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Maurice Merleau-Ponty

Conversas -1948

Organização e notas de
STEPHANIE MÉNASÉ

Tradução
FÁBIO LANDA
EVA LANDA

Revisão da tradução
MARINA APPENZELLER

Maurice Merleau-Ponty, escritor e filósofo, líder do pensa­


mento fenomenológico na França, nasceu em 14 de março de 1908,
em Rochefort, e faleceu em 4 de maio de 1961, em Paris. Estudou
na École Normale Supérieure em Paris, graduando-se em filosofia
em 1931. Em 1945 foi nomeado professor de filosofia da Universi­
dade de Lyon e em 1949 foi chamado para lecionar na Sorbonne, em
Paris. Em 1952 ganhou a cadeira de filosofia no Collège de France.
Entre suas obras, encontram-se: Signos, Fenomertologia da percepção,
A natureza.
Martins Fontes
São Paulo 2004
CAPÍTULO I
O MUNDO PERCEBIDO E O MUNDO
DA CIÊNCIA

O mundo da percepção, isto é, o mundo que


nos é revelado por nossos sentidos e pela expe­
riência de vida, parece-nos à primeira vista o que
melhor conhecemos, já que não são necessários
instrumentos nem cálculos para ter acesso a ele e,
aparentemente, basta-nos abrir os olhos e nos
deixarmos viver para nele penetrar. Contudo, isso
não passa de uma falsa aparência. Eu gostaria de
mostrar nessas conversas que esse mundo é em
grande medida ignorado por nós enquanto per­
manecemos numa postura prática ou utilitária, que
foram necessários muito tempo, esforços e cultu­
ra para desnudá-lo e que um dos méritos da arte
e do pensamento modernos (entendo por moder­
nos a arte e o pensamento dos últimos cinqüenta
CONVERSAS -1 9 4 8 O MUNDO PERCEBIDO E O MUNDO DA CIÊNCIA 3
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ou setenta anos) é o de fazer-nos redescobrir esse sas? O progresso do saber não consistiu em es­
mundo em que vivemos mas que somos sempre quecer o que nos dizem os sentidos ingenuamen­
tentados a esquecer. te consultados, e que não tem lugar num quadro
Isso é particularmente verdadeiro na França. verdadeiro do mundo, a não ser como uma par­
Reconhecer, na ciência e nos conhecimentos cien­ ticularidade de nossa organização humana, da
tíficos, um valor tal que toda nossa experiência qual a ciência fisiológica dará conta um dia, da
vivida do mundo se encontra imediatamente des­ mesma maneira como ela já explica as ilusões do
valorizada é uma característica, não apenas das fi­ míope ou do presbíope3. O mundo verdadeiro
losofias francesas, mas também do que se chama, não são essas luzes, essas cores, esse espetáculo
mais ou menos vagamente, de espírito francês. Se sensorial que meus olhos me fornecem, o mun­
desejo saber o que é a luz, não é ao físico que devo do são as ondas e os corpúsculos dos quais a ciên­
me dirigir? Não é ele que me dira se a luz e, como cia me fala e que ela encontra por trás dessas fan­
se pensava numa certa época, um bombardeio de tasias sensíveis.
projéteis incandescentes4ou, como também se acre­ Descartes dizia até que, somente pelo exame
ditou, uma vibração do éter, ou finalmente, como das coisas sensíveis e sem recorrer aos resultados
admite uma teoria mais recente, um fenômeno as­ das pesquisas científicas, sou capaz de descobrir a
similável às oscilações eletromagnéticas? De que impostura dos meus sentidos e aprender a me fiar
serviria aqui consultar nossos sentidos ou nos de­ apenas na inteligênciabl. Digo que vejo um peda­
termos naquilo que nossa percepção nos informa ço de cera. Porém o que é exatamente essa cera?
