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Cadernos do Ateliê. Vol.1, n.2, fascículo 3, 2019.

A História Antropológica de um Ponto de Vista Tecnológico

Ensaios de Antropologias das Técnicas e dos Objetos Técnicos

Fascículo 3. Nota sobre as relações entre tecnologia e sociologia

André Leroi-Gourhan

ISSN: 2596-2566

https://ateliedehumanidades.com/cadernos-do-atelie/
CADERNOS DO ATELIÊ

Plano de convergência

Tecnociências & Sociedade:


Interflúvios e porvires da Máquina, da Vida e do (Pós-)Humano

A História Antropológica de um Ponto de Vista Tecnológico

Ensaios de Antropologias das Técnicas e dos Objetos Técnicos

A presente série, publicada em fascículos pelos Cadernos do Ateliê de Humanidades,


tem o propósito de disponibilizar ao grande público ensaios de antropologia das tecnologias.
Ela se propõe a publicar, principalmente, traduções de textos clássicos da história da antropologia
(e de suas ciências irmãs, como a arqueologia e etologia) que tenham assumido uma posição do
‘‘ponto de vista tecnológico’’.Pretendemos trazer também ensaios contemporâneos
que trabalham com uma abordagem antropológica das técnicas, dos objetos técnicos e das tecnologias.

Fascículo 3. Nota sobre as relações entre tecnologia e sociologia

André Leroi-Gourhan

ISSN: 2596-2566

Cadernos do Ateliê. Vol.1, n.2, fascículo 3, 2019.


Apoiadores do Ateliê de Humanidades
1

André Leroi-Gourhan,
a ciência do homem informada pelo testemunho
das técnicas1

André Magnelli

André Leroi-Gourhan (1911-1983) é pouco conhecido


entre nós, filósofos e cientistas sociais do Brasil. Quando
reconhecemos seu nome, isso se deve menos ao fato de
termos um conhecimento de seus trabalhos e mais por
causa daqueles que se lhe confessam tributários, como
Jean-Claude Kaufmann, Laurent Thévenot, Nicolas
Dodier, Gilbert Simondon, Edgar Morin e Bruno Latour.
Pesquisador de pré-história, de etnologia, de zoologia
animal e de geografia humana, Leroi-Gourhan possui um
importante papel na formação da antropologia das
técnicas e dos objetos técnicos na França.2
Tendo sido diplomado, inicialmente, em russo e
depois em chinês, ele ingressou na etnologia, na qual

1
GAUCHER, Gilles. (1987) André Leroi-Gourhan, 1911-1986. Bulletin
de la Société préhistorique française, tome 84, no 10-12. p. 302-315.
Gilles Gaucher foi pesquisador colaborador de Leroi-Gourhan,
membro do Laboratório de etnologia pré-histórica do C. N. R. S.
2
Fala-se, hoje, de uma "escola francesa de etnologia das técnicas",
mais conhecida em países anglo-saxônicos e na Itália do que na
própria França; até onde sabemos, ela também é desconhecida no
Brasil. Ver o verbete francês sobre Leroi-Gourhan do Wikipedia para
maiores informações sobre suas influências contemporâneas.
2

conheceu, por intermédio de seu mestre Marcel Granet, o


antropólogo Marcel Mauss, cujos ensinos na École
Pratique des Hautes Études e no Institut d’Ethnologie
foram seguidos por ele. Além disso, enquanto cumpria a
função de “bibliotecário auxiliar”, ele assistiu de dentro à
aventura de transformação do antigo Musée
d'ethnographie du Trocadéro em Musée de l’Homme
(fundado em 1937), um marco da antropologia francesa
liderado por Paul Rivet. Entre 1937 e 1938, partiu para
uma estadia no Japão, que foi importante em sua
formação, onde conheceu as técnicas artesanais e as
artes japonesas, tendo recolhido 1500 objetos
destinados a museus franceses.
Leroi-Gourhan foi muito ativo profissional e
intelectualmente, contribuindo não apenas para as
pesquisas francesas em seu vasto campo
interdisciplinar, como também para a formação de
profissionais e a constituição de instituições e práticas
científicas. Passando pelas principais instituições
culturais e científicas – École Pratique des Hautes
Études, Institut d’Ethnologie, Musée de l’Homme, Collège
de France, Centre National de Recherches Scientifiques
(C. N. R. S.) e Sorbonne – foi protagonista na construção
institucional do ensino, da pesquisa, do método e da
documentação em pré-história e arqueologia.
Leroi-Gourhan tentava mostrar nos seus cursos
“como a tecnologia a mais concreta conduzia
indubitavelmente à etnologia mais geral, como o estudo
3

