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Investigación original Miranda et al. • Impacto da violência conjugal física contra a mulher

sobre violência conjugal no Brasil (30), mas também as faltas para buscar ajuda razões para essas idas e vindas. Na
realizado em 15 capitais, não pode ser policial ou para esconder-se do marido. Índia, a preocupação com a honra da fa-
comparado com o presente estudo, já Quanto às tarefas domésticas, 14,2% mília foi um dos principais motivos le-
que não contemplou a violência conjugal das vítimas de algum tipo de violência vantados por pesquisadores do World-
física contra a mulher ao longo da vida. conjugal e 17,9% das vítimas de violência SAFE para explicar a baixa taxa de
Os resultados do presente estudo grave referiram incapacitação. De fato, a separações em decorrência da violência
sobre impacto na saúde oferecem apenas perda de dias de trabalho e a improduti- conjugal (7%) e a elevada proporção de
uma estimativa do impacto imediato, já vidade nas tarefas do lar são efeitos fre- separações temporárias (84%) (33). Ou-
que problemas cronologicamente distan- quentemente observados da violência tras razões referidas pelas mulheres viti-
tes das agressões físicas sofridas foram conjugal física, inclusive em países mais mizadas na Índia para voltar a conviver
desconsiderados. A parcela (38,7%) de desenvolvidos. Nos Estados Unidos, as com o marido incluíram o pedido do ma-
mulheres vítimas de algum tipo de vítimas de violência conjugal física grave rido para que voltasse e ter sido conven-
violência conjugal física que julgaram perdem anualmente cerca de 8 milhões cida a voltar pela própria família (36).
necessitar de cuidados médicos devido de dias de trabalho remunerado, o equi- Outro importante impacto da violên-
às agressões foi bem superior aos 10% valente a mais de 32 000 empregos de cia conjugal física na família é o que se
identificados em uma população cana- tempo integral, e quase 5,6 milhões de dá sobre a saúde mental dos filhos que a
dense (31), o que está de acordo com a dias de produtividade referentes às tare- presenciam. Crianças que testemunham
literatura, que atribui a intensidade do fas domésticas (34). violência entre os pais têm maior proba-
impacto da violência conjugal sobre a No presente estudo, 51,5% das mulhe- bilidade de apresentar uma série de pro-
saúde da mulher à interação entre fato- res que sofreram algum tipo de violência blemas emocionais e comportamentais,
res relacionados ao menor nível socioe- conjugal física e 59,3% das mulheres que incluindo ansiedade e depressão, baixa
conômico (como estado nutricional defi- sofreram violência conjugal física grave autoestima, desobediência, pesadelos e
citário, traumatismos prévios e história separaram-se de seus maridos. Essas queixas somáticas, além de baixo desem-
de abuso na infância) e às características taxas estão inseridas na variação de 38 a penho escolar (4, 21, 22). Na amostra
da agressão sofrida (natureza, intensi- 63% encontrada em estudo de revisão estudada, 17,3% de todas as mulheres re-
dade e duração) (32). sobre o tema (2). Vale destacar que, tanto feriram o testemunho da violência conju-
A taxa de mulheres vítimas de algum no presente trabalho quanto na literatura gal pelas crianças. Essa taxa chegou a
tipo de violência conjugal física que che- (10), as razões sentimentais são as mais 66,7% nos lares onde ocorria algum tipo
garam a receber cuidados médicos entre frequentes para justificar a manutenção de violência conjugal física contra a mu-
as que julgaram necessitá-los (36,7%) é da relação com o agressor, mais relevan- lher e a 75,9% nos lares onde ocorria
menor que a encontrada na Índia (50%) tes do que os problemas materiais ou violência conjugal grave. Os dados do
(33). No presente estudo, os principais com os filhos e, portanto, devem ser le- presente estudo aproximam-se dos en-
motivos alegados para não receber os vadas em consideração no desenvolvi- contrados em Dunedin (21), na Nova
cuidados médicos não incluíram a falta mento de modelos de intervenções para Zelândia, onde 20% de 962 adultos de
de acesso aos serviços de saúde, mas prevenção de violência conjugal contra 26 anos na população geral relataram
concentraram-se principalmente em mulheres. ter testemunhado durante a infância
razões pessoais, como vergonha de Na amostra estudada, a maioria das agressão conjugal física ou ameaças con-
expor seu problema ou medo de receber mulheres vitimizadas, tanto por algum tra a mãe, enquanto 66% das mães víti-
represália do marido/companheiro. Na tipo de violência conjugal física quanto mas de violência conjugal tinham conhe-
Índia, a falta de acesso aos serviços (30%) por violência grave (51,5 e 59,3%, respec- cimento do testemunho dos filhos às
ainda é uma importante limitação para a tivamente), separaram-se de seus com- agressões. Também é importante salien-
busca de cuidados médicos, o que pro- panheiros por causa das agressões. tar que as crianças que crescem em lares
vavelmente também ocorre em regiões Porém, quase dois terços (63,8 e 63,9%, onde há violência conjugal tendem a re-
menos desenvolvidas do Brasil. respectivamente) das mulheres voltaram petir os padrões de comportamento dos
Quanto ao impacto ocupacional, um a conviver com o companheiro. Dados pais. As meninas, ao se tornarem adul-
estudo de revisão encontrou uma va- do presente estudo assemelham-se aos tas, podem se envolver em relaciona-
riação de 23 a 54% para a taxa de mulhe- encontrados no Canadá (31) e na Nicará- mentos violentos, enquanto os meninos
res vitimizadas que faltaram ao emprego gua (35), indicando que a separação de podem se tornar parceiros agressores,
devido à violência conjugal física sofrida um marido agressivo é um processo que perpetuando o ciclo da violência em re-
(19). Essa faixa é bem superior aos 11,1% envolve várias saídas e retornos ao rela- lações futuras (9, 10, 22). Portanto, a alta
encontrados no presente estudo entre as cionamento. Em um levantamento popu- frequência com que as crianças teste-
mulheres vítimas de algum tipo de lacional conduzido no Canadá, 43% das munham violência contra suas mães e a
violência conjugal física com trabalho re- mulheres vítimas de violência conjugal gravidade das consequências para essas
munerado na época em que sofreram deixaram seus companheiros em de- crianças e seus descendentes (4, 8–11, 21,
agressões, e também superior aos 16,2% corrência de agressões, embora a maior 22) aumentam a relevância do problema
observados entre as vítimas de violência parte delas, cedo ou tarde, tenha voltado e a importância de sua abordagem em
grave. Essa diferença pode, em parte, ser para casa. Na Nicarágua, 41% das mu- caráter interdisciplinar nos diversos ní-
explicada pelo caráter menos restritivo lheres agredidas separaram-se tempora- veis de atenção à saúde.
da medida utilizada no estudo de re- riamente de seus maridos, enquanto que A multiplicidade de impactos da
visão, que incluiu não somente as faltas 38% separaram-se permanentemente. violência conjugal física repercute na
ao trabalho provocadas por ferimentos, Segundo a OMS (4), o medo é uma das vida da mulher mais fortemente do que

