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MANUAL DE _INVESTIGACAO EM CIENCIAS 4 a § G s Z SG | 2 = g a Ee £ a ~ & z g Zz Zz 3 ° T ReAo) CAG a OES) [ANTES DE SOCRATES —INTRODUGAO AOesrcoC DA TILCSOAA GRECA Soe Tia Sonos HISTORIA DA FILOSOFIA — PERIOD eran Yan Sterergen Sean Foi Lyd METAEIALOGOS Gregor ates : ELEMENTCS DEFILOSOFIA DA CENCIA {dvi Geyonat DO MUNDD FECHADO AO UNIVERSO IANO Dlexnae Kye (GEOGHAFIA HUMANA —TEORIAS suas APUCACOES MG. Heda 2. Ken (05 GRBG0s EO IRRACIONAL, Bie bass CREP }SCULODAIDADE MEDIA SurouruaaL ‘ONASCIMENTO DEUMA NOVA SICA Bernd Caen [AS DEMOGRACIAS CONTEMPORENEAS ‘ren pn [ARAZEO AS COISAS HUMANAS Ftten Siroe ‘PRE-ABULOS — os PaMtERo® Passes Bo HOMEY. Yes Compas oToMISMO PVanSeterthex ‘LUGAR DA DESOKDEM Rastand Evdon ‘CONS=SSOECONFLITO Qn Minin ip Manat DEINVESTIGAGAO EMCENGAS SOCTS Faymurd iy Li Van Cangestaus INAGEES ENACIONALISMO, Eres Geter ANGISTIA ECOLOGICA EOFLTURO REFLEXOSS SOBRE A REVOLLGAO Narunora NSOMBR’.— ESTUDO SOBRE ‘RecAkDESTINIDADECOMUNISTA Do Sank 40 FAZER: PORQUE ORGANIZARA CIENCIA 12, PARA UMA HISTORIACULTURAL, EM Gombe 24 AIDEXTDADEROUBADA Jou Care Games. ve 25, AMETODOLOGIA DAECONOMIA are Bag 26 A VELIIA EUROPA EANOSSA Sequel Galt 27, ACULTURA DA SUBTILEZA — ‘ASPECTOS DA FILOSOFIA ANALITCA MPS. Lowen 28. CONDICDES DA LIBERDADE rat Geter 29, TELEVISAO, UM PERIGO PARA ‘ADEMOcRACIA Ret Paper J Coney 20, RAWLS UMA TRORIA DA JUSTICA Eos seis cairicos Chand Kaba ip Flt 31, DEMOGRAPIA EDES:NVOLVENTO: ELEMENTOSBASICCS ‘lng Toes. 32 OREGR:SSO DO FOLITICO hat Heute 133 AMUSA APRENDE 4 ESCREVER Exe Haeeh 34 NOVASREGRAS DOMETODO S0COL36IC0 ‘wthony ides 28, AS POLITICAS SOCIAIS EM FORTUGAL Feng Metin Carer 16 A ECONOMIA PORTUGUESA PESDE 1960 Souk nv Lape (COMO REALIZAR Un PROJECTC BEINVESTIGAGAO ‘i Bel ARQUEDLOGIA— UMA BREVE ItmonAGA0 pRATICcAS EMETODOS DE INVESTIGAGAO EM CIENCIAS SOCIAIS {ye Allo Prague Digs Jem-Pierre hemor Chit Naroy Dan Rog Pree Sain Geoes 46. A sRERDLICA VELHA sao er 3 sien Roget Soe (05 NOV0S MEDIA EO ESPAGD ROBLICO™ RAYMOND QUIVY LUC VAN CAMPENHOUDT vA & v7 MANUAL DE INVESTIGACAO EM CIENCIAS SOCIAIS reapucio JOO MINFOTO MARQUES, MARIA AMALIA MENDES EMARIA CARVALHO REVISAOCIENTIICA UI SANTOS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNVERSIDADE NOVA DEL 380A, Titulo original francés: Manuel de cecherche en sciences sociales © Dunod, Paris, 1995 ‘Tradugio: Jodo Minhoto Marques, Maria Amélia Mendes ¢ Maria Corvelho Revisio cientifica: Rui Santos ‘Capa: Armando Lopes Fotocomposigao: Gradiva Impressto e acabamento: Manuel Barbosa & Fithos, L.# Reservados os direitos para Portugzl por: Gradiva - Publicagdes, L” Rua de Almeida e Sousa, 21, rlc, esq. — Telefs. 397 40 67/8 1350 Lisboa 2 edigfo: Janeiro de 1998 Depésito legal n.° 118 675/97 Indice Preficio & 2.* edigio OBIECTIVOS £ PROCEDINENTO 1, 0s objectivos .. 15 1.1. Objectives. gerais : 1s 1.2. Coneepsto didéctica 7 13. elnvestigagiow em «ciércias» socials? 19 2. O procedimento ... 2.1. Problemas de métodc (c eaos original.. ou t€s maneiras de ‘comegar mal). 20 2.2..As etapas do srocedimento 24 Primera eee [A PERGUNTA DE PARTIDA, Onjectivos 31 1. Uma boa forma de actuar 7 32 2. 0s eritérios de uma boa pergunta de partida 34 21. AS qualidades de claeza 35 2.2.As qualidades de exequ:bilidade 37 213. As qualidades de pestinéncia 38 + Resume da primeira etapa. 44 * Trablt de epliagto mfr ‘de urna pergunta de pare tid 4s 3. E se ainda tiver reticéncia 45 Segunan aap A EXPLORNGAO Objectivos 1. A leitura .. LILA escotha e a organizagio das lsituras + Trabalho de oplicapdo n? 2: escotha das primeiras leituras 1.2.Como Jet? enone + Trabalho de oplicazto n? 3 tama gretha de leita + Trabalho de aplicopao * Trabalho de aplicacdo n* 5: con leltura de um texto cem a ajuda de 2, As entrevistas exploratérias 2.1.Com quem € stil ter uma envrevista? 2.2.1Em que consistem as entrevistas e conto realizélas? 213.A exploragto das entrevistas explorat6ras.. + Trabalho de aplicagao explorabirias on eaizagto ¢ anélise de entrevists 3. Métodos exploratérios complementarss .... + Resumo da segunda etapa “Tabata de alias? 7 forma ‘ta ‘peau pa tide Teer pa A PROBLEMATICA * Objectivos .... 1. Diis exemplos de concepeio de uma problemitica 1.1.0 suit 1.200 ensine 2. Os dois mementos de uma problematica .. 2.1.0 primo momento fazer bingo eer a problemas possiveis 2.0 segunio momento: atrbuirse uma problemétea + Resume da terceira etapa + Trabalho de aplicago n° 6 a escolha e a sxcigto problemstiog nen 31 37 38 or 6 Co n n 9 2 83, 85 86 (Quarts etme [A CONSTRUGAO DO MODELO DE ANALISE Odjectives .. . 109 1. Dols exemplos de construgio do modelo de anise ...... 110 1.1.0 suet so 10 1.2! Marginclidade €.delinguéncia. us 2. Porqué as hipéteses? 119 3. Como proceder concretamente? smu 120 3.1.A construgdo dos conceit. 121 3.21 constugdo das hipOtes 135 + Resuno da quarta tape. 159 + Trabaiho de plleagdo n° 9: defnigio dos conceitos & base © formulagso das principas hipéteses de investigago 131 + Tabuih de opiate n° 10: exlctago do moto de sn lise vem so 131 ina eps. ‘A OBSERVAGKO Objectives ... 155 1. Observar 0 qué? A definigio dos dados pertinentes nnn 155 2. Observar em quem? O campo de andlise e a selecslo das unidades de observacio so . 157 2.1.0 campo de andlise... 137 221A amosta 139 3. Observar como? Os instrumentas de observacio ea reco- Tha dos dedos 1683 3.1.A elaboragéo dos irstrunentos de observag%0 wun 163 3.2. As trés opereg6es da abservagdo 181 4. Panorama dos principais métodos de recolha das informa- goes = 186 4.1.0 auto por questions 188 421A antrevista. 191 43.A observagio directa. 196 4.4, recolha de dados preexistentes: dados secundétios dados ‘documenta. = 201 + Resumo da quinta etapa =) + Trabatho de eplicagao n* 11; cancepyie 68 obser G40 vcene- 207 Seva cepa [AANALISE DAS INFORMACOES. Objectivos 1. Um exemplo: 0 fenémeno religioso 2. As trés operagdes de aniilise das informagées a 22 216 2.1. preparazlo dos dados: descrever © agregar 216 212.4 andlise das relagies entre a5 VaPi6VE nn 218 213. Acomparag dos resultados observados 20m os resultados epe- rados e a interpreta das d:ferensas 29 3. Panorama dos prineipais métodos de snélise das informs- ses . . 