das ferramentas e das máquinas acarretava o das


estruturas sociais, após o das mentalidades e crenças”.3
Ele tinha aversão ao ensino meramente teórico e, por
isso, “como não podia levar seus estudantes para a África
ou a Ásia, vai lhes fazer realizar escavações”. 4 Tendo tido
contato primeiramente com o cemitério merovíngio,
passou a participar da escola de escavação de Arcy-sur-
Cure (Yonne)5, contribuindo, nestas atividades, para a
renovação das técnicas arqueológicas.6

Uma obra de história antropológica de um ponto de


vista tecnológico

Não há talvez obra mais próxima da proposta de


nossa série sobre a "história antropológica de um ponto

3
GAUCHER, Gilles. op. cit. p. 306.
4
Ibid. p. 305.
5
Lá, ele começa por trabalhar na caverna do Cavalo, onde foram
descobertas em 1946 gravuras paleolíticas; depois vai,
sucessivamente, para a escavação da caverna do Lobo, a caverna
da Hiena e caverna da Rena (em 1949).
6
“A escola de escavação de Arcy se torna rapidamente célebre. Na
época, os pré-historiadores ainda são, na maioria das vezes,
pessoas que contratam alguns escavadores para escavar
verticalmente com picareta e pá, sem fazer planos; os mais
esclarecidos mostram apenas as estratigrafias extraídas; aliás, é o
estabelecimento da sucessão dos níveis de ocupação que os
preocupa. Leroi-Gourhan ensina, de forma completamente diferente,
a necessidade de extrair de forma minuciosa os elementos, de fazer
o plano antes de seguir adiante, de estudar a disposição dos
vestígios…” (GAUCHER, Gilles. op. cit. p. 307).
4

de vista tecnológico" do que a de Leroi-Gourhan. Ele


desenvolveu uma análise da hominização e da evolução
do humano a partir do reconhecimento de uma
autonomia relativa das ações e dos objetos técnicos. Ao
invés de reduzi-los ao social, ao histórico ou ao político,
Leroi-Gourhan buscou desvendar a lógica própria das
técnicas, articulando-a, ao mesmo tempo, com a
evolução biológica e a evolução social.
Seu primeiro grande livro sobre o tema foi Évolution
et Techniques, publicado em dois volumes: L’homme et
la matière (1943) e Milieu et techniques (1945). Nele,
percebemos o quanto seu esforço se aproxima daquele
feito por Marcel Mauss no capítulo sobre tecnologia do
Manuel d’ethnographie (capítulo 4).
No seu Manual, Mauss fez uma organização dos
fatos técnicos classificando-os em categorias, em uma
taxonomia que incluía não apenas as famosas “técnicas
corporais”, como também as “técnicas gerais para usos
gerais” – as físico-químicas (em especial o fogo) e as
mecânicas (ferramentas, instrumentos e máquinas) –;
“as técnicas especiais para usos gerais ou indústrias
gerais para usos especiais” (como cerâmica, cestaria
etc.); e “as indústrias especializadas para usos especiais”
– onde incluiu as técnicas de consumo (como
alimentação), as indústrias de aquisição (coleta, caça e
pesca), de produção (pecuária e agricultura) e de
proteção e conforto (vestuário, habitação e transporte).
5