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simplesmente a soma desses impactos disciplinar e que possa enfocar aspectos aprovada em 2006, que intensifica as
(2) e não resulta necessariamente em ocupacionais, legais e de segurança, penas para perpetradores de violência
ações que diminuam ou eliminem as além do cuidado em saúde para todos os conjugal. Faltam também estudos que
agressões por parte do companheiro. Os familiares envolvidos, sem negligenciar identifiquem as taxas de violência conju-
impactos na saúde, no trabalho e na vida os aspectos sentimentais da relação gal física seguida de morte, assim como
familiar tendem a restringir a autonomia conjugal. pesquisas que estimem os custos econô-
da mulher vitimizada e a afetar sua A relevância do tema, sua complexi- micos da violência conjugal contra a
capacidade para uma busca efetiva de dade e a escassez de estudos disponíveis mulher no Brasil. Finalmente, são neces-
socorro. As evidências derivadas do pre- no Brasil conduzem à necessidade de sários estudos longitudinais para escla-
sente estudo indicam a necessidade de novas pesquisas. Faltam avaliações da recer os mecanismos envolvidos no sur-
uma maior disponibilidade e visibili- efetividade de iniciativas governamen- gimento e na perpetuação da violência
dade de órgãos de assistência às vítimas tais já implementadas de combate à conjugal, fornecendo dados que possam
de violência doméstica. É recomendável violência doméstica, como a lei 11 340 embasar estratégias de intervenção e de
que essa assistência tenha caráter inter- (conhecida como lei Maria da Penha), prevenção mais efetivas.

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ABSTRACT Objectives. To estimate the lifetime prevalence of domestic violence against women
(DVAW) in a low-income urban community and evaluate the immediate impact of
DVAW on health, work, and family life.
Life-long domestic violence Methods. The present cross-sectional study was carried out in the city of Embu
against women: prevalence (state of São Paulo, Brazil) as part of an international multicenter project (World Stud-
and immediate impact on ies of Abuse in the Family Environment, WorldSAFE). A probabilistic sample of
health, work, and family census sector-based clusters including all eligible households identified was used. A
total of 784 women (age 16–49 years) with at least one child younger than 18 years and
a lifetime resident husband/partner were included. We evaluated the occurrence of
any kind of DVAW (slapping, kicking, hitting, beating, threatening to use or using a
weapon, other aggressions mentioned spontaneously), of severe DVAW (same items,
except slapping and other aggressions informed spontaneously), and of immediate
impacts on the health, work, and family of the victims.
Results. The prevalence of DVAW was 26.0% for any kind of violence and 18.5% for
severe DVAW. Among the victims of any kind of DVAW, 38.7% judged that they
needed medical care, 4.4% were hospitalized, 18.1% were incapacitated for work (paid
work or household chores), 51.5% left their partner due to the aggression and 66.7%
had children who witnessed the violence. For severe violence, these rates were 51.0,
5.5, 23.4, 59.3 and 75.9%, respectively. Shame and fear of retaliation obstructed access
to medical care.
Conclusions. The frequency of DVAW is high in the studied community and pro-
duces immediate impacts on the victim’s health, work, and family life. These impacts
decrease the victim’s ability to look for help and hinder the breaking of the cycle of
violence.

Key words Domestic violence; violence against women; prevalence; impacts on health; psycho-
social impact; Brazil.

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