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Fellipe de Andrade Abreu e Lima

Arquiteto e Urbanista formado pela UFPE. Mestre em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pela UFPE. Profes-
sor de teoria, história, crítica e fundamentos de Arquitetura e do Urbanismo. Tradutor, escritor e profissional liberal. Tradu-
ziu e publicou o primeiro tratado de arquitetura do Renascimento no Brasil intitulado: A obra e o Tratado de Arquitetura de
Gíacomo Barozzi da Vignolla, Recife, Edições Bagaço, 2005. Atualmente faz doutoramento em História, Crítica e Funda-
mentos da Arquitetura e do Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-
USP), sob orientação do Professor Dr. Luciano Migliaccio.
E-mail: fellipe@usp.br

ANTROPOMETRIA, INDIVIDUALISMO E GENIALIDADE NA


TRATADÍSTICA DO RENASCIMENTO ITALIANO
R ESUMO

A constante reflexão dentro do campo da teoria da arquitetura acerca da concepção dos edifícios baseada em um sis-
tema antropométrico e sua devida relação com o espaço urbano demonstra a pertinência do seu aprofundamento teórico-
filosófico. A prática segue, em geral, as concepções teóricas, e, para estudarmos, no campo da teoria da arquitetura, as origens
desta ideia, podemos tomar como objeto de estudo os tratados escritos durante o Renascimento italiano, nos quais se observa
a preocupação de se criar uma analogia entre o corpo e suas relações métricas com a arquitetura e a cidade. Os primeiros trata-
distas consagrados do Renascimento italiano são Leon Battista Alberti, Francesco di Giorgio Martini e Antonio di Pietro
Averlino; os quais anunciaram, nos seus respectivos estudos ainda no século XV, que a composição da arquitetura e do espaço
urbano, baseada em relações antropométricas, favorece a sua integração e é uma das condições para a qualidade da cidade. Ao
longo do Renascimento, esta cultura de pensar o corpo como espelho para a arquitetura e a cidade transformou-se, devido a
condicionantes culturais, econômicos e sociais. Autores como Andrea Palladio, Sebastiano Serlio e Giacomo Barozzi da Vig-
nola, que escreveram seus tratados no final do Renascimento, não dissertam mais sobre o espaço urbano ou sua relação com
os edifícios, contudo, mantém a idéia de antropometria como parâmetro para a concepção da arquitetura e do urbanismo. O
objetivo deste texto é analisar, à luz dos métodos comparativo e histórico, as transformações ocorridas na idéia de antropo-
metria na tratadística do Renascimento italiano e reforçar a importância e permanência desta concepção no campo da teoria
da arquitetura, considerando as devidas transformações nas concepções epistemológicas de então.

Palavras-chave: Arquitetura. Teoria da Arquitetura. Tratados.


A BSTRACT
One of the major concerns in architectural theory is the architectural conception of between buildings, urban space and the
anthropometry idea. In order to study this relationship, we can take as study object some treatises written during the Italian
Renaissance, where if manifest for the first time the concern of if relating the architecture with the urban space. The first
recognized authors of architectural treatises of the Italian Renaissance, Leon Battista Alberti, Francesco di Giorgio Martini
and Antonio di Pietro Averlino, had announced in their writings that the appropriate relationship between architecture and
urban space, is one of the chief conditions for the spatial quality of the city. However, during the Renaissance, the treatise cul-
ture of relating architecture and city was dissolved being challenged by technical, cultural and economic conditions, transfor-
ming the way of thinking architecture and city. Authors such Andrea Palladio, Giacomo Barozzi da Vignola and Sebastiano
Serlio, who had written their treatises at the end of the Renaissance, did not focus on this relationship between urban space,
buildings and the anthropometry. The objective of this study is to analyze the complex relationship between architectural the-
ory and the ideas of antrophometry, individualism and geniality in the treatises of the Italian Renaissance clarifying the rea-
sons that caused this transformation.

Keywords: Architecture. Architectural Theory. Treatise.

VEREDAS FAVIP - Revista Eletrônica de Ciências - v. 2, números 1 e 2 - janeiro a dezembro de 2009


Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano
“O gênio surge subitamente, e fala a partir de um vácuo” salvo em alguns casos nos quais menciona medidas
Paul Johnson – Historiador – Universidade de Oxford
aproximadas a serem respeitadas. Baseando-se em
1 A TRATADÍSTICA DO RENASCIMENTO duas premissas, primeiro que a sociedade é produto
ITALIANO das condições naturais, e segundo que a forma
urbana é produto da sociedade, ele conclui que as
O desenvolvimento científico e artístico do condições geográficas influenciam na morfologia da
Renascimento marcou toda a Idade Moderna que a cidade.
sucedeu. Dentre as mais importantes contribuições
da teoria da arquitetura estão o uso da perspectiva 1 Um dos objetos de estudo do tratado de Alberti
como modelo de desenho espacial e a teorização do é um grupo de conceitos intitulado “lineamenti”. Os
estudo da cidade por Alberti, dando início à cultura lineamenti e a tríade numerus, finitio e collocatio são as par-
de se escrever tratados de arquitetura e urbanismo . 2 tes que compõem o objeto arquitetônico e os “prin-
Leon Battista Alberti (1404-1472), considerado o cípios de projeto”, respectivamente, que devem
primeiro tratadista do Renascimento italiano, reger o pensamento de um arquiteto quando na ela-
publicou seu tratado de arquitetura, o “De Re boração de um projeto. O que ele chamou de linea-
Aedificatoria”, em 1452, fundando um método de menti está descrito no Livro 1 como as partes compo-
abordagem sistemática e abstrata em que arquitetura nentes da Arquitetura material: regio (local), area (ter-
e a cidade estavam contidas dentro de um processo reno), compartitio (divisão), parties (partes), tectum (co-
de pensamento único e inseparável. berturas) e apertio (aberturas). Estes seis conceitos
são complementares dentro da visão abstrata de
Neste volume escrito por Alberti, a Alberti, na medida em que qualquer projeto pode ser
“metodologia de projeto” que abrange o estudo da
3 construído a partir da derivação de seus arranjos.
cidade faz dele o primeiro teórico da arquitetura a
ressaltar a importância da relação entre a obra Apesar de classificar as ruas e ter sido influ-
construída e o espaço que a encerra. Alberti não via enciado pelo livro de Vitrúvio, Alberti não concorda,
distinção entre arquitetura, engenharia ou enfaticamente, com os cardus e decumanus. Segundo
urbanismo. Todas estas ciências estavam contidas ele, havia mais de duas grandes vias principais que
dentro de uma única: a arquitetura. Ao longo dos dez cortam uma a cidade. O ornamento (elementos deco-
livros que compõem seu tratado, Alberti menciona rativos como fontes, obeliscos ou esculturas) e a con-
idéias sobre uma cidade ideal, principalmente no veniência (posições estratégicas de defesa, principais
Livro 4, em que estão contidas as maneiras pelas ruas em linhas retas e aproveitamento do declive do
quais devem ser projetadas as cidades: iniciando com terreno) são considerados importantes para a sua
a escolha das regiões propícias, a descrição das mais cidade ideal, e, até nas grandes vias que ligam cida-
adequadas maneiras de construí-las, a forma das suas des, fazem-se necessários monumentos que as embe-
muralhas, a escolha dos materiais e a disposição dos lezem. A forma circular seria a mais perfeita, apesar
edifícios, pontes e praças. Contudo, as descrições dele considerar que devem se adequar às condições
métricas não foram alvo das atenções de Alberti, do terreno e também à idéia de Aristóteles para as
1
Segundo consagrados autores, o modelo linear de perspectiva foi “redescoberto” por Filippo Brunelleschi, em meados de
1413. KEMP, Martin. The Science of Art. Yale University Press. New Haven and London, 1990. Chapter 1, p.9-11.
2
O termo “Urbanismo” surge de 1890 em diante entre os especialistas. “Town Planning” em inglês, “Urbanizacíon” em espa-
nhol e “Urbanisme” em francês. A palavra francesa atinge maior aceitação.
3
Apesar deste termo ser contemporâneo, Alberti inaugurou os conceitos de lineamenti – (lineamenta - em Latim), numerus, fini-
tio, collocatio e concinnitas, reforçando a idéia do estabelecimento de um método próprio de pensar a Arquitetura, ou seja, o pri-
meiro momento em que se aborda a cidade de modo abstrato. Usaremos neste estudo o termo em italiano: Lineamenti.

