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O Desenvolvimento da Criatividade

e da Percepção Visual

Fernanda de Morais Machado

Para nós, designers, a criatividade é a principal fer-


ramenta. Devemos saber como usá-la, como aproveitá-la
integralmente, pois é ela que move nosso trabalho. É ela
que representa o grande diferencial em um projeto de de-
sign. Planejamento e criatividade são os dois fatores que
determinam a qualidade de um projeto. O planejamento
é uma técnica. Formalmente, começa com a detecção de
um problema ou uma questão. Depois de observá-la, faz-
se uma pesquisa sobre o tema. Assimiladas as informa-
ções coletadas, geram-se alternativas para a solução do
problema, e o projeto se desenvolve. Já a criatividade é o
fator que dá a personalidade, a vida e a alma ao projeto.
Nesse artigo, pretendo trazer um estudo sobre a criativi-
dade, de onde ela vem, e também indícios sobre onde ela
foi parar.

É comum ouvirmos as pessoas dizerem que não


têm criatividade. Isso não é verdade. Apenas em algumas
pessoas ela está mais aflorada do que em outras. Todos
nós nascemos com criatividade, a diferença é o que
fazemos com ela.

Para entender melhor esse processo, precisamos


voltar à infância, e estudar como o desenvolvimento da
criatividade ocorre nas crianças. O processo se manifesta
claramente nos desenhos infantis, primeiro registro con-
creto da expressão pessoal. Os desenhos infantis con-
têm uma originalidade e um frescor de concepção que
é a própria essência da infância. As crianças menores,
principalmente, expressam suas idéias, pensamentos e
emoções com uma espontaneidade invejada por muitos
artistas. O desenho das crianças é feito de maneira mais
inconsciente, sem a preocupação do que os observa-
dores irão pensar. A criança desenha por puro prazer. Até
certa idade, ela não é limitada pelas barreiras exteriores
que nos são impostas, as cobranças da família ou da so-
ciedade. O que vale é a pura expressão pessoal. Daí os
desenhos serem mais criativos. O que torna a arte expres-
siva é a manifestação do “eu”, e suas reações subjetivas
ao meio.

De acordo com os autores Lowenfeld e


Brittain, no livro “O Desenvolvimento da Capacidade
Criadora”, o desenho infantil passa por algumas fases
de desenvolvimento. Por volta dos dois anos de idade já
são feitos os primeiros rabiscos. A criança está livre das
influências externas. Suas garatujas são realizadas pelo
puro prazer cinestésico, pela possibilidade de poder reg-
istrar os movimentos. Aos poucos as linhas vão ficando
mais controladas, conforme a criança adquire um con-
trole visual sobre elas. O pensamento deixa de ser cines-
tésico para ser imaginativo quando a criança relacionar as
“Um homem”, desenhado por uma criança de
quatro anos. As primeiras experiências represen- garatujas a elementos do seu meio. Essas são as primei-
tativas decorrem, naturalmente, das garatujas
ras manifestações de suas experiências sensoriais, e é o
infantis.
desenvolvimento da base para a retenção visual.

A partir dos quatro anos, surgem as primeiras ex-


periências representativas. Ainda que sejam ligadas às
garatujas, não impedem a identificação dos elementos
que estão sendo representados. Nessa fase, o desenho
é a oportunidade da criança organizar suas experiências,
convertendo o pensamento em forma concreta. O impor-
tante não é o aspecto externo dos desenhos, mas o pro-
cesso total de criação. Não se deve estabelecer técnicas e
padrões.

Por volta dos sete anos, a criança está começando


a estruturar seus processos mentais de tal forma que
pode começar a ver relações em seu ambiente. Os de-
senhos são estruturais e esquematizados. Para isso, as
crianças lançam mão da perspectiva afetiva, rebatimento,
visão de raio X e representação simultânea de tempo e
espaço como recursos.

Entre os nove e doze anos, a criança deixa de lado


a repetição dos mesmos símbolos. Ela adquire auto-
crítica e também consciência do ambiente natural. Passa
a se preocupar com proporções e profundidade. Ainda de

“Estamos brincando no playground”, desenho de uma menina de oito anos. Há o esquema para correr e o
esquema para ficar de pé. As criaças que formam a roda são representadas de acordo com a experência
infantil de um cículo, não por sua percepção visual. Este desenho é incomum, porque se afasta do conceito
de linha de base.

acordo com o livro, “(...) entre os doze e os quatorze anos,


alguns jovens já têm o sentimento de serem adultos,
mas seus desenhos são apreciados como algo infantil.
Isso lhes causa um grande choque.” Assim, a criança se
torna muito crítica em relação aos seus trabalhos, devido
à pressão que ela sente para que ele se conforme aos
padrões adultos de comportamento. Isso pode sufocar
seus impulsos criadores. A ânsia e crescer gera uma certa
vergonha na criança em relação aos seus desenhos. A cri-
ança não quer ser vista como criança, e sim como adulto,
merecedor de respeito perante a sociedade. Assim, a cri-
ança sente-se envergonhada de seus desenhos ainda
infantis, e acaba por reprimi-los, e reprime sua vontade
de desenhar e de se expressar livremente.