sobre as cores, os reflexos e as coisas que os trans­
portam, já que, com toda evidência, são mèras a. Quando da gravação, o segmento de frase ' a não ser como uma
particu!aridade[,,.}' foi suprimido.
aparências e apenas o saber metódico do cientis­
b. Segundo a gravação: "Descartes dizia até que apenas o exame das
ta, suas medidas, suas experiências podem nos coisas sensíveis e sem recorrer aos resultados das pesquisas dentíScas me
permite descobrir a impostura dos meus sentidos e me ensina a fiar-me
libertar das ilusões em que vivem nossos sentidos apenas na inteligência."
e fazer-nos chegar à verdadeira natureza das coi­ 1. René Descartes, Méditations métaphysiques [trad. bras. Meditações
metafísicas, São Paulo, Martins Fontes, 2000], H Méditation. In Œuvres, ed.
A.T., vol. 9, Paris, Cerf, 1904, reed. Paris, Vrin, 1996, pp. 23 ss.; in: Œuvres et
a. Segundo a gravação: "bombardeio de partículas incandescentes". lettres, Pàris, Gallimard, col. "La Pléiade", 1937, reed. 1993, pp. 279 ss.
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Certamente, não é nem a cor esbranquiçada, nem tam da cera nua e sem qualidades que é sua fonte
o cheiro de flor que talvez ela ainda conserve, comum. Para Descartes, portanto, e essa idéia per­
nem a moleza que meu dedo sente, nem o ruído maneceu por muito tempo onipotente na tradição
surdo que a cera faz quando a deixo cair. Nada filosófica da França3, a percepção é apenas um iní­
cio de ciência ainda confusa. A relação da percep­
disso é constitutivo da cera, já que ela pode per­
ção com a ciência é a mesma da aparência com a
der todas essas qualidades sem deixar de existir,
realidade. Nossa dignidade é nos entregarmos à
por exemplo se a derreto e ela se transforma num
inteligência, que será o único elemento a nos re­
líquido incolor/sem odor preciso e que já não ofe­
velar a verdade do mundo.
rece nenhuma resistência ao meu dedo. Contudo,
Quando disse, há pouco, que o pensamento e
digo que a mesma cera ainda existe. Como deve­
a arte moderna reabilitam a percepção e o mun­
mos então entendê-la? O que permanece apesar
do percebido, naturalmente não quis dizer que
da mudança de estado é apenas um fragmento de
eles negavam o valor da ciência como instrumen­
matéria sem qualidades e, no máximo, uma certa
to do desenvolvimento técnico ou como escola de
capacidade de ocupar espaço, de receber diferen­
precisão e de verdade. A ciência foi e continua
tes formas, sem que o espaço ocupado ou a forma
sendo a área na qual é preciso aprender o que é
adquirida sejam determinados. Esse é o núcleo
uma verificação, o que é uma pesquisa rigorosa, o
real e permanente da cera. Ora, é evidente que que é a crítica de si mesmo e dos próprios pre­
essa realidade da cera não se revela apenas aos conceitos. Foi bom que se tenha esperado tudo
sentidos, pois estes me oferecem sempre objetos dela numa época em que ainda não existia. Po­
de grandeza e de forma determinadas. A verda­ rém, a questão que o pensamento moderno colo­
deira cera, portanto, não é vista com os olhoá*. Só ca em relação à ciência não se destina a contestar
podemos concebê-la pela inteligência. Quando sua existência ou a fechar-lhe qualquer domínio.
acredito ver a cera com meus olhos, só estou pen­ Trata-se de saber se a ciência oferece ou oferece­
sando através das qualidades que os sentidos cap­ rá uma representação do mundo que seja com-

