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Introdução
O ativismo de mulheres negras brasileiras ganhou relativa visi-
bilidade na última década. O seu impacto pode ser observado em
diferentes dimensões da sociedade, passando pelas redes sociais,
programas de entretenimento na televisão e, de maneira especial,
no debate sobre déficit democrático e sub-representação de inte-
grantes de grupos subalternizados na política institucional. Porém,
ainda há uma carência de análises histórico-políticas sobre a traje-
tória do ativismo feminista negro no país e sua interconexão com
fenômenos semelhantes em outras partes do mundo.
A Psicologia e a Sociologia estão entre as poucas áreas a desen-
volver uma produção importante nesse campo e são referência
para novos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos atualmente.
Este artigo visa a preencher a lacuna sobre esse debate na Ciência
Política, em diálogo interdisciplinar, ao apresentar uma discussão
empírico-teórica que analisa os contextos políticos e históricos,
1 Professor adjunto do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG (PPGCP-UFMG). Pesquisador
do Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (Margem), do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
a Mulher (Nepem) – ambos vinculados ao PPGCP-UFMG –, e da Rede de Pesquisas em Feminismos
e Política. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: <cristianor@gmail.com>
2 Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de
Pesquisa em Democracia e Justiça. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte,
MG, Brasil. E-mail: <vivianegoncalvesfreitas@gmail.com>
Revista Brasileira de Ciência Política, nº 34. e238917, 2021, pp 1-54.
DOI: 10.1590/0103-3352.2021.34.238917
2 Cristiano Rodrigues & Viviane Gonçalves Freitas
3 Adotamos a grafia do título do periódico e do nome do coletivo conforme utilizada pelo próprio
jornal e coletivo: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PNZINRJ071988004.pdf.
4 Cristiano Rodrigues & Viviane Gonçalves Freitas
4 Parte das reflexões da seção 1 integram a tese de doutorado de Freitas (2017), intitulada “De qual
feminismos estamos falando: desconstruções e reconstruções das mulheres, via imprensa feminista
brasileira, nas décadas de 1970 a 2010”, realizada com bolsa Demanda Social – CAPES, de abril/2013
a março/2017, sob orientação de Flávia Biroli, no Instituto de Ciência Política, da Universidade de
Brasília. Em 2018, a pesquisa foi publicada em forma de livro – Feminismos na imprensa alternativa
brasileira: quatro décadas de lutas por direitos –, pela Paco Editorial.
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5 Aqualtune foi uma princesa africana do Congo, que, como guerreira e estrategista, liderou um
exército de 10 mil homens para defender o seu reino contra a invasão portuguesa, em 1695. Após a
derrota no conflito, foi escravizada e vendida no Brasil como escrava reprodutora. Grávida, organizou
uma fuga para o Quilombo dos Palmares, o maior da América Latina. Seus filhos, Ganga Zumba
e Gana, foram importantes chefes de Palmares. Seu neto Zumbi era descendente de Sabina, sua
terceira filha (ARRAES, 2020).
6 Nzinga foi uma rainha africana que, por enfrentar o colonialismo português em Angola, transformou-se,
ao longo dos séculos, em símbolo de luta, como guerreira e estrategista. Após 35 anos de conflitos,
foi morta em 1663, em pleno campo de batalha. Sem a sua comandante, os guerreiros se renderam
e muitos foram aprisionados e trazidos ao Brasil (MULHERES..., 1985, p. 2-3).
7 Mãe Andresa, ou Andresa Maria de Souza Ramos (1854-1954), foi uma das mais importantes mães
de santo do estado do Maranhão. Assumiu a chefia da Casa de Mina Jeje quando tinha 60 anos e
exerceu essa atividade durante quatro décadas. Era considerada uma pessoa generosa e se tornou
respeitada e conhecida também em outros estados (LEMOS, 2016).
6 Cristiano Rodrigues & Viviane Gonçalves Freitas
8 O termo Geledè, na tradição africana, remete a uma forma de sociedade secreta feminina de caráter
religioso das sociedades tradicionais iorubás – consideradas, hoje, patrimônio da humanidade.
Expressa o culto ao poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem-estar da
comunidade. Também se vincula à reapropriação das tradições culturais negras, reafirmando, diante
do feminismo de ideário judaico-cristão, o patrimônio cultural e simbólico próprio das mulheres
negras (BORGES, 2009; CARNEIRO, 2018).
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9 A estética afropop é uma identidade artística e de comportamento que representa a união entre
os ritmos afro-brasileiros e o comportamento do rock e da sonoridade das guitarras, teclados
e timbres da música pop mundial. A cantora baiana Margareth Menezes é uma das principais
representantes desse estilo na atualidade.
12 Cristiano Rodrigues & Viviane Gonçalves Freitas
10 Os dados empíricos e reflexões apresentados na segunda e terceira seções deste artigo foram
coletados no âmbito do Projeto “Mulheres Negras em Movimento(s): trajetórias, intersecções e
novos cenários para a teoria e práxis feminista negra no Brasil”, financiado pelo CNPq (Processo
432980/2016-4).
