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SÍNTESE 1 – INTRODUÇÃO À TEORIA POLÍTICA FEMINISTA E CRÍTICA

FEMINISTAS E ANTIRRACISTAS AO CONTRATO SOCIAL

Gabriel Pereira Penna Andrade

A chamada Teoria Política Feminista ocupa um lugar sui generis dentro da tradição
política em geral. Como afirma Biroli (2017, p. 174-175), esse campo se distingue de outros
por ser uma teoria feita primariamente por mulheres enquanto mulheres, ou seja, reivindicando
essa identidade como relevante para a reflexão sobre o político e problematizando a exclusão
sistemática acerca do gênero na literatura canônica, que possui claro viés masculino, branco,
heterossexual e do Norte Global.
Isso não significa que o objeto primário de uma teoria política feminista sejam as
mulheres ou mesmo as relações de gênero. Esse conjunto de autoras pretende refletir sobre os
mesmos objetos da teoria canônica (como a natureza do poder legítimo, as instituições, os
movimentos sociais, a democracia), imprimindo nessas reflexões a categoria de gênero para
problematizar as afirmações anteriormente realizadas sobre essas temáticas (BIROLI, 2017, p.
175).
Uma outra característica distintiva da teoria política feminista é a relação entre a
normatividade e a empiria. Justamente por se colocar a partir da posição de subalterna, as
teóricas feministas questionam a divisão arbitrária entre o teórico e o empírico. Para a teoria
política feminista, a prática é inseparável da teoria, e a teoria se informa pela prática. A teórica
feminista é, nessa medida, uma ativista que usa a sua experiência e a de outras mulheres para
avançar a teoria política como um todo, ressaltando que as relações de gênero são temas de
interesse e prioritários no âmbito da ciência política, que não pode negligenciar as relações de
gênero historicamente construídas ao teorizar sobre o político.
Bayes (2012) vai além do debate epistemológico sobre os pressupostos da teoria política
feminista, mapeando seu desenvolvimento histórico e analisando seus temas de interesse. Para
a autora, esse campo se interessa especialmente por quatro grandes discussões: (i) uma reflexão
desde o Sul acerca das relações entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos,
demonstrando como a economia global do conhecimento subordina os conhecimentos dessas
regiões e como isso afeta as relações de gênero; (ii) uma preocupação mais voltada para a
representação e a democracia, refletindo sobre como os espaços de decisão são também espaços
historicamente masculinos e a consequência dessa conformação para grupos subalternos; (iii)
uma reflexão interdisciplinar acerca da divisão entre o público e o privado; e (iv) uma crítica
aos conceitos e teorias clássicos da teoria política, mostrando como essas formulações guardam
em si pressupostos de gênero que inevitavelmente se refletem nas conclusões tiradas, com
notáveis consequências para a disciplina.
As teorias políticas feministas surgem a partir de três grandes avanços: (i) o próprio
desenvolvimento capitalista, com a consequente mudança no mercado de trabalho e nas
relações entre o público e o privado de maneira geral; (ii) os movimentos sociais de mulheres
nos séculos XX e XXI, que possibilitaram a emergência de novos esquemas teóricos que se
aproveitam da experiência prática; e (iii) a própria consolidação da ciência política como
disciplina autônoma, representada pela institucionalização da International Political Science
Association (IPSA).
Atualmente, as teorias políticas feministas estão representadas dentro do campo mais
amplo da ciência política em, ao menos, três comitês de pesquisa da IPSA: o Research
Committee on Sex Roles and Politics (RC-19), o Research Group on Women, Politics, and
Developing Nations (RC-7) e o recente Research Committee on Gender, Globalization and
Democratization (RC-52). Os temas trabalhados por esses comitês são altamente
interdisciplinares e, em alguns momentos, chegam a se confundir, embora cada um desses
comitês tenham uma dinâmica própria e um contexto distinto de formação.
O texto clássico de Pateman (1988) representa uma confluência de diversas tendências
dentro do campo da teoria política feminista. Em primeiro lugar, está relacionado à crítica da
divisão público-privado, representado por uma formulação em que o próprio contrato social
teorizado pelos contratualista traria em si, implícito, também um contrato sexual, que
subordinaria as mulheres ao empurrá-las para o âmbito do privado, que não teria, nessa
formulação, caráter político. A tese de Pateman, portanto, tem uma relação clara também com
as críticas feministas às teorias canônicas da ciência política, uma vez que tem por base a
demonstração de como conceitos aparentemente neutros carregam em si vieses de gênero, e
como a análise a partir dessa categoria analítica permite o aprofundamento do conhecimento
em teoria política.
Mas é também possível fazer uma leitura de Pateman de forma a ressaltar a continuidade
entre O Contrato Sexual e sua obra anterior, Participação e Teoria Democrática, o que tornaria
possível também uma leitura de sua proposição à luz dos debates feministas sobre teoria
democrática. Segundo Luiz Felipe Miguel (2017, p. 3),

