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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS – UFPEL


INSTITUTO DE ARTES E DESIGN – IAD
ARTES VISUAIS BACHARELADO EM DESIGN GRÁFICO

Trabalho de Conclusão de Curso

Design e Imaginário:
Os projetos de cartaz para filmes do subgênero realismo fantástico

Eduardo Harry Luersen

Pelotas/RS
2010
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Eduardo Harry Luersen

Design e Imaginário:
Os projetos de cartaz para filmes do subgênero realismo fantástico

Monografia apresentada ao Instituto de Artes e Design


ao curso de Artes Visuais bacharelado em Design
Gráfico da Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em
Design Gráfico.

Orientador: Guilherme da Rosa

Pelotas/RS
2010
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Resumo

Esta pesquisa busca agregar conhecimento acerca da relação entre design


e imaginário e aproximar ambos, a partir do estudo de cartazes para filmes do
subgênero realismo fantástico, utilizando como suporte metodológico de
trabalho a sociologia compreensiva de Michel Maffesoli. Com esta base teórica,
propõe-se criar um cartaz e um teaser para um filme deste estilo, adaptado
hipoteticamente do conto literário Uma Voz Dentro da Noite, de William Hope
Hodgson.

Palavras-Chave: Imaginário, design, cinema, fantasia


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Abstract

This research proposes to gather knowledge about design and the


imaginary and to relate them both through the studies of movie posters for the
fantastic realism genre, supported by Michel Maffesoli’s methodological
approach, the comprehensive sociology. After achieving the objectives of the
theorical research, it is proposed to design a movie poster and a teaser for a
fantastic realism movie, hypothetically adapted from William Hope Hodgson’s
tale The Voice in the Night.

Keywords: Imaginary, design, movies, fantasy


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Sumário

1. Apresentação do Objeto......................................................................... 06

2. Fantasia e Esboços para um Subgênero “Realismo Fantástico”........... 12

3. Imaginário e Design............................................................................... 17

4. Opções Metodológicas........................................................................... 24

5. Cartazes e o Imaginário......................................................................... 27

6. Prática.................................................................................................... 41

7. Conclusão.............................................................................................. 49

8. Referências Bibliográficas..................................................................... 50

Anexo 1: Exercício prático: Teaser para Uma Voz Dentro da Noite......... 52

Anexo 2: Exercício prático: Cartaz para Uma Voz Dentro da Noite.......... 53


5

Lista de Figuras

Figura 1: Mirrormask: A Máscara da Ilusão. P.9


Figura 2: O Labirinto do Fauno. P.10
Figura 3: Representação de uma bacia semântica. P.19
Figura 4: Representação de um reservatório/motor. P.20
Figura 5: Representação da participação afetiva. P.23
Figura 6: Cena de Ofélia encontrando a entrada para o Labirinto. P.28
Figura 7: Cena de Ofélia encontrando a entrada para o Labirinto. P.28
Figura 8: Cenário animista de Wiene. P.29
Figura 9: Uso de tons desbotados no filme de Dave McKean. P.31
Figura 10: Algumas das tantas personagens surreais de Mirrormask. P.31
Figura 11: Criaturas sombrias do filme de Del Toro. P.32
Figura 12: As figuras deformadas de Dali postas ao lado de algumas de Mirrormask. P.33
Figura 13: O anjo do lar, de Max Ernst, mostra mais um ser híbrido. P.33
Figura 14: Um dos desenhos de Helena. P.34
Figura 15: Tabela comparativa das protagonistas. P.35
Figura 16: Os tiranos identificados. P.36
Figura 17: Os tiranos identificados. P.36
Figura 18: Representação do Chtulhu, personagem de H.P.Lovecraft. P.37
Figura 19: A imagem de Baphomet, do ocultista Eliphas Levi. P.37
Figura 20: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38
Figura 21: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38
Figura 22: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38
Figura 23: Trabalhos de McKean com opção por tons amarelados. P.38
Figura 24: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42
Figura 25: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42
Figura 26: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42
Figura 27: Experimentos com fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica. P.42
Figura 28: A lua, o céu, alguns liquens e o barco, algumas das imagens utilizadas na
fotomanipulação do cartaz. P.46
Figura 29: A Espinha do Diabo. P.47
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1. Apresentação do objeto

“O cinema falado me ensinou


I Love you, i Love you, te amo
Marlon Brando poderoso
Meu chefão, cinemas Colby”
(Prósper Albanese / Tico Terpins, Joelho de Porco)

De que são feitas as coisas que percebemos do início do nosso dia até o
momento de nos deitarmos para dormir? Sobre a influência midiática à qual
está exposta a população dos Estados Unidos, tomando o exemplo de uma
nação que é uma espécie de “pulmão” que emana pulsões informativas
constantemente a todo o globo, estima-se que cada indivíduo esteja submetido
a mais de 1500 emissões publicitárias por dia, sob formas ostensivas,
disfarçadas ou subliminares1, dado referente ao ano de 1993, quando a
internet ainda representava uma importância muito menor no dia-a-dia do
americano do que hoje, por exemplo.
Por meio de nossos sentidos, captamos estas marés de informação
composta que giram em fluxo constante nas ruas, no ambiente em que
vivemos, e que estão por toda a parte, em ressonância. Bebemos todos da
afluência da comunicação, ao mesmo passo em que sintetizamos a
informação, atribuímos significado, seja de forma voluntária ou não.
Algumas partes dessa captação se relacionam conosco de uma forma
pessoal, íntima, afetiva, de acordo com nosso trajeto antropológico. Este trajeto
consiste em ser, segundo definição de Gilbert Durand: “a incessante troca que
existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as
intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002,
p. 41).
Diante de tais definições, podemos especular que o comunicador visual,
bem como o social, é um mediador na relação das possibilidades do campo
imaginal com a sociedade. Essa relação se expande de maneira ainda mais
desenfreada através de meios de comunicação que transcendem fronteiras
territoriais, em casos como o do cinema, e é ainda mais latente na internet. São
1
EMERY, Edwin, AULT, Philip e AGEE, Warren. Introduction to Mass Communication. In:
VIRILIO, Paul. A Arte do Motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
7

formados circuitos de informações inapreensíveis, porém decodificáveis. Isso


tudo assume uma perspectiva imaterial de não-coisa (FLUSSER, 2007, p.54).
As informações que hoje invadem nosso mundo e suplantam as
coisas são de um tipo que nunca existiu antes: são informações
imateriais. As imagens eletrônicas na tela da televisão, os dados
armazenados no computador, os rolos de filmes e microfilmes,
hologramas e programas são tão “impalpáveis” (software) que
qualquer tentativa de agarrá-los com as mãos fracassa.
(FLUSSER, 2007, p.54)

Segundo Flusser, essa nova configuração de ambiente está impregnada


nas gerações atuais e estará nas futuras, trazendo um estado de necessidade
de não coisas. Cada vez menos o homem interessa-se em possuir coisas, ao
passo que cada vez mais ele quer consumir informação. Esta noção, na
prática, pode ser verificada através do uso dos meios de comunicação
supracitados, por exemplo.
Uma particularidade, ainda assim, serve para dar consistência ao meio
do cinema em relação ao poder de interação com o imaginário das pessoas: a
afetividade. O cinema é capaz de sensibilizar, tocar às pessoas de uma forma
sutil, incitar, estimular, seduzir. O imaterial transpassa a tela, para diluir-se ao
imaginário do espectador.
O design pode se apresentar ao cinema de diversas maneiras. A direção
de arte, de fotografia, ou mesmo a criação de peças promocionais do filme,
como cartazes, teasers e outdoors, podem estabelecer o link entre a produção
cinematográfica e o imaginário sustentado coletivamente. A construção de
ambientes, cenários, personagens, irá contribuir para levantar a ponte entre a
atmosfera do filme e o espectador. Além disso, o cartaz e as peças gráficas
criadas para promoção do audiovisual poderão ser a entrada mais simples do
sujeito, para mergulhar na atmosfera visual desta produção.
Este trabalho pretende investigar as relações do design com o
imaginário através da linguagem visual dos cartazes de filme da vertente do
realismo fantástico. Para isso, faz-se pertinente também uma aproximação
sobre esta vertente cinematografia, cujo termo, realismo fantástico, é uma
apropriação de um movimento literário popularizado nas últimas décadas do
século XX, na América Latina, que se caracteriza substancialmente por uma
combinação da realidade e da fantasia. Alguns autores expoentes do estilo são
Gabriel García Marquez e Jorge Luis Borges.
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Cabe o estudo específico dessa vertente, também para explorar os


repertórios visuais fantasiosos e oníricos, típicos desse subgênero. Interessa
examinar os aspectos recorrentes na linguagem visual dos filmes dessa
corrente cinematográfica, na busca de elementos que apresentem alguma
identificação entre as produções dentro desse segmento, servindo como
mecanismo para despertar a atenção dos espectadores que apreciam esta
categoria de obra sequencial.
Após estas definições do realismo fantástico e a sua localização dentro
do mundo do cinema, o estudo se direciona ao imaginário e como ele dialoga
com o design. Nessa etapa, serão abordadas diversas noções sobre o
imaginário pertinentes à pesquisa, lançando-se um olhar sobre algumas
noções, entretanto, sem o objetivo de problematizá-las. Cabe aqui a
apresentação de teorias como a das bacias semânticas (DURAND, 2004,
p.103), que dão conta de um olhar sobre como as mensagens são
decodificadas a partir de significados atrelados ao repertório de cada indivíduo
ou grupo. As bacias semânticas serão relacionadas ao fenômeno da
participação afetiva. Edgar Morin (2008, p.148), em seu texto A Alma do
Cinema, explica como a pretensa “magia” do audiovisual surge a partir de um
mecanismo de projeção-identificação.
Observar a relação entre cultura e design, sob o olhar das bacias
semânticas, serve ao propósito de ilustrar a imanência das produções
audiovisuais em nosso imaginário e, conseqüentemente, em nosso cotidiano.
Para investigar a relação do imaginário com o design, tendo como recorte o
projeto de cartazes para filmes fantásticos, também se faz necessário lançar
um olhar para observar as noções de reservatório/motor, mencionadas por
Juremir Machado da Silva (2006, p.12) em seu livro Tecnologias do Imaginário,
de maneira a ilustrar as relações do emissor com as mensagens que este
compõe. Interessa ao estudo relativizar o que Durand discute a partir de Jung,
sobre o inconsciente coletivo, visando pontuar o caminho da mensagem entre
emissor e receptor, e sua confluência na cultura.
De posse do embasamento teórico apresentado, serão estudadas as
peças gráficas de dois filmes que se enquadram no subgênero do realismo
fantástico. A análise formal dos cartazes, sob o ponto de vista do design,
comporá a pesquisa, entretanto não se tornará a parte central do estudo. É
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importante analisar não apenas as peças, mas também a esfera da linguagem


