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Aula 4
1
FREUD, Três ensaios, p. 59
É claro como havia, na base de categoria clínica, consideraçõ es sobre a
pretensa naturalidade do corpo feminino, sobre as funçõ es sociais que ele deve
desempenhar como mã e e como certa sexualidade genital lhe seria vital. Nó s
vimos, na aula passada, como Freud abordava tais conflitos psíquicos na esfera
do sexual e procurava, a sua maneira, encaminha-los para alguma forma de cura.
Ele os lê como motivados por certa impossibilidade de maturaçã o, certa
permanência do sujeito em está gios nos quais vínculos a situaçõ es edípicas
permanecem, assim como permanece também formas de gozo nã o submetidas
ao primado genital. Na histeria, dirá Freud, há sempre certa autonomizaçã o das
zonas eró genas em relaçã o aos genitais. No que se vê como Freud continua a
trabalhar com uma noçã o de patologia ligada ao conceito de degenerescência, de
preservaçã o de arcaísmos.
Neste sentido, lembremos como Freud lê toda a relaçã o de Dora a uma
tríade de amantes composta pelo seu pai por sua amante e o marido como
expressã o de certa fixaçã o na escolha edípica de objeto e na impossibilidade de
assumir uma possível paixã o por aquele que, afinal, lhe assediava há anos. Freud
lia as ambivalências de Dora como expressã o de sentimentos contraditó rios de
afeto e rejeiçã o ao mesmo sujeito. Nesse sentido, ele insiste em ler os afetos de
Dora a partir de uma histó ria, de uma narrativa na qual encontramos o abandono
necessá rio dos vínculos familiares e assunçã o da maturidade afetiva. Por outro
lado, ele também percebe o investimento de Dora em um gozo ligado a oralidade,
como se seu corpo tivesse um investimento oral que resiste à integraçã o como
prazer preliminar do primado genital. O trabalho analítico de Freud consistirá
em, de certa forma, acelerar o desenvolvimento que nã o teria sido realizado, seja
na dimensã o das escolhas de objeto, seja na dimensã o da integraçã o genital do
gozo.
Vimos como Dora, em vá rios momentos, recusava as interpretaçõ es de
Freud, até abandonar a aná lise depois de nã o mais do que três meses. Eu cheguei
mesmo a sublinhar que haveria outras vias a explorar a respeito da posiçã o de
Dora, que nã o seriam compatíveis com essa concepçã o de fixaçã o. Uma delas se
referia a degradaçã o da ordem patriarcal devido ao vínculo entre sexo e
destruiçã o na figura de um pai sifilítico. Isso nã o só marca o gozo sexual com a
experiência da destruiçã o e da doença, como tende a estender-se a outras figuras
masculinas. Tal articulaçã o entre sexo e destruiçã o na figura paterna tende, no
caso de Dora, a estender-se a outras figuras de autoridade. Isso talvez explique
porque sua identificaçã o com a amante do pai ganhe força suplementar. Ela
acaba por se identificar a uma mulher que se afasta do marido e procura por um
amante impotente.
Segundo, eu insistira também na maneira com que essa clínica do sexual
que nasce pelas mã os de Freud tinha claras dimensõ es disciplinares e o peso da
dimensã o disciplinar recai sobre o uso extensivo de certa forma de socializaçã o
do desejo através do recurso ao É dipo, ou seja, através do recurso a certa
concepçã o de maturaçã o e funçã o social. Assim, ao falar francamente sobre sexo
com uma garota, Freud nã o apenas escutava. Ele a ensinava como falar, em que
condiçõ es seu desejo poderia ser colocado em discurso, qual histó ria ele deve
contar, qual conflito ele deve assumir. Como disse anteriormente, falar nã o é
apenas liberar. Falar é também internalizar uma gramá tica do desejo. Assim,
podemos ler o caso freudiano também como a histó ria de um conflito. O conflito
que ocorre quando as relaçõ es sexuais, seus ó rgã os e funçõ es sã o postos em um
determinado regime de “falar clínico”, sã o levados a assumir certas histó rias e
dinâ micas. Se assumirmos tal perspectiva, o caso Dora talvez aparecerá como um
interessante relato de certa forma de resistência que nã o é apenas uma reaçã o
terapêutica negativa, mas a insistência da dificuldade em constituir uma fala
sobre a sexualidade que seja capaz de dar voz aos arranjos contingentes que a
sexualidade produz. A posiçã o de Freud é aquela de quem fornece uma norma
geral de fala. A posiçã o de Dora é aquele de quem nã o a aceita completamente. É
esta incompletude em relaçã o à norma de fala fornecida por Freud que produzirá
a ruptura do tratamento.