222 3.1.4 andlise esatistcs dos datos 22 3ZA andlise de contesdo 226 3.2 Limites e complementaridade dos métodos espectficos: 0 exem- pb da field research E sennane 233 3.4.Um cendrio de investigagde ni linear. Exemplos de ivesizngtes que alcam os métods presen os .. 237 + Resumo da sexta etapa ve tt 238 + Trabatho de aplicegao n# 12: andlise d3s informayées 239 ‘Stina pa [AS COMCLUSOES: Objectivos .. 243 1. Retrospectiva das grandes linhas do procedimento . 243 2, Novas contributos para os conhecimentos . 244 2.1.Novos conhecimenios relativos ao objecto de antlise 244 2.2! Novos conhecimentos te6ricos 7 245, . 247 Objectivos 251 1. A pergunta de partida 1 251 2. A exploragio .. 252 2.1.As leinuras 252 2.2. As entrevistas explora’ 3. A problemética 3.1. Fazer 0 balango 3.2. Conceber uma problematica 253, 257 237 258 259, 4. A construgio do madela de anilise 4.1, Modelo e hipétese: os critérios de racionslidade 260 4.2.08 indicadores nn : 261 4.3. AS relagbes entre construgao e verficagao.. 262 4.4,A selezglo das unidades de observagio 263 5. A observagio .. sonnseieses 264 5.1.0 instrumento de observagio. 5.2.A recclha dos dades.. 6. A anilise das informagies 6.1.A mecigio... 268 6.2. A deseriglo dos resultados 268. 6.3, Aandlise das relagtes entre a tava de presenga ¢ as razdes vere ir As alas.. 270 6.4. A comaarago dos resultados observados com os resllad0s espe rados a partr da hipécese € o ecame das diferengas . am Fe AS CONCIUSTES won nonnie 216 A hipétese esquecida 25 Recapitulagio das qperagdes Bibliografia geral 27 281 Prefécio @ 2.* edigdo Nesta 2* edigdo esforgimo-nos por nio alterar a concepgio idéctica da obra. O Marual de Investigacio em Ciencias Sociais permanece resolutamente pritico. Foram feitas muitas correcgées € modificagdes locais em todas as partes do livra. Algumas foram transformaéas de alto a taixo. As principais alteragSes so as se~ guintes: + Primeira etapa: a pergunta de partida — supressdo de algu- mas passagens que podian conduzir a mal-entendidos © nova redaccdo dos comentérios de determinadas questées (elagdes entre a investigago em ciéncias sociais e a ética, entre a descrigfo e a compreensio des fenémenos sociais. + Terceira etapa: a problemética — capitulo quase inteira- mente recomposto tendo em conta os contritutos de obras recertes sobre os mosios de explicagio dos fenémenos socicis * Quarta etapa: 4 construgdo do modelo de anilise —refor- mulagdo das dimensdes do conceito de acior social a partir de investigagdes recentes; + Sexta etapa: a andlise das informagdes — actescentos sobre a tipologia, a field research, a complemeriaridade entre métcdos diferentes e um cendrio de investigagao réo li- rear u + Actualizagio das diferentes bibliografias ¢ integragzo das bibliografias especializadas nas apresentagdes dos méiodos de recolha e de anélise das informagoes. Estes alteragSes devem muito a varias pessoas, a quem queria- ‘mos assegurar 0 nosso reconhecimento: Monique Tavernie:, pela sua ajuda competente e eficaz na preparagdo desta 2.° edicdo; Michel Hubert, Jean-Marie Lacrosse, Christian Maroy e Jean Nizet, pelas suas criticas sugestées profissionais ¢ amigiveis; Casimiro Marques Balss, seus colegas da Universidade Nova de 04 e, em perticular, Rui Santos, pelo seu exame pormenoriza- do da obra e pelo acolhimento que Ihe foi dado em Portugal; os muitos professeres, estudantes e investigadores cle Franca, Suica, Quebeque, Senegal, Bélzica e de cutros paises que nos deram a conhecer as sues reacgdes € estimulos. 12 OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 1. OS OBJECTIVOS 1.1, OBJECTIVOS GERAIS A investigago em ciéncias sociais segue um procedimento andlogo 20 do pesquisador de petr6leo. Nao & perfurando ao acaso que este encentrari 0 que Frocura. Pelo contrério, 0 sucesso de um programa de pesquisa petrolifera depende do procedimento segui- do. Primeiro o estudo dos :errenos, depois a perfuragio. Este pro- cedimento implica a participagdo de numerosas competéncias dife- rentes. Os ge6logos irdo dererminar as zonas geogréficas onde & maior a probabilidade de ercontrar petr6leo; os engenheiros iréo conceber processos de perfuracao apropriados, que irdo ser aplica- se a0 responsivel do projecto que donine minuciosamente todas as téenicas necessérias. O seu papel espe- cifico seré 0 de conceber 0 conjunto do projecto ¢ soordenar as ‘operagdes com 0 maximo de coerércia e eficdcia. E sobre ele que recaird a responsabilidade de levar a bom termo ¢ dispositive global de investigagao. No que respeita a investigacZo social, o processo € comparivel. Importa, acima de tudo, que o investigador seja capaz de conceber e de por em pritica um dispositivo para 2 elucidagao do real, isto 6,no seu sentido mais lato, um método de trabalho. Este nunca se apresentaré como uma simples soma de técnicas que se trataria de aplicar tal e qual se apresentam, mas sim como um peicurso global do espirito que exige ser reinventado para cada trabzlho. 15 Quando, no decomer de um trabalho de investigagio social, o seu autor se vé confrontado com problemas graves que comprometem o prosseguimento do projecto, raramente isso acontece por riades de ordem estritamente técnica. E possivel aprender veriadissimas técni- cas de um modo bastante répido, assim como, de qualquer forma, solicitar a coleboragao ou, pelo menos, os conselhos de um especia- lista. Quando um investigador, profissional ou principiante, sente gran- des dificuldades no seu cabalho, as razGes séo quase sempre de ordem metodolbgica, no sentido que damos a0 termo. Ouvimos entdo expres- sOes invariavelmente idénticas: «Ji no sei em que ponto estou», tenho a impressio de jf nem saber 0 que procuro», «lio fago a minima ideia do que nei-de fazer para continuan», «tenho muitos dados... mas ro sei o que fazer com eles», ou até mesmo, logo de inicio, «nao sei bem por onde comegar. Porém, e paradoxalmente, as numeroses obras que se dizem meto- dolégicas nao se preocapam muito com... 0 método, no sex sentido mais leto. Longe de contribufrem para formar os seus leitores num procedimento global de invesiigacio, apresentam-se frequentemente como exposigies de técnicas particulares, isoladas da reflexdo teérica € da concepgio de conjanto, sem as quais € impossivel justificar a sua escolha e dar-Ihes um sentido. Estas obras t&m, bem entendido, a sua utilidace para o investigador, mas s6 depois da construgio metodol6- ica, apos esta ter sido validamente encetada. Esta obra foi concebida pare ajudar todos 08 que, no Ampito dos seus estudos, das suas responsabilidades profissionais ou sociais, desejem formar-se em investigagio social ou, mais precisamente, empzeender com éxito um tabalno de fim de curso ou uma tese, tratalhos, anilises ou investigagdes cujo objectivo seja compreen- der mcis profundamente e interpretar mais acertadamente os fen6- menos da vida colectiva com que se confrontam ou que, por qual- (quer razo, os interpelam. Felos motivos acima expostos, sareceu-nos que esta obra s6 pode: ria desempenar esta fungao se fosse inteiramente concebida como um superte de fomago metodolégica, em sentido latc, isto é, como ume form:agio para conceber e aplicar um dispositivo de elucidagzo do real. Significa isto que aberdaremos numa ordem Iogica temas como 2 formulagio de um projecto de investigacio, o trabalho explorat6rio, a cconstrugaio de um plano de pesquisa ou 0s crtérios para a escolha das 16 téonicas de recolha, ratamento e andlise dos dados. Deste modo, cada uum poder’, chegado © momento e com pleno conhecimento de cause, fazer sensatamente apelo a um ou a outro dos numerosos métodos © ‘técnicas de investigagdo, em sentido restrto, pera elaborer por si mes- ‘mo, a partir deles, procedimentos de trabalho correctamente adaptadas 20 seu projecto, 1.2, CONCEPGAO DIDACTICA No plano didéctico, esta obra & directamente utilizével. Isto significa que o leitor que o,deseje poderé, logo a partir das primei- ras pAginas, aplicar a0 seu trabalho 2s recomendagdes que Ihe sero proposas. Apresenta-se, pois, como um manual cujas ife- rentes partes podem ser experimentadas, seja por investigadores Principiantes isoledos, seja em grupo ou ne sala de aula, cam 0 enquadramerto critico de um docente formaco em ciéncias sociais. No entamto, recomenda-se uma primeira leitura integral antes de iniciar os trabalhes de aplicagao, de modo que a coeréncia global do procedimento seja bem apreendida e as sugestdes sejam aplica- das de forma flexivel, critica e inventiva. ‘Uma ial ambigio pode parecer uma aposia impossivel: como é ppossivel Fropor um manual metodol6gico num campo de investigago ‘onde, como é sabico, os dispesitivos de pesquisa variam considerave!- ‘mente com as investigagdes? No existe aqui um enorme risoo de impor uma imagem simplista e muito arbitréria da investigacdo social? Por varias raabes, pensamos cue este risco s6 poderia resultar de uma ‘eitura extremamente superficial ou parcial deste livro. Embora 0 contetdo deste obra seja directamente eplicével, nfo se apresenta, no entanto, como uma simples colecee de receitas, mas como uma trama gerél e muito aberta, no Ambito da qual (© fora da qual!) pocem pér-se em pritica os mais variados procedi- mentos coneretos. Se é verdade que contém numerosas sugestdes raticas ¢ exercicios de aplicagdo, nem aquelas nem estes arraste- 80 0 leitor para uma via metodol6gica precisa e imevogavel. Este livro foi inteiramente redigido para ajudar o leitor a conceber por si proprio un processo de trabalho, ¢ nfo para lhe impor um determinado processo a tftulo de céinone universal. Nao se trata, 7 pois, de um «modo de emprego» que implique qualquer aplicagao ‘mecinica das suas diferentes etapas. Propde pontos de referéncia {Ho polivalentes quanto possivel para que cada um possa elaborar com lusidez dispositivos metodolbgicos préprios em fungao dos seus objectives. Com este propésito —e trata-se de uma segunda precaucdo —, fas piginas desta obra convidam constantemente ao recuo critico, de modo que o itor seja regularmerte levedo a reflectir com lucidez. sobre o sentido do seu trabalho, & medida que for progredindo. As reflexdes que propomos 20 leitor fundam-se na nossa experiéncia de investigadores em sociologia, de formadores de adultos e de docentes. Sho, portanto, forgosamente subjectivas ¢ inacabadas. Parimos do ‘pressuposto de que © leitor seguiu ou segue paralelamente uma forma- a0 teérica e goza da possibilidade de discutir e ser avaliedo por um investigador ou um docente formado em cincias sociais. Veremos, por euiro lado, no decurso desta obra, onde © como 0s recursos te6ricos intervém na elaboracdo do dispasitivo metodol6gice. Uma investigagao social nfo &, pois, uma sucesso de métodos ¢ tésnicas estereotipadas que bastaria aplicar tal e qual se epresen- tam, numa ordem imutével. A escotha, a elaborago ¢ a organi ‘¢dodos processos de trabalho variam com cada investigaslc especi- fica, Por isso — e trate-se de uma terceira precauglio —,a obra esté elaborada com base em numerosos exemplos reais. Alguns deles serdo varias vezes referidos, de modo a realarem a coeréncia glo- . Nao constituem ideais a atingir, mas sim a partir das quais cada um poderd distanciar-se e situar-se Finalmente —iltima precaugio —, este livro apresenta-se. explicitamente, como um mancal de formagao. Esté construido em fungaic de uma ideia de progressio na aprendizagem. Por conse- ‘guinte, compreender-se-4 imediatamente que 0 significado e o inte- resse destas diferentes etapas rc podem ser correctamente aval dos se forem retiradas do seu contexio global. Umas so mais técnicas, outras mais eriticas. Algumas ideias, pouco aprofundadas no inicio da obra, so retomadas e desenvolvicas posteriormente rnoutres contextos. Certas passagens contém rezomendagSes fun- damentadas; outras apresentam simples sugestdes ou um leque de possitilidades. Nenhuma delas da, por si s6, uma imagem do dis- positive global, mas cada uma ocupa nele um lugar necessério. 