visual dos filmes, com o objetivo de relacionar o design a partir das
perspectivas do imaginário, valorizando a existência da peça como um convite
ao espectador.
A escolha foi feita de forma a selecionar filmes com uma visualidade
onírica instigante, com semelhanças e diferenças entre eles possíveis de
análise a partir dos conceitos estudados sobre o imaginário.
Os filmes em questão, a partir dos quais serão feitas as análises são os
seguintes: Mirrormask: A Máscara da Ilusão (2005), sob direção do designer
Dave McKean, com roteiro do seu companheiro de trabalho de longa data nos
quadrinhos, Neil Gaiman. Este possivelmente seja o filme com maior incursão
no tema da fantasia entre dos eleitos e, torna-se um objeto de interesse a
parte, por apresentar um profissional com experiência no design gráfico, na
função de diretor.

Figura 1: Mirrormask: A Máscara da Ilusão

O outro filme a ser observado no estudo é o Labirinto do Fauno (2006),


sob a direção de Guillermo del Toro. Este foi selecionado por ter influência bem
mais direta do movimento literário do realismo fantástico latino de meados do
10

século XX, e concentrar também grandes esforços no que compete à


expressão visual. O Labirinto do Fauno possui ainda um diferencial bastante
evidente em relação à outra escolha, o fator de admitir maiores tendências do
suspense.

Figura 2: O Labirinto do Fauno

Dentre as diferenças na linguagem visual abordada nos cartazes, busca-


se também encontrar variáveis de acordo com o teor do filme, encontrando
nestas peças referências à faixa etária dos públicos, preferências estilísticas,
identificação pessoal, que apelem à sedução, um convite a “participar” do
imaginário do filme. É importante lembrar que, durante a análise, as peças não
podem ser dissociadas dos filmes em questão, pelo interesse da pesquisa
voltar-se justamente ao imaginário comum que forma-se a partir dos dois
ambientes: o gráfico e o fílmico.
2
Como atividade prática, propõe-se a criação de um teaser e um cartaz
para um filme hipotético, baseado em uma obra literária que apresente

2
Teaser é uma técnica utilizada para chamar a atenção da audiência de forma a provocar a
curiosidade, a atrair para a grande revelação que acontecerá a seguir, nos próximos capítulos
11

algumas características recorrentes do realismo fantástico, numa tentativa de


demonstrar a concepção de um ambiente imaginal a partir de uma simples
peça bidimensional. A obra em questão é o conto Uma Voz Dentro da Noite,
escrito em 1907, pelo escritor inglês William Hope-Hodgson. Será considerado
o caminho antropológico do designer através deste estudo, refletindo essa
experiência no projeto, apresentando o cartaz como peça introdutora ao
ambiente visual do objeto maior, a obra audiovisual.
A partir deste estudo, objetiva-se então observar a relação entre
imaginário e design a partir da prática projetual, ponderando a maneira como o
imaginário de uma obra infere sobre o designer responsável no processo
criativo. Buscar-se-á a ligação entre os temas tendo em vista os repertórios
estéticos e culturais averiguados a partir de cada obra, esboçando algumas
possibilidades da bacia semântica de onde bebem os designers em cada uma
das peças.
Concomitantemente, é abordada a maneira como linguagens visuais
oníricas e surreais são expressas na proposição dos projetos de cartazes para
filmes de realismo fantástico, abordando o conhecimento construído de posse
do mapeamento de elementos de recorrência desta linguagem dentro das
peças gráficas estudadas. Com isso também pode ser observada, em certa
medida, a forma como o imaginário do filme se conecta ao cartaz, através da
estética e linguagem visual.

do anúncio. Seja na próxima página de uma revista, no próximo outdoor de uma loja, ou no
comercial de algum programa, etc. No caso específico da produção cinematográfica, irá
anteceder ao cartaz, geralmente indicando alguma pista sobre o filme.
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2. Fantasia e esboços para um subgênero “realismo fantástico”

Na busca por um recorte mais específico deste trabalho, o estudo volta-


se a gêneros cinematográficos que possuam componentes visuais que possam
emprestar às dimensões do paralelo entre design e imaginário uma fonte ampla
para pesquisa. Assim, a pesquisa se detém ao gênero de fantasia, pelo papel
que o design desempenha neste tipo de produção, pensando no aspecto
criativo na concepção de ambientes, criaturas e situações que não existem no
concreto. Para a composição dessa conjuntura, há de se munir de uma
perspectiva muito mais imaginal, subjetiva, do que material e objetiva.
Pensando que a relativização de elementos para observação e análise
em uma esfera tão ampla quanto o gênero fantasia poderia gerar resultados
por demais desenlaçados e incongruentes, foi necessário recortar mais o tema.
Dessa forma, foi pesquisado um subgênero contendo as características
recorrentes ao cinema de fantasia que interessavam a esta pesquisa,
encontrando-se o chamado “realismo fantástico”.
Verifica-se como característica do realismo fantástico o conteúdo de
elementos mágicos ou fantásticos ocorrentes muitas vezes sem explicação,
bem como a presença do sensorial para a apreensão da realidade. O tempo
pode passar por um processo de dissociação racional, enfrentando uma
temporalidade cíclica ou mesclada. O cotidiano transforma-se, a partir da
inclusão de experiências sobrenaturais ou fantasiosas pelas personagens no
trânsito da história.
Este subgênero da fantasia possui uma ampla produção literária,
entretanto no cinema não se chega a formar um consenso quanto à adoção do
termo para rotular filmes. Contudo, baseado nas noções sumárias, nos
fundamentos de narrativa, linguagem e descrição de elementos de recorrência,
é possível aplicar a alcunha ao objeto selecionado em caráter analítico para
este trabalho.
A expressão realismo fantástico, na literatura, foi empregada
primeiramente para definir a obra do escritor Jorge Luís Borges (O Aleph,
História Universal da Infâmia, Ficções) (CAMARANI, 2008, p.1). Utiliza-se na
crítica muitas vezes também o termo “realismo mágico” para se referir ao
mesmo subgênero. Esta corrente se desenvolveu na América Latina, durante o
13

século XX e, além dos livros de Borges, já foram classificadas dessa forma


algumas obras de Gabriel Garcia Marquez (Cem Anos de Solidão, de 1967) e
Júlio Cortázar (Bestiário, Casa Tomada, de 1977).
O realismo fantástico, no circuito latino-americano, em meados do
século passado, se desenvolveu como produto de duas visões que conviviam
na América hispânica, sobretudo: a cultura da tecnologia e a cultura da
superstição. Ele pode ser definido como a preocupação estilística e o interesse
de mostrar o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum (CARPENTIER,
2007, p.6).
Ainda procurando definir um campo mais restrito para o fantástico, torna-
se importante a obra Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov.
Nela, o autor apresenta algumas noções sobre o subgênero estudado e relata
que certamente, o realismo fantástico pertence à literatura fantástica. Porém,
no realismo fantástico, o argumento é sempre um fato passível do real, ao qual
se agrega um ingrediente ilusório ou fantástico (TODOROV, 2007, p.62). Este é
um dos principais aspectos que serve para diferenciar o subgênero do gênero
maior.
Na literatura fantástica em geral, incluindo o estilo em questão, as
narrativas sofrem a ocorrência de fatos inconcebíveis, inexplicáveis e surreais
que produzem uma grande sensação de estranhamento no espectador.
Algumas vezes, essa atmosfera irreal é meramente alegórica, ou seja, através
do inverossímil, se faz uma alusão a algum aspecto da realidade concreta.
Uma característica importante que ajuda a obter uma definição do
fantástico é a hesitação do leitor entre uma explicação natural e uma
sobrenatural. No fantástico, o evento sobrenatural não é completamente aceito,
nem explicado pelas leis da razão ou da natureza, sendo caracterizado,
principalmente, pela dúvida sobre a autenticidade dos eventos relatados
(TODOROV, 2007, p.83).
É preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das
personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre
uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos
acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser
igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o
papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e
ao mesmo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos
temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se
identifica com a personagem. (TODOROV, 2007, p.38)
14