4
defesas militares, segundo a qual, é necessário que as dedicada ao Duque Sforza de Milão, financiador de
cidades se unam ao sítio, na maioria das vezes, com suas obras. Finalmente, do Livro 12 ao 21 são des-
formas irregulares. Talvez o grande número de variá- critos os edifícios que devem fazer parte de sua cida-
veis estabelecido por Alberti seja a própria explica- de ideal, bem como uma justa relação entre a cidade e
ção ao fato de não haver ilustrações no seu tratado, o os edifícios, manifestada através do uso de um mes-
que nos faz imaginar que Alberti já previa a impossi- mo módulo para elaboração das colunas, edifícios,
bilidade de se criar uma “Cidade Ideal”4. praças e demais espaços urbanos.

Junto a Alberti, no rol de autores que conside- O plano das quadras centrais da cidade segue
ravam a arquitetura e cidade como entes a serem pen- uma malha ortogonal, porém, as ruas principais que se
sados juntos, baseados sempre na idéia de corpo huma- projetam até a muralha estrelada seguem um formato
no, estão Antonio di Pietro Averlino (1400-1465), cog- heliocêntrico, cortando a cidade no ponto central da
nome Filarete, e Francesco Giorgio di Martini (1439- circunferência que tangencia as pontas da muralha. No
1501), os quais escreveram e ilustraram seus tratados centro desta cidade circular e, também, da mais
seguindo algumas diretrizes estabelecidas pelo seu importante praça, está o monumento principal. A
antecessor. Estas diretrizes defendiam a aplicação dos intenção de usar um mesmo módulo para as praças, ruas,
conceitos enunciados de numerus, finitio e collocatio palácios e outros edifícios que compõem a cidade de
como as bases epistemológicas do projeto arquitetô- “Sforzinda”, é, de acordo com este grupo de
nico, ou seja, os “princípios de projeto”. Filarete tratadistas, uma das maneiras de se relacionar
publicou o Tratato di Architettura5 em 1464 e Fran- arquitetura e cidade. Esta prática defendida por
cesco Giorgio di Martini escreveu Trattati di Archi- Filarete já tinha sido anunciada por Alberti como
tetura, Ingegneria e Arte Militare6 entre 1470- uma das condições para se atingir a qualidade
1490. espacial de uma cidade.

Ao contrário de Alberti, Filarete não se apóia Segundo Filarete, os edifícios mais importantes
na visão vitruviana de que a cidade deve manifestar a da cidade devem estar localizados ao redor das praças e
tríade utilitas, firmitas e venustas. Seu tratado é composto as residências populares na periferia ou junto à muralha.
por vinte e cinco livros; sendo que os quatro últimos Formando uma circunferência interna à muralha e,
não tratam da arquitetura ou da cidade. Dos vinte e um também seccionada pelas ruas principais, estão os 16
livros que dissertam sobre arquitetura, pode-se dividir templos desta cidade. Suas plantas e fachadas também
em três partes. Nos Livros 1 e 2 é discutida a teoria da devem, segundo Filarete, seguir o mesmo módulo do
arquitetura em si. Nos Livros 3 a 11 é discutida a cons- plano urbano, para demonstrar uma maior relação entre
trução da sua cidade ideal, chamada “Sforzinda”, cidade e arquitetura.
4
No primeiro momento no qual Alberti explicita a idéia de antropometria no seu tratado ele afirma que: “Antes de tudo,
consideramos que o edifício é um corpo, e, como todos os outros corpos, consiste em desenho e matéria: o primeiro elemento
é neste caso obra do engenho – mental –, o outro é produto da natureza; o primeiro precisa de uma mente racional, para o
outro, coloca-se o problema da procura e da escolha justa”. ALBERTI. L'Architettura. Prólogo. Volume 1. p.14. Tradução
Nossa. Texto original: “Nam aedificium quidem corpus quoddam esse anima dvertimus, quodlineamentis veluti alia corpora
constaret et materia, quorum alterum istic ab ingenio produceretur, alterum a natura susciperetur: huic mentem
cogotationemque, huic alteri parationem selectionemque adhibendam; sed ultrorumque per se neutrum satis ad rem valere
intelleximus, ni et periti artificis manus, quae lineamentis materiam conformaret, acesserit”. ALBERTI. De Re Aedificatori.
Prólogo. Volume 1. p.15.
5
FILARETE. Filarete's Treatise on Architecture. Yale University Press, New Haven and London., 1965. Trattato di
Architettura. A Cura di Anna Finoli e Liliana Grassi. Milano: Edizioni il Polifilo, 1972.
6
MARTINI, Francesco di Giorgio. Trattati di Architettura, Ingegneria e Arte Militare. A Cura di Corrado Maltese, Trascrizione
di Livia Maltese. Edizioni Il Polifilo, Milano, 1967.

5
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

7
Imagens no Tratado de Filarete relacionando o Módulo com o Edifício e a cidade . De acordo com Filarete, desde a coluna
que compõe um edifício, até o plano urbano de uma cidade deve seguir um mesmo Módulo, baseado nas relações
métricas do corpo humano.

O terceiro tratadista que seguiu as idéias iniciadas Alberti, Martini faz uso intenso de ilustrações ao lon-
por Alberti foi Francesco di Giorgio Martini (1439- go destes sete livros. Estreitamente relacionados
1501). Seu tratado surge quase meio século depois entre si, textos e imagens apresentam a cidade como
dos seus dois antecessores. Martini é um arquiteto- um grande corpo humano que deve funcionar har-
engenheiro, especializou-se na construção de forta- monicamente: o uso de um módulo baseado nas pro-
lezas para os duques de Urbino, Montefeltro e traba- porções do corpo humano; as máquinas usadas para
lhou na canalização e construção de pontes em vári- mover água e objetos pesados; soluções de plantas
as cidades italianas. A partir do Século XVII, o trata- de casas adaptadas à sua contemporaneidade e até as
do de Martini foi esquecido, tendo em vista que seus fortalezas com suas variações morfológicas.
estudos abordam sobre técnicas construtivas da
engenharia civil e militar pertencente ao século ante- Nos Livros 5 e 6, Martini explica a importância
rior, tornando-se obsoletas. Seu tratado impõe à do “disegno” para o bom entendimento da arquitetu-
arquitetura o domínio de muitas ciências, da mesma ra. Para ele, o desenho é a maior ferramenta que os
forma como os de Alberti e Filarete. Ao longo dos arquitetos possuem para se expressar: “Sem o dese-
sete livros são aprofundados os estudos da arquitetu- nho, - diz Martini -, o arquiteto não pode exprimir
ra em vários aspectos. O Livro 1 trata dos materiais suficientemente seus conceitos”. Não há, contudo,
de construção. No Livro 2 as casas, os palácios e o sis- em seu tratado, uma única cidade ideal como a “Sfor-
tema de abastecimento de água. No Livro 3 são des- zinda” de Filarete. O importante para Martini é o
critas as formas das cidades e o “urbanismo” como estabelecimento e o uso de proporções harmônicas
uma ciência que coordena a relação dos edifícios provenientes das relações antropométricas. Esta é a
com o espaço urbano. No Livro 4 os templos, no maior relação possível que, segundo ele, pode haver
Livro 5 as fortalezas, no Livro 6 os portos em rios e entre o “Homem” e a cidade.
em mar e no Livro 7 as máquinas. Ao contrário de
7
FILARETE. Volume 1, Cap. Ilustrações.