18 1.3, «INVESTIGAGAO» EM «CIENCIAS» SOCIAIS? No dominio que aqui nos ocupa utilizam-se frequentemente somos forgados a incluir-nos neste «see — as palavras «iavestigagio» ou «ciéncia» com uma certa ligeireza e nos sentidos mais elésticos, Fala-se, por exemplo, de «irvestigagao cientficas para qualificar as sondagens de opiniéo, os estudos de mercado ou os diagnSsticos mais, bbanais s6 porque foram efectuados por um servigo ou par um centro de investigagio universitario. Dé-se a entender aos estuduntes do pri- meio nivel do ensino supericr, e mesmo aos dos sitios anos do ensino secundirio, que as suas aulas de métodes ¢ téenieas de inves- tigngdo social os tomardo aptos a adoptar um «procedimento cientifi- co» e, desde logo, ¢ produzit um «conhecimento cientfico», quardo, na verdade, 6 muito dificil, mesmo para um investigador profissional ¢ com experiencia, produzir conhecimento verdadeiramerte novo que faca progredir a sua disciplina (© que € que, na melhor das hipéteses, se aprende de facto no fim daquilo que € geralmente qualificado como trabalho de «inves- tigagdo em ciéncias sociais»? A compreender melhor os significa- dos de um acontecimento ou de uma condute, a fazer inteligente- mente 0 ponto da situacic, a captar com maior pe:spicécia as légicas de funcionamento de uma organizagao, a reflectir acertada- mente sobre es implicagdes de uma decisdo politica, ou ainda a compreender com mais nitidez como determinadas pessoas apreen- dem um problema e a tomar visiveis alguns dos fundamentos das suas representagoes. Tudo isto merece que nos detentamos e que adquiramos essa formagao; € principalmente ¢ ela que o livro € consezrado. Mas taramente se trata de investigagdes que contribuam para fazer pro- gredir os quadros conceptuais das ciéncias sociais, os seus modelos de andlise ou os seus dispositivos metodoldgicos. Tratz-se de estu- dos, andlises cu exemes, mais ou menos bem realizados, consoante 1 formagao e a imaginacio do «investigadors e as precaugdes de ue se rodeia para levar a cabo as sues investigagdes. Este trabalho pode ser precioso e conrribuir muito para a lucidez dos actares sociais acerca das priticas de que so au‘ores, ou sobre os acont cimentos € os fendmenos que testemunham, mas ndo se deve at buir-Ihe um estatuts que nao the € eprooriads. 19 Esta obra, embora possa zpoiar determinados leitores empenha- dos em investigagdes de uma. certa envergadura, visa sobretudo fajudar os que tém ambigdes mais modestas, mas que, pelo menos, ‘estéo decididos a estudar os fenémenos sociais com uma preocu- pacéo de autenticidade, de compreensao e de rigor metodolégico. Em ciéncias sociais temos de nos proteger de dois defeitos opostes: um cientismo ingénuo que consiste em crer na possibili- dade de estabelecer verdades definitivas e de adoptar um rigor ‘anélogo a0 dos fisicos ou dos bidlogos, ou, inversemente, um ccepticismo cue negaria a propria possibilidade de conbecimento ciectifico. Sabemos simultaeamente mais ¢ menos do que por vezes deixamos entender, Os nossos conhecimentos constroem-se com 0 apoio de quadros tedricos ¢ metodolégicos explicitos, len- tamente elaborados, que constituem um campo pelo menos par- cialmente estruturado, e esses conhecimentos so apaiados por ‘uma observacdo dos factos concretos. ‘E aestas qualidades de autenticidace, de cutiosidade e de rigor que queremos dar relevo nesta obra. ‘Se utilizamos os termos «in- vestigagdo», «investigador» e «ciéncias sociais» para falar tanto dos trabalhos mais modestos como dos mais ambiciosos, € por uma questio de facilidade, porque no vemos outros mais convenientes, mas € também com a consciéncia de que so frequentemente exces- sivos. 2..0 PROCEDIMENTO 2.1. PROBLEMAS DE METODO (o0 caos original... ou trés maneiras de comegar mal) No inicio de uma investigagdo ou de um trabalho, o cenério é ‘quase sempre idéntico. Sabernos vagamente que queremos estudar tal o1 tal problema — por exemplo, 0 desenvolvimento da nossa propria regio, o furcionamento de uma empresa, a introdugo das ‘novas tecnologias na escola, a emigragdo ou as actividades de uma associag%o que frequentamcs —, mas nfo sabemos muito bem como abordar a questo. Desejamos que este trabalho seja ati! € resulte em proposig6es concretas, mas temos a sensagio de nos 20 perdermes nele ainda antes de o termos realmente comecado, Eis aproximadamente a forma como comega a maior parte dos traba- Thos de estudantes, mas também, por vezes, de investigadores, nos dominios que dizem respeito aquilo a que costumamos chamar as . Em vez de jogar primeiro 0 45 e assegurar assim a vaza, 0 terceizo jogador tenta ganher o pontc com a dama, esperando que 0 ‘quarto no tenha o rei. Se a jogada resultar, 0 jogador ganha a vaza e conserva o 4s, Umé tal aposta nio se ustifica em inves:i- gagdo, onde & absolutamente necessirio assegurar cada ponto € reclizar cuidadosamente as primeiras etapas entes de pensar nas seguintes, : ‘A «passagemm as hip6teses consiste precisamente em precipi- tar-se sobre a recolha dos dados antes de ter formuledo hipéteses de investigagao — voltaremcs adiante a esta nogdo — ¢ em preo- ccupar-se com a escolha e a aplicacao srética das técnicas de inves- tigago antes mesmo de saber exactamente aquilo que se procera ¢, portanto, para 0 que irdo servir. ‘Nao raro ouvir um estudante declarar que tenciona fazer um inguétito for questionério junto de uma dada populacio quando no rem nenhuma hipotese de trabalho e, para dizer a verdade, nem sequer sabe 0 que procura. S6 € possivel escclher ume técnica de 2 pesquisa quando se tem uma ideia da natureza dos dados a re- cclher, o que implica que se comece por definir bem 0 projecto. Esta forma de fuga para a frente € corrente, sendo encorajada pela crenea segundo a qual a utilizacdo de téenicas de investigagao cconsagradas determina 0 velor intelectual e o cardcter cientifico de uum trabalho. Mas que ulidade tem a aplicaydo correcta de técni- cas experimentadas se estas estiverem a0 servigo de um projecto ‘vago € mal definido? Outros pensam que basta acummular um mé- ximo de informagSes sobre um assunto e submeté-las a virias téenicas de anélise estatistica para descobrir a resposta as suas perguntas, Afundam-se, assim, nurra armadilha cujas consequén- cias podem cobri-los de ridiculo. Por exemplo, num trabalho de fim de curso um estudante tentava descobrir quais os argumentos mais frequentemente empregues por um coaselho de turma para evaliar a capzcidade dos estudantes. Tinha gravado tocas as discus- Ges dos docentes durante 0 conselho de turma de fim de ano ¢, ‘apés ter introduzido tudo rum ficheiro de computador, havia-o submetido a um programa de anélise de conteddo altamente sofis- ticado. Os resultados foram inesperados. Segundo o computador, ‘0s termos mais empregues para julgar os alunos eram palavras como «e>... «de»... «heim»... «capez»... «mas»... etc! ©) A énfase que obscurece Este terceiro defeito € frequente nos investigadores.princi- piantes que esto impressionados ¢ intimidados pela sua recente passagem pela frequéncia das universidades e por aquilo que pensam ser a ciéncia. Para assegurarem a sua credibilidade jul- ‘gam ser ctil exprimirem-se ée forma pomposa ¢ ininteligivel e, na maior parte das vezes, no conseguem evitar raciocinar da mesma maneira. ‘Duas caracteristicas dominam os seus projectos de investigagao ov de trabalho: a ambigzo desmedida e a mais completa confusac. Umas vezes parece estar em causa a reestruturagio industrial da ‘sua regio; outras, o futuro do ensino; outras ainda € nada menos, do que 0 destino co Terceito Mundo que parece jogat-se nos seus poderosos cérebros. 