O realismo fantástico repercutiu. No Brasil, são muitos os expoentes na


corrente literária e cinematográfica. O romancista Ignácio Loyola Brandão, com
obras como Zero (1975) e Não Verás País Nenhum (1981), é exemplo da
mistura de alguns elementos fantásticos com outros de uma tradicional
distopia. Érico Veríssimo em Incidente em Antares (1971) também demonstra
influências do subgênero estudado. Lygia Fagundes Telles é mais uma autora
que possui produção realista-fantástica. Seu conto As Formigas (1978)
inclusive recebeu uma adaptação livre para a grande tela no ano de 2004, sob
direção de Verônica Guedes. Em O Pirotécnico Zacarias (1974) e histórias de
Contos Reunidos (2005), Murilo Requião também apresenta características do
realismo fantástico.
Além dos autores do movimento na América Latina, há alguns escritores
mundo afora que já continham uma produção que poderia, posteriormente, ser
encaixada nesse estilo. Em geral, autores conhecidos da literatura fantástica
como Edgar Allan Poe (A Máscara da Morte Escarlate, de 1842 e O Gato
Preto, de 1843), no início do século XIX, e Franz Kafka (Metamorfose, de 1912)
e Howard Philips Lovecraft (Dagon, de 1917, O Chamado de Chtulhu, de 1926,
O Caso de Charles Dexter Ward, de 1927), de produção na primeira metade do
século XX, já escreveram contos que poderíamos classificar segundo o viés do
realismo fantástico.
H.P. Lovecraft, conceituado escritor estrangeiro no gênero de terror,
aborda teoricamente algumas noções da literatura fantástica que podem ser
interessantes para tangenciarmos ao design no momento da concepção de
peças promocionais para itens do gênero da fantasia. Segundo ele, a
atmosfera é fundamental para a imersão do leitor no conto, questão que será
abordada no capítulo posterior sobre Imaginário e design. No caso de
Lovecraft, por ser um contista que mescla o fantástico ao terror, essa atmosfera
teria de conter o medo como fator preponderante:
A atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério definitivo de
autenticidade (do fantástico) não é a estrutura da intriga, mas a
criação de certas impressões. (...) Por tal razão, devemos julgar o
conto fantástico nem tanto pelas intenções do autor ou pelos
mecanismos da intriga, mas sim em função da intensidade
emocional que provoca mesmo em sua parcela menos mundana.
(...) Um conto fantástico funciona se faz com que o leitor
experimente em forma profunda um sentimento de temor e terror,
15

a presença de mundos e de potências insólitas. (LOVECRAFT,


3
2006, p.6).

Saltando para o ambiente do cinema, o subgênero poderia abarcar


filmes diversos, que senão obras explicitamente de realismo fantástico, ao
menos produções audiovisuais que se parecem alimentar-se de influências
desta fonte. Em algum ponto, blockbusters4 como Matrix (1999, de Larry e
Andy Wachowski) e O Iluminado (1980, de Stanley Kubrick), por exemplo,
apresentam algum grau de realismo fantástico em sua concepção. Outros
filmes baseados em obras literárias de Stephen King, thrillers psicológicos,
como 1408 (2007, Mikael Håfström), podem abarcar algumas características do
subgênero em questão, sem, entretanto, poderem ser classificados
especificamente desta forma.
Existem também filmes fantásticos realizados com baixo orçamento, que
se caracterizam por custo, sistemas de distribuição e exibição alternativos ao
mercado de blockbuster. A linguagem visual destes filmes torna-se um
problema a resolver, sobretudo pela inclusão do elemento fantasia. Os filmes
escolhidos para análise são todos oriundos de produções alternativas, onde a
fantasia aparece através da atmosfera criada a partir do elo entre direção de
arte, direção de fotografia e roteiro.
Além de Mirrormask e O Labirinto do Fauno, poderiam ser referidos
filmes como A Espinha do Diabo (2001), também com direção de Guillermo Del
Toro, o francês Ladrão de Sonhos (1995), o terceiro longa de Darren
Aronofsky, A Fonte da Vida (2006), e a distopia Brazil (1985) (entre tantos
outros filmes de Terry Gilliam), que possuem características semelhantes às
abordadas nos parágrafos anteriores. Entretanto, estes devem ficar como

3
Tradução do autor do trabalho. Texto original em inglês: “Atmosphere is the all-important
thing, for the final criterion of authenticity is not the ovetailing of a plot but the creation of a given
sensation. (…) Therefore we must judge weird tale not by the author's intent, or by the mere
mechanics of the plot; but by the emotional level which it attains at its least mundane point.
(…)The one test of the really weird is simply this—whether or not there be excited in the reader
a profound sense of dread, and of contact with unknown spheres and powers”.
LOVECRAFT, Howard Philips. Supernatural Horror in Literature. Edição digital. Disponível em:
http://capacitorfantastico.blogspot.com/2009/07/supernatural-horror-in-literature-by-h.html
Acesso em: 30 de out. 2009.
4
O termo blockbuster, de tradução literal “arrasa-quarteirão”, é usado para fazer referência a
peças ou filmes de orçamento alto, que alcançam enorme sucesso comercial, gerando grandes
bilheterias.
16

acervo para aporte e referências pontuais na definição de uma base


consistente de filmes que bebem do realismo fantástico.
Na linguagem cinematográfica, o autor providencia duas próprias
imagens e cria o ambiente visual onde atuam suas personagens e a história se
desenvolve. É o seu imaginário pessoal que se molda e mescla ao do
espectador para a construção de um produto cujas leituras e interpretações
serão sempre únicas e pessoais. Seu imaginário irá se dissolver na obra
presenciada pelo público, tangenciando o coletivo.
Nos filmes selecionados em questão, a experiência de alguns elementos
do surrealismo e do expressionismo, sobretudo, é proposta pela linguagem
visual das produções. As sensações, ambientes, atmosfera, têm no visual algo
já sugerido. É a relação com estas linguagens que o produtor vai pôr em
diálogo com seu imaginário, realizando uma obra que seja sedutora ao público.
É seu repertório visual, sua bacia semântica. E isto pode ser visto a refletir no
ambiente fílmico, no cartaz e então, no meio.
17

3. Imaginário e design

Em relação a uma atividade prática projetual de comunicação,


formadora de padrões estéticos e de visualidade cotidiana, influenciadora e
influenciável pela sociedade de consumo, tal como é a atividade do design
gráfico, torna-se relevante tangenciar a dimensão da cultura. Sendo o
imaginário suporte para o objeto de estudo, cabe traçar alguns paralelos entre
este e a cultura.
A cultura pode ser identificada de forma precisa, seja por meio das
grandes obras da cultura, no sentido restrito do termo, literatura,
música, ou no sentido amplo, antropológico, os fatos da vida
cotidiana, as formas de organização de uma sociedade, os
costumes, as maneiras de vestir-se, de produzir, etc. O imaginário
permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera.
(...) É uma força social de ordem espiritual, uma construção
mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não
quantificável (MAFFESOLI, 2001,p.75).

Maffesoli emprega o termo imaginário como coletivo por excelência,


como um inconsciente social, tratando-se de uma esfera maior do que uma
simples apropriação individual da cultura. A cultura constitui-se num conjunto
de fenômenos descritíveis, dados objetivos, enquanto que o imaginário possui,
além disso, algo de imponderável (MAFFESOLI, 2001, p.75). Imaginário e
cultura justapõe-se e coexistem, entretanto não se equivalem. A cultura
influencia o imaginário e pode-se dizer, ao mesmo passo, que o imaginário está
contido na cultura, embora não se atenha apenas a isso. Mais do que isso,
observa-se que o imaginário injeta na cultura traços do acaso, de conteúdo
inexorável. É importante enfatizar que essa cultura não é algo imóvel, mas é
uma prática cultural, está em movimento constante, sob diálogo freqüente com
as pulsões do imaginário.
Silva (2006, p.17) destaca a superstição como um exemplo de
racionalização imaginária que pode provocar o ser humano. Em função de
necessidades simbólicas, o homem acata os sentidos, abraça-se a potenciais
fictícios diante do inexplicável. O vazio racional é suprido pela imaginação.
Que poderá o homem ponderar, então, diante de grandes questões
irredutíveis da existência humana como o universo, a liberdade, os sonhos, o
amor ou a morte? Se estes caminhos parecem tão repletos de lacunas e
espaços vazios (senão vazios ao menos abertos a questionamento) que
18

ultrapassam as explicações de um concretismo racional absoluto, se fazem


campos ricos e férteis para as rotas constantemente construtivas,
desconstrutivas e reconstrutivas do imaginário.
O quanto mais fecundo pode ser o potencial dessas pulsões do
imaginário ao encontrarem-se afastadas das afirmações exatas e fechadas,
aproximando-se dos domínios do paradoxal, do contraditório e, sobretudo, do
ilógico? Pois bem, não é possível determinar valores quantificáveis para estas
variáveis imensuráveis e inconstantes. Contudo, são passivas de observação
as possibilidades criativas e expressivas do encontro do imaginário com a
fantasia e seu componente surreal.
A produção de linguagens visuais surreais e oníricas parece um terreno
prolífero para as noções de imaginário. Os ambientes visuais vislumbrados
para uma produção audiovisual de fantasia estão relacionados a uma atenção
especial a partir da direção de arte e fotografia, aliadas à veiculação de
cartazes que transmitam a mesma linguagem e simbologia. Estas correntezas
visuais devem ser capazes de formar uma atmosfera correlativa entre o filme e
o cartaz. Este último, pela possibilidade de ser o primeiro contato visual do
espectador com um pedaço da obra, tem uma função de introduzir o
observador à ambiência do filme, podendo haver encontro e confluência desta
com as águas da “bacia semântica” de onde bebe o sujeito, gerando interesse
no audiovisual e uma nova direção para o curso destas águas.
A noção de bacia semântica é apresentada por Gilbert Durand (2001, p.
116) e relata a mutação como um processo dinâmico da vida. Numa metáfora
recorrendo às bacias fluviais, Durand sugere que correntes desordenadas,
marginalizadas, atingem os movimentos institucionalizados, possibilitando que
haja o escoamento dessas águas. Estas simples correntes irão formar diversos
divisores de águas, com dimensões mais significativas, iniciando a formação de
um rio. Como qualquer outro rio, este também tomará um curso, e seguirá seu
caminho até encontrar contracorrentes e outros movimentos que podem
transformar sua dinâmica, apresentar outros caminhos e até alterar o seu
curso. Metaforicamente, vislumbra-se enxergar neste percurso a caracterização
de um sistema simbólico aberto. A noção das bacias semânticas possibilita
uma abordagem amplamente dinâmica, mutável em termos de harmonia, e
com riqueza em contradições.
19