6
Imagens no Tratado de Giorgio Martini. 1. A cidade como um corpo humano, onde todas as partes devem estar harmonizadas
8
entre si. 2. O módulo que proveniente das relações métricas do corpo relacionado com os edifícios e a cidade. 3. As máquinas.

Durante o século XV, estes três tratadistas do deles estabeleceu suas diretrizes para se pensar toda
Renascimento italiano pensaram a arquitetura e a uma cidade, desde uma colunata até uma praça,
cidade sempre juntas. Cada um dentre estes três seguindo um mesmo módulo, baseando-se em
tratadistas contribuiu de forma pessoal para a teoria relações antropométricas.
da arquitetura. O mais importante é que cada um

Imagens no Tratado de Giorgio Martini. 1. Algumas plantas descritas no seu tratado que seguem o mesmo módulo. 2. Um,
9
dentre muitos, exemplos de fortaleza .

8
MARTINI, Francesco di Giorgio. Imagem 1: Folio 3, Imagem 2: Folio 42 e Imagem 3: Folio 60.
9
Idem. Imagem 1: Folio 18 e Imagem 2: Folio 60.

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Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

Ao longo do século XVI, a idéia de corporalidade de imagens, apresentando plantas, fachadas ou


transformou-se. Dentre os que rompem com a tradi- módulos que devem reger os desenhos, não há
ção deste conceito, Sebastiano Serlio (1475-1554) relação ou menção ao espaço exterior ou urbano
que publicou o Tratato di Architettura, Giacomo onde estes edifícios estariam, ou deveriam ser
Barozzi da Vignola (1507-1573), que publicou o Li implantados. Obviamente, estes autores
Cinque Ordini Di Architettura, e Andrea Palladio continuaram defendendo a idéia de que se deve
(1508-1580) que publicou seu tratado em 1570, inti- construir em locais adequados, mas não ultrapassam
tulado I Quattro Libri della Architettura, são os estas linhas gerais.
mais conhecidos por terem atingido maior repercus-
são como teóricos e como arquitetos. Serlio, Palladio Sebastiano Serlio escreveu, ao todo, nove livros
e Vignola, dentre outros, não pensaram mais na “Ci- sobre a arquitetura ou construção. Estes livros não
dade Ideal” como um corpo vivo, mas iniciam um foram pensados como um conjunto que compõem
intenso estudo sobre “tipos arquitetônicos” ou fór- um tratado, pois foram publicados em tempos e
mulas estandardizadas, unificando as ideias antropo- locais diferentes. O título “tratado” se dá ao
métricas com os diversos elementos arquitetônicos conjunto de sua obra, que foi escrita entre 1510 e
de um edifício. 1540. Serlio não se limitou a divulgar apenas os seus
projetos, colocando nos seus livros observações e
Durante os séculos XV, XVI e XVII, a atenção imagens de alguns projetos de Bramante, Rafael,
dos teóricos da arquitetura sai da cidade como um Peruzzi e até de obras romanas e medievais
ente único e volta-se para a planta e a volumetria das consideradas importantes por ele.
edificações. Apesar de seus tratados estarem plenos

Imagens retiradas do tratado de Sebastiano Serlio, onde se observa que são ressaltados apenas os edifícios isolados, sem
nenhuma menção ou relação com o espaço urbano nem com a ideia de se pensar toda a cidade como um corpo.10

Nos Livros 1 e 2, Serlio trata da perspectiva, teto. Este fato demonstra a mudança que o cami-
da geometria e do desenho, dando muita ênfase à nho da teoria da arquitetura estava percorrendo. A
geometria como ferramenta de desenho do arqui- relação com a cidade não estava mais sendo o

10
SERLIO, Sebastiano. The Five Books on Architecture. New York: Dover Publications, 1986; SERLIO, Sebastiano. On
Architecture: Books I-V and VI-VII of Tutte L'Opere d'Architettura et prospective. New Haven: Yale University Press, 1996.

8
objetivo dos tratados, que caminhavam cada vez Renascimento, Andrea Palladio e seu tratado tiveram
mais para os métodos de desenhos variados das tanta repercussão que fizeram surgir um estilo
regras e postulados da matemática e da geometria. O próprio que atravessou fronteiras: o palladianismo.
Livro 3 é amplamente ilustrado de obras de arquite- Palladio aprendera a profissão de pedreiro ainda
tura antigas, compondo-se de mais de 150 páginas de jovem, fato que o fez dedicar o primeiro dos quatro
desenho e dando-lhes uma importância nunca antes livros do seu tratado aos materiais de construção. Ter
tida. Nos Livros 4, 5 e 6, Serlio trata das cinco ordens dedicado todo um livro aos materiais de construção
arquitetônicas (Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e enuncia quais eram as novas preocupações da teoria
Compósita) e da arquitetura civil residencial. O Livro da arquitetura. A difusão de informações sobre estes
7 trata das vilas, palácios e outros edifícios importan- materiais levou os tratadistas a se preocuparem mais
tes. O Livro 8 não foi publicado e trata de constru- com a sua justa aplicação e até com as questões
ções antigas. O último de seus escritos, o Livro 9 é estéticas como: cor, textura e durabilidade. Apesar
denominado “Libro Extraordinario”, e trata dos diver- de se ater a questões menos exploradas nos tratados
sos tipos de janelas, portais e arcos. Os nove livros de do século XV, Palladio absorveu importantes
Serlio abordam os métodos de desenho, as regras da contribuições de seus antecessores. O tratado de
perspectiva, os fundamentos matemáticos e geomé- Alberti, por exemplo, já era encontrado em língua
tricos que devem ser seguidos para a execução destes italiana e ilustrado desde a sua reedição em 1565.
desenhos e também várias plantas de tipos arquitetô- Além de Alberti e de Vitrúvio, Palladio foi
nicos isolados do espaço urbano que os encerra. O influenciado pelos seus contemporâneos Serlio, que
módulo continua sendo um importante princípio publicou seu Livro 3 antes da edição dos I quattro
para construção de colunas, capitéis e edifícios, mas libri della arquitettura, em 1570, e Vignola.
não há mais menção à relação entre o edifício e o Palladio foi, com o passar do tempo, tornando-se o
espaço urbano, como faziam os seus três antecesso- mais renomado e requisitado arquiteto da Itália. A
res. simetria e o módulo, importante na maioria de seus
projetos, estão presentes nos inúmeros desenhos
Um dos últimos tratadistas do Renascimento que compõem seu tratado. A maior parte de sua obra
italiano, Giacomo Barozzi da Vignola publicou o Li foi incluída e comentada ao longo do Livro 2. O
Cinque Ordini Di Architettura em 1562, Livro 3 trata das basílicas, igrejas, edifícios públicos e
tornando-se um dos mais difundidos manuais desde pontes, e Livro 4 dos templos, incluindo projetos
então. Sua influência principal está no fato de ter sido gregos e romanos. As imagens que compõem seus
proposto como um léxico sobre medidas para a quatro livros são desenhadas de uma maneira
construção. Originalmente composto por uma série particular. Não há cotas ou diferença nas linhas de
de 32 pranchas comentadas de maneira sistemática, planta, fachada ou corte. A intenção de Palladio de
as imagens já se sobressaem fortemente ao texto. O descrever os módulos dos desenhos demonstra aos
conjunto deste tratado pretende canonizar as cinco seus leitores, a valorização dada às relações
ordens clássicas em partes separadas: o entrecolúnio, proporcionais em uma obra de arquitetura. O
os arcos, os pedestais simples, os pedestais módulo e sua respectiva idéia de antropometria estão
particulares e os embasamentos. Apesar de não se presentes em todos os tratados que são objetos deste
limitar, unicamente, às ordens arquitetônicas estudo, mesmo tendo cada um deles, características
isoladas do contexto urbano, Vignola estabelece um que os tornam particulares.
cânone de proporções antropométricas de fácil
aplicabilidade.
Considerado o último tratadista do