No entanto, como é pró prio das estratégias de Freud, mais do que
descrever desvios em relaçã o a uma sexualidade normal, ele tende a generalizar
a histeria como quadro geral de socializaçã o através da identificaçã o com o
g6enero feminino. Isso implica uma consideraçã o estrutural a respeito das
identidades de gênero, a saber, que nã o há identificaçã o de gênero sem a
produçã o de sofrimento, sem a produçã o de sintomas. Em suma, nã o há gênero
sem sintoma. No caso da posiçã o feminina, esses sintomas sã o pensados de
forma preferencial através da histeria. É certo que Freud tem um horizonte de
cura e tratamento a lhe guiar. Tal horizonte se refere, sobretudo, a certas
disposiçõ es normativas vindas do complexo de É dipo e de sua maneira de
compreender os conflitos afetivos a partir da repetiçã o modular de conflitos
familiares. Mas o verdadeiro interesse do caso Dora está em outro lugar. Na
verdade, Freud acaba por mostrar, a contrapelo, os limites desse dispositivo
clínico fundado na mobilizaçã o edípica como matriz para uma leitura do sexual.
Libido e história
Mas as elaboraçõ es trazidas por Freud tem outras dimensõ es, e isso explicará
muito da força da psicaná lise a partir de entã o. Ela será o campo de um embate
interno entre, digamos, a norma e a insurreiçã o. Mas para que isso fique mais
visível, devemos ir em direçã o a outro texto, no caso os Três ensaios sobre a
teoria sexual, cuja primeira ediçã o data do mesmo ano de publicaçã o do caso
Dora. Pois lá encontramos as bases de uma concepçã o inovadora e
desnaturalizada do sexual. A tensã o interna à psicaná lise pode ser
compreendida, entre outras coisas, através da tentativa de paulatinamente
readequar os dispositivos clínicos à s elaboraçõ es conceituais, que por sua vez
sã o frutos de observaçã o clínica.
No prefá cio à quarta ediçã o do livro, Freud reconhece que sua “ênfase na
importâ ncia da vida sexual em todas as realizaçõ es humanas e a tentativa de
ampliaçã o do conceito de sexualidade”2 era exatamente o ponto de maior
resistência contra a psicaná lise. E, neste ponto, uma operaçã o surpreendente
ocorre. Freud, tã o reticente em desconsiderar a novidade de suas construçõ es,
afirma que, afinal, Platã o e Schopenhauer já haviam indicado como a sexualidade
era o eixo de compreensã o do humano. Esse recurso à filosofia nã o é apenas
estratégico. Ele aparecerá em outros momentos decisivos da reflexã o de Freud
como, por exemplo, na defesa de sua segunda tó pica da teoria das pulsõ es. Isso
indica compreensã o de que a reflexã o sobre a sexualidade exige um discurso que
nã o é apenas clínica, mas que explicita seu enraizamento em regimes críticos de
discurso, como o discurso filosó fico.
2
FREUD, Sigmund; Três ensaios sobre a teoria sexual, p. 18
Isto fica claro na escolha do termo chave para a organizaçã o da reflexã o
de Freud sobre a sexualidade, a saber, libido. O termo tem atrá s de si uma longa
histó ria cujas raízes nos remetem ao pensamento teoló gico-filosó fico ocidental,
em especial Santo Agostinho. Pois é dele afirmaçõ es como:
O homem caído nã o caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisã o marca sua pró pria vontade que se divide,
retorna-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus 4.