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Figura 2 – Doze candidatas das Muitas à Câmara Municipal de Belo Horizonte (2016)
16 O vídeo da campanha de 2016 das Muitas pode ser acessado aqui: https://drive.google.com/
file/d/17WLjr60rBtlHQsh8MWbB5qgsuTENzPnT/view
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Quadro 1 – Perfil das candidatas das Muitas à Câmara Municipal de Belo Horizonte (2016)
Candidata Gênero Cor/Raça Pautas
17 A Gabinetona teve início em 2016. Dois anos depois, Andréia de Jesus foi eleita para Assembleia
Legislativa de Minas Gerais, ampliando a experiência para as três esferas legislativas. Os “quatro
mandatos parlamentares [configuram-se] em um mandato coletivo com ações e estratégias
compartilhadas” (GABINETONA, [2019], s.p.). Segundo informações do site da Gabinetona, participam
dos trabalhos “mais de 90 ativistas, trabalhadoras e pesquisadoras em estreito diálogo e cooperação
com cidadãs e movimentos, e em sintonia com as lutas populares” (GABINETONA, [2019], s.p.).
18 Disponível em: http://www.ocupapolitica.org/. Acesso em 3 out. 2020.
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Considerações finais
Desde a organização do Movimento de Mulheres Negras, nos
anos 1980, até o presente, feministas negras têm utilizado uma
miríade de repertórios discursivos e estratégias de confronto, os
quais se alinham ao contexto histórico e social em que atuam com
os objetivos de: (i) alterar os estereótipos negativos acerca das
mulheres negras; (ii) impactar e influenciar positivamente insti-
tuições formais para a construção e implementação de políticas
sensíveis à promoção contínua de igualdade de gênero e raça; e (iii)
promover o empoderamento de mulheres negras. Inicialmente,
essas estratégias estiveram voltadas para a consolidação de sua
autonomia organizativa frente aos movimentos negros e feministas,
seguida pelas tentativas de estabelecer uma identidade como sujeito
político “mulheres negras”, perpassada por uma “diversidade inco-
mensurável” (WERNECK, 2008, p. 2). Nas décadas subsequentes,
houve a consolidação efetiva de formatos de ativismos feministas
negros especificamente brasileiros, marcada por sua alta capacidade
de incidência política nacional e na América Latina. Na década
corrente, assistimos a um movimento de continuidade e ruptura
em relação aos formatos de ativismo consolidados anteriormente.
A ascensão de jovens feministas negras com suas maneiras inova-
doras de fazer política, o recrudescimento das organizações de base
voluntária e as estratégias de “ocupação da política” representam
a quintessência do feminismo negro brasileiro da década de 2010.
Ao “mover as estruturas”, as feministas negras também sofrem
com ataques, rechaços e forte backlash contra sua ação política.
Desde tentativas contínuas de deslegitimação de sua produção
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Referências
ALONSO, Angela. Repertório, segundo Charles Tilly: história de
um conceito. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n.
3, p. 21-41, 2012.
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Resumo
Este artigo analisa a trajetória política do ativismo feminista negro no Brasil,
os seus repertórios discursivos acerca das intersecções entre gênero, raça
e outras categorias sociais em três tempos. O material de análise provém
de dois projetos de pesquisa conduzidos entre 2013 e 2019. Os dados
apresentados foram coletados de documentos internos e jornalísticos do
Movimento de Mulheres Negras, documentos governamentais, conversas
informais e entrevistas semiestruturadas com ativistas negras de Belo
Horizonte. O artigo está dividido em três seções, correspondentes a fases
específicas: na primeira, nos concentramos no processo de autonomização
do Movimento de Mulheres Negras nos anos 1980 e analisamos os
repertórios utilizados e expressos no Nzinga Informativo. Em seguida,
analisamos suas estratégias de advocacy institucional na década de 1990 e
início dos anos 2000, período caracterizado pela tentativa de estabelecer
canais formais de participação política para as mulheres negras dentro da
burocracia estatal e organizações internacionais. Finalmente, discutimos o
ressurgimento de mobilizações de rua na década de 2010 e a emergência
de dois cenários de mobilização política liderados por jovens ativistas
negras no Brasil: (i) a ascensão de uma geração de jovens feministas negras
que estão reformulando e/ou criando novos repertórios discursivos e de
confronto nas ruas, nas redes e na representação política; e (ii) a crescente
presença de mulheres negras exercendo mandatos legislativos, que, neste
texto, nomeamos como movimento de “ocupar a política”. Ao analisar esses
repertórios, este trabalho pode contribuir para um melhor entendimento
das várias estratégias de mobilização política que feministas negras estão
empregando no início do século XXI e seu impacto sociopolítico.
Palavras-chave: Movimentos sociais. Mulheres negras. Feminismo negro.
Feminismo interseccional. Ativismo político. Repertórios discursivos.
Abstract
This article analyzes the political trajectory of black feminist activism
in Brazil and its discursive repertoires with respect to the intersections
between gender, race and other social categories in three historical
moments. The article is based on two research projects conducted
between 2013 and 2019. The data presented in this article were collected
through internal and journalistic documents from the Black Women’s
Movement, government documents, informal conversations and semi-
structured interviews with Black women activists from Belo Horizonte. The
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