Da mesma forma que seu professor, Leroi-Gourhan


empreendeu após quase duas décadas, em Évolution et
Techniques, uma classificação das técnicas, só que com
a construção de uma sistemática teórica e uma
reorganização do quadro maussiano, tendo por base um
estudo documental e sistemático mais amplo. No
primeiro volume, L’homme et la matière (1943), ele
estuda as técnicas de fabricação, a partir do qual
estabelece os “meios elementares da ação sobre a
matéria” – percussão, fogo, água, ar e força –7; e no
segundo volume, Milieu et techniques (1945), ele se volta
para as técnicas de aquisição (armas, caça, pesca,
pecuária, agricultura, mineração e siderurgia) e de
consumo (alimentação, vestuário e habitação).8
Trata-se aí de um esforço de compreensão do
universo técnico-econômico, que tem como ponto de
partida o estudo e a classificação dos instrumentos, dos
produtos e das ações pelos quais o homem fabrica a
partir de matérias brutas oferecidas por um meio à sua
atividade técnica (o meio técnico). Ele constrói toda uma
sistemática a partir da qual organiza o material empírico,
desenvolvendo noções como as de fatos técnicos,
tendências técnicas e meios técnicos. Para ele, as

7
Elas equivalem, em grande parte, às “técnicas gerais para usos
gerais” de Mauss.
8
Categorias que dão outra organização para as técnicas agrupadas
por Mauss nas categorias de “técnicas especiais para usos gerais ou
indústrias gerais para usos especiais” e “as indústrias
especializadas para usos especiais”.
6

técnicas formam uma cadeia operatória que liga o


homem a seu meio. A noção de meio técnico permite
estudar a lógica da esfera técnica, como mediadora entre
meio interior (o organismo) e o meio exterior; esfera que
possui uma lógica própria, com fatos e tendências de
desenvolvimento passíveis de serem analisadas.
Neste sentido, além de realizar uma sistemática,
Leroi-Gourhan aborda problemas relativos às origens e
difusões das técnicas, tratando das formas de invenção
e de empréstimos, de inércias e de progressos técnicos.
O resultado é a realização dos primeiros passos para
uma paleontologia das técnicas, uma antropologia
econômica e uma tecnologia comparada.
Como o texto aqui traduzido é quase contemporâneo
do Évolution et Techniques, tendo sido escrito apenas
três anos depois do segundo volume, consideramos que
não é espaço aqui para discorrermos sobre os outros
livros da vasta obra do autor (o que pretendemos fazer
em outros fascículos de nossa série). Por ora, basta
sinalizar que a obra ulterior de Leroi-Gourhan se
desdobra em duas frentes maiores (e outra menores,
como a zoologia animal e humana): de um lado, os
estudos sobre arte pré-histórica e, de outro, os estudos
sobre as técnicas humanas em sua relação com o gesto
e a linguagem.
Neste sentido, Leroi-Gourhan publica em 1965 sua
magnum opus em dois volumes: Le geste et la parole, vol.
1, Technique et langage (1965), vol. 2, La mémoire et les
7

rythmes (1965). Nesta obra de suma importância para os


propósitos de nossas investigações, Leroi-Gourhan faz
com que sua "paleontologia da ferramenta" se articule
com uma “paleontologia do gesto e dos símbolos”,
aperfeiçoando seu conhecimento dos meios
elementares da técnica com a análise da cadeia
dinâmica de impulsão, transmissão e ação, assim como
pelo uso de noções como de máquina, cadeias
operatórias, programa e memória.

Uma tecnologia comparada para as ciências do


homem

Nota sobre as relações entre Tecnologia e Sociologia


(1948) é um ensaio situado no que Leroi-Gourhan
denomina de “tecnologia comparativa”. Ele se inicia em
diálogo direto com o supramencionado Manual de
Etnografia de Mauss, que tinha acabado de ser
publicado.9
Situando-se na linha evolutiva do pioneirismo de
Mauss, Leroi-Gourhan trata da relevância da “ciência das
técnicas” (isto é, de uma tecnologia) para a compreensão
dos fenômenos históricos, culturais e civilizacionais. A
tecnologia tem um importante papel de “ciência dos
testemunhos” materiais e técnicos das civilizações
humanas e da história do homem. Contudo, para que ela