1. “Digo alô ao meu amigo do outro lado da rua”. As linhas de base estão nas bordas do papel.

2. Mostra uma parte do estábulo seccionado, para que possamos ver o que tem mais importância: as
vacas e o fazendeiro. Vemos o céu, na parte superior, e uma linha de base sob o estábulo, com ar no
espaço intermédio.

O papel do professor de Artes é extremamente im-


portante nesse processo. É ele que está sempre presente,
observando o desenvolvimento de cada criança, orientan-
do-o e direcionando-o. Segundo Lowenfeld e Brittain, o
professor deve ter sempre em mente que não se deve im-
por padrões e regras a serem seguidos, estabelecer algo
supostamente correto, “bonito” ou “feio”. Essas seriam
restrições à capacidade criadora e, conseqüentemente,
inibiriam a expressão individual da criança e sua auto-
afirmação. É preciso ajudar as crianças a desenvolver a
confiança na auto-afirmação, propiciada pela expressão
artística. O desenho infantil deve ser estimulado não com
a intenção de ensinar as técnicas para as crianças, mas
pelo fato de este ser um importante processo de apren-
dizagem. É a oportunidade dela se expressar, de expor
de forma concreta seus pensamentos e sentimentos. À
medida que a criança desenha, ela aprende, pois assim
ela organiza e concretiza seus pensamentos. Ao mesmo
tempo em que lhe dá autoconfiança por estar construindo
e se expressando livremente.
De acordo com Maria Helena Guerra, professora do
núcleo de artes do Colégio George Pfinsterer, as etapas do
desenvolvimento do desenho infantil, propostas no livro
mencionado, de fato existem, mas não de uma maneira
tão rígida, tão atrelada às faixas etárias. Essa divisão é fei-
ta por questões didáticas. Geralmente uma etapa sucede
a outra, mas não com uma data marcada para começar e
acabar. Algumas crianças se desenvolvem com mais rapi-
dez do que outras. Também existem casos de crianças que
pulam certas etapas. Exemplificando, podemos relatar
um caso concreto. Durante uma aula da professora Maria
Helena, observamos os desenhos feitos por duas meni-
nas, uma de cinco e outra de sete anos de idade. As duas
fizeram seus respectivos desenhos estando juntas em
sala de aula. A semelhança na tentativa de organização
é bastante nítida. Fizeram uma menina no primeiro plano,
enfatizando o rosto, e com uma parte do tronco. Usaram
o mesmo esquema para representar o cabelo, e com o
mesmo tipo de faixa na cabeça. O desenho da menina de
cinco anos era muito mais desenvolvido do que o da de
sete, que possivelmente foi quem copiou. As proporções
no desenho da mais nova eram muito mais próximas das
reais, como o tamanho do corpo em relação ao tamanho
da cabeça, o tamanho dos olhos, do nariz e da boca. Estes
elementos do rosto estavam corretamente posicionados.
Todo o espaço da folha foi bem aproveitado, pois o rosto
estava posicionado no centro ótico. Já o desenho da me-
nina de sete anos era bastante desproporcional. O corpo
era muito menor do que a cabeça, os braços eram cur-
tos demais, os olhos, nariz e boca também eram muito
pequenos e mal posicionados no rosto, além de terem
um formato mais primitivo. A ocupação da folha de papel
foi mal planejada. A cabeça estava localizada no centro
geométrico da folha, gerando uma grande área vazia no
topo do papel, que foi preenchida com outros elementos
aleatórios.

Obviamente a menina de cinco anos tem uma per-


cepção visual muito mais desenvolvida do que a da meni-
na de sete. Cai por terra a rigidez proposta por Lowenfeld
em sua teoria. A questão é que, na prática, é impossível
para o professor saber qual é causa do maior ou menor
desenvolvimento da capacidade visual de uma criança.
Cabe a ele detectar as deficiências e tentar corrigi-las com
seus exercícios.