Figura 3: Representação de uma bacia semântica

Aliado a esta questão das bacias semânticas, podemos postar o


imaginário como um reservatório/motor. Um motor de mecanismo
individual/grupal que parte da emanação de mensagens de um reservatório
cultural/emocional/empírico do emissor até um sujeito imerso em outro
reservatório, que vai recebendo e transformando estas mensagens, de forma
desordenada e não-controlada. Neste processo fluido e descompassado,
segundo Silva (2003, pág.12), o imaginário emana do real, estrutura-se como
ideal e retorna ao real como elemento propulsor. Ele comenta:
O imaginário é a marca digital simbólica do indivíduo ou do grupo
na matéria do vivido. Como reservatório, o imaginário é essa
impressão digital do ser no mundo. Como motor, é o acelerador
que imprime velocidade à possibilidade de ação. O homem age
(concretiza) porque está mergulhado em correntes imaginárias
que o empurram contra ou a favor dos ventos. (SILVA, 2003, p.12)

Pelo imaginário o ser se molda dentro da cultura. Forma um reservatório


que abriga, e pelo motor transmuta imagens, sentimentos, memórias,
experiências, impressões. O fluxo pode conduzir a modos de ver, sentir, ser,
agir. Ao haver a difusão natural destas marés subjetivas de informação, o
imaginário representa-se com uma feição social. Coletiva por excelência. Este
motor há de alimentar a foz de significados do transmissor novamente. E o
diálogo de inoculações segue impulsionando as correntezas.
20

Figura 4: Representação de um reservatório/motor

As águas da bacia semântica do emissor (no caso do objeto de estudo,


o designer responsável pela direção de arte do filme ou mesmo o compositor
das peças gráficas de divulgação, até o diretor de fotografia do filme) a produzir
um trabalho de realismo fantástico, devem possuir algum conteúdo capaz de
exprimir os recursos imponderáveis da fantasia. De uma forma muito natural,
as estéticas surrealistas e expressionistas compartilham características com
esta subcategoria de cinema.
Desconsiderando-se a produção cinematográfica pura destes dois
estilos, o surrealismo e o expressionismo, mas levando em conta os
pressupostos das vanguardas artísticas que originaram estes movimentos,
destacam-se determinadas características que têm condições de transcrever
imageticamente o cunho misterioso do fantástico. São estéticas que
apresentam alguns detalhes em comum, como a distorção proposital da
realidade, a sondagem do mundo interior e algum modo de frenesi, entretanto
são propriedades particulares de cada uma delas que, mescladas, aparecem
freqüentemente no audiovisual do realismo fantástico.
Vale lembrar que a utilização dos vocábulos “expressionismo” e
“surrealismo” na imersão do texto fazem referência mais exata justamente aos
critérios visuais destas vanguardas. Do surrealismo tomam-se emprestados
mais exemplos de pintores para fazer referência aos elementos incorporados
nos cartazes e na direção de arte do filme, por entender-se que a pintura do
21

estilo se comunica de forma bastante correlata aos elementos de fantasia dos


filmes em questão. Quanto ao expressionismo, buscam-se relações no cinema
alemão do pré-guerra, também pelo motivo de se pensar ser mais análogo ao
tema do que o restante das manifestações artísticas desta vanguarda.
Retomando ao realismo fantástico e sua maneira plástica de ser
representado no cinema, podem ser então, apropriadas algumas
características recorrentes ao repertório das vanguardas supracitadas. Do
surrealismo, Max Ernst, René Magritte e Salvador Dali, por exemplo, é possível
encontrar contato direto com o fantástico a partir da ruptura com a lógica,
fazendo com que a fantasia apareça no concreto. No realismo fantástico
também é possível ver a exploração do subconsciente e do sonho, criando-se
assim uma imagem onírica que habitualmente é contrastada do cotidiano, mas
que nesse caso faz-se aliada. As figuras antropomórficas e seres híbridos que
se vê por vezes neste subgênero também carregam consigo um aporte surreal.
Do expressionismo, Fausto (1926) e Nosferatu (1922), de F. W. Murnau,
e Metrópolis (1927) e M o Vampiro de Düsseldorf (1931) de Fritz Lang, por
exemplo, além dos elementos já citados que se compartilham em algum nível
com o surrealismo, observa-se a valorização e peso dos sentimentos humanos,
os contrastes acentuados e os traços dramáticos que contribuem para a
imersão do real(ismo) tratado no filme, em um ambiente fantástico. A paisagem
artificial, que participa nos fluxos anímicos dos personagens também é uma
recorrência, enquanto que o tratamento das sombras é uma das marcas mais
visíveis que o expressionismo pode deixa para o fantástico. Uma marca que
raramente foge do realismo fantástico, mas no nível do texto, que também se
vê como uma influência do expressionismo é a presença do “tirano”5. Ao ser
feita a análise dos cartazes e as relações com o imaginário de toda a obra,
serão retomadas estas questões estéticas.

5
De acordo com Nazário, Tirano pode significar a presença de um personagem sinistro que
possui poder para controlar: “É numa jovem República estremecida que o expressionismo
chega às telas, desenvolvendo um modo fantasmagórico de narrativa e uma dramaturgia do
horror, em alegorias que giram, quase sempre, em torno de um personagem sinistro ou
mágico, que concentra grande poder em suas mãos, capaz de dominar os indivíduos e
controlar a realidade que os cerca pela liberação de forças expedicionárias”. (NAZÁRIO, 1983,
p.22).
22

Os conhecimentos destas vertentes artísticas se fazem importantes para


que o realizador destas peças possa transmitir o fantástico, o sobrenatural, de
forma mais espontânea para o público. Dessa forma, torna-se menor o choque
que existe entre as informações em fluxo na bacia semântica da produção
audiovisual e o espectador sentado em sua poltrona. A passividade física do
espectador diante da tela, não reflete o contínuo movimento de pulsões
informativas que ocorre durante o ato de assistir ao filme. Em A Alma do
Cinema (1983, p.148), Edgar Morin explica a magia do audiovisual a partir do
sistema de projeção-identificação. O processo ocorre quando o espectador se
apresenta diante do espetáculo cinematográfico, quando não só se projeta no
universo dramatúrgico do filme, como, segundo o pensamento de Morin, passa
a desenvolver uma participação afetiva entre aquela projeção e sua vida
particular, convertendo aquela magia em sentimento.
A partir desse ponto, o espectador já não mais percebe o universo
fílmico como uma construção. Sua percepção já não se atenta aos detalhes da
encenação desde que ele imergiu no espaço fílmico e se envolveu com as
imagens, com o drama apresentado, se emocionando a partir de sua própria
subjetividade. Sobre essa questão da percepção do espectador, David
Bordwell, teórico do cinema, afirma:
Ao ver um filme, o receptor identifica certas indicações que o
incitam a executar numerosas atividades de inferência, que vão
desde a atividade obrigatória e rapidíssima de perceber o
movimento aparente, passando pelo processo mais ‘penetrável do
ponto de vista cognitivo’, de construir, digamos, vínculos entre as
cenas, até ao processo ainda mais aberto de atribuir significados
abstratos ao filme. Na maioria dos casos o espectador aplica
estruturas de conhecimento às indicações que reconhece dentro
do filme. (BORDWELL, 1991, p. 3).

Assim, posso considerar a tela como uma interface de abertura do canal


sensível do espectador, por onde se encaminham pulsões informativas a se
introjetar no imaginário do sujeito assistindo, de acordo com seu trajeto
antropológico, conforme mencionado na introdução deste texto, fazendo com
que ele interprete o que viu.
23

Figura 5: Representação da participação afetiva

Neste ponto, cabe observar uma particularidade no âmbito dos filmes de


fantasia. O fantástico, imponderável, tende a dialogar de maneira mais
adjacente com o imaginário do público, pois a interpretação simbólica é
intrínseca ao ser humano e o inexplicável, inacabado incita nosso pensamento.
Mantém o motor do reservatório de imagens, símbolos, desejos, sonhos,
lembranças, girando. De acordo com Durand:
(O imaginário) é uma representação incontornável, a faculdade da
simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e
seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um
milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da
Terra. (DURAND, 2004, p.117)

Os campos imaginários contribuem para formar um ambiente que une o


homem e o seu entorno. O imaginário está presente sempre nas criações do
pensamento humano. Ele faz um projeto de design, visto pela sua ótica, tomar
proporções afetivas, respirar do imaterial, dialogar muito mais com os sentidos.
24

4. Opções metodológicas

É possível que seja devido a um procedimento fundamentalmente


racionalista de desenvolvimento intelectual, que se tenha criado o hábito de
procurar por quantias exatas, por medidas determinadas e invariáveis em
aspectos naturais da vida. Talvez seja também por influência de um modo de
vida ocidental catequizado por gerações, sob crenças monoteístas, que em
diversos âmbitos de nossas vidas, inclusive o acadêmico, tenhamo-nos
acostumado a procurar por verdades absolutas, conceitos formados, ciclos
fechados. Estas questões delicadas envolvendo afirmações e certezas rígidas
tornam-se ainda mais frágeis sob o recinto das ciências humanas e sociais.
Pode-se dizer também que, no viés da comunicação, por vezes pode ser
interessante buscar por alternativas de pesquisa que cedam maior margem à
subjetividade. Portanto, para o desenvolvimento deste trabalho, “relativizar” e
“aproximar” se tornaram duas palavras-chave. Ampara-se, assim, ao dito por
Maffesoli:
A sensibilidade relativista – para nada excluir do todo social –
prefere uma diligência prudente em lugar do que chamei, na
Lógica da Dominação, o “terrorismo da coerência”. Pretende
proceder por via de aproximações concêntricas, por
sedimentações sucessivas – maneiras essas que manifestam uma
atitude de respeito ante imperfeições e lacunas que, por um lado
são empiricamente observáveis e, por outro, são estruturalmente
necessárias à existência como experienciamos, pois, como se
sabe, a perfeição é a morte. (MAFFESOLI, 2007, p.39)

Pontua-se, dessa forma, que a subjetividade interpreta papel importante


também para o estudo do imaginário no cotidiano. A sociologia compreensiva,
proposta por Michel Maffesoli, trata menos de elaborar um “conteúdo” do que
de apresentar uma projeção. É a sociologia como ponto de vista (MAFFESOLI,
2007, p.39). Em um momento em que a sociedade tanto fomenta o combate às
bases do preconceito, talvez fosse possível a abertura de um diálogo quanto ao
estabelecimento de conceitos imutáveis em si, ao tratar-se das ciências
humanas. Os grandes sistemas explicativos de nossos tempos, tais como o
positivismo, talvez tenham alcançado um grau intenso de saturação, diante da
presença plural da mídia no cotidiano da sociedade, produzindo uma troca
imensurável de pulsões informativas e simbólicas.
25

Silva (2003, p.87) discorre sobre a metodologia do pesquisador dos


campos do imaginário, a quem dá a alcunha de narrador do vivido:
O narrador do vivido não se restringe ao virtual, mas sabe que o
advento da cibercultura desmanchou na tela a solidez dos
imaginários do ar. No seu trabalho de coleta de dados, deve surfar
nas ondas do rádio e da televisão, navegar nas vagas dos bits,
acumular átomos e produzir símbolos por meio de signos. Nada do
que se possa imaginar lhe é estranho; nada do que se possa
simbolizar o deixará indiferente. O narrador do vivido é um
romancista das ciências humanas, um repórter da sociologia
compreensiva, um cronista da antropologia, um etnógrafo do aqui
e do agora, da fugaz cidade (SILVA, 2003, p.87).