9
MAUSS, Marcel. (1926) Manuel d’ethnographie (publicado
originalmente em 1948), op. cit.
8

se desenvolva, é preciso uma metodologia científica. Este


texto do jovem Leroi-Gourhan é um esforço de situar os
termos metodológicos de tal investigação. Ele indica que
isso é feito por meio de três orientações: (a) um trabalho
de exegese histórico-crítica dos testemunhos técnicos,
que permita efetuar uma interpretação dos documentos
materiais; (b) uma sistemática teórica dos fatos técnicos;
e (c) um estudo das transformações históricas das
técnicas.
Ressaltam-se aqui alguns pontos importantes.
Primeiramente, ele defende a indissociabilidade entre as
orientações metodológicas, o que demanda um trabalho
interdisciplinar onde os tecnólogos unem seus esforços
aos ramos literário, filosófico e sociológico, trazendo um
aparato técnico-científico para descrever os objetos em
sua materialidade físico-química e em sua forma e
função. Assim, para que se desenvolva adequadamente,
a sistemática teórica depende deste estudo científico e
criterioso dos objetos técnicos.
Em segundo lugar, percebe-se que as duas
abordagens estão articuladas a uma preocupação
histórica; mais ainda, é afirmado que a compreensão do
presente está articulada a uma investigação histórica de
longa, ou mesmo longuíssima, duração. As ciências do
homem devem ser compreendidas como ciências
históricas; e a crítica dos documentos históricos permite
que esta evidência seja reafirmada. Toda etnologia – e
acrescentaríamos sem dificuldades, toda sociologia –
9

que não abandona o humano em sua complexidade,


acaba por cair em questões históricas. Uma ciência do
homem tem que se fundamentar não apenas nos
saberes etnológicos e históricos, mas também na
arqueologia e na pré-história.
Ora, essas últimas lidam não tanto com documentos,
mas muito mais com vestígios artísticos e técnicos: de
um lado, as figurações artísticas, de outro, os artefatos
técnicos. Portanto, uma grande parte da história humana
deve ser interpretada por uma tecnologia histórico-
comparada. Isso põe no centro o conhecimento da
diversidade das experiências corporais e dos objetos e
das técnicas. Todavia, o principal está em outro lugar, a
saber, a defesa de uma relação recursiva, ao mesmo
tempo independente e complementar, entre a tecnologia
e a sociologia.
Em poucas palavras, a tecnologia não pode ser
reduzida a uma “sociologia da tecnologia”, pois, tal como
os linguistas fizeram com a construção do objeto língua,
a tecnologia deve organizar, por meio do estudo
documental e sistemático, o mundo da atividade
material, estabelecendo seus princípios e regras de
transformação. Os objetos técnicos têm sua própria
evolução e, por princípio, possuem características e
tendências universais. Por outro lado, a sociologia
permite conhecer as variações sociais e culturais das
técnicas e dos objetos.
10

Portanto, sendo de certo modo um precursor das


correntes sociológicas contemporâneas, que recuperam,
como Laurent Thévenot e Bruno Latour, a importância
dos objetos para as associações humanas, Leroi-
Gourhan nos deixa como lição as colaborações
recíprocas entre tecnologia e sociologia, em que os
testemunhos técnicos nos informam sobre o meio em
que vivem os seres humanos e os modos como vivem,
tanto dos que nos antecederam quanto dos que nos são
contemporâneos:
Não é menos indispensável para quem estuda a ferramenta ir ao
encontro do homem que a utiliza, do que é necessário para
aquele que coloca o indivíduo em sociedade sustentar em
segurança os testemunhos [técnicos] que o rodeiam.
11

Nota sobre as relações entre


Tecnologia e Sociologia (1948)

André Leroi-Gourhan1

É tarefa difícil fazer um balanço de uma disciplina


sem passado e situar a Tecnologia Comparativa nas
Ciências Humanas. A recente publicação do Manual de
Etnografia de Marcel Mauss2, cuja primeira parte é
dedicada às técnicas, reabre para mim a perspectiva dos
anos em que eu procurava, por trás de uma exposição
[feita em aulas] em que os erros não eram raros, o
pensamento tecnológico daquele que guiou a maioria de
nós.
O que Mauss pensou sobre a Tecnologia é simples e
permanece verdadeiro. Ele sentiu a necessidade absoluta
de o etnólogo (que para ele era implicitamente o
sociólogo) observar, o mais rigorosa e cientificamente