9
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

Imagens do tratado de Andrea Palladio, em que apenas o edifício isolado, com a planta, fachada e corte, é observado. Não há
11
diferença entre as espessuras das linhas vistas ou cortadas; característica única de Palladio.
Durante mais de um século (1452-1570), como ente inseparável da cidade. Já Serlio, Vignola e
entre a publicação do primeiro e do último tratado Palladio desenvolveram tipos arquitetônicos ou
do Renascimento italiano, a dinâmica social e econô- entablamentos e entrecolúnios, ou seja, edifícios ou
mica transformou o modelo de pensamento arquite- partes de edifícios sem relação com o ambiente
tônico. A especialização das profissões, o desenvol- urbano, dando maior ênfase aos materiais e às
vimento das engenharias e artes militares, a revalori- técnicas construtivas. Estes seis tratados são os mais
zação da cultura Greco-Romana, e conseqüente- significativos para se entender a idéia de
mente, do texto vitruviano, fizeram a atenção dos tra- antropometrismo que surgiu antes mesmo da
tadistas se distanciar da cidade e focalizar nos tipos publicação do De Re Aedificatoria de Alberti, em
arquitetônicos, nos métodos de desenho e nos mate- 1452, e a paralela fragmentação entre arquitetura e
riais de construção, rompendo uma relação de equilí- cidade na teoria da arquitetura do Renascimento
brio entre cidade e arquitetura. A sofisticação das italiano. Apesar desta mencionada fragmentação, o
ciências e métodos construtivos, surgidos por moti- ideal antropométrico não desapareceu, apenas
vos militares e pela constante difusão de livros, con- deixou de ser abordado nas questões urbanas,
duziu à enunciada especialização das profissões. especificamente no campo da teoria da arquitetura,
sendo enfaticamente aplicado no âmbito projetual
Alberti, Martini e Filarete escreveram seus da arquitetura dos edifícios.
respectivos tratados considerando a arquitetura

11
PALLADIO, Andrea. I Quattro Libri della Architettura. Milano: Ulrico Holephi, 2000. Edição Fac-Simili 1570.

10
2 A IDÉIA DE ANTROPOMETRIA emergem gradual e lentamente, fruto de forças
sociais complexas mas atuantes. Assim, para
A ênfase dos autores gregos, a exemplo de compreensão da transformação deste ideal estético
Aristóteles, e romanos, a exemplo de Vitrúvio, entre o fim da Idade Média e início do renascimento
ressaltam a importância do estabelecimento de um devem-se levar em consideração as contribuições da
módulo ( métr on ), como uma espécie de sociologia do conhecimento, a qual procura
responsabilidade social que os artistas têm para com compreender o pensamento dentro da moldura
a sociedade. Esta concepção deve-se ao ideal de que concreta de uma situação histórico-social. Destarte,
estas “belas medidas” transformam a percepção podemos adotar a visão de Karl Mannheim quando
estética do homem e conduzem ao afirma que:
engrandecimento do “espírito”. Como mencionou
Não há a menor dúvida de que só
Aristóteles, o estabelecimento de um módulo o indivíduo é capaz de pensar.
12
(métron) tem “o poder de afetar o nosso caráter” . Da Não existe esta entidade
mesma forma, Vitrúvio reforçou esta idéia dizendo metafísica denominada espírito
que a “arquitetura depende da ordem, que em grego grupal, que pensa acima das
se diz τaξις, simetria, que em grego se diz διaθεσιν, cabeças dos indivíduos, ou cujas
idéias estes se limitam a produzir.
propriedade, economia e ritmo, que em grego se diz Mas nem por isso se deve
13
ο!κονομ"α” . concluir que todas as idéias e
É no Renascimento que se percebe pela sentimentos que motivam a
conduta de um indivíduo te-
primeira vez o florescer desta “teoria artística” que nham exclusivamente nele suas
viveu adormecida na Idade Média. A pintura dos origens e possam ser
séculos XIV e XV já demonstra o renascer deste adequadamente expli ca das
ideal estético que, ao modo de ver do filósofo alemão apenas à luz da sua própria.15
Georg Hegel, é fruto de um processo dialético que
envolve o devir do saber do homem. Como A base epistemológica para a compreensão
observou Hegel, as transformações sociais são, ao deste novo ideal estético surge com muita ênfase
mesmo tempo, causa e conseqüência das mudanças após a edição do tratado de Alberti, que se
deste juízo estético. O processo dialético do inspirando no texto de Vitrúvio e sendo um
conhecimento dentro do campo da teoria da indivíduo a pensar isoladamente dentro do seu
arquitetura produziu unidade e fragmentação a partir contexto, defende que “mente et animo aliquas
16
da própria consciência social.14 aedificationes, corpus quaddam veluti alia corpora” , ou
seja: mente e corpo formam juntos a beleza da
É difícil compreendermos a transformação de edificação, e o corpo é o reflexo desta perfeição. A
um ideal estético no seio social. Neste sentido, deve- primeira passagem do tratado de Vitrúvio que se
se considerar que as transformações sociais refere à analogia com o corpo humano está no

12
ARISTÓTELES. Política, 1340 a. Madrid: Alianza, 1986. Apud: D'AGOSTINO, Mário Simão. Geometrias Simbólicas da
Arquitetura. São Paulo: Editora Hucitec, 2006, p.23.
13
VITRÚVIO. Texto Original: “Architectura autem constat ex ordinatione, quae graece τaξις dicitur, et ex dispositione, hanc
autem Graeci διaθεσιν vocitant, et eurythmia et symmetria et decore et distributione, quae graece ο!κονομ"α dicitur”. Livro 1,
Capítulo 2. Tradução Nossa.
14
HEGEL, Georg W.F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
15
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Porto Alegre: Globo, 1952. p.2.
16
ALBERTI. De Re Aedificatoria. p.15. Texto Original. Tradução Nossa.

11
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

segundo capítulo do primeiro livro, quando escreve edifícios que compõem sua cidade ideal. A ars
que: “Simetria é a concordância correta entre as aedificandi não pode ser vista, dentro da sua teoria,
partes da obra e a relação entre partes diferentes com separada da ars urbs.18 Do mesmo modo, é
o esquema todo da obra. Assim, existe um tipo de importante relembrar a idéia de que a arquitetura
simetria no corpo humano entre o braço, o pé, o precede o desenho, ou seja, de que a verdadeira
dedo, a mão e outras partes pequenas. Isso deve ser a arquitetura está na mente do arquiteto (perscriptio). Há
mesma coisa com um edifício perfeito”.17 uma visão quase fenomênica dentro desta teoria.
Nestes mesmos termos antropométricos pode- Pode-se verificar esta idealização nos painéis de
se entender a harmonia e a beleza (concinnitas) cidades ideais, que incluem o de Urbino.
pretendidas por Alberti: entre o tecido urbano e os