Para analisar a esfera design-filme, o imaginário do audiovisual é


projetado a partir do ambiente visual gerado pela convergência entre direção
de arte/direção de fotografia e da peça gráfica promocional em pauta. Com
este efeito, a pesquisa do imaginário remonta a outra característica da
narração do vivido: a imersão do pesquisador no contexto de análise. Um
mergulho na bacia semântica de si mesmo e do outro, uma auto-inserção no
meio pesquisado, para trilhar o próprio trajeto antropológico, na contramão das
verdades de acostamento e das certezas de retrovisor, para tornar-se parte do
imaginário repisado (SILVA, 2003, p.75).
Com isso ultrapassa-se a esfera paranóica das pesquisas de campo
positivistas (onde se examina com olhar do topo sobre o objeto investigado,
para colher dados e resultados), para uma abordagem metanóica
(MAFFESOLI, 2007, pág.25), com um olhar de dentro, imerso no bolsão
semântico das pulsões do imaginário. Isto pode ser inferido a partir do
pensamento de Maffesoli:
Quero, no entanto, dar uma dimensão mais aberta, e, por isso, em
O conhecimento comum, procuro usar o termo noção, a fim de
buscar uma instrumentação congruente com o momento vital. É
preciso encontrar noções menos verdadeiras possíveis. O
conceito busca a verdade. A noção busca a semelhança: olhar
longe para trás para olhar longe para frente. Insisto na idéia de
superação do conceito pela humildade da noção. No conceito, há
algo, fundamentalmente, paranóico. (MAFFESOLI, 2008, p.7)

Trata-se assim de, a partir dos sentidos e da experimentação, aliada ao


conhecimento apreendido sobre design, carregando consigo o já citado trajeto
antropológico, compreender a estética fantástica e onírica do filme a partir de
sua linguagem e atmosfera visual. E, dessa forma interagir com a corrente de
significados do imaginário do audiovisual pesquisado. Faz-se assim, da razão
26

sensível, uma grande aliada na obtenção de impressões sobre a estética,


compartilhamento de emoções, dentro do assunto referido.
Acerca do que fora referido no parágrafo inicial, durante a análise, não
se pretende alcançar a formação de conceitos cristalizados sobre o tema da
pesquisa. Ao contrário, busca-se a relativização de aspectos comuns
examinados na criação dos cartazes e respectivos filmes, visando à
confluência de ambos para emitir um imaginário aos espectadores. Isto se faz
através de noções de semelhança nas bacias semânticas do imaginário entre
emissor e receptor, gerando relações de congruência, dialogando, sem isolar o
objeto como produto finito e acabado.
O contato com o apanhado teórico construído a respeito do imaginário e
as análises a partir do repertório estético onírico dos filmes de realismo
fantástico será apropriado para projetar em relação a essa linguagem visual. A
peça gráfica é o objeto de design a ser criado para aplicação na prática dos
conteúdos teóricos perpassados durante as relativizações acerca do imaginário
e análises da dimensão climatológica (atmosfera), ambiência visual do par filme
e peça gráfica.
A parte projetual da pesquisa adota como dispositivo a idéia do
desenvolvimento de um cartaz e um teaser de um conto que tenha
características recorrentes ao realismo fantástico e seja descritivo ao ponto de
permitir o desenvolvimento de uma representação pictórica ou imagética. O
olhar teórico estará incluso no projeto das peças, através das referências
estéticas adotadas na concepção do intento.
O conto Uma Voz Dentro da Noite (1907), de William Hope-Hodgson, foi
selecionado por apresentar potencial visual e elementos descritivos que se
fazem aplicáveis para a execução da prática projetual. Estes elementos
apresentados durante a narrativa facilitam a capacitação e criação de uma
linguagem visual dialógica com a atmosfera suscitada pelo conto. No
desenvolvimento do projeto, considerar-se-á teorias do imaginário para
experimentar e compor, bem como os estudos sobre o realismo fantástico. Ao
utilizarem-se elementos visuais recorrentes a filmes do gênero, aparece a
noção de bacia semântica. De forma semelhante, a participação afetiva estará
presente enquanto o projeto apresentar elementos que permitam a
identificação e reconhecimento do espectador com o cotidiano, seu tempo.
27

5. Cartazes e o Imaginário

Neste capítulo, será estudado o imaginário em torno da produção


audiovisual somada ao cartaz como cartão de visita a este imaginário. Para
isso, farei breves análises dos cartazes dos dois filmes selecionados e dos
ambientes visuais provenientes da estética deles, ligando-os através de
elementos correlativos na linguagem visual utilizada. Será relativizado o
imaginário comum onde o espectador vai imergir e relacionar cartaz e filme,
bem como a questão da sedução ao ambiente fílmico.
Busca-se traçar relações entre os filmes escolhidos, detectando o que
separa o imaginário em torno de cada um deles a partir de suas próprias
características. Estas diferenças podem ser construídas a partir do teor do
audiovisual, do foco, entre outras coisas. Para isso será interessante fazer a
mediação entre os elementos de recorrência entre os filmes em questão,
influências estéticas e fatores de dissonância.
Cabe ainda falar sobre a importância do designer na esfera do
imaginário destas produções e como o profissional participa do
desenvolvimento de uma bacia semântica afluente de repertórios visuais
oníricos e fantásticos. Observo para isso, como o imaginário está sempre
presente nas criações do pensamento do ser humano. Por isso, penso que
para o designer que se relaciona à produção de um design a partir de um olhar
do imaginário, imaterial, sob uma perspectiva de “não-coisa”, além do hábito do
material, é importante saber extrair desses movimentos intensos de pulsões
subjetivas, algumas maneiras de ver, entender e projetar seu objeto.
A investigação pode começar dispondo-se lado a lado as ilustrações
feitas para os filmes. Com isso se faz possível aproximar algumas percepções
entre estes e também assemelhar algumas de suas características com
propriedades surreais e expressionistas. Os cartazes em questão iniciam a
imersão do espectador no ambiente do filme sob propostas de tempo distintas.
No cartaz do Labirinto do Fauno, é possível ver a representação de uma cena
do filme em pausa, o plano em que Ofélia se depara com a entrada das ruínas
do labirinto, prestes a entrar no ambiente mágico do audiovisual.
28

FIGURAS 6 e 7: Cena de Ofélia encontrando a entrada para o Labirinto

A ilustração é vista com características mais hiper-realistas6 que na cena


do filme. Como decorrência disto, a imagem do cartaz possui maiores
contrastes e iluminação exagerada com relação ao filme. A representação feita
desta forma no cartaz, além de “exagerar” uma cena marcante no audiovisual,
destacando-a, apresenta a roupagem mágica do filme, incorporando à cena
traços que permeiam todo o ambiente do longa.
Já em Mirrormask, no pôster, é vista a personagem Helena circundada
por elementos que aparecem durante momentos diversos da linha narrativa do
filme. Este plano, com todos os elementos presentes da capa
concomitantemente em cena, não é visto dessa forma em nenhum momento no

6
O hiper-realismo, também chamado de realismo fotográfico ou fotorrealismo, é um estilo
artístico que procura mostrar uma grande abrangência de detalhes, o que faz da obra objeto
muito mais detalhado do que uma fotografia ou do que a própria realidade: hiper-realista.
As peças hiper-realistas, por apresentarem uma preocupação com os detalhes bastante
minuciosa e pessoal, geram um efeito de irrealidade, formando a premissa paradoxal: "É tão
perfeito que não deve ser real".
29

audiovisual, sendo uma coleção de momentos, personagens e ambientes da


trama.
No cartaz do filme de Guillermo Del Toro, é vista a protagonista
observando de frente a entrada do labirinto, circundada por uma vegetação
predominantemente seca e retorcida, possuindo um tom mórbido em sua
constituição. Este comportamento atribuído à natureza recorre a uma marcante
característica dos expressionistas da escola alemã de cinema, visto em
diversas obras do gênero, como fica explícito em O Gabinete do Doutor
Caligari (1920), por exemplo: O cenário animista. O momento de tensão vivido
por Ofélia no filme, no instante captado pelo cartaz, é compartilhado com a
natureza.