1
[Nota de tradução, N. T.] Este texto é tradução do original: LEROI-
GOURHAN, André. Note sur les rapports de la technologie et de la
sociologie L’Année sociologique (1940/1948-), Troisième série, T.2
(1940-1948), p.766-772. Tradução de Maryalua Meyer e revisão de
André Magnelli e Thiago Cabrera.
2
[N. T.] MAUSS, Marcel. (1926) Manuel d’ethnographie. Paris:
Éditions sociales, 1967 (publicado originalmente em 1948).
Disponível no site Les classiques en sciences sociales, da
Universidade de Québec (aqui).
12

possível, os fatos da atividade material. Ele sentiu que


uma ciência dos testemunhos devia existir. Ele via nessa
ciência uma estrutura classificatória rigorosa, de certa
forma lineana.3 Este quadro ele não nos deu, mas soube
sugeri-lo usando as divisões já aceitas da indústria
humana. Basta comparar O Homem e a Matéria4 com
seu Manual [de Etnografia] para constatar que, em quinze
anos de remanejamento, as principais divisões
permanecem na Tecnologia atual; esse quadro, que já é
evidente no velho Ratzel 5, é lógico demais para não servir
ainda; Mauss o melhorou, depois o transmitiu para que
seja adaptado às pesquisas atuais
Sob a forma que lhe preservaram no Manual, o texto
de seu curso de Tecnologia enfatiza apenas a
necessidade de a Etnologia se abrir à crítica de
testemunhos materiais: sessenta e cinco erros
permanecem nas quarenta e cinco páginas do texto e, se

3
[N. T.]: O autor alude a Carl von Linné (1707-1778), botânico,
zoólogo e médico sueco, criador da nomenclatura binomial e da
classificação científica, sendo assim considerado o "pai da
taxonomia moderna", querendo dizer que Mauss propunha, tal como
na zoologia, uma rigorosa taxonomia das tecnologias.
4
[N. T.] Livro do próprio autor: LEROI-GOURHAN, André. (1943)
L'Homme et la Matière: Évolution et Techniques. Paris, Albin Michel.
5
[N. T.] O autor se refere a Friedrich Ratzel (1844-1904), geógrafo e
etnólogo alemão, notável por ter criado o termo Lebensraum
("espaço vital").
13

fosse necessário realçar a utilidade da Tecnologia, esse


exemplo seria suficiente.
Como a Tecnologia é vista? Não pode ser um
complemento menor ao estudo do homem, uma coleção
de curiosidades técnicas classificadas. Assim como a
História não pode ser concebida sem a crítica dos textos,
a Etnologia não pode ser aceita sem a crítica dos
testemunhos materiais. Seria talvez possível, numa parte
das Ciências do Homem que abrangesse valores mais
universalmente humanos, sentir a verdade através de
documentos falsos; é impossível basear a História dos
homens em dados aproximados.
A Tecnologia6 parece ter um papel primeiro, capital:
desmascarar os testemunhos falsos, os objetos cuja
universalidade não significa nada, as descobertas
mecânicas que conduzem a tipos convergentes, as
técnicas que só podem se prestar a aproximações em
um espírito que ainda lembra demais a ingenuidade dos
antigos viajantes. A Paleontologia tem começado a saber
distinguir seus fósseis ruins dos bons. Mas a Etnologia
ainda tem um caminho a percorrer.