a. Segundo a gravação: "A verdadeira cera, diz Descartes, não se vê


a. Segundo a gravação: "tradição filosófica francesa".
pois com os olhos."
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pleta, que se baste, que se feche de alguma manei­ para a observação, que sempre se pode imaginar
ra sobre si mesma,, de tal formaa que não tenha­ mais completa e mais exata do que a efetuada em
mos mais nenhuma questão válida a colocar além um determinado momento. O concreto e o sensí­
dela. Não se trata de negar ou de limitar a ciên­ vel conferem à ciência a tarefa de uma elucidação
cia; trata-se de saber se ela tem o direito de negar interminável, e daí resulta que não se pode con-
ou de excluir como ilusórias todas as pesquisas que siderá-los, à maneira clássica, como uma simples
não procedam como ela por medições, compara­ aparência destinada a ser superada pela inteli­
ções e que não sejam concluídas por leis, como as gência científica. O fato percebido e, de uma ma­
da física clássica, vinculando determinadas con­ neira geral, os eventos da história do mundo não
seqüências a determinadas condições. Não só essa podem ser deduzidos de um certo número de leis
questão não indica nenhuma hostilidade com re­ que formariam a face permanente do universo;
lação à ciência, como é ainda a própria ciência, inversamente, é a lei que é uma expressão apro­
nos seus desenvolvimentos mais recentes, que nos ximada do evento físico e deixa subsistir sua opa­
obriga a formulá-la e nos convida a responder ne­ cidade. O cientista de hoje não tem mais a ilusão,
gativamente. como o do período clássico, de alcançar o âmago
Afinal, desde o fim do século XIX, os cientistas das coisas, o próprio objeto. Precisamente sob esse
habituaram-se a considerar suas leis e suas teo­ aspecto, a física da relatividade confirma que a ob­
rias, não mais como a imagem exata do que acon­ jetividade absoluta e definitiva é um sonho ao nos
tece na natureza, mas como esquemas sempre mostrar3 cada observação rigorosamente depen­
mais simples do que o evento natural, destinados dente da posição do observador, inseparável de
a ser corrigidos por. uma pesquisa mais precisa, sua situação, e ao rejeitar^ a idéia de um observa­
eirí suma, como conhecimentos aproximados. Os dor absoluto. Em ciência, não podemos nos van­
fatos què a experiência nos propõe são submeti­ gloriar de chegar, pelo exercício de uma inteligên­
dos pela ciência a uma análise da qual não se pode
cia pura e não situada, a um objeto livre de qual-
esperar que jamais se acabe, pois não há limites
a. Segundo a gravação: "ela nos mostra
a. Segundo a gravação: "de alguma maneira". b. Segundo a gravação: "e ela rejeita".
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CAPÍTULO II
quer vestígio humano e exatamente como Deus o
EXPLORAÇÃO DO MUNDO PERCEBIDO:
veria. Isso em nada diminui a necessidade da pes­ O ESPAÇO
quisa científica e combate apenas o dogmatismo
de uma ciência que se considerasse o saber abso­
luto e total. Isso simplesmente faz justiça a todos
os elementos da experiência humana e, em parti­
cular, à nossa percepção sensível.
Enquanto a ciência e a filosofia das ciências
abriam, assim, as portas para uma exploração do
mundo percebido, a pintura, a poesia e a filosofia
entravam3 decididamente no domínio que lhes era
assim reconhecido e davam-nos uma visão, extre­
Observou-se, com freqüência, que a arte e o
mamente nova e característica de nosso tempo,
pensamento modernos são difíceis: é mais difícil
das coisas, do espaço, dos animais e até do ho­
compreender e apreciar Picasso do que Poussin ou
mem visto de fora tal como aparece no campo de
Chardin, Giraudoux ou Malraux mais do que Ma-
nossa percepção. Em nossas próximas conversas,
gostaríamos de descrever algumas das aquisições rivaux ou Stendhal. E, assim, algumas vezes a par­
dessa pesquisa. tir disso concluiu-se (como Benda, em Lã France
byzantiné1) que os escritores modernos eram bi­
zantinos, difíceis apenas porque não tinham nada
a dizer e substituíam a arte pela sutileza. Não existe
julgamento mais cego do que este. O pensamen­
to moderno é difícil, inverte o senso comum por-