FIGURA 8: Cenário animista de Wiene

Não é possível enxergar a expressão facial da personagem no cartaz


por ela estar de costas, entretanto, a paisagem pode refletir o instante de
dúvida, mistério, agonia e medo que toma a protagonista naquele momento. Os
cenários do filme e personagens foram todos construídos utilizando-se do
mínimo possível de computação gráfica, sob um apelo muito forte para a
maquiagem e iluminação. Isto gerou a peculiaridade do aspecto visual da obra
e reflete um pouco da experiência acumulada de Del Toro trabalhando como
supervisor de maquiagem, o que fica bastante aparente ao ser visualizado o
repertório estético do filme, através das personagens e cenários.
No cartaz de Mirrormask, o cenário parece representar um estado de
devaneio, O ambiente não possui uma característica animista homogênea,
senão a do sonho. Uma névoa divide o cenário em duas porções, embora
ambas as partes se misturem de maneira disforme. Na metade inferior, a
30

protagonista Helena é observada sentada sobre um chão composto por seus


desenhos e rabiscos, segurando uma máscara. A partir da névoa que envolve
Helena, do centro para o topo do cartaz, podem ser observados alguns
elementos que interagem com um campo imaginário que flui revelando
subsídios surreais (DURAND, 2004, p.103). Estes elementos apresentam ao
indivíduo que observa o cartaz um grande aporte do repertório visual do filme,
que pode ser um convite ao espectador para adentrar a um ambiente onírico e
fantástico, sugerindo peixes que nadam num espaço aéreo, gigantes que
flutuam abraçados, que se misturam a outros componentes fantásticos que
permeiam o filme e que não aparecem no cartaz, como os pássaros-macacos,
as esfinges, livros voadores e as incontáveis escadas espirais. As paisagens
do filme parecem fluir contíguas a um sonho, mesmo antes de Helena entrar no
ambiente fantástico de Mirrormask.
Além dos cenários animistas, é possível enxergar o jogo de contrastes
entre luz e escuridão, outra característica do expressionismo alemão, na bacia
semântica dos realizadores dos filmes, mas isso é mais perceptível em
Labirinto do Fauno. O ambiente de suspense é formado pela cortina de
sombras constante durante o filme e que também aparece no cartaz. Neste,
Ofélia é circundada por luz, contrastando com a cena toda, que é imersa na
escuridão. Esta luz parece reforçar o conteúdo mágico do filme, revelando
detalhes azulados da noite.
No pôster de Mirrormask há tanto luzes duras quanto difusas, vindo de
direções diversas, completando o sentido de devaneio e irrealidade do
audiovisual. A iluminação é utilizada de forma condizente com a que é vista na
maioria dos momentos na atmosfera visual do longa-metragem, entretanto, as
cores são mais saturadas, enquanto que no audiovisual, especialmente nos
momentos de fantasia, vê-se um aspecto tonal muito mais desbotado. A luz
neste ambiente fantástico é constantemente dramática, havendo uso mais
acentuado das sombras nos momentos de clímax.
31

FIGURA 9: Uso de tons desbotados no filme de


Dave McKean em comparação ao cartaz de cores vibrantes

Uma característica surreal bastante freqüente em ambos os filmes e em


muitos do gênero do realismo-fantástico, e da fantasia em geral, é o
aparecimento de personagens estranhos, deformados, apresentando em sua
constituição física a hibridização entre seres de origem dessemelhante. Uma
face surreal de ambos os filmes fica bastante exposta com o aparecimento de
tais criaturas, que oscilam entre personagens que protagonizam seqüências
importantes da narrativa e outros que não passam de figurantes que ajudam a
corroborar o onirismo das linguagens visuais aparentes.
32

FIGURA 10: Algumas das tantas personagens surreais de Mirrormask

FIGURA 11: Criaturas sombrias do filme de Del Toro

As bacias semânticas dos filmes parecem possuir freqüentemente


afluência da vanguarda representada por Dali, Ernst, Magritte, etc. Em
Mirrormask, as já citadas esfinges, pássaros-macaco e gigantes abraçados
aparecem para compor cenas que assumem o componente surreal, integrados
à narrativa de sonho lúcido de Helena. Na produção de Del Toro estas
influências também são visíveis. O Fauno, apesar de já ser uma figura mítica
romana conhecida, antropomórfica dentro do próprio mito (bem como a esfinge
no caso anterior), ainda assim pode ser considerada uma criatura paradoxal e
surreal dentro da estrutura do filme. Além dele, há a figura do obscuro Homem
Pálido, personagem a quem cabe protagonizar momentos de terror dentro da
trama, e a ninfa-fada, bastante fabulosa, no sentido literal da palavra.
33

FIGURA 12: As figuras deformadas de Dali postas ao lado de algumas de Mirrormask

FIGURA 13: O anjo do lar, de Max Ernst, mostra mais um ser híbrido

Mas há outra característica marcante do surrealismo que pode entrar em


diálogo com os filmes. O mundo interior das personagens é levado em conta,
deixa-se transparecer por vezes representações do que parecem ser marés do
subconsciente das protagonistas, fazendo caminhar a representação gráfica
em direção à linha da narração. Assim, a história fornece um fluxo onde a
fantasia mescla-se ao real no filme. O mundo interior das personagens também
habita a atmosfera visual das produções. Ambas as histórias enlaçam a
linguagem visual ao argumento do filme e o desenrolar da narrativa, levando
em conta a figura da personagem principal.
É possível relativizar acerca da aproximação que a atmosfera visual em
Labirinto do Fauno faz, por exemplo, dos contos de fada. Não distante disso,
está o fato da protagonista Ofélia ter o hábito da leitura de fábulas. Seu gosto
pelos contos a faz fugir da posição de repressão em que se encontra, com a
34

mãe em uma situação instável e o ambiente da guerra civil por sua volta. Esta
atmosfera mágica é refletida e circunda o audiovisual, inclusive, a ilustração do
cartaz lembra em algo os contos de fadas. A representação pictórica, as luzes
muito brilhantes esporádicas e o tema azulado da noite reforçam essa
impressão.
Em Mirrormask este processo também pode ser observado. Quando
Helena percebe que está envolta por um mundo de fantasia, lembramo-nos dos
seus desenhos, sua fuga do cotidiano. Também aqui parece presente o mundo
interior da personagem, adjacente ao mergulho no fantástico. A protagonista
tem em sua vida um cotidiano circense que a desagrada, a constância dos
espetáculos e problemas familiares e afetivos que vemos refletirem-se na
esfera de fantasia do filme. Além do ambiente de picadeiro, os rascunhos de
Helena mostrados ao longo do filme fazem parte da junção entre os
acontecimentos da linha narrativa e a linguagem visual. No cartaz, a
personagem segurando a máscara da ilusão pára sobre um chão repleto de
desenhos seus, enquanto que no topo está o mundo fantástico projetado,
produto, dentre outras coisas, do seu mundo interior.

FIGURA 14: Um dos desenhos de Helena

A isto se pode atrelar a participação afetiva do espectador. O complexo


de projeção-identificação, que incluiria os fenômenos subjetivos que
transformam a realidade objetiva, comporta o fator da magia. Este pode
acontecer quando os estados psíquicos tomam uma maior proporção, onde a
identificação atinge o ponto da consideração dos mitos, deuses, etc. (MORIN,
35

1970, p.112) e também é o caso das aproximações do público do cinema à


narrativa fantasiosa do audiovisual. É o que discute Morin:
Mesmo cheio a transbordar de alma e, mais amplamente, mesmo
estruturado e determinado pela participação afetiva como está, o
cinema não deixa de responder às necessidades [...] Essas
necessidades já nós as sentimos: são as necessidades de todo o
imaginário, de todo o devaneio, de toda a magia, de toda a
estética: aquelas que a vida prática não pode satisfazer (MORIN,
1970, p. 136).

Na medida em que a humanidade avançou, o estado mágico das coisas


foi reprimido em favor da desmistificação do mundo. Assim, a magia passou a
ser interiorizada pelo individuo para tornar-se sentimento. Através dos
sentimentos nas participações afetivas, estão alocadas as projeções-
identificações. Deste modo, o estado anímico das personagens, transmitido
também pela expressão visual, valoriza o ingresso do espectador ao ambiente
fílmico. Por isso igualmente, a transmissão desses estados animistas para o
cartaz torna-se um convite à atmosfera visual da obra. Seja por meio da
linguagem de suspense “fabuloso” maduro de O Labirinto do Fauno, ou através
da esfera de devaneio que toma o espaço na ilustração de Mirrormask.

FIGURA 15: Tabela comparativa das protagonistas

Esta valorização dos sentimentos, acerca do que foi falado sobre o


alento das protagonistas dos filmes, embora seja uma característica própria da
narrativa, como já foi visto, reflete-se no visual. E este apelo ao afetivo também
foi uma característica marcante do cinema expressionista alemão. Bem como a
presença de um tirano na história. Em Mirrormask, esta personagem é vista no
pôster vigiando Helena, como ocorre durante o filme. Ela é quem rege a vida
no ambiente fantástico do filme. Representa uma face sombria da mãe da
36

protagonista, que também possui uma personagem representando a parte


oposta, quando se vê a imersão na fantasia.
Em Labirinto do Fauno é possível observar um tradicional tirano político
na personagem do Capitão Vidal. Fascista e violento, possui demais
características de um vilão arquetípico situado como autoridade-chave, líder
político no desenrolar de uma guerra civil. Entretanto, observando-se que o
tirano do expressionismo é aquela personagem sinistra que pode administrar
as situações mágicas, abrigando os poderes para controlar a realidade a sua
volta, este papel pode ser também atribuído ao Fauno.

FIGURA 16 e 17: Os tiranos identificados

Trivial e obscuro, faz Ofélia questionar suas intenções, submetendo-a ao


mundo de fantasia torturada que acomete a protagonista. Em alguns cartazes o
fauno é apresentado como a figura principal, entretanto, na peça escolhida
para análise não consta sua presença física. Mas pode ser arriscado dizer que
ele não está ao menos mencionado lá.
No pórtico representado no cartaz vemos uma cabeça de bode. Esta
construção faz parte da cena no filme, então vale também ser considerado
outro elemento que não consta no mesmo instante no audiovisual: A entrada
para o labirinto, que tem a forma de chifres. O fauno se conhece,
mitologicamente, por ser constituído pela figura híbrida entre um homem e um
37

caprino. Os chifres, além de trazerem a lembrança a respeito desta figura,


possuem também sua conotação ocultista e são de grande recorrência em
criaturas dentro dos contos fantásticos de horror e representações gráficas de
personagens obscuros.