[h]á dois elementos, em Participação e teoria democrática, que sinalizam


desdobramentos posteriores da reflexão de Pateman. O primeiro deles é que, embora
não esteja preocupada com questões de gênero e não dê atenção ao ambiente familiar,
ela já põe em xeque a fronteira entre o público (o Estado, em que processos
democráticos de decisão são aceitos e mesmo requeridos) e o privado (as empresas,
nas quais é legítimo que impere o arbítrio do patrão). O segundo é a recusa a aceitar
ao pé da letra as maneiras pelas quais a submissão é formalmente admitida como
voluntária e, portanto, legítima. Ainda que, na democracia liberal, a participação no
processo eleitoral seja compreendida como a aceitação da autoridade que dele resulta,
na ausência de condições para uma ação efetiva e esclarecida esses resultados são
injustos e carentes de legitimidade.

A crítica de Pateman se centra na ideia de que o contratualismo, enquanto mito de


formação política da sociedade civil, tem por implícito também a formação de uma noção de
mulher que tem sido ignorada pelos críticos da teoria. Para a autora, a formação de um sujeito
livre capaz de contratar e possuidor de uma esfera pública e privada que não se tocam é uma
maneira de, através do contrato de casamento, relegar a posição feminina ao âmbito considerado
privado, enquanto o homem caminha entre as duas esferas.
A autora ressalta a necessidade de que a luta política não seja somente uma afirmação
da divisão entre público e privado, com mulheres tentando fazer com que o status de “Mulher”
seja equivalente ao de “Homem”. Antes, o que Pateman propõe é a demonstração de que o
contratualismo e, por consequência, toda a tradição liberal, partem de uma divisão sexual do
trabalho.
Outra grande contribuição para a literatura da obra de Pateman foi o refinamento do
conceito de patriarcado. O patriarcado enquanto conceito foi visto, por parte da literatura da
teoria política, como superado com o advento do contratualismo. A partir de Locke, argumenta-
se, o poder deixa de ser do pater familiae e passa a pertencer à sociedade civil, destruindo o
patriarcado. Pateman argumenta que essa visão trata o conceito de patriarcado de forma muito
rígida, tão somente como um sinônimo de poder paternal. Para ela, abandonar o patriarcado
enquanto conceito significa, fundamentalmente, abandonar o único conceito específico para se
referir às relações entre homens e mulheres. Sua proposta, portanto, é analisar o patriarcado
moderno, a partir das ideias dos contratualistas, tentando demonstrar a permanência de uma
dominação masculina centrada em relações conjugais.
Charles Mills (1999) parte da premissa de Pateman de que o contrato social esconde,
em si, outros “contratos” marcados pela subordinação ao analisar a existência também de um
“contrato racial”. O autor começa definindo o contrato racial como um acordo que define que
pessoas com uma determinada característica são brancas e que aquelas que não a possui são
não-brancas, sendo consideradas como sub-humanas e passíveis de subjugação. Não é,
portanto, um contrato entre brancos e não-brancos, mas entre brancos.
O contrato racial possui aspectos políticos, sociais e epistemológicos. Politicamente,
permite o colonialismo, uma vez que não considera as formações políticas não-brancas como
dignas de igual respeito e consideração. Socialmente, o contrato racial pode ser entendido tanto
pelo modelo lockeano, que defende ser o contrato político posterior ao estabelecimento da
moralidade pelo contrato social, quanto pelo modelo hobbesiano, que defende ser o contrato
político constitutivo da moralidade do contrato social. O autor, todavia, o analisará a partir da
tradição lockeana. Para Locke e Kant, o ser humano é detentor de dignidade intrínseca. No
contrato racial, contudo, a porção não-branca é excluída da categoria de pessoa, e não mais
dotados dessa dignidade. Por fim, a face epistemológica do contrato racial cria uma forma de
representar incorretamente as populações não-brancas. É essa, por exemplo, a razão do