1. Julien Benda, La France byzantine ou le Triomphe de la littérature pure,


a. Segundo a gravação: "Enquanto a ciência e a filosofia das ciências Mallarmé, Gide, Valéry, Alain, Giraudoux, Suarès, les surréalistes, essai d'une
psychologie originelle du littérateur, Paris, Gallimard, 1945; reed. Ffcris, UGE,
abriam assim as portas a uma exploração dp mundo percebido, verifica-se
col. "10/18", 1970.
que a pintura, a poesia e a filosofia entravam
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que tem a preocupação da verdade, e a experiên­ to, não fossem as condições físicas variáveis às
cia não lhe permite mais ater-se honestamente às quais ele é submetido. Este era o pressuposto da
idéias claras ou simples às quais o senso comum ciência clássica. Tudo muda quando, com as geo-
se apega porque elas lhe trazem tranqüilidade. metrias ditas não euclidianas, chega-se a conceber
Gostaria de encontrar hoje um exemplo desse como que uma curvatura própria do espaço, uma
obscurecimento das noções mais simples, dessa re­ alteração das coisas devida apenas ao seu deslo­
visão dos conceitos clássicos, que o pensamento camento, uma heterogeneidade das partes do es­
moderno persegue em nome da experiência, na paço e de suas dimensões que não são intercam-
idéia que parece, a princípio, a mais clara de todas: biáveis e afetam os corpos que nele se deslocam
a idéia de espaço. A ciência clássica baseia-se numa com algumas transformações. No lugar de um
distinção clara entre espaço e mundo físico. O es­ mundo em que a parte do idêntico e a parte da mu­
paço é o meio homogêneo onde as coisas estão dança estão estritamente delimitadas e se referem
distribuídas segundo três dimensões e onde elas a princípios diferentes, temos um mundo em que
conservam sua identidade, a despeito de todas as os objetos não conseguiriam estar em identidade
mudanças de lugar. Existem muitos casos em que absoluta com eles mesmos, onde forma e conteú­
se observa as propriedades de um objeto mudarem do estão como que baralhados e mesclados, e que,
com o seu deslocamento, por exemplo o peso, se por fim, não oferece mais essa estrutura rígida que
transportamos o objeto do pólo ao equador, ou lhe era fornecida pelo espaço homogêneo de Eu-
mesmo a forma, quando o aumento de temperatu­ clides. Toma-se impossível distinguir rigorosamen­
ra deforma o sólido. Porém, justamente, essas mu­ te o espaço das coisas no espaço, a idéia pura do
danças de propriedades não são imputáveis ao espaço do espetáculo concreto que nossos senti­
próprio deslocamento, o espaço é o mesmo no pólo dos nos oferecem.
e no equador, são as condições físicas de tempera­ Ora, as pesquisas sobre a pintura modema con­
tura que vãriam aqui e ali, o domínio dá geometria cordam curiosamente com as da dênda. O ensina­
permanece rigorosamente distinto do domínio da mento clássico distingue o desenho da cor3: dese-
física, a forma e o conteúdo do mundo não se mes­
clam. As propriedades geométricas do objeto per­ a. Segundo a gravação: "o ensinamento clássico, em pintura, distin­
maneceriam as mesmas durante seu deslocamen­ gue o desenho da cor [...]"
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nha-se o esquema espacial do objeto, depois este uma árvore perto dele, depois fixa seu olhar mais
é preenchido por cores. Cézanne, ao contrário, diz: adiante, na estrada, por fim, leva-o ao horizonte
"à medida que se pinta/ desenha-se" 2 - querendo e, de acordo com o ponto que fixa, as dimensões
dizer que, nem no mundo percebido, nem no qua- aparentes dos outros objetos são a cada vez modi­
droa que o exprime, o contorno e a forma do ob­ ficadas. Em sua tela, dará um jeito de representar
jeto são estritamente distintos da cessação ou da apenas um compromisso entre essas diversas vi­
alteração das cores, da modulação colorida que sões e irá esforçar-se por encontrar um denomi­
deve conter tudo: forma, cor própria, aspecto do nador comum a todas essas percepções, atribuin­
objeto, relação do objeto com os objetos vizinhos. do a cada objeto não o tamanho, as cores e o as­
Cézanne quer gerar o contorno e a forma dos ob­ pecto que apresenta quando o pintor o fixa, mas
jetos como a natureza os gera diante de nossos um tamanho e um aspecto convencionais, os que
olhos: pelo arranjo das cores. E daí decorre que a se ofereceriam a um olhar fixado na linha do ho­