FIGURAS 18 e 19: Representação do Chtulhu, personagem


de H.P.Lovecraft, e a imagem de Baphomet, do ocultista Eliphas Levi.

Os temas ocultos são bastante comuns na filmografia de Del Toro, que


já tratava de fantasmas em A Espinha do Diabo (2001), o tema da vida eterna
em Cronos (1993) e demônios em Hellboy (2004). O diretor constantemente
teve seus filmes premiados em categorias relacionadas à fotografia. O
elemento suspense em seus filmes sempre influiu nos ambientes escuros e
sombrios desenvolvidos. Os tons escuros, de forma geral, parecem permear
suas obras.
Enquanto isso, em Mirrormask é possível observar, além de algum gosto
também pelo escurecido, alguma preferência por tons arenosos e dourados. O
trabalho de Dave McKean tem esta particularidade, desde as capas para as
HQs de Sandman (de 1989 a 1996). Seu reservatório de imagens também
pode ser em parte observado em alguns outros trabalhos como a capa para o
livro Someone Comes to Town, Someone Leaves Town (2005) e para Coraline
(2002).
38

FIGURAS 20, 21, 22 e 23: Trabalhos de


McKean com opção por tons amarelados

Além das cores, o estilo proveniente de experiências com recorte e


colagem permeia a obra de McKean. Isto também aparece na direção artística
do filme, inclusive no visual de personagens já citadas como a esfinge. O
cartaz não apresenta esta estética da colagem, entretanto flerta com algumas
tonalidades costumeiramente utilizadas por McKean.
Voltando à questão da narrativa refletida na direção de arte e fotografia e
rebatida, conseqüentemente, no projeto gráfico, pode ser analisado o uso das
metáforas verbais para traduzir determinados significados nos filmes. Isso pode
ser observado a partir dos títulos e a que podem se referir na trama. Pode-se
começar por Mirrormask. A máscara do espelho, traduzido como a máscara da
ilusão.
A partir da máscara é possível se retomar as noções de persona de
Jung. O termo se refere juntamente às máscaras utilizadas por atores no
período clássico. A persona faz referência ao caráter que alguém assume para
apresentar-se frente a sociedade, ou seja, à máscara ou face que uma pessoa
39

veste para enfrentar o mundo (JUNG, 2002, p.30). Já a metáfora do espelho


pode representar a criação de imagens múltiplas, geralmente ambíguas e que
desvelam aspectos mais interessantes do que a representação fiel de um
objeto. Para considerar a metáfora do espelho como uma identificação, basta
compreendê-la como a transformação no sujeito a partir de quando ele assume
uma imagem (LACAN, 1998, p.100). Na literatura, é também comum a
aplicação da metáfora do espelho para descrever situações como a descoberta
da identidade. No romance O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de
Queirós, por exemplo, ao olhar para o espelho, o padre percebe seu desejo
pelo corpo da mulher, que se estende à percepção da dimensão do seu próprio
corpo e desejo, paradoxalmente à sua condição de clérigo.
Transpondo-se as noções de Lacan e Jung, lançando um olhar análogo
à personagem Helena, em Mirrormask, percebe-se a angústia da protagonista
na sua busca por sua identidade. Talvez por isso, em sua estada no ambiente
fantástico, esteja ela cercada por elementos da sua imaginação, seus
desenhos, elementos estes, que também vem a compor as peças gráficas
promocionais do audiovisual. Sob o plano de fundo onírico, Helena projeta sua
imagem no papel da princesa do mundo obscuro que descobre. Jung propõe
que na busca por identidade, o ser humano utiliza e experimenta várias
máscaras, relacionando-as a supressões do ego. A partir do confronto com
estas personas, o indivíduo poderá em certo ponto retirar suas máscaras.
Assim, especulam-se relações entre as metáforas da máscara, do espelho, e o
mundo de fantasia, transposto na linguagem visual de Mirrormask.
Já o labirinto, metaforicamente costuma ser sugerido como uma
representação do conhecimento não-linear e da confusão, devido à sua
constituição rizomática. Esta concepção parece estar ligada à figura do Fauno,
não só pela lógica sugestão do título, mas também por esta personagem
possuir o poder mágico que gera a confusão e o caos na situação de Ofélia. As
espirais inscritas na testa do Fauno também suscitam à construção labiríntica.
Escadas espirais também são vistas em abundância no ambiente fantástico de
Mirrormask, e parecem ser de alguma recorrência em peças de cunho
fantástico, sobretudo em casos surreais, possivelmente pelo caráter
contraditório e paradoxal que dialoga com este gênero.
40

As espirais também possuem um caráter gráfico que flerta com a teoria


dos fractais. A virtualização à qual o Fauno submete o mundo concreto de
Ofélia oferece uma demonstração do controle transcendental exercido pela
figura. Entretanto, não há um diálogo tão profundo da metáfora em questão
com essas figuras, e a relação não flui de forma tão viscosa quanto em
Mirrormask. De certa forma, a metáfora verbal não parece tão presente no
cartaz do Labirinto do Fauno como no filme de Dave McKean, sendo que no
primeiro, parecem mesmo predominar a estética de fábula ilustrada, os
elementos visuais referentes às figuras principais e a atmosfera obscura de
mistério, magia e suspense do filme.
Analisados alguns fatores da comunicação entre a linguagem do filme e
a peça gráfica que o representa, cabe ainda ressaltar que o momento de
recepção do cartaz é diferente do momento de recepção do filme, pelo público.
O filme apela para a imersão, a fragmentação e a experiência, já o cartaz
remete à memória, ao relato e ao instante. É diferente a experiência de ver o
cartaz e ver o filme. O espectador, entretanto, com o olhar captado pela peça
de divulgação, pode ali receber informações capazes de convidá-lo para
assistir àquela obra.
41

6. Prática

Para desenvolver o teaser e o cartaz propostos como prática dessa


pesquisa pretende-se apropriar algumas recorrências do imaginário ligado à
fantasia, a partir dos filmes assistidos e analisados e dos seus respectivos
cartazes. Como aporte, o caráter descritivo da literatura de realismo fantástico
também pode emprestar algum estímulo criativo para o desenvolvimento de
uma estética fantasiosa convincente nas peças.
O tema das peças, naturalmente é o realismo fantástico. Mais
especificamente, a proposta apresenta um cartaz para um filme fictício,
baseado em um conto literário onde alguns dos principais elementos de
recorrência no subgênero podem estar presentes.
Parte-se de um mapeamento das bacias semânticas dos filmes
analisados. A proposta abre um diálogo das recorrências entre estas bacias e
os demais conteúdos investigados durante a pesquisa. O cartaz novo é
projetado para uma hipotética adaptação do conto ao cinema, pois no caso de
optar-se por um projeto de redesign, poderia ocorrer demasiada redundância, o
que não permitiria aplicar as recorrências examinadas da mesma maneira à
peça, sendo que o foco desta pesquisa são efetivamente os elementos de
recorrência entre cartaz e filme que estabelecem um imaginário como universo
semântico comum. Desta forma, em termos de aplicação teórico-metodológica
ao projeto, a pesquisa opta pelo desenvolvimento da peça a partir de um conto
com possibilidade de adaptação para a linguagem audiovisual.
O recurso técnico para realização do cartaz e do teaser foi a
manipulação fotográfica, sendo incluídos ainda recursos de colorização digital.
Realizaram-se estudos da técnica para poder criar a peça com acabamento
mais qualificado e resultados mais condizentes com os pretendidos, a partir de
temáticas surreais ou fantásticas.
42

FIGURAS 24, 25, 26 e 27: Experimentos com


fotomanipulação, praticados para aprimorar a técnica

Dados como data de veiculação, direção e cast principal, título e outros


elementos comuns aos cartazes de cinema constam na peça. Para o teaser,
somente informações mínimas se fazem presentes, na tentativa de provocar
curiosidade no hipotético espectador. O cartaz apresenta o formato de
circulação A3, enquanto que o teaser foi desenvolvido para amostragem em
tamanho A4, por se tratar de uma peça com menos detalhes.
43

Uma Voz Dentro da Noite foi um conto escrito pelo inglês William Hope
Hodgson, em 1907. Está ambientado num meio de suspense, e terror. A
atmosfera visual do conto situa-se em maior parte no mar aberto, sobre
condições de visibilidade dificultadas pela ação de uma névoa espessa. O
autor faz a história transmitir sensações de apreensão, medo, silêncio,
expectativa e curiosidade. Hodgson, durante sua carreira como escritor,
constantemente escreveu histórias relacionadas à vida no mar, por ter servido
como ajudante de marinheiro por muitos anos. Nesta, ele fala sobre um casal
náufrago que se vê isolado em uma ilha tomada por liquens e fungos
pegajosos, que misteriosamente parecem cativar aos dois. O homem sai em
alto mar em busca de comida, e acaba relatando a alguns marinheiros a sua
história, mas não quer mostrar seu rosto, deixando os marujos angustiados, por
quererem ajudar a um estranho que resiste em mostrar sua face. Com o
desenrolar do conto, o homem revela que ele e sua esposa foram tentados a
comer o estranho líquen, que parecia ter vida própria, e crescia
exponencialmente por todo lugar onde passava. Ao final, revela-se que o
homem já estava tomado pelos fungos, tornando inclusive sua aparência
semelhante a de um, e o homem vai embora para a ilha, deixando os
marinheiros espantados e comovidos pela situação.
Alguns trechos que podem servir como referência na construção do
objeto prático de pesquisa, seja por apresentar alguma descrição visual ou
desenhar parte da atmosfera presente durante a leitura do conto:

Era uma noite escura, sem estrelas. Estávamos paralisados por


uma calmaria a um ponto qualquer do noroeste do Pacífico. Nossa
posição exata eu não sabia, pois com uma semana estafante e
sem brisa, o sol se escondera por trás de uma fina bruma flutuante
em volta de nós à altura dos mastros, mas que, por vezes, descia
e embrulhava o mar num lençol. (HODGSON, 1968, p.85)