6
[N. T.] “Tecnologia” deve ser entendida aqui no sentido empregado
por Mauss em As técnicas e a tecnologia, tal como usado na tradição
francesa, enquanto “ciência das técnicas”, e não como “artefato
técnico”. Cf. MAUSS, Marcel. (1941/1948) As técnicas e a tecnologia.
Cadernos do Ateliê, vol. 1, n. 2, fascículo 1 (tradução de André
Magnelli, revisão de Maryalua Meyer e Rafael Damasceno).
14

A crítica dos materiais exige que o esforço se


desenvolva simultaneamente em três vias: a sistemática,
a crítica interna dos documentos e o estudo da evolução
histórica. Cada uma delas progride à medida que as
outras duas são desbastadas; como um todo, elas são
suficientes para as peregrinações de um especialista, e a
Tecnologia pretende constituir uma disciplina em si e não
uma técnica adjuvante [technique d’appoint ].
A sistemática, como em todas as ciências, sofrerá,
periodicamente, revisões. O quadro de Mauss era
suficiente para as necessidades de organização daquilo
que o sociólogo entrevia, há trinta anos, do campo
material. O quadro que propus em 19367 fazia esforço
para introduzir uma compreensão do fato técnico em
função da própria técnica. Seu caráter de ruptura com a
tradição talvez desculpe a insuficiência ainda bastante
perceptível de seus meios. A classificação de Evolução e
Técnica, dez anos depois, tinha para mim um significado
definido: orientar a sistemática das técnicas pela crítica
dos documentos.8 Esta classificação está longe de ser
satisfatória; é preciso que ela espere até que as outras

7
[N. T.] LEROI-GOURHAN, André. (1936) La Civilisation du renne.
Paris, Gallimard.
8
[N. T.] O autor se refere a sua obra em dois volumes: LEROI-
GOURHAN. Évolution et Techniques: vol. 1. (1943) L'Homme et la
Matière, vol. 2. (1945) Milieu et techniques, Paris, Albin Michel.
15

duas vias estejam suficientemente abertas para


progredir.
A crítica dos documentos técnicos é a compreensão
interna de nossos testemunhos. Ela só poderia aparecer
a Mauss como uma abstração, e só se lhe podiam
apreender os meios de uma maneira ainda muito
incompleta. Ela supõe um aparato científico considerável
para a descrição objetiva do objeto em sua forma e em
sua função. Assim posto teoricamente, o problema
parece ser fácil de resolver: na verdade, é tão difícil
descrever a morfologia e a fisiologia de um objeto quanto
as de uma espécie animal, o que supõe uma terminologia
imensa e precisa, centrada em uma sistemática que
libera as características básicas da descrição e elimina
valores supérfluos. Descrever a cerâmica de certo povo
ou descrever uma certa cerâmica pressupõe uma
formação cuja necessidade nem sempre aparece para os
etnólogos; os tecnólogos são chamados a formar um
corpo independente de especialistas de orientação
científica, mas os ramos literário e filosófico de nossa
ciência terão cada vez mais que levar em conta o
documento material e sua interpretação.
Isto é particularmente verdadeiro para a Arqueologia
e a Pré-história, que são Etnologia no sentido mais estrito
e que, mais do que qualquer outra disciplina, precisam da
crítica de materiais. Um exemplo será suficiente para
ilustrar os riscos de uma crítica inadequada: em um
16

artigo recente sobre sepulturas merovíngias 9, um autor,


ademais altamente competente, descreve o conteúdo
enigmático de certas "bolsas" encontradas perto dos
corpos: plaquetas de ferro, fragmento de sílex ou de
rochas duras silicosas, ponta de flecha neolítica cuja
presença é bastante inesperada. Ora, o conteúdo é de
qualquer bolsa de isqueiro da África Negra
contemporânea ou da Europa de dois séculos atrás; a
própria forma de uma das plaquetas de ferro ainda
estava viva há cinquenta anos na Europa Oriental.
Ignorar a natureza exata do testemunho constitui
uma perda para a História do fogo, mas quando o autor
admite o caráter "filactérico" 10 desses objetos, ele
introduz um grave erro no domínio da História das
religiões.
Isso leva à abordagem da terceira via da história da
tecnologia, a de uma crítica ampliada das técnicas que
desemboca diretamente na História. Periodicamente,
perde-se de vista que a Etnologia é uma ciência histórica,
da mesma forma que as Ciências Naturais, e que tende,
não formalmente à História dos Estados e dos Homens,
mas sim a pôr em situações sucessivas o complexo