23 Estas declaragées de intengdo exprimem-se numa gitia, to oca quanto enfética, que mal esconde a auséncia de um projecto de investigagao claro e interessante, A primeira tarefa do orientador desie tipo de trabalho ser ajudar o seu autor a assentar os pés na terra ¢ a mostrar mais simplicidade e clareza. Para vencer as sues eventuais reticéncias & necessério pedir-Ihe sistematicamente que ddefina todas as palavras que emprega e que explique todas as frases que formule, de modo que rapidamente se dé conta ce que ele proprio nio percebe nada da sua algaraviada. Se pensa que estas consideragies se Ihe aplicam, esta tomada de corsciéncia, por si s6, pé-1o-§ no bom caminho, dado que uma carac- teristica essencial — e rara — de uma boa investigagdo & a autentici- dade. Neste dominio que nos ocupa, meis do que em qualquer outro, nnd hd bom trabalho cue no seja uma procura sincera da verdade, Nio a verdade absoluta, estabelecida de uma vez por todas pelos dogmes, ‘mas aquela que se repde sempre em questio € se aprofunda incessan- temente devido a0 desejo de compreender com mais justeza a reali- dade em que vivemos e para cula produgio coniribuimos. Se, pelo contrério, pensa que nada disto Ihe diz respeito, faga- -se, mesmo assim, 0 pequeno favor de explicar claramente as palavras ¢ as frases que jé tenha eventualmente redigido sobre um ‘trabalho que inicia. Pode honestamente afirmar que se compreende bem a si mesmo e cue os seus textos no contém expressdes imi- tacas e declaragdes ocas ¢ presungosas? Se assim 6, se possui a aucenticidade ¢ 0 sentido das proporgées, entdo, e $6 entio, & pos- ‘sivel que 0 seu trabalho venha a servir para alguma coisa. ‘Apés termos examninado varias maneiras de comegar muito mal, vejamos agora como & possivel proceder de forma vslida a um trabelho de investigagio e assegurar-Ihe um bom comego, Com. a ajuda de esquemas, referiremos ptimeiro os principios mais impor- tantes do procedimento cientifico e apresentaremos as etapas da sua aplicagio-pratica 22. AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Fundamentalmente, 0 problema do conkecimento cientifico pée-se da mesma maneira para os fendmenos sociais e para os 4 fen6mencs naturais: em ambos os caso: hé hip6teses tericas que devem ser confrontadas cam dados de observagio ou de experi- mentagdo. Toda a investigagio deve, portanto, responder a alguns Frincipios estiveis € idénticos, ainda que varios percursos diferen- tes conduzam ao conhecimento cientifico. _Um procedimento & uma forma de progredir em direcgao @ um jective. Expor ¢ procedimento cientifico consists, portanto, em descrever os princfpios fundementais a por em prética em qualquer trabalho de investigagio. Os méiodos nfo so mais do que formalizapSes particulares do procedimento, percursos diferentes concebides para estarem mais adaptados aos fenémenos ou domi- rrios estudados, Mas esta adaptago nao dispensa a fidelidade do investigador ‘aos principios fundamentais do prozedimento cientifico, ‘Ao dar mais relevo 20 procedimento do que aos métodos par- ticulares, a nossa formulagzo tem, assim, um alcance geral e pode aplicar-se a todo © tipo de trabalho cientifico em ciéncias sociais. ‘Mas quais so esses princfpios fundamentais que toda a investiga- lo deve respeitar? Gason Bachelard resumiu 0 procesto cientfico em algumas pala: «0 facto cientico € comusado, conse € veri —Conquistado sobre as preconceitos; —Construtde pela razic; — Verificado nos factos. ‘A mesma ideia estrutura toda a obra Le métier de sociologue, de P. Bourdieu, J. C. Chamboredon ¢ J. C, Passeron (Paris, Mouton, Bordas, 1968). Nela os autores descrevem 0 procecimento como um processo em trés actos cuja ordem deve ser respeitzda. E aquilo a que chamam «h:erarquia dos actos epistemol6gicoss. Estes t 6s a sfo a ruptura, a conscrugdo e a verificago (ou experimen a- ¢40). objectivo deste manual € o de apresentar estes princfpios do rocedimento cientifico em ciéncias sociais sob a forma de sete etapas a percorrer. Em cada uma delas so descritas as operagdes a empreender pare atingir a seguinte e progredir de um acto para 2s © outro. Ou seja, este manual apresenta-se como ume pega de teairo clissica, em trés actos © sete cenas. ‘© esquema da pégina seguinie mostra a corespondéncia entre a etapa e os actos do procedimento. Por razbes diddicticas, 0s actos cas etapas so apresentados como operagdes separadas ¢ numa ordem sequencial. Na realidade, uma investigagao cientifica ndo € to mecinica, pelo que introduzimos no esquema circuitos de retroacgao para simbolizar as interacgOes que realmente existem ene as diferentes fases da investigagio. a) Os trés actos do procedimento Pera compreender a articulagio das etapas de uma investigagio com os trés actos do procedimento cientifico € necessirio dizer primeiro algumas palavras sobre os prinefpios que estes irés actos encerram e sobre a légica que os une. A ruptura Em ciéncias sociais, a nossa bagagem supostamente «teérica» ‘comporta numerosas armadilhas, dado que uma grande parte das nossas ideies se inspiram nas aparéncias imediatas ou em posigdes parciais, Frequentemente, no mais do que ilusdes e prevonceitos. Canstruir sobre tais premissas equivale a construir sobre areia. Dai 1 importancia da rvptura, que consiste precisamente em romper ‘com os