3
Idem, A cidade de Deus, XIV, 16, J
4
FOUCAULT, Michel; Les aveux de la chair, p. 334
5
FREUD: três ensaios, p. 34
6
Idem, p. 35
A diferença mais profunda entre a vida amorosa no mundo antigo e no
nosso estaria em que os antigos ressaltavam a pulsã o mesma, e nó s
enfatizamos o objeto. Eles celebravam a pulsã o e se dispunham, em nome
dela, a enobrecer até mesmo o objeto inferior, enquanto nó s
menosprezamos a atividade pulsional em si, achando que apenas os
méritos do objeto a desculpam7.
Essa colocaçã o é de grande importâ ncia. Freud está a dizer que os antigos
tem sobretudo uma diferença em relaçã o a compreensã o da articulaçã o entre
pulsã o e objeto. Eles investem o processo, nã o o objeto, como nó s fazemos. Em
outras palavras, eles desejam o desejo, nã o exatamente o objeto. Por isso, podem
chegar até a enobrecer um pretenso “objeto inferior”. De certa forma, os antigos
estã o mais pró ximos de uma des-individualizaçã o que é pró pria a um impulso
sexual que nã o tem objeto que lhe seja necessá rio, isso se levarmos em conta que
Freud dirá mais tarde que o objeto é aquilo que há de mais variá vel na pulsã o.
Essa ausência de naturalidade entre o objeto e o desejo é, de certa forma, perdida
por nó s, que nos enganamos mais facilmente com a crença de que amamos o
objeto e nã o o desejo. Ou seja, é possível dizer que os antigos estã o mais
pró ximos da dinâ mica real da pulsã o do que nó s. Como se nossa histó ria fosse a
histó ria de um longo desconhecimento. O que inverte as perspectivas
teleoló gicas e etapistas que marcavam a clínica do sexual de entã o.
Transposições
Ele indica que o que está em jogo em um ser humano no que diz respeito
as suas pulsõ es é propriamente humano e produto de seres singulares,
isto ao mesmo tempo que uma pulsã o, devido ao fato de seus
componentes escaparem ao sujeito que é dela o teatro, aparece como
anô nima, despersonalizada, a-subjetiva 9.
7
FREUD, Três ensaios, p. 40
8
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke vol. X, op. cit., p. 280
9
DAVID-MÉNARD, Monique; Les pulsions caractérisés par leurs destins : Freud s´éloigne-t-il du
concept philosophique de Trieb ? In: BIENESTOCK (org.); Tendance, désir, pulsion, Paris: PUF,
2001, p. 207
Na verdade, isto demonstra como o ponto de vista econô mico visa
permitir a Freud pensar esta plasticidade pró pria a uma energia psíquica
caracterizada, principalmente, pela sua capacidade em ser transposta, invertida
(Freud usa, nestes casos, o termo Verkehrung), desviada, recalcada, em suma,
deslocada de maneira aparentemente inesgotá vel. Princípio de deslocamento
constante que leva Freud a caracterizar inicialmente a libido como energia que
circula livremente, “energia livre” em relaçã o à quilo que poderia barrar tal
movimento, ou seja, em relaçã o a sua ligaçã o (Bändigung) através da subsunçã o
a representaçõ es.
Que Freud tenha refletido sobre tal plasticidade, de maneira privilegiada,
a partir de fenô menos ligados à sexualidade, eis um ponto absolutamente
central. Contrariamente a Krafft-Ebing, por exemplo, Freud nã o define a
sexualidade como uma funçã o natural a serviço da reproduçã o. Ao contrá rio, ele
quer mostrar como há , no sujeito, o que só se manifesta de maneira polimó rfica,
fragmentada e que encontra seu campo privilegiado, necessariamente, em uma
sexualidade nã o mais submetida à ló gica da reproduçã o, encontra seu campo em
um impulso corporal que desconhece telos finalistas, como é o caso da
reproduçã o. Daí porque a libido é inicialmente caracterizada como auto-eró tica,
inconsistente por estar submetida aos processos primá rios e, por fim, perversa
(no sentido de ter seus alvos constantemente invertidos, desviados e
fragmentados).