Imagem da “Città Ideale” no Painel de Urbino. Composição feita entre 1470 e 1480, segundo os conceitos de Leon Battista Alberti.
Na composição percebe-se o Palazzo Rucellai (segundo edifício à esquerda) e fachada de Santa Maria Novella (fundo à direita).
Alberti entende que a relação íntima entre as escalas são também partes menores de
do ambiente construído, ou a idéia de que cidade e uma cidade?.19
edifício são um mesmo ente em escalas diferentes, é A idéia de antropometrismo arquitetônico e
resumida quando ele afirma que urbanístico permeia o imaginário intelectual de
Se a cidade, como disseram os Alberti e dos tratadistas que o seguem, cada um deles
filósofos, é uma grande casa e a de um modo específico. A métrica de Palamedes20
casa não é nada mais que uma agrega valor semiótico à idéia de antropometrismo,
pequena cidade, por que não
dizer que também as pequenas
da mesma forma como dá margem à interpretação
partes de uma casa são as de uma valoração associada a um determinado
mesmas coisas que as pequenas tempo e espaço. A inclusão destas duas variáveis no
partes de uma cidade? Deste processo de compreensão do ideal de
modo, também o átrio, o jardim antropometrismo arquitetônico e urbanístico ao
ou a sala de jantar ou a entrada
longo da história nos remete à concepção estética
17
VITRÚVIO. Texto Original: “Item symmetria est ex ipsius operis membris conveniens consensus ex partibusque separatis ad
universae figurae speciem ratae partis responsus. Uti in hominis corpore e cubito, pede, palmo, digito ceterisque particulis
symmetros est eurythmiae qualitas, sic est in operum perfectionibus”. Livro 1, Capítulo 2. Tradução Nossa.
18
Mesmo que tenha sido de forma superficial, a visão de que a cidade é muito mais que uma simples construção e aglomeração
de pessoas já tinha sido afirmada por Vitrúvio no século I (Civitas est fabrica et ratiocitanatio) e no Século VII por Isidoro de
Sevilha (Civitas est metaria et ratio).
19
ALBERTI. L'Architettura. Livro 1, Capítulo 9. p.22. Tradução Nossa.
20
Palamedes: Notório criador da métrica e de sua constante relação com números. Nos alfabetos grego e hebraico, por
exemplo, as letras possuem valores numéricos que expressam sua base de valor e importância. O nome de Deus em hebraico,
por exemplo, possui valor numérico 10 e se escreve. (‫)יהוה‬

12
Hegeliana. Em Vorlesungen über die Ästhetik21 de si mesmo. Durante a formação do Renascimento,
Hegel demonstra a relação entre matéria e espírito, o ser humano tornou-se referência para si mesmo,
ou seja, entre corporalidade e ideal. A estética, para inclusive na arte. Esta relação dialética entre matéria
Hegel, é a porta de entrada para a perfeita e espírito atingiu seu equilíbrio máximo nos séculos
compreensão da realidade material, para o real XV e XVI. Para Hegel, a única forma de se atingir o
significado e entendimento da arte (a arquitetura está divino, ou Deus, é através da arte perfeita, que surgiu
neste campo). Hegel também menciona que a arte no Renascimento. Hegel defende que “A
possui duas dimensões: uma corpórea e outra antropomorfização da divindade – um processo que
espiritual. A primeira está relacionada com telas, só pode ser plenamente compreendido através do
tintas, tijolos e qualquer outro material que venha a simples, mas definitivo, fato de que o Deus possui –
ser usado pelo artista. A segunda está relacionada ao menos em suas representações estéticas (e elas
com o conteúdo intrínseco: com o espírito do autor- são de fato a única e verdadeira fonte de acesso ao
artista. É exatamente na relação entre estes dois divino ) – um corpo humano (körpe)”23.
momentos que se encontra a ς: a percepção
harmônica. A beleza perfeita é a adequada percepção Enfim, a arte perfeita, para Hegel, é a arte
deste momento. realista, que representa da forma mais similar
possível a realidade e o ser humano. Apenas, neste
Neste momento, a espiritualidade é contexto, podemos atingir a máxima compreensão
materializada, transformando o infinito em finito. É de nós mesmos e, conseqüentemente da divindade
fato que esta relação matéria-espírito não é sempre que nos encerra. É no Renascimento que podemos
perfeita, de modo que o artista não percebe sempre o perceber a arte com um momento de transformação
espírito completamente nem consegue materializá- do espírito do homem. É onde percebemos que a
lo perfeitamente em sua obra de arte. Há momentos, matéria é encarada de forma divina, onde surge a
ao longo da história, nos quais a materialidade verdadeira poesia da arte na materialidade da vida24.
predomina sobre a espiritualidade e momentos onde Além do tempo histórico do Renascimento,
o espírito reina sobre a matéria. Neste percurso, o ser podemos mencionar outros momentos históricos
humano busca a si mesmo através da arte. nos quais o ideal antropométrico reinou sobre as
concepções arquitetônicas e urbanísticas, mesmo
No período Grego, segundo o próprio Hegel, já que não de forma generalizada. O século XVII
se podia observar o uso da perspectiva22 para recebeu as contribuições de Claude Perrault, o
demonstrar a capacidade de compreensão do ser século XVIII as ideias de François Blondel e de
humano de si mesmo, ou seja, o reconhecimento de Robert Morris, o século XIX as ideias de modulação
si mesmo enquanto ser pensante. Antes do de Jean-Nicholas-Louis Durant e de Étienne-Louis
Renascimento, ao longo da Idade Média, o corpo Boullée, e o longo século XX viu por vários
humano foi reduzido às defor midades, momentos o renascer de estilos neoclassicistas,
demonstrando a imperfeição da apreensão humana desde o início do século, passando pelos governos

21
HEGEL. G.W.F. Cursos de Estética. EDUSP, São Paulo, 2000, Vol. II. O texto “Vorlesungen über die Ästhetik” foi escrito
na década de 20 do século XVIII. De forma unívoca, o entendimento de körper - pensado essencialmente como corpo humano
– toma na filosofia de Hegel o papel fundamental para explicação da relação entre matéria e espírito.
22
Um dos exemplos mencionados por Hegel é o desenho de Exekias, feito em meados de 540 a.C..
23
HEGEL. G.W.F. Ibidem. p.214.
24
Neste momento do estudo, abrimos parêntesis para o fato de que a unidade entre arquitetura e cidade, presente nos tratados
do início do Renascimento, são a materialização de uma ideologia social, concretizadas muito mais pela apreensão que a
sociedade tem de si mesma do que pela injustificada criação de uma nova teoria da arquitetura.

13
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

centralizadores da Alemanha, Itália e Rússia até as 3 INDIVIDUALISMO E GENIALIDADE


concepções arquitetônicas e urbanísticas de Le
Corbusier. É necessário ressaltarmos que o conceito de
“liberdade de criação” não deve ser confundido com o
Nestes contextos de complexidade de de gênio, estudado pela corrente da fenomenologia ou
apreensão espacial ao longo do tempo, a teoria da pelos psicólogos sociais. Embora conhecendo a opinião
arquitetura diferencia-se da prática num ponto de Massimo Canevacci, segundo a qual “a história do
fundamental: a noção de espaço. Após a concepções 27
indivíduo ainda não foi escrita”, constatamos que o
Hegeliana, outra difundida veia de apreensão social tema do individualismo tem explícita autonomia no
foi feita por Immanuel Kant, defendendo que a âmbito das ciências sociais, como podemos constatar
noção de espaço é uma idéia a priori, apreendida em pelo exame da relação bibliográfica apresentada no final
nossa capacidade como sendo passível de medida. A deste trabalho. O vocábulo latino individuum deriva do
concepção kantiana de que o espaço matemático é grego atomom, ambos denominando aquilo que não
uma apriorística, mesmo que podendo apenas ser pode ser dividido; este conceito de “originária
25
pensada dentro do próprio espaço , reforça a idéia indivisibilidade e singularidade” atravessa todo o
de Mannheim de que a concepção de tempo e espaço pensamento ocidental, e chega até Leibniz, que, com seu
é parte do sistema dialético do conhecimento, conceito de mônada, “fornece a especificidade
observando que o saber segue aspirações e variações definitiva ao indivíduo da era burguesa”.
28

ao longo do tempo e do espaço.