orientalismo.
Diferente do contrato social, que é visto como meramente hipotético e normativo, ou do
contrato sexual de Pateman, que tem origens remotas, o contrato racial tem uma história
relativamente recente. Ele se inicia com a descoberta das Américas, quando surge a
globalização e o europeu se coloca como o grande tutor da humanidade. A partir disso, o não-
branco é visto ora como objeto de subjugação, ora como passível de tutela. O Iluminismo não
resolve a situação, uma vez que continua considerando o não-branco como inumano e só
desloca o eixo de dominação para uma razão secularizada. Não se deve compreender, em suma,
o racismo como uma má-compreensão dos conceitos iluministas, mas como parte constitutiva
da filosofia ocidental.
O contrato racial também tem uma face econômica, uma vez que foi feito para a
exploração de uma parcela considerável do globo. Dessa maneira, globalmente, nações não-
europeias são subjugadas economicamente em relação às nações europeias e, internamente,
pessoas de background europeu (fenótipo ou ascendência são privilegiados em relação aos que
não o possuem.
Em Contract and domination, Pateman e Mills se reúnem para analisar em conjunto sua
obra. Dois temas são especialmente relevantes nesse debate: a força do liberalismo na teoria
política e qual a natureza da teoria contratualista. Na primeira, Mills e Pateman discordam
acerca da utilidade de uma teoria liberal na emancipação de minorias de gênero e raciais. Ainda
que ambos ressaltem os problemas em criar uma filosofia baseada em um sujeito abstrato,
Pateman acredita que essa característica fundante do liberalismo o tornaria imprestável para
uma teoria feminista realmente emancipadora, enquanto Mills acredita que é possível utilizar
os insights liberais para alcançar a igualdade racial.
Acerca da natureza do contratualismo, a discussão se centra em qual teórico é
paradigmático de um contrato social e, portanto, pode ser usado para a crítica feminista e
antirracista. Mills interpela Pateman acerca da divisão entre um contratualismo stricto sensu,
ou seja, um modelo em que a moralidade é pré-existente, e um contractarismo, como o modelo
hobbesiano, onde a moralidade também é fundada pelo contrato social.
Por fim, a teoria de Shay Welch mostra como, mesmo com os problemas clássicos da
teoria canônica do contrato social no que diz respeito ao viés de gênero, ainda é possível refor
mar a teoria de uma maneira útil para a luta política de mulheres e outras minorias raciais e de
gênero. Sua proposta passa por analisar o consentimento não a partir de um modelo abstrato,
mas através de uma liberdade socialmente construída, capaz de refletir sobre os múltiplos
atravessamentos das situações sociais. Com isso, a autora propõe um modelo que alia a reflexão
crítica dos problemas do liberalismo com a agência dos grupos subalternos.
Em suma, a teoria feminista e antirracista do contrato demonstra claramente como a
teoria política feminista age: através da reflexão sobre como categorias consolidadas da teoria
política trabalham o problema de gênero, permite-se uma reflexão complexa, inovadora e de
fronteira na literatura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAYES, Jane H. Gender and Politics: The State of the Discipline. Barbara Budrich Publishers:
Toronto, 2012.
BIROLI, Flávia. Teorias Feministas da Política, Empiria e Normatividade. Lua Nova: Revista
de Cultura e Política, n. 102, p. 173-210, 2017.
MIGUEL, Luis Felipe. Carole Pateman e a crítica feminista do contrato. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 93, 2017.
MILLS. Charles W. The Racial Contract. New York: Cornell University Press, 1997.
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
PATEMAN, Carole e MILLS, Charles. Contract and Domination. UK: Polity Press, 2007.
WELCH, Shay. A Theory of Freedom: Feminism and the Social Contract. New York,
Palgrave Macmillan Editors, 2012.

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