Este é um ponto importante por lançar algumas luzes a respeito do
conceito freudiano de “sexual”. Longe de procurar fundar algum tipo de moral
naturalizada através da elevaçã o de Eros à fundamento do ser, as reflexõ es
freudianas tem o interesse de mostrar como “sexual” é o nome psicanalítico para
: “um radical impasse ontoló gico”10. A este respeito, lembremos como, desde o
início, as pulsõ es sexuais nã o sã o naturalmente vinculadas aos imperativos de
reproduçã o, mas sã o tendencialmente polimó rficas, sempre prontas a desviarem
de maneira aparentemente inesgotá vel os alvos e objetos sexuais. Como se
estivéssemos diante de um paradoxo : o paradoxo do desvio em relaçã o a uma
norma inexistente. O primado da sexualidade genital a serviço da reproduçã o é a
ú ltima fase que a organizaçã o sexual atravessa e só se impõ e através de
processos profundos de repressã o e recalcamento. É isto que Freud tem em vista
ao afirmar: “A vida sexual compreende a funçã o de obtençã o do prazer através
de zonas corporais; ela é posta apenas posteriormente (nachträglich) a serviço
da reproduçã o”11. Daí porque haveria “algo de inato na base das perversõ es, mas
algo que é inato a todos os homens”12. Algo que diz respeito à polimorfia
perversa que encontraríamos em toda sexualidade infantil. Polimorfia que deve
ser compreendida aqui como reconhecimento desta posiçã o na qual a
multiplicidade dos prazeres corporais nã o se submete à hierarquia teleoló gica
dos imperativos de reproduçã o com seu primado do prazer genital.
Assim, pelos prazeres corporais nã o se submeterem imediatamente a uma
hierarquia funcional, cada zona eró gena (boca, â nus, ouvidos, ó rgã os genitais,
etc.) parece seguir sua pró pria economia de gozo e cada objeto a elas associados
(seio, fezes, voz, urina) satisfaz uma pulsã o específica, produzindo um “prazer
10
ZUPANCIC, Alenka; Sexuality and ontology, In: Why psychoanalysis?, Uppsala : NSU Press, 2008,
p. 24
11
FREUD, Sigmund; Gesammelte Werke, vol XVII, op. cit, p. 75
12
Idem, Gesammelte Werke, vol. V, op. cit., p. 71
específico de ó rgã o”. O melhor comentá rio do sentido deste prazer de ó rgã o vem
de Alenka Zupancic :
13
ZUPANCIC, Alenka; ibidem p. 16
14
Neste sentido, o auto-erotismo indica uma posição anterior ao narcisismo. Ela serve para indicar a
polimorfia de uma libido que se direciona ao prazer de órgãos que ainda não se submetem a um
princípio geral de unificação fornecido pelo Eu enquanto unidade sintética
15
LACAN, Jacques ; Séminaire VII, Paris: Seuil, 1986, p. 112
demonstrar como é inadequado usar reprovativamente o termo
‘perversã o’16.
16
FREUD, Três ensaios…, p. 54
17
Idem, p. 100
18
Idem, p. 58
para a psicaná lise em sua natureza propriamente materialista. Pois trata-se de
insistir que sexo é o nome do processo material através do qual o desejo
constitui laços, estrutura relaçõ es e define modalidades de identificaçã o. E a
consideraçã o de uma sexualidade infantil traz, necessariamente, a tese de que as
relaçõ es familiares sã o necessariamente sexualmente investidas. Uma
sexualidade que será objeto de conflitos de toda ordem, isso a ponto de
podermos dizer que a família burguesa será vista como um nú cleo produtor de
neuroses.
Nesse quadro, a infâ ncia aparece, sobretudo, como um espaço de
esquecimento. Na verdade, de esquecimento da sexualidade. Uma sexualidade
que engloba atos infantis mú ltiplos, como o ato de chupar, o ato de defecar, açõ es
muculares, entre outros. Sexualidade que engloba crueldade.