Acerca da inserção do conceito de individualismo
O processo de apreensão da realidade pode ser na teorização sociológica, cabe destacar inicialmente que
alterado, tanto por indivíduos quanto por forças a noção de individualismo, na teoria social, designa não a
sociais mais complexas, levando em conta que “não doutrina moral que traz o mesmo nome, mas a
são os homens em geral que pensam, nem mesmo os propriedade que alguns sociólogos reconhecem como
indivíduos isolados, mas os homens dentro de certos “característica de certas sociedades e particularmente
grupos que elaboram um estilo peculiar de pensa- das sociedades industriais modernas: nessas sociedades,
mento graças a uma série interminável de reações a o indivíduo é considerado uma unidade de referência
certas situações típicas, características de sua posição fundamental, tanto para si mesmo como para a
26
comum”. A apreensão e a realidade, a sensibilidade sociedade. É o indivíduo que decide sobre sua profissão,
e o entendimento, categorias que dominam nossa que escolhe seu cônjuge. Sua autonomia é maior do que
concepção espacial e temporal, manifestada através 29
nas sociedades tradicionais”. Na realidade, o gênero de
de uma idéia de antropometrismo desde Vitrúvio até individualismo a que se pode referir o substrato
os dias atuais, em algumas épocas com muita força, ideológico dos praticantes da profissão da arquitetura
em outros momentos sem muita convicção. A visão não é apenas o das sociedades industriais modernas mas,
estética social baseia-se em princípios matemáticos, igualmente aquele tipo de individualismo que caracteriza
mesmo que estes sejam guiados por idéias a emancipação dosartistasno advento da Renascença.
apriorísticas. Em princípio, a análise sociológica repele a perspec-
tiva individualista. Louis Dumont expõe a principal
25
KANT. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Coleção Os Pensadores. Nova Cultural, 1997. p.41-43.
26
MANNHEIM, Karl, 1952, p.3.
27
CANEVACCI, Massimo. Dialética do indivíduo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p.41.
28
Idem. Dialética do indivíduo. p.8.
29
BOUDON, Philippe ; BOURRICAUD, François. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 1993. p.285.

14
dificuldade desta análise: “a apercepção sociológica atua numa forma própria de heroísmo. Há um nexo entre
contra a visão individualista do homem. Conseqüência os conceitos de “individualismo”, “egoísmo-do-
imediata: a idéia do indivíduo constitui-se num criador” e “vontade-de-poder”, como pode ser
30
problema para a sociologia”. Podemos verificar em demonstrado.
Émile Durkheim referências ao fenômeno do
individualismo, porém sob o nome de egoísmo; “por Comecemos pelo último conceito. Dependendo da
egoísmo, palavra que não se deve (ou antes, que nem ótica da abordagem, o estudo do fenômeno “poder”
sempre se deve) entender no sentido moral, pode ter um cunho sociológico ou metafísico. Falamos
Durkheim designa a importância da autonomia aqui de uma metafísica do poder, e de sua incorporação à
concedida ao ego, isto é, ao indivíduo, na ‹escolha› de arquitetura. Os conteúdos metafísicos não são
seus atos e crenças”.
31
estranhos à arquitetura erudita, e esta observação vale
para todas as épocas. Mesmo de modo não-intencional,
Segundo a concepção durkheimiana, algumas o arquiteto muitas vezes incorpora à matéria
culturasimpõem aosindivíduosnormas, regrasevalores inanimada certos significados que transcendem ao
transcendentes; nessas sociedades, o egoísmo mero registro da pauta programática. Por outro lado,
enfrentará mais obstáculos que aqueles encontrados nas também a sintaxe construtiva se presta, às vezes, ao
coletividades que outorgam à liberdade de escolha ao papel de comunicar significados que escapam ao
indivíduo, subentendida a submissão deste às normas, âmbito dos requisitos de racionalidade mecânica. A
regras e valores de conteúdo mais geral, que não lhe história da arquitetura erudita de todas as épocas está
retirem inteiramente a capacidade de operar algumas repleta de exemplos que ilustram essa percepção.
escolhas. Todavia, o desenvolvimento do egoísmo Pode acontecer que, sem que seja intenção do
não depende somente de variáveis culturais, mas é, construtor, a forma ar quite tônica suscite
geralmente, uma função do grau de integração dos associações de imagens e de temas abstratos
grupos sociais de que o indivíduo faz parte. vinculados à filosofia, aos costumes predominantes,
à hierarquia social e, enfim, à estrutura política
Apesar destas concepções acerca do vigente.
individualismo, mesmo sob a roupagem de um processo De acordo com Herbert Read, quando discorrendo
criativo, há o envolvimento de um sentido de sobre as diferenças entre a arquitetura erudita e a
dominação, uma inclinação para a preponderância, o arquitetura primitiva,observa que
triunfo num conflito de vontades. A idéia de que exista o ponto em que o intelecto deve
animá-la e inspirá-la — aí temos a
um egoísmo da criação pode conflitar com certas introdução de um fator que já não é
concepções ideológicas do fenômeno artístico. É neste materialista e cuja influência é
aspecto que recorremos à interpretação de Friedrich imperativa. A arquitetura, para
Nietzsche e seu Übermensch (super-homem). Vontade fugir ao primitivo, ao infantil, ao
e poder, vontade de poder: Wille zur Macht. Fora do arcaico, deve ser inspirada pelas
condições intelectuais, abstratas,
quadro da coexistência civil, no plano específico do espirituais — considerações que
imaginário do artista, a vontade de poder de modificam as exigências rigorosas
Nietzsche torna-se a ideologia do criador. Assim, a da utilidade.32
auto-suficiência do artista moderno, instaurada na
época do Renascimento, converte-se, na sua visão,
30
DUMONT, Louis. Homo hierarquicus. O sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 1992. p.56.
31
Idem. Dicionário crítico de sociologia. p.285.
32
READ, Herbert. As origens da forma na arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p.105.

15
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

Não é estranho, portanto, que estudiosos da da conexão que alega existir entre arquitetura gótica
arquitetura procurem discernir, nos edifícios mais e escolástica, busca demonstrar tal conexão de uma
representativos de cada ciclo histórico, o conteúdo tertium comparationes. Por meio desta argumentação, o
temático abstrato que veiculam — ou deveriam autor refere-se à preocupação em caracterizar o
veicular —, mesmo que este conteúdo seja uma pensamento escolástico, isto é, a “explicação”
criação do próprio estudioso. Erwin Panofsky, por (manifestatio) da coerência dos conteúdos da fé e da
exemplo, pretendia que a construção da catedral razão, e defende a idéia segundo a qual tal princípio
gótica fosse uma transcrição, sobre a pedra, do comparece também na arquitetura das catedrais,
sistema escolástico e da doutrina da Summa materializando-se por intermédio de uma “lógica
Theologica de São Tomás de Aquino. Para visual”.
Panofsky “...foi na arquitetura onde o hábito da
clarificação logrou seus maiores triunfos. Assim A metafísica do poder se expressa na arquitetura
como o princípio da manifestatio regia a alta erudita quando esta reflete certos aspectos da
escolástica, o que pode chamar-se 'princípio da estrutura política e social. O papel comunicativo da
33
transparência' regeu a arquitetura do alto gótico”. arquitetura é um fenômeno demasiado estudado, e
permite o estabelecimento de um vínculo temático
No início de seu estudo, o autor faz um com a questão do poder. Há uma identidade
paralelismo temporal entre a arte medieval e a teleológica entre a manifestação visível do poder
filosofia escolástica; a seguir, observa que tanto a instituído e determinados conteúdos temáticos da ar-
arquitetura gótica e o pensamento escolástico quitetura hierática de todos os tempos. A
surgiram numa região que forma um círculo de socialização de suas finalidades estabelece um
cento e cinqüenta quilômetros que tem Paris como vínculo entre política e arquitetura erudita; como ob-
centro. No segundo capítulo do livro, Panofsky serva Thomas Ransom Giles:
estabelece uma conexão entre filosofia e arte que
transcende ao simples paralelismo temporal, a saber, A manifestações do fenômeno
uma relação de causa e efeito. Partindo da concepção do poder são incalculáveis, mas
todas elas assumem caráter
de que a escolástica teria monopolizado a «formação político em função da
intelectual», o autor enuncia a tese de que esta socialização da sua finalidade. O
circunstância teria produzido um «hábito mental» poder é um instrumento que só
que influenciava o ensino e as letras, e que tinha um encontra sua razão de ser no
alcance abrangente, que atingia, inclusive, os objetivo ou nos objetivos em
função dos quais a sociedade é
mestres-de-obras medievais, que seriam dotados de constituída.34
significativa formação intelectual. Na realidade,
segundo a teoria de Panofsky, os mestres-de-obras Considero que, neste mesmo sentido, Geoffrey
medievais eram os precursores da escolástica. O que Scott afirmou que “o ideal do Renascimento foi o
Panofsky tem em mente é o pensamento consciente poder: uma ampliação da consciência do poder e um
dos escolastas, bem como dos mestres-de-obras alargamento de seu âmbito; e Grécia e Roma se
medievais, que, segundo ele, brota de um mesmo converteram quase por necessidade em sua imagem
modus essendi. Como Panofsky não exibe evidências e símbolo”.35

33
PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p.35.
34
GILES, Thomas Ranson. Estado, poder, ideologia. São Paulo: E.P.U, 1985. p.1.
35
SCOTT, Geoffrey. Arquitectura del Humanismo. Barcelona: Barral, 1970. p.159. Tradução nossa.