Chamaram de novo: era uma voz rouca que não tinha nada de
humano, que se elevava de algum lugar, a estibordo, na noite
escura.
- Ei, vocês de bordo!
- Ei! – respondi, depois de recobrar o ânimo. – Quem é você e o
que deseja?
44

- Não tenham medo – replicou a voz que talvez tivesse notado


perturbação no tom da minha resposta. – Eu sou... apenas um
pobre velho. (HODGSON, 1968, p.86)

Houve uma pausa e em seguida a voz acrescentou num tom que


parecia suplicar perdão por sua audácia:
- Se eu me arrisquei a vir pedir auxílio é porque estamos famintos
demais e os sofrimentos dela (a esposa) me torturavam. (...)
Subitamente, eu me dei conta de que o Ser Invisível que nos
falava não estava louco, mas que, ao contrário, era vítima de um
horror inominável. (HODGSON, 1968, p.92)

A partir deste ponto a narração passa a ser pela voz do homem que foi
pedir ajuda, contando sobre o naufrágio do navio Albatroz e como ele e sua
esposa sobreviveram:

Durante quatro dias ficamos à deriva através daquela bruma, até


na noite do quarto dia, quando ouvimos o barulho de ondas que se
quebravam numa praia que devia estar próxima. (HODGSON,
1968, p.97)

Cheguei finalmente a bordo (de um veleiro abandonado). Lá eu vi


que o convés estava coberto quase todo de grandes manchas
cinzentas, algumas delas entremeadas de nós que se elevavam
muitos pés acima do assoalho. (HODGSON, 1968, p.98)

Com efeito, conquanto um de nossos primeiros cuidados tivesse


sido raspar aquelas bizarras placas de vegetação que cobriam o
chão e as paredes dos camarotes e do salão, estas tornavam a
crescer no período de vinte e quatro horas. Isso não somente nos
desanimava como também nos dava uma vaga sensação de mal-
estar. (HODGSON, 1968, p.100)

Quando nos aproximávamos, notei que os horríveis cogumelos


que nos haviam afugentado no navio se espalhavam literalmente
pela terra firme. Em certos locais formavam horríveis e fantásticos
montículos que pareciam quase fremir quando o vento os agitava.
Era como se tivessem vida. Aqui e ali tomavam a forma de dedos
enormes e por vezes se espalhavam doces e traidores sobre o
solo. Algumas vezes, ainda, assumiam o aspecto de árvores
45

grotescas, cheias de nodosidades. E tudo aquilo, de quando em


vez, tremia de modo hediondo. (HODGSON, 1968, p.102)

Virei-me rapidamente e vi uma massa de líquen de forma


extraordinária, bem perto do meu cotovelo, agitando-se com um
movimento regular. Essa massa balançava com inquietação, como
se estivesse animada de uma vida própria. (HODGSON, 1968,
p.107)

Um braço em forma de galho se destacava das massas cinzentas


em torno e vinha em minha direção. A cabeça da coisa – uma bola
cinzenta e sem forma precisa – estava inclinada para o meu lado.
(...) Mas a minha angústia era insuportável, pois eu estava certo
de que acabava de assistir ao fim de um dos homens que tinham
aportado ali com aquele barco veleiro. E aquele monstruoso fim
prenunciava o nosso. (HODGSON, 1968, p. 108 e 109)

Após o homem contar sua história, a narração volta a ser do marinheiro


interpelado, que tentava enxergar o homem com quem conversara no mar por
tantas horas.

Instintivamente percebi qualquer coisa que se agachava entre os


remos. Parecia uma esponja: uma grande esponja cinzenta e
curvada. Os remos continuavam a fender o mar. Eram cinzentos,
como também era o bote. Meus olhos procuraram em vão o
contato da mão com o remo. Meu olhar fixou-se na cabeça. Ela se
inclinava para a frente, enquanto os remos mergulhavam para
trás. Depois, o bote saiu da mancha de luz e a... coisa continuou a
avançar hesitante para dentro do nevoeiro. (HOSGSON, 1968,
p.111).

Com base nestes trechos do conto de Hodgson, obteve-se um


referencial suficiente para criar as peças gráficas, valorizando as descrições
visuais do autor e tirando proveito da atmosfera de suspense já comentada que
é sugerida ao longo da obra.
Para a manipulação da peça principal, foram utilizadas imagens livres,
de stock de sites como o Stock.xchng 7, suficientes para encontrar os elementos

7
Disponível em: http://www.sxc.hu. Acesso em: 21/12/09
46

necessários para a representação desejada. O cenário do cartaz mostra o


navio abandonado onde o homem náufrago se depara pela primeira vez com
os liquens cinzentos que tomam parte crucial na trama. A cena representada
na peça tenta deixar transparecer a atmosfera e a sensação apreendidas a
partir da leitura do conto, por isso a névoa e a imensidão do mar estão
presentes. Os liquens aparecem em quase todo o casco da embarcação e
possuem alguns ramos mais abundantes na ponta e no topo do navio.
A observação de cartazes de filmes do gênero do realismo fantástico
auxiliou na composição do cartaz, sobretudo para gerar o ambiente em
questão, tentando comunicar ao espectador a aparência do hipotético filme. O
clima de suspense em muito foi inspirado por filmes que misturam o mundo da
fantasia com o terror, como o Labirinto do Fauno, por exemplo.
A lua cheia, hiper-realista e em proporções colossais, é um elemento
bastante recorrente que coube no cartaz para ajudar a preencher o ambiente
noturno e com incursões fantásticas da peça. Não por acaso, a lua nestas
condições também é vista na cena representada do cartaz analisado do
Labirinto do Fauno.

Figura 28: A lua, o céu, alguns liquens e


o barco, algumas das imagens utilizadas na fotomanipulação do cartaz.
47

Muita neblina e nuvens escuras foram utilizadas para contribuir com os


elementos de mistério e medo do conto, também tendo sido observados como
componentes de aparição freqüente no gênero da fantasia, sobretudo em
temas mais correlatos ao terror. O uso dos tons escuros, o uso abundante de
preto, foi uma característica observada do expressionismo alemão citado nos
capítulos anteriores.
Quanto à tipografia utilizada para o título, além de uma fonte de
influência gótica, eleita tanto por ser peculiar em temas mais obscuros,
referentes ao ocultismo (também supracitado), quanto por dar um tom de
literatura romântica à peça, apresenta a cor vermelha. Foram observadas para
as análises diversas peças gráficas referentes a filmes de apelo semelhante à
obra de Hodgson. Em várias delas, pôde-se constatar a presença de tipografia
avermelhada sobre uma ilustração em tons de azul. Isto, então, é
constantemente visto em filmes de suspense, alguns de apelo fantástico, como
no filme de Guillermo Del Toro inclusive, A Espinha do Diabo (2001). Além de
recorrente, imprime à peça um alto valor de contraste, causando tensão na
composição, entre as cores azuis e vermelhas.

FIGURA 29: A Espinha do Diabo

Para a confecção do teaser, foi escolhida uma solução muito mais


simples. A lua, muito maior e ainda mais hiper-real, serve como um elemento
48

que apresenta a faceta noturna do conto, que permeia quase toda a história.
Os elementos atmosféricos que têm presença no cartaz, como a névoa, o azul,
as sombras, também aparecem nesta peça, mantendo uma identidade concisa
para apresentar a obra como um todo. No topo vêem-se os liquens, que têm
presença importante na narrativa do conto, praticamente cumprindo o papel de
um tirano, que não se percebe representado por nenhuma das personagens.
Estes liquens têm função semelhante à da tipografia no centro, que apresenta
a data de estréia do hipotético filme: gerar um sentimento de curiosidade no
espectador que se depara com a peça.
49

7. Conclusão

Após comentários dos objetos resultantes da pesquisa, resta dialogar


sobre os resultados da mesma. Observando que o objetivo principal desde o
começo do estudo visava relacionar imaginário e design, a partir da análise de
cartazes de filmes do realismo fantástico, percebe-se que o principal diálogo a
ser indagado foi realizado. Tocaram-se aqui diversos assuntos que
contemplavam o foco do trabalho, ao lançar olhares sob teorias do imaginário,
da razão sensível, do design como prática projetual a partir dos estudos do
imaginário, literatura realista-fantástica e do cinema no curso da fantasia.
Esta pesquisa fez relações que dão margem a especular como os
campos imaginários participam na formação de um ambiente que liga o homem
contemporâneo ao seu entorno. Observou-se como o imaginário é presente
nas realizações do pensamento humano transposto em criação. Ligou-se a
noção de imaginário a prática projetual, e discutiu-se sobre estes estudos que
podem levar obras a tomar proporções mais afetivas, ao fazê-las relacionarem-
se mais com as impressões e percepções, por fim, com os sentidos.
Além disso, com este estudo, foi possível observar o imaginário de uma
obra a relacionar-se com o designer no desenrolar de um processo criativo. Foi
proposto e investigou-se a respeito da forma como linguagens visuais oníricas
e surreais podem ser expressas através dos projetos de cartazes, com o
estudo e mapeamento dos elementos de recorrência destas linguagens dentro
do subgênero do realismo fantástico. Por meio destas relações e demais
noções apresentadas no decorrer da pesquisa, também puderam ser
observadas as conexões da linguagem gráfica de cartazes com a estética dos
filmes, através de uma perspectiva do imaginário.
Propõe-se, com o desfecho deste trabalho, que se investigue mais sobre
as possibilidades dos campos do imaginário, sobretudo em áreas que
demandam da criação visual, como o design e o cinema. Na fotomanipulação,
por exemplo, onde pode haver interferência de objetos em ambientes onde
seriam improváveis, em que se podem criar, a partir de imagens realistas do
cotidiano, cenas que só seriam possíveis nos devaneios mais surreais ou em
exercícios imponderáveis de fantasia, abre-se um campo fértil para a
continuidade de estudos relacionados ao imaginário na prática do design.
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