preconceitos e as falsas evidéncias, que somente nos dio a ilusdo de compreendermos as coisas. A ruptura é, portanto, 0 pri- meir> acto constitutivo do provedimento cientifico. A construgio Esta ruptura s6 pode ser efectuada a partir de um sistema conceptual organizado, susceptivel de exprimir a l6gica que o in- vestigador supde estar na base do fenbmeno. E gragas a esta teoria que ele pede exguer as proposigdes explicativas do fendmeno a estudar e prever qual 0 plato de pesquisa a definir, as operagoes ‘a aplicar e as consequéncias que logicamente devem esperar-se no 26 AS ETAPAS DO PROCEDIMENIO RUPTURA CONSTRUCAO VERIFICAGAO [Etapa 1 —A pergunta de pertida Etopa 2— A exploragao ‘As leitures [->) As entrevisus exploratérias| Etapa 3— A problemstica Etapa 4— A construgio do modelo de andlise Etapa $— A otservagio E1apa 7 — As conclusdes termo da observagio. Sem esta construgdo teérica nfo haveria experimentagio vilica. Nao pode haver, em ciéncias sociais, veri- ficaglo frutuosa sem construgic de um quadro teérico de referén- cia Nao se submete uma proposi¢ao qualquer ao teste dos factos. ‘As proposigdes devem ser o produto de um trabalho racional, fundamentado na légica e numa bagagem conceptual validamente constituida (J.-M. Berthelot, L’Intelligence du social, Psris, PUF, 1990, p. 39). A verificagio Uma proposigaio s6 tem direito ao estatuto cientifico na medida em que pode ser verificads pelos factos. Este teste pelos factos designado por verificagao ou experimentagto. Corresporle a0 ter~ cetiro acto do processo, b) As sete etapas do procedimento Os trés actos do procedimento cientifico no so independentes ‘uns dos ourros. Pelo contrério, constituem-se mutuamenie. Assim, por exemplo, a ruptura no se realiza apenas no inicio da investi- ‘gapo; completa-se na e pela construgio. Esta ro pode, em contra- partida, passar sem as etapas iniciais, principelmente consagradas A muptura. Por seu tumo, a verificagdo vai buscar o seu valor & ‘qualidade da construgao. ‘No desenvolvimento concreto de uma investigago, os trés actos do procedimento cientifico sio realizados ao longo de uma suces- sio de operagdes, que aqui so reagrupadas em sete etapas. Por raxbes didécticas, o esquema anterior distingue de forma precisa as ceiapas umas das outras. No entanto, circuitos de retrcacgao lem- bram-nos cue estas diferentes etapas estio, na realidace, em perma- nente interacgo. Nio deixaremos, aliés, de mostré-lo sempre cue possivel, uma vez que este manual daré especial relevo ao encadea- mento das operagdes € & T6gica que as liga. 28 PRIMEIRA ETAPA A PERGUNTA DE PARTIDA AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO Etapa 2— A exploraglo ‘As leituras [>| As entrevistas| Le exploratérias Etapa 3— A problematica Etapa 4— A corstrugio do modeto de anslise B1apa 5— A observagio. Etapa 6— A anilise das informagies Etapa 7 — As corclusdes OBJECTIVOS © primeiro problema que se pée ao investigador & muito sim- plesmente o de saber como comegar bem o seu trabalho. De facto, no € facil conseguir traduzir o que vulgarmerte se apresenta como ‘um foco de interesse ou uma preocupagio relativamente vaga mum projecto de investigagao operacional. O receio de iriciar mal trabalho pode levar algumas pessoas a endarem as vcltas durante bastante tempo, a procurarem uma seguranga iluséria numa das formas de fuga para a frente que aboréémos, ou ainda a renun- ciarem pura e simplesmente 20 projecto. Ao longo desta etapa mostraremos que existe uma outra solugo para este problema do arranque do trabalho. ‘A dificuldade ce comegar de forma vélida um tribalho tem, frequentemente, origem numa preocupagdo de fazé-o demasiado bem e de formular desce logo um projecto de investigagao de forma totalmente satisfatoria. E um erro, Uma investigago €, por definigao, algo que se procure, £ um camithar para um Melhor conhecimento € deve ser aceite como tal, com todas as hesita- ges, desvios e incertezas que isso implica, Muitos vivem esta realidade como uma angdstia paralisante; ovtros, pelo contré&io, reconhecem-na como um fenémeno normal e, numa palavra, esti- mulante. Por conseguinte, o investigador deve obrigar-se a escolher repi- damente um primeiro fio condutor to claro quanto ossivel, de 31 forma que 0 seu trabalho possa iniciar-se sem demora e estruta~ rarse com coeréncia. Pouca importa que este ponto ée partida ‘pareca banal e que a reflexio do investigador ndo Ihe parega ainda totalmente madura; pouco importa que, como € provével, ele mude de perspectiva a0 longo do caminho. Este ponto de partida € ape~ nas provisério, como um acampamento-base que os alpinistas constroem para prepararem a escalada de um cume © que abandonardo por outros acampamentos mais avangados até inicia- rem 0 assalto final. Resta saber como deve ser apresentado este primeiro fio condutor € que critérios deve preencher para desem- penbar o melhor possivel a fungio que dele se espera. E este 0 objecto desta primeira etapa. 1, UMA BOA FORMA DE ACTUAR Por varias razdes que progressivemente se tornardo evidentes, segerimos a adopgao de uma formula que a experiéncis revelou ser muito eficaz. Consiste em procurar enunciar 0 projecto de inves- tigago na forma de uma pergunta de partida, através da quel o investigador tenta exprimir 0 mais exactamente possivel 0 que procura saber, elucidar, compreender melhor. Para cesemperhar correctamente a sua funglo, este exercicio deve, claro esté, ser ‘efectuado segundo algumas regras que adiante serdo especificadas ¢ abundartemente ilustradas. Sem davida, muitos leitores marifestardo desde logo algumas retiséncias em relagdo a uma tal proposta, mas gostariamos que cada um reservasse a sua cpinigo a'é ter apreendido bem a natu- teza e 0 alcance exacto do exercicio. Em primeiro lugar, nio € imdtil assinalar que os autores mais corceituados néo hesitam em enunciar os seus projectos de inves- thgagdo sob a forma de perguntas simples ¢ claras, ainda que, na realidade, essas perguntas tenham subjacente uma s6lida re- flexdo tebrica. Bis trés exemplos bem conhecidos dos sociélo- gos: + A desigualdade de oportunidades em relagdo co ensino tem tendéncia c diminuir nas sociedades industricis? 