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STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica.

Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, p. 442-464, 2018.

Renata Salas Soares

Stengers nasceu em 1947 na Bélgica, formou-se em química na Universidade


Livre de Bruxelas, onde leciona Filosofia da Ciência. Stengers constrói sua
trajetória a partir da observação da prática de cientistas nos laboratórios de
química, e seu trabalho se desenvolve para uma pesquisa da história e a filosofia
da ciência.

O artigo “A proposição cosmopolítica” apresenta uma síntese de uma série de


sete volumes intitulados “Cosmopolitiques”. Stengers busca trazer a política para
a prática da ciência, para além de questões éticas e sobretudo contra uma
hierarquia das ciências e dos regimes de conhecimento. Não se trata de atacar
as práticas científicas, mas defender por meio de uma crítica à ciência, a
construção de imagem de autoridade.

A ciência por ser uma prática que constrói mundos (STENGERS, 2018), deve
ser uma prática capaz de discutir a produção de mundo em conjunto com outras
práticas, que também constroem mundos. O conceito de prática, muito utilizado
pela autora, é uma crítica a Ciência moderna que busca uma certeza única e se
desenvolve desqualificando outras práticas, como a ideia de conhecimento
racional x crença.

Outro ponto trazido pela autora é que a prática está relacionada à política. A
política é considerada muitas vezes no campo das ciências, especialmente das
naturais, como situada na ética da pesquisa e não no fazer da pesquisa ou na
própria prática da ciência. Desta forma a autora entende que o processo de
conhecimento se dá na condução política desse ethos. A proposição que
Stengers busca alcançar é muito mais uma provocação quanto à prática do que
uma orientação de como fazer ciência. Esta proposição é fruto daquele que
conhece, que executa a prática e se relaciona com outras práticas, sem excluí-
las ou desqualifica-las.
A proposição cosmopolítica encontra-se com as maneiras de fazer e pensar
práticas e suas coexistências, respondendo a questões fundamentais do
processo de conhecimento e não apenas a responder as questões sobre si. É
nesse sentido que a prática diz respeito à própria ciência e o fazer no cosmos da
ciência, pois a busca corresponde ao diálogo entre o que é conhecido e o
caminho que se faz para conhecer, ao contrário de uma ciência que responde
apenas a seus problemas. Como afirma a autora:

Ela apenas adquire sentido nas situações concretas, lá onde


trabalham os praticantes; e ela requer praticantes que – e isso
é um problema político, não cosmopolítico – aprenderam a
ser indiferentes às pretensões dos teóricos generalizantes,
estes que tendem a definir aqueles como executantes,
encarregados de “aplicar” uma teoria ou de capturar sua
prática como ilustração de uma teoria. (STENGERS, 2018,
p.443)
É no cosmos da cosmopolítica é o local de conflito e inquietações, um “operador
de igualdade por oposição a toda noção de equivalência” (STENGERS, 2018,
p.442).

O idiota, o especialista, o diplomata

A autora apresente três atores dentro da discussão. O primeiro sugere a ideia do


“idiota” de Deleuze (1980), inspirado no romance de Dostoiévski. Para Stengers
o idiota é alguém que hesita, que instala a dúvida, que cria um interregno e
finalmente, obriga ao pensamento:

(...) é aquele que sempre desacelera os outros, aquele que


resiste à maneira como a situação é apresentada, cujas
urgências mobilizam o pensamento ou a ação. E resiste não
porque a apresentação seja falsa, não porque as urgências
sejam mentirosas, mas porque “há algo de mais importante”.
Que não lhe perguntemos o quê. O idiota não responderá, ele
não discutirá. (...) Não se trata de interrogá-lo: “o que é mais
importante?”. “Ele não sabe.” Mas sua eficácia não está em
desfazer os fundamentos dos saberes, em criar uma noite
onde todas os gatos são pardos. Nós sabemos, existem
saberes, mas o idiota pede que não nos precipitemos, que
não nos sintamos autorizados a nos pensar detentores do
significado daquilo que sabemos. (STENGERS, 2018, p.444)
O idiota tem o papel de criar um “interstício” (STENGERS, 2018, p.444) para um
debate entre as práticas.
Dessa forma, a autora apresenta a figura do “especialista” que se contrapõe a
figura do idiota. O especialista é aquele que mantem apego à teoria, que tende
a definir cada situação como um simples caso particular, assim acaba por
“impedir que seus representantes sejam obrigados a pensar, que esse caso os
coloque em risco” (STENGERS, 2018, p. 452).

A terceira figura apresentada pela autora, nomeada de “diplomata”, possui um


papel de consulta, de solução, como uma prática de mediação. O diplomata
assume o saber do Outro como possível e assim inicia uma mediação, portanto
a diplomacia é um acordo de paz, como explica a autora:

Em contrapartida, o diplomata está lá para dar voz àqueles


cuja prática, o modo de existência, o que comumente
chamamos de identidade, estão ameaçados por uma
decisão. “Se vocês decidirem isso, vocês nos destruirão”, um
tal anúncio é corrente e pode advir de toda parte, inclusive
dos grupos que, em outros casos, delegam experts. (...) O
papel dos diplomatas é, portanto, antes de mais nada, o de
suspender a anestesia produzida pela referência ao
progresso ou ao interesse geral, o de dar voz àqueles que se
definem como ameaçados, de um modo a fazer hesitar os
experts, a obrigá-los a pensar na possibilidade de que as suas
decisões sejam um ato de guerra. (STENGERS, 2018, p. 461)

Por fim, ambos os papeis são apresentados na prática, diante da experiência e


do acontecimento. A autora faz uma crítica ao modelo biológico e ao modelo da
física mecânica, como modelos que englobam diferentes contextos em uma
mesma forma. Desta forma a cosmopolítica nega a totalização, nega qualquer
estrutura que pretenda englobar as práticas de construção de mundos.

A cosmopolítica não busca concluir, ou oferecer soluções, mas criar espaços de


hesitação, em uma busca para permitir a articulação de mundos divergentes.
Assim, a cosmopolítica não é um conceito “a proposição cosmopolítica (...) é
“idiota” no sentido de que se dirige àqueles que pensam sob essa urgência, que
ela não nega de forma alguma, mas vai sussurrando que, talvez, exista aí algo
de mais importante” (STENGERS, 2018, p. 461).

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