maçã que ele pinta, estudada com uma paciência rizonte num certo ponto de fuga para o qual se
infinita em sua textura colorida, acaba por inflar-se, orientam a partir de então todas as linhas da pai­
por romper os limites que o desenho bem compor­ sagem que vão do pintor ao horizonte. As paisa­
tado lhe imporia. Nesse esforço para reencontrar gens assim pintadas têm, portanto, um aspecto
o mundo tal como o captamos em nossa expe­ tranqüilo, decente, respeitoso, provocado pelo fato
riência vivida, todas as precauções da arte clássica de serem dominadas por um olhar fixado no infi­
são despedaçadas. O ensinamento clássico da pin­ nito. Elas estão longe, o espectador não está com­
tura baseia-se na perspectiva - ou seja, no fato de preendido nelas, elas são afáveis3, e o olhar desliza
que, diante de uma paisagem, por exemplo, o pin­ com facilidade sobre uma paisagem sem aspere­
tor decidia só transportar para sua tela uma repre­ zas que nada opõe à sua facilidade soberana. Po­
sentação-totalmente convencional do que via. Vê rém, não é assim que o mundo se apresenta a nós
no contato com ele que nos é fornecido pela per­
2. Émile Bernard, Souvenirs sur Paul Cézanne, Pàris, À la rénovation es­ cepção. A cada momento, enquanto nosso olhar
thétique, 1921, p. 39; retomado em Joachim Gasquet, Cézanne, Fàris, Ber-
nheim-Jeune, 1926; reedição Grenoble, Cynara, 1988, p. 204.
a. Segundo a gravação: "dentro do quadro". a. Segundo a gravação: "elas são, seria possível dizer, afáveis".
CONXŒRSAS -1 9 4 8 EXPLORAÇÃO DO MUNDO PERCEBIDO: 0 ESPAÇO 15
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viaja através do espetáculo, somos submetidos a mente, em que, entre as partes do espaço, sempre
um certo ponto de vista, e esses instantâneos su­ se interpõe o tempo necessário para levar nosso
cessivos não são passíveis de sobreposição para olhar de uma a outra, em que o ser portanto não
uma determinada parte da paisagem. O pintor só está determinado, mas aparece ou transparece atra­
conseguiu dominar essa série de visões e delas ti­ vés do tempo.
rar uma única paisagem eterna porque interrom­ O espaço, assim, não é mais esse meio das coi­
peu o modo natural de ver: muitas vezes fecha um sas simultâneas que poderia ser dominado por um
olho, mede com seu lápis o tamanho aparente de observador absoluto, igualmente próximo de todas
um detalhe que ele modifica graças a esse proce­ elas, sem ponto de vista, sem corpo, sem situação
dimento e, submetendo todas essas visões livres a espacial, pura inteligência, em suma - o espaço da
uma. visão analítica, constrói desta forma em sua pintura moderna, dizia recentemente Jean Raulhan,
tela uma representação da paisagem que não cor­ é "o espaço sensível ao coração"3, onde também
responde a nenhuma das visões livres, domina seu estamos situados, próximos de nós, organicamen­
desenvolvimento movimentado, mas também su­ te ligados a nós. "Pode ser que em um tempo con­
prime sua vibração e sua vida. Se muitos pintores, sagrado à medida técnica e como que devorado
a partir de Cézanne, recusaram curvar-se à lei da pela quantidade", acrescentava Paulhan, "o pintor
perspectiva geométrica, é porque queriam recu­ cubista celebre, à sua maneira, num espaço me­
perar e representar o próprio nascimento da pai­ nos concedido à nossa inteligência do que ao nos­
sagem diante de nossos olhos, é porque não se so coração, algum casamento secreto e uma recon­
contentavam com um relatório analítico e queriam ciliação do mundo com o homem"4.
aproximar-se do estilo propriamente dito da ex­ Depois da ciência e da pintura, também a fi­
periência perceptiva. As diferentes partes de seus losofia e. sobretudo a psicologia parecem atentar
quadros são então vistas de ângulos distintos, ofe­
recendo ao espectador pouco atento a impressão 3. "La Peinture moderne ou l'espace sensible au cœur". La Table ron­
de "erros de perspectiva", mas dando aos que ob­ de, n? 2, fev. 1948, p. 280; "o espaço sensível ao coração", a expressão é re­
tomada nesse artigo remanejado para La Peinture cubiste, 1953, I^ris, Galli­
servam atentamente o sentimento de um mundo mard, col. "Foiio Essais", 1990, p. 174.
em que jamais dois objetos são vistos simultanea­ 4. La Table ronde, ibid., p. 280.
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CONVERSES- 1948 EXPLORAÇÃO DO MUNDO PERCEBIDO: O ESPAÇO 17