32 __ Esta pergunta ¢ feita per Raymond Boudon no inicio de ume investigagio cujos resultadas foram publicados com o titulo L'iné- galité des chances: la mobilité sociale dans les sociétés indus- rrielles (Paris, Armand Colin, 1973). A esta primeira questo cen- tral acrescenta Raymond Boudon uma outra que tem por objective «a incidéncia das desigualdades em relagdo 20 ensine na mobili- dade social». Mas a primeira pergunta citada constitui verdadeira- mente a interrogagio de partida do seu trabalho e aquela que Ihe serviré de primeiro eixo central. + A luta estudantil (em Franca) € apenas uma due se manfesta a crise da iniversdede, on contem evs um movimento sociai capaz de luiar em nome de objectivos gerais contra uma dominagao social? __ Esta € pergunta de partida posta por Alain Touraine na inves- tigagdo em que utiliza pela primeira vez o seu método de interven- So sociolegia,cnjos relatos elses foram pabicados com otitulo Lute étudiante (com F, Dubet, Z. Hegedus e M. Wievi Paris, Seuil, 1978), eee + 0 que predispoe algunas pessoas a frequentarem os mu- seus, ao contrério da grande maioria das que os néo fre- quentam? ue 7 Reconstituida segundo 0s termos dos autores, esta ¢ a pergunti de partida da investigacao efectuada por Pierre ‘Bourdieu'e Alain Darbel sobre o pblico dos museus de arte europeus, 2ujos resul- tados forem publicados com o titulo L'Amour de tart (Paris, Exitions de Minuit, 1969). : Se os pilares da investigag4o sccial impdem a s: mesmos o esforgo de precisarem 0 seu projecto de uma forme tio conscien- ciosa, hé que admitir que o investigader, principiante ou jé com alguma pritica, amador ou profissional, ocasional ou regular, no pode dar-se a0 luxo de om:tir este exerefcio, mesmo que as suas pretensdes teéricas sejam snfinitamente mais modesias € 0 seu ‘campo de pesquisa mais restrito. 33 . OS CRITERIOS DE UMA BOA PERGUNTA DE PARTIDA ‘Traduzir um projecto de investigacéo sob a forma de uma per- gunts de partida s6 seré til se essa pergunta for correctamerte formulada. Isto nic € necessariamente fécil, pois uma boa per- ‘gnnta de pertida deve preencher vérias condigdes. Em vez de apre- sentar imediatamente estas condigdes de forma abstracta, & prefe~ rivel partir de exemplos coacretos. Procederemos, assim, a0 exame critico de uma série de perguntas de partida, insatisfatorias, mas ‘cam formas correntes. Este exame permitir-nos-4 reflectir sobre os critérios de uma boa pergunta € 0 significado profundo desses critérios. O enunciado de cada pergunta seré seguido de um co- ‘mentirio crftico, mes seria preferivel que cada um discutisse por si ‘mesmo estas perguntas, se possivel em grupo, antes de ler, mais ou ‘menos passivaments, 05 nossos comentarios. ‘Ainda que os exemplos de perguntas apresentados Ihe paregam muito claros, até mesmo demasiado claros, e que as recomendagdes ropostas Ihe paregam evidentes ¢ elementares, nfo deixe de levar a sério esta primeira etapa. Aquilo que pode ser fécil quando um critério 6 apresentado isoladamente sé-lo-f muito menos quandc se tratar de respeitar © conjunto destes critérios para uma dinica per- sgunia de partida: a sua. Acrescentemos que estes exemplos no so puras invengdes da nossa parte. Ouvimo-los :odos, por vezes sob formas muito ligeisamente diferentes, da boca de estudantes. Se, das centenas de perguntas insatisfat6rias sobre as quais trabalhémos com eles, acabémos por reter aqui apenas se‘e, & porque elas so bastante representativas das falhas mais correntes © pozque, juntas, cobrem bem os objectives pretendidos. Veremos progressivamente a que ponto este trabalho, longe de ser estritamente técnico e formal, obriga 0 investigador a uma cla- rifieagZo, frequentemente muito dtil, das suas intengBes € perspec- tivas esponténeas. Neste sentido, a pergunta de partda constitui normalmente um primeiro meio para 96r em pritica uma das dimen Bes essenciais do processo cientifico: a ruptura com os preconceitos © as nogdes prévias. Voltaremos a este ponto no fim do exercicio. conjunto das qualidades requeridas pode resumir-se em algu- ras palavras: uma boa pergunta de partida deve poder ser tratada, 34 Isto significa que se deve poder tabalhar eficazmente a partir dela e, em particular, deve ser possivel fornecer elementos para Ihe resporder. Estes qualidaces tém de ser pormenorizadas. Para esse efeito, procedamos ao exame critico de sete exemplos de perguntas. 2.1. AS QUALIDADES DE CLAREZA As qualidades ¢e clareza dizem essencialmente respeito A pre- cisio © & concisfic do modo de formular a pergunta de partida. Pergunta 1 Qual é 0 impacto das mudangas na organizagdc do espaco urbano sobre a vida dos habitantes? Comentério Esta pergunta € demasiado vaga, Em que tipos de mudangas se pensa? O que se entende por «vida dos habitantes»? ‘Trata-se da suz vida profissioral, familier, social, cultural? Alude-se as suas fecilidades de deslocagdo? As suas disposigées psicoligicas? Po- detiamos facilmente alonger a lista das interpretagbes possiveis desta pergunta demasiado vaga, que informa muito pouco acerca das intengSes precisas do seu autor, se ¢ que estas 0 so. _ Convirs, portan:o, formelar uma pergunta precisa eujo sentido no se preste 2 confusdes. Ser muitas vezes indispensivel definir claramente os ternios da pergunta de partide, mas € preciso pri- meiro esforgar-se por ser 0 riais limpido possivel na fozmulaga¢ da prépria pergunta, Existe um meio muito simples de se assegurar de que uma pergunta é bastante precisa. Consiste em formulé-le diante de um equeno grupo de pessoas, evitando comenté-la ou expor seu sentido. Cada pessoa do grupo € depois convidada a explicar como compreendeu a pergunta. A pergunta seré precisa se as interpreta- ‘ges convergirem e corresponderem a intengio do sev autor. 