9
[N. T.] Os merovíngios foram uma dinastia que governou os francos
numa região correspondente à antiga Gália, onde estão localizados
atualmente a França, a Bélgica e uma parte da Alemanha e da Suíça.
10
[N. T.] Caráter filactérico significa a presença de significações
mágicas, ou melhor, a sua representação como amuleto com que se
busca afastar o infortúnio.
17

humano. Nenhum etnólogo abordou seriamente um


problema atual sem entrar na história ou pensar sobre
isso.
Por uma reação saudável contra aqueles que, nos
tempos heróicos, viram em toda parte "origens",
chegamos ao estudo separado dos sucessivos planos da
humanidade e todos estavam um pouco trancados em
seu século, não sem contrair às vezes uma ligeira miopia.
À medida que o documento é fortalecido pela crítica
interna, devemos retornar a uma concepção histórica
das ciências do homem. Isto é mais difícil,
aparentemente, para o sociólogo cujos materiais
desaparecem de geração em geração, mas as ciências
do homem constituem um bloco e, de uma maneira até
mesmo muito indireta, a sociologia se beneficia do
progresso de cada disciplina. É suficiente pensar na
riqueza de imagens antropológicas e tecnológicas
despertadas por um fato da sociologia australiana, para
sentir o que o sociólogo pode obter ao conhecer, através
do especialista, as possibilidades do corpo e da técnica
dos Australianos.
A crítica histórica aparece como um dos campos
férteis da tecnologia; ela supõe a máxima
implementação de seus meios de investigação científica.
Salvo a feliz exceção, além da terceira geração, o
contexto oral está faltando, o contexto escrito é somente
excepcional e toda a história dos Homens é baseada na
crítica de seus vestígios. Se deixarmos de lado a crítica
18

das figurações do historiador da arte, tudo depende da


interpretação tecnológica. Isso vale não apenas as
ferramentas, mas também a todos os objetos, já que sua
significação é compartilhada entre o uso técnico e o
senso social que eles possuem ou possuíram.
Aliás, não é preciso ceder à ilusão e fazer da
tecnologia comparativa um passe-partout melhorado: a
história da cerâmica não será totalmente esclarecida por
uma uma análise físico-química. O laboratório é um
primeiro passo, necessário para fornecer um relatório
[signalement ], mas devemos evitar a criação de falsos
testemunhos: duas fórmulas similares não são
necessariamente comparáveis: as junções [raccords ] no
tempo e no espaço devem assegurar seu parentesco
real. Vernizes de resina são encontrados no Brasil, na
Melanésia e no Norte da África, a identidade do processo
não é um indício de parentesco obrigatório. Por outro
lado, a continuidade pode existir entre fórmulas
dessemelhantes, pelo jogo da marcação de materiais
substitutos.
No início de minhas tentativas de pesquisa histórica,
fiquei particularmente impressionado com as similitudes
existentes entre os povos que trabalham com ossos e
marfim ao redor do Círculo Polar Ártico. Desde então,
pareceu-me que há conexões mais discretas, mas mais
seguras, veladas pela transposição de matérias-primas
entre certos grupos árticos e os grupos temperados
direcionados para a costa sul. O exemplo das mutações
19

de forma e de matéria da enxó no Pacífico me deu a


oportunidade de sentir que a distância é curta entre os
procedimentos da filologia que trabalha com palavras
instáveis em sua fonética e os da tecnologia que deve vir
a retirar deles as regras de mutação, tal como a regra
fundamental do machado: pedra = encaixe com bainha,
bronze = encaixe de invólucro, ferro = encaixe no pescoço
- com as transições e exceções que justificam os
contatos. Essa regra, verificada pela progressão
histórica, é controlada pelos casos de regressão, em que
o machado de invólucro torna-se de novo um machado
com uma bainha ao retroceder do bronze para a pedra.11
Essas regras ainda são sumariamente esclarecidas,
sua afirmação implica uma longa experiência crítica
prévia e os testemunhos muitas vezes perdem-se em
momentos decisivos. Mas a tecnologia já especifica a
importância das leis de convergência, que parecem ter
escapado muitas vezes dos teóricos da evolução
histórica, em um momento em que as "migrações"
garantiam a explicação para todas as coincidências. Isso
prova, por si só, que ela não pode bastar sozinha para
uma explicação dos homens, sem que corra o mesmo