ao fato de que nossas relações com o espaço não a maioria dos psicólogos hoje compreende a ilu­
são as de um puro sujeito desencarnado com um são da lua no horizonte. Descobriram por meio
objeto longínquo, mas as de um habitante do es de experiências sistemáticas que comportar uma
paço com seu meio familiar. Como, por exemplo, constância notável das grandezas aparentes no
a compreensão da famosa ilusão de ótica já estu­ plano horizontal corresponde a uma proprieda­
dada por Malebranche, que faz com que a lua, ao de geral de nosso campo de percepção, enquan­
nascer, quando ainda está no horizonte, pareça- to, ao contrário, elas diminuem bem rapidamen­
nos muito maior do que quando atinge o zénite . te com a distância em um plano vertical, e isso
Malebranche supunha aqui que a percepção hu­ indubitavelmente porque o plano horizontal, para
mana, por uma espécie de raciocínio, superestima nós, seres terrestres, é aquele em que se fazem os
o tamanho do astro. Com efeito, se o observarmos deslocamentos vitais, em que se desenvolve nos­
sa atividade. Assim, aquilo que Malebranche in­
através de um tubo de papelão ou de uma caixa
terpretava como atividade de uma inteligência
de fósforos, a ilusão desaparece. Ela deve-se por­
pura, os psicólogos dessa escola relacionam com
tanto ao fato de que, quando nasce, a lua se apre­
uma propriedade natural de nosso campo de per­
senta a nós além dos campos, dos muros, das ár­
cepção, nós, seres encarnados e obrigados a nos
vores, de que esse grande número de objetos in­
movimentar sobre a terra. Em psicologia, assim
terpostos nos toma sensíveis à sua grande distân­
como em geometria, a idéia de um espaço homo­
cia, do que concluímos que, para resguardar a
gêneo completamente entregue a uma inteligên­
grandeza aparente que conserva, estando contu­
cia sem corpo é substituída pela idéia de um es­
do tão distante, a lua deve ser muito grande. O
paço heterogêneo, com direções privilegiadas, que
sujeito que percebe seria aqui comparável ao sá­
têm relação com nossas particularidades corporais
bio que julga, estima, conclui, e o tamanho perce­ e com nossa situação de seres jogados no mundo.
bido seria na realidade julgado. Não é assim que Encontramos aqui, pela primeira vez, essa idéia
de que o homem não é um espírito e um corpo,
5. Malebranche, De la recherche de la vérité, 1 .1, cap. 7, § 5, ed. G. Le­ mas um espírito com um corpo, que só alcança a
wis, Paris, Vrin, 1.1,1945, pp. 39-40; in: Œuvres complètes, Riris, Gallimard,
col. "La Pléiade", 1979,1.1, pp. 70-1.
verdade das coisas porque seu corpo está como
18 CONVERSAS - 194S

que cravado nelas. A próxima conversa nos mos­


trará que isso não é apenas verdadeiro para o es­
paço e que, em geral, todo ser exterior só nos é
acessível por meio de nosso corpo e é revestido de
atributos humanos que fazem dele também uma
mescla de espírito e de corpo.

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