35 Ao proceder a este pequeno teste em relago a varias perguntas diferentes, depressa observard cue uma pergunta pode ser precisa e compreerdida da mesma forma por todos sem estar por isso limitada a um problema insignificante ou muito marginal. Consi- deremos a seguinte pergunia: «Quais sd as causas da diminuigio dos empregos na indiistria vali! no decurso dos anos 802» Esta pengunta é precisa no sentido de que cada um a compreenderé da mesma forma, mas cobre, no entanto, um campo de andlise muito vvasto (0 que, como veremos mais & frente, colocaré outros proble- mas). ima pergunta precisa nio é, assim, o contrério de uma pergunta ampia ou muito aberta, mas sim de uma pergunta vage ou impre-~ cisa. Nao encerra imediatamente o trabalho nums perspectiva restritiva e sem possibilidades de generalizagio. Permite-nos sim- pplesmente saber aonde nes dirigimos e comunicé-lo aos outros. Resumindo, pare poder ser tratada, uma boa pergunta de partida terd de ser preci Pergunta 2 Em que medida o aumento das perdas de empregs 10 sector da construgo explica a manutengio de grandes projectos de trabalhos iiblicos, destinados nfo s6 a manter este sector, mas também a Giminuir os riscos de conflitos sociais inerentes a este situagio? Comentario Esta pergunta € demasiado longa e desordenada, Contém supo- sigdes e desdobra-se no fim, de tal forma que ¢ dificil perceber tem ‘o4que se procura compreender prioritariamente. E preferivel formu- far a pergunta de partida de uma forma univoca e concisa para que possa ser compreendida sem dificuldade ¢ ajudar 0 seu autor a perceber claramente 0 objectivo que persegue. ; Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida teré de ser univoca e to concisa quanto possivel. "Da Vena, reito francéfona da Belgica. (N. do T.) 36 2.2, AS QUALIDADES DE EXEQUIBILIDADE As quelidedes de exequibilidade estio essencialmente ligadas ao cardcter realista ou irrealista do trabelho que a pergunta deixa enirever. Pergunta 3 Os dirigentes erapresariais dos diferentes paises da Comunidade Europeia tém uma percepgéo idéntica da concorréncia econémica dos Estados Unidas e do Japaio? Comentério Se puder dedicar pelo menos dois anos inteiros a esta investi- ‘Bagi, se dispuser de um oreamento de varios mithdes ¢ de colebo- racores competentes, eficazes ¢ poliglotes, teré, sem divida, algu- mas hip6teses de realizar este tipo de projectoe de obter resultados suficientemente pormenorizados para terem alguma utilidade. Se nio, é preferivel restringir as suas embigdes, Ao formular uma pergunta de partida, um investigador deve assegurar-se de que os seus conhecimentos, mas também os seus recursos em :empo, dinieiro e meios logisiicos, he permitiréo odter elementos de resposta validos. O que € concebivel para um centro de investigagdo bem equipaco e pare investigadores com experiéncia nao 0 é forgosamente para quem no dispée de recur- sos compardveis. Os investigadores principiantes, mas por vezes também os pt fissionais, subestimam quase sempre as restrigGes materiais, cularmente as de tempo, cue os seus projectos de investigarao implicam, Realizar as iniciativas prévias a um inquécite ou a entre- vistas, constituir uma amostca, decidir as pessoas-chave que podem dar apoio, organizar reunides, encontrar documentos Gteis, etc. podem devorsr partida ums grande parte do tempo + dos meios consagrados 2 investigagio. Em consequéncia, uma boa parte das informagoes recolhidas € subexplorada e a investigardo termina ‘num sprint angustiante, durante 0 qual nos expomos a erras ¢ negligéncias. 37 Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida deve ser reclista, isto &, adequada aos recursos € técnicos, em cuja necessidede podemes imediatamente pensar € ‘com que podemos razoavelmente contar, 2.3, AS QUALIDADES DE PERTINENCIA ‘As qualidades de pertinéncia dizem respeito ao registo (expli- cativo, normativo, preditivo..) em que se enquadra a pergunta de partida. Procedamos, também aqui, a0 exame critico de exemplos de perguntas semelhantes &s que encortramos frequentemente no ini- cio de trabalhos de estudantes Pergunta 4 ‘A forma como c fisco ests organizado no nosso pais € social- mente juste? Comentario Esta pergunta nfo tem, evidentemente, coro objectivo analisar © funcionzmento do sistema fiscal ou 0 impacio da maneira como ele € concedido ou levado a cabo, mas sim julgi-lo no plano moral, ‘© que constitui um procedimento completamente diferente, que no diz respeito as ciéncias sociais. A confusio entre a an © juizo de valor € muito usual e nem sempre € fécil de detectar. De uma maneira geral, podemos cizer que uma pergunta é moralizadora quando a respesta que Ihe damos s6 tem sentido em relagio ac sisiema de valores de quem a formula, Assim, a res. posta serd radicalmente diferente consoante a pessoa que responde ache que a justiga consiste em fazer cada ura pagar uma quota: -parte igual 8 dos cutros, sejam quais forem os seus rendimentos (como € « caso dos impostos indirectos), uma quota-parte propor- ional aos seas rendimentos ou uma quotaparte proporcional- mente mais importante & medida que forem aumentando os seus rendimentos (a taxa progressiva aplicada nos impostes directes). 38 Esta tltima formula, que alguns considerardo justa por contribuir para ateruar as desigualdades econémicas, seré julgada absoluta- mente injusta por quem considere que, assim, 0 fisco lhe extorque bastante mais do que aos outros do fruto do seu trabalto ou da sua habilidace, Os lazos entre 2 investigacao social e o julgamento moral so, evidentemente, mais estreitos ¢ mais compiexos do que este sim- pes exemplo deixa supor, mas nfl & este o lugar para os aprofundar. © facto de um projecto responder a uma preocupagio de ccaricter tico e politico (como contribuir para resolver problerias sociais, para instaurar mais justiga e menos desigualdades, para Iutar contra a marginalidade ou contra a violEncia, pare aumentar amotivago do pessoal de uma empresa, para ajudar a conceber um plano de renovagdo urbana...) ndv €, em si, uin problema Longe de ever ser evitada, esta preocupagao de pertinéncia ie ‘com uma, eicios de estilo» mais ou menos brilbantes. Tal ndo impede a inves- tigegiio de ser conduzida com rigor, pelo menos desde que 0 investigador saiba clarificar as opgdes subjacentes controlar as, implicagSes possiveis. Esse problema no é, aliés, proprio das ci€ncias sociais, que, habitualmente, tém 0 mérito de 9 colocasem ¢ de o enfrentarem mais explicitamente do que outras disciplinas. ‘Acresce que uma investigacio realizada com rigor e oujz problemé- tica € consiruida com inventividade (y. quarta etapa) evidencia os desafios 6ticos € normativos

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