11
cf. Archéologie du Pacifique Nord. [N.T.] Leroi-Gourhan remete à
sua tese de doutorado, que foi defendida em 1945 e publicada em
1946, onde ele analisa os vestígios arqueológicos de todo o arco
norte do Pacífico, do Japão à Califórnia: (1946) Archéologie du
Pacifique Nord. Matériaux pour l'étude des relations entre les peuples
riverains d'Asie et d'Amérique. Paris: Travaux et Mémoires de
l'Institut d'Ethnologie.
20

risco de esclarecer tudo por meio de algumas leis.


Afirma-se que a tecnologia comparada deve proceder em
bases diferentes daquelas que foram previstas pelos
primeiros etnólogos, não obedecendo aos mesmos
princípios da sociologia, uma vez que o técnico e o social
não têm suas raízes no mesmo solo, pois os objetos
trabalham em grande parte para sua própria evolução, e
as técnicas sempre têm um estilo nacional, mas
raramente uma nacionalidade. Essa foi uma das
consequências de O Meio e as Técnicas12, quando
chegou a essa concepção de que a técnica ultrapassa
inevitavelmente seus inventores pela progressiva adição
de seus aperfeiçoamentos.
Se, precisamente, a evolução das técnicas tem leis
próprias, essa é uma das principais razões para
confrontá-la com as ciências religiosas e sociais. A
Tecnologia adquirirá tanto maior significação para o
sociólogo quanto mais se afastar da Sociologia em seus
procedimentos de investigação. Qual significado teria
retribuído ao sociólogo se ela fosse [apenas] um reflexo
passivo do que lhe havia sido pago?
Consequentemente, o confronto entre a Sociologia e
a Tecnologia Geral tende a ordenar o mundo da atividade
material de acordo com seus próprios princípios, mas a
junção ocorre, indispensável, quando a tecnologia se

12
LEROI-GOURHAN. Évolution et Techniques, vol. 2. (1945) Milieu et
techniques , Paris, Albin Michel, op. cit.
21

aproxima do domínio particular da unidade étnica: um


machado é um machado em todo o mundo; no entanto,
há quase tantas "raças de machados" quanto povos.
Aqui, a personalidade social pesa, com todo o seu peso,
na técnica. Poucos exemplos atingem as proporções
grandiosas do arsenal iraniano: punhais, facas, adagas,
espadas cuja lâmina de aço vem em lingotes das Índias
e cujos cabos são cortados em marfim de morsas da
Rússia ártica.
Um continente inteiro, com suas tradições técnicas e
suas rotas comerciais, é mobilizado na produção de
objetos que, por sua fabricação e seu estilo, são
indiscutivelmente persas. A análise tecnológica na
primeira etapa não entrega nada: faca de tradição
asiática, lâmina de aço indiano, cabo de marfim de morsa
do Oceano Glacial. Na segunda etapa, o trabalho
tecnológico que busca estabelecer “o porquê iraniano” do
objeto, se aproxima diretamente das preocupações do
sociólogo. Isso resulta na implementação de dados
relativos à tecnologia militar e à estética geral para um
diagnóstico preciso do objeto. Como resultado curioso,
esse diagnóstico dificilmente usa terminologia
tecnológica; ele traz à tona as condições econômicas, as
tradições manuais ligadas aos costumes de combate
que levaram à busca de aços com cortes particulares, os
princípios estéticos que controlam a curvatura do cabo, a
sinuosidade do fio da lâmina, a doçura do tom de um aço
admirável preso a um cabo de marfim polido. Seria
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errado pensar que isso não é mais tecnologia; é


simplesmente o círculo que está se fechando. Não é
menos indispensável para quem estuda a ferramenta ir
ao encontro do homem que a utiliza, do que é necessário
para aquele que coloca o indivíduo em sociedade
sustentar em segurança os testemunhos que o rodeiam.

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