O que diferencia um desenho pertencente a uma


fase ou outra do desenvolvimento é o nível de sofistica-
ção se o desenho é mais ou menos elaborado. Isso, na
verdade, é um reflexo da maior ou menor apuração da
percepção visual da criança autora do desenho. A percep-
ção visual e a criatividade se desenvolvem paralelamente.
Existem exercícios tanto para um quanto para outro. Se-
gundo a professora Maria Helena, nada do que criamos
surge do nada. Tudo que criamos vem de alguma ex-
periência anterior, vem de algo que usamos como refer-
ência, ainda que de maneira inconsciente. Isso também
vale para as crianças, que comumente desenham cenas
do seu cotidiano. Sendo assim, é preciso que a criança
saiba observar ao máximo aquilo que está à sua volta pra
que ela possa criar cada vez mais.

Quando a criança começa a desenhar alguma


coisa, um carro por exemplo, a partir daí ela vai obser-
var com mais atenção os carros em seu dia a dia. O ato
de desenhar o carro, e o resultado final do seu desenho,
lhe despertam a atenção sobre o tema carro. Se ela se
acostumar a observar os carros com mais atenção a cada
detalhe, isso vai contribuir para que ela desenvolva a sua
percepção visual. Além disso, quanto mais ela observar,
mais informação ela vai reter, maior será o seu repertório
visual. Conseqüentemente, maior será a sua capacidade
de criar.

Por isso, a maior preocupação de Maria Helena


em suas aulas é fazer com que as crianças observem o
ambiente à sua volta e os seus trabalhos com mais aten-
ção. E, principalmente, que reflitam sobre o que estão
vendo. Como ela diz, fazer com que eles “olhem, vendo”.
O ato de desenhar, antes de tudo, depende do ato de
observar, pois as crianças também precisam ter suas
referências para criar.
A criatividade infantil tem origem e reflexo no
próprio desenho. A partir dele a criança aumenta sua
percepção. Isso desenvolve sua criatividade, que vai se
refletir no próprio desenho.

O desenho infantil encanta e desperta o interesse


dos adultos pela sua criatividade e pela inocência da mais
pura expressão. É curioso o fato de que em trabalhos de
ilustração, adultos resgatam a linguagem do desenho in-
fantil, encantados pela sua inocência e simplicidade que
dão expressividade ao desenho. É o caso de Paul Rand,
por exemplo. Seu design era bastante moderno para a
época. Em 1956, Rand ilustrou o primeiro de quatro livros
infantis de Ann Rand, sua segunda esposa, chamado
“I know a lot of things”. Em 1957 ilustrou “Sparkle and
spin”, em 1962, “Little 1”, e em 1970, “Listen! Listen!”. Seus
livros seguiam a mesma linha de design e ilustração que
usava em seus cartazes publicitários. A inspiração nos
desenhos infantis, simples e descompromissados, se fa-
zia presente, sempre carregados com humor. Nos livros
infantis, os desenhos eram um pouco menos sofisticados.

“Little 1”, 1962


Eles eram simplificados para facilitar a caracterização.
Seu trabalho em capas de livros já era bastante solto e
expressivo. Com os livros infantis, seu trabalho era feito à
velocidade do inconsciente, o que lhe oferecia mais liber-
dade para exercitar seu espírito lúdico.

“I Know a Lot of Things”, 1956, sketches em gouache.

Sabemos que a importância da criatividade vai


muito além do próprio desenho. É das idéias mais inusita-
das e criativas, dos brainstorms que nascem as grandes
idéias que vão melhorar a nossa sociedade e gerar mel-
hores condições de vida, com mais conforto e eficiência.
Por isso devemos quebrar as barreiras que nos foram im-
postas desde a nossa infância. Não devemos inibir nossa
idéias diferentes, nossa livre-expressão. Maior será a cria-
tividade de um projeto quanto mais pura for a expressão
pessoal, livre das barreiras. Somos todos diferentes uns
dos outros. Não pensamos e, principalmente, não nos
expressamos da mesma forma. Devemos aceitar essas
diferenças e enfatizá-las, a fim de realizar um trabalho
mais autêntico.

Bibliografia:

LOWENFELD, Viktor.; BRITTAIN, W. Lambert. Desenvolvi-


mento da capacidade criadora . São Paulo : Mestre Jou
1977. 448p.

HELLER, Steven. Paul Rand. New York: Phaidon 1999.


255p.

Sites:

www.angela-lago.com.br - visitado em setembro de 2005

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