16
Scott pensava na Grécia e em Roma como como já resumiu David Jacobs, “a arquitetura da
protótipos uma expressão mais refinada do poder, Renascença e do Barroco transformou-se na
que se materializa no conceito de autoridade; por arquitetura da auto-exaltação; ela foi construída por
que poucos sistemas arquitetônicos espelham tão príncipes, papas, reis e aristocratas para seu próprio
39
bem o conceito de autoridade como o Classicismo. conforto”. Principalmente no sistema barroco, a
Já Max Weber, ensina-nos que “toda dominação se arquitetura é marcada pelo sentido teatral e ce-
manifesta e funciona em forma de governo”.36 Mas o nográfico, concebida para servir de palco para uma
conceito de autoridade não exaure a idéia do poder, perpétua representação, que é a ostentação do poder.
principalmente quando falamos nas diversas formas A temática das relações entre arquitetura e poder —
de autoridade despótica que se inscrevem no quadro poder do cliente e poder do arquiteto — encontra
das instituições políticas. No caso do poder despó- uma ramificação na concepção da arquitetura como
tico, penso que o sistema barroco produziu a arqui- «cenário» para o exercício da autoridade, vista como
tetura mais adequada a lhe servir de cenário. Eugenio a representação de papéis. Isto é bem visível no uso
D'Ors, desenvolvendo a tese segundo a qual “...as exemplar que a monarquia e a aristocracia francesa
formas arquitetônicas de um período histórico dado dos séculos XVII e XVIII fizeram da arquitetura
constituem uma nova manifestação política do barroca; E. H. Gombrich refere-se a esta disposição
mesmo”,37 afirmava que as duas grandes criações do da seguinte forma:
primeiro Renascimento seriam a cúpula e a
monarquia. A tese é atraente, mas não se sustenta Usar os prestígios da arte para
sob pilares sólidos. Nem o Renascimento inventou a manifestar seu próprio poderio
não era monopólio da Igreja
cúpula, nem a monarquia foi inventada nesta época. Romana. Os príncipes
As cúpulas dos séculos XV e XVI cobriam igrejas, soberanos da Europa do século
não palácios. Nem as intrigantes cúpulas das vilas de XVII estavam igual mente
Palladio cobriam tronos, mas as cadeiras de cidadãos desejosos de apregoar seu poder
abonados. No Renascimento, a arquitetura reflete para afirmar sua ascendência
sobre os seus povos. Eles
um gênero de busca do poder, aquele aspirado pelo desejam parecer, em sua glória,
estamento burguês: criatura de espécie superior, ele-
vados por direito divino bem
O humanismo representa neste acima do comum dos mortais.
caso uma ideologia que realiza Isto se aplica particularmente ao
uma função muito determinada mais poderoso monarca dessa
na luta pela emancipação e a é p o c a , o r e i L u í s X I V.
conquista do poder pela camada Magnificência e pompa real eram
social burguesa em progressão para ele a própria essência do
40
ascendente.38 poder.

O despotismo monárquico, forma por excelên- Neste contexto, não se pode negligenciar o fato
cia do poder, é um fenômeno que se manifesta na sua de que sociedade e indivíduo – genial ou não - têm a
plenitude nos séculos XVII e XVIII. E a arquitetura mesma matéria-prima, diferindo apenas no que diz
palaciana desta época refletia essa realidade. De fato, respeito à quantidade e à combinação, ou seja, “as
36
WEBER, Max. Economia y sociedad. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p.701. Tradução nossa.
37
D'ORS, Eugenio. Las ideas y las formas. Madrid: Aguilar, 1966. p.19. Tradução nossa.
38
VON MARTIN, A. Sociología del Renacimiento. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992. p.46.
39
JACOBS, David. Architecture. New York: Newsweek Books, 1974. p.130. Tradução nossa.
40
GOMBRICH, Eric. L'Art et son histoire. Paris: René Juliard, 1967. p.156. Tradução nossa.

17
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

duas coordenadas cultura e sociedade se encontram essencial: a noção de que essa é uma atividade de
no mesmo ponto zero: o indivíduo. O lugar que criação. Procurando sintetizar a manifestação dessa
ocupa o indivíduo no tipo de mundo que descrevem auto-imagem, Eugene Raskin explica que:
os antropólogos é, evidentemente, de importância
41
teórica fundamental”. Temos, igualmente, a conhe- No que diz respeito ao arquiteto,
cida concepção de Weber que afirmou que: arquitetura é acima de tudo um
processo criativo. Ele tem uma
idéia em sua mente, um efeito,
[...] se finalmente me tornei uma emoção, podemos dizer,
sociólogo, o motivo principal é que ele quer expressar em
pôr fim a esses exercícios com ter mos de estr u tura. Sua
bases em conceitos coletivos intenção de avançar além da
cujo espectro está sempre mera utilidade para expressar
rondando. Em outras palavras: a algo com um maior significado
sociologia também só pode ter humano é arquitetura, para ele, a
origem nas ações de um, de despeito do êxito ou malogro de
alguns, ou de numerosos indiví- sua consu mação. Para o
duos distintos. É por isso que ela arquiteto, em síntese, arquitetura
é obrigada a adotar métodos é um assunto subjetivo, que
estritamente individualistas.42 depende de seu propósito. O
elemento propósito, assim
Assim, a partir das contribuições de Weber, sendo, deve encontrar seu lugar
constitui uma observação interessante aquela feita em nossa definição de ar-
45
por Wright, ao referir-se à plausibilidade de um quitetura.
“individualismo metodológico marxista”, como
desenvolvimento da idéia segundo a qual “o que vale É fácil verificar que a profissão do arquiteto, ao
a pena ser levado a sério no pensamento marxista implicar a transformação intencional da matéria e do
possa ser reconstruído segundo o modelo do indi- ambiente, exige criatividade. E a criatividade é uma
43 qualidade valorizada na cultura ocidental moderna.
vidualismo metodológico”.
A atividade de criação aqui referida - que combina
Dentro de uma perspectiva individualista,
espontaneidade com expressão da personalidade - é
entretanto, pode-se considerar que “a própria
a conceituada na cultura ocidental a partir do século
sociedade existe apenas na medida em que é
XV, como resultado do processo de emancipação do
evidenciada e compreendida pelos indivíduos. O que
artista: “a espontaneidade do indivíduo é a grande
determina o comportamento do indivíduo não são
experiência, o conceito de genialidade e o ideal da
tanto influências sociais que o moldam diretamente
obra de arte como expressão da personalidade
e o manipulam como se fosse um fantoche, e sim sua 46
interpretação e percepção dessas influências”. 44 genial, a grande descoberta do Renascimento”. É
Desenvolvendo esta idéia, constatamos, na pesquisa interessante observar que, de modo mais manifesto,
exploratória antes aludida, que o imaginário da o individualismo se integra à personalidade do
profissão na arquitetura tem um componente profissional da arquitetura justamente no

41
NADEL, S.F. Fundamentos de antropología social. México: Fondo de Cultura Econômica, 1985. p.106. Tradução nossa.
42
WEBER, Max, 1992, p.1. Tradução nossa.
43
WRIGHT, Erik O.; LEVINE, Andrew,; SOBER, Elliot. Reconstruindo o marxismo: ensaios sobre a explicação e teoria da
história. Petrópolis, Vozes, 1993. p.190.
44
BERRY, David. Idéias centrais em sociologia. Uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. p.29.
45
RASKIN, Eugene. Architecturally speaking. New York: Reinhold, 1954. p.8-9. Tradução nossa.
46
HAUSER, Arnold. A arte e a sociedade. Lisboa: Presença, 1984. p.50.

18
Renascimento, quando o incipiente capitalismo Seu texto não requer exegese, pois expressa
italiano começa a configurar a cultura da época, com claramente o que o autor pretende dizer. Um
ênfase na cultura artística. Como sintetiza Elias profissional dotado dos atributos que Alberti
Cornell, “já na época de Brunelleschi se dão feitos visualiza no seu arquiteto seria, na sua capacidade
que rapidamente transformam hábitos de criativa, para todos os efeitos, infalível, e digno de
construção no seu oposto. A arte de construir é inveja e êmulo para os colegas. E, como enfatiza
47
atribuída a indivíduos individualistas” . Podemos Alberti, em nada comparável a pedreiros ou
identificar no pensamento humanista dos séculos carpinteiros. Como enunciei acima, encontramos
XV e XVI o embrião daquilo que hoje também no discurso dos humanistas uma primeira
denominamos pensamento moderno, por oposição idéia do pensamento moderno, a separação entre
ao pensamento medieval e arcaico. Efetivamente, dois reinos ontológicos: o mundo natural, objeto de
Alberti, no prólogo de seu De Re Aedificatoria, contemplação e transformação pelo homem, e o
texto instaurador da literatura temática da mundo humano, que consiste em um conjunto de
arquitetura, estabeleceu um sintético “perfil” do liberdades individuais, destinadas a construir, com
profissional a que designa como arquiteto: sua ação, seu próprio mundo. Como resume Luis Vi-
lloro, “essa idéia entranha a idéia do homem como
Mas antes de prosseguir, indivíduo inamovível. Um dos rasgos do pensamen-
entretanto, devo explicar to moderno será, desde então, esse individua-
exatamente a quem me refiro 49
como arquiteto: pois não será
lismo”.
um carpinteiro que eu
equipararei aos mais capacitados 4 CONCLUSÕES
mestres em outras ciências; o
carpinteiro nada mais é que um
instrumento nas mãos do Para o indivíduo que cria a diferença, ou que se vê
arquiteto. Chamarei de arquiteto como capaz de fazê-lo, ou que espera ser
aquele que, através de acurados e reconhecido como alguém apto a fazê-lo, marcar sua
maravilhosos razão e método, é própria individualidade, ainda que romanticamente,
capaz, com o pensamento e a
invenção, de conceber e, com
é um recurso de sobrevivência. Sem exagero,
execução, de realizar todas estas podemos afirmar que na arquitetura, como em
obras as quais, por intermédio do outros campos que exigem criatividade, o modelo
movimento de grandes massas, e por excelência do arquiteto é o gênio. O gênio é
da conjunção e reunião dos sempre uma individualidade. O uso deste conceito
corpos, podem, com a maior
beleza, se adaptar ao uso do
na caracterização de artistas provém, como nota
gênero humano; e, para estar Erwin Panofsky da revolução cultural ocorrida nos
apto a fazê-lo, ele deverá ter um séculos XV e XVI:
pleno conhecimento das mais
nobres e mais curiosas ciências. A teoria da arte do
48
Assim deve ser o arquiteto. Renascimento, vinculando a
produção da Idéia à visão da

47
CORNELL, Elias. A expressão arquitetônica da contradição entre a cidade e o campo no capitalismo pré-industrial». In:
Arquitetura e conhecimento. Brasília: Alva, nº3, 1996. p.93.
48
ALBERTI, Leon Battista. Texto Original de 1485. Tradução nossa. p.3.
49
VILLORO, Luis. El pensamiento moderno. Filosofía del Renacimiento. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992.
p.34. Tradução nossa.

19
Antropometria, individualismo e genialidade na tratadística do renascimento italiano

natureza, e situando-a doravante particular e humano-genérica.


numa região que, sem ser ainda a Em outras palavras: o ente
da psicologia individualista, já singular humano sempre atua
não era a da metafísica, dava o segundo seus instintos e
primeiro passo em direção ao necessidades, socialmente
reconhecimento daquilo que nos formados mas referidos ao seu
habituamos a chamar de 'Gênio'. Eu, e, a partir dessa perspectiva,
Aliás, os pensadores do Pré- percebe, interroga e dá respostas
Renascimento desde o início à realidade; mas, ao mesmo
havia pressuposto, em face da tempo, atua como membro do
realidade do objeto de arte, a gênero humano e seus
realidade subjetiva do artista … 50 sentimentos e necessidades
possuem caráter humano-
O conceito de gênio é útil para fins de explicar- genérico.52
mos o caráter normativo dos grupos de referência. À
O percurso feito pela teoria da arquitetura no
essa circunstância se aplica, mutatis mutandi, a obser-
Renascimento pode ter tomado como parâmetro
vação de Merton sobre a abordagem teórica do papel
para compreensão da relação entre o homem e a
do gênio no campo da ciência, enfatizando que:
sociedade na atualidade. As concepções
Ao conceber o gênio científico
arquitetônicas e urbanísticas dos tratadistas dos
como um indivíduo que séculos XV em diante sofreram influência das
representa por si só o concepções de tempo e espaço desde então. Os
equivalente funcional a uma princípios arquitetônicos do Renascimento foram
quantidade e uma variedade de inspirados em conceitos que pretendiam dar unidade
talento freqüentemente menor, a
teoria sustenta que o gênio
à arquitetura e relacioná-la com a cidade e a natureza
desempenha um papel destacado ao seu redor. Isto só foi possível graças à mudança do
no avanço da ciência e às vezes juízo estético, ocorrida ao longo dos séculos XV e
também, pela excessiva XVI. A idéia de tornar o homem o centro do
autoridade que lhes atribui, trava universo refletiu um novo ideal, no qual a unidade
51
seu ulterior desenvolvimento.
entre este e a natureza incorporou também a cidade e
a arquitetura. Neste mesmo grupo de pensadores
Concluindo o presente estudo, podemos dizer
estão Alberti, Filarete e Giorgio Martini. Nos
que a incorporação à sociedade através do
tratados de Serlio, Palladio e Vignola não se encontra
individualismo é a mesma modalidade de in-
mais a idéia de a unidade entre arquitetura e cidade
corporação de que nos fala Agnes Heller:
que havia nos tratados de Alberti, Filarete e Martini,
Com efeito, a individualidade
contudo, mantém-se a idéia de antropometrismo
humana não é simplesmente arquitetônico e urbanístico. A constante relação
uma 'singularidade'. Todo entre edifício e espaço urbano e entre arquitetura e
homem é singular, cidade deve fazer parte do entendimento e da
individualmente, e, ao mesmo apreensão social. A cidade é a expressão máxima da
tempo, ente humano-genérico.
Sua atividade é, sempre e simul-
capacidade humana. A questão posta neste estudo
taneamente, indi vidual- pretende reacender a idéia de que há uma qualidade

50
PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito do belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p.67.
51
MERTON, Robert King. Sociología de la ciencia. Madrid: Alianza Universidad, 1977. p.476. Tradução nossa.
52
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p.80.

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na arquitetura e na cidade que está além dos estilos e
linguagens arquitetônicas; algo que varia com o GILES, Thomas Ranson. Estado, poder, ideologia. São
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tempo e o espaço, que é a sine qua non da qualidade
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