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Racionais MC’s, Sobrevivendo no Inferno, 1997

Prof. Valdir
(I) Sequência das letras pistola automática. Embora pertençam a mundos opostos, a Bíblia e a
pistola automática são formas de proteção para o eu-lírico. A pistola é
Epígrafes: para defender-se da violência dos homens; a Bíblia é para lhe servir de
“Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça” (Salmo 23, 3) guia e fortalecê-lo espiritualmente nas adversidades. Porém, não há
garantias nem certezas para o eu-lírico. Tudo o que se pode fazer é tentar
“E mesmo que eu ande no vale da sombra e da morte, não temerei mal
sobreviver. “E tô tentando sobreviver no inferno”.
algum porque tu estás comigo” (Salmo 23, 4) Obs.: Nas letras dos Racionais, a ausência de concordância (“as criança”,
1. Jorge da Capadócia “as arma”, “as puta”) assim como o uso de gírias reproduz o modo de falar
dos jovens da periferia na década de 1990. Mais tarde, muitas dessas
“Ogunhê!
expressões se tornaram comuns entre os jovens de classe média.
Jorge sentou praça na cavalaria
3. Capítulo 4, versículo 3
E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram
(...)
violência policial
Armas de fogo meu corpo não alcançarão A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras

Facas e espadas se quebrem sem o meu corpo tocar Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Cordas e correntes arrebentem sem o meu corpo amarrar
(...)
Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge” Eu tenho uma missão e não vou parar

Comentário: A abertura é uma música de Jorge Ben que invoca a Meu estilo é pesado e faz tremer o chão
proteção de São Jorge, o santo cavaleiro originário da Capadócia (atual Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição
Turquia). No sincretismo afro-brasileiro, São Jorge é identificado com o (...)
orixá Ogum. A palavra “Ogunhê” é a saudação dirigida a Ogum. Essas
De verso violentamente pacífico, verídico
referências aos cultos afro-brasileiros são raras nas letras de
“Sobrevivendo no Inferno”, onde prevalecem as referências religiosas Vim pra sabotar seu raciocínio
cristãs evangélicas. (...)
Obs.: Jorge Ben é uma das poucas figuras da música popular brasileira
Veja bem, ninguém é mais que ninguém
mencionadas com admiração pelos Racionais. Ele é nominalmente citado
na música “Fórmula mágica da paz”: “Traz a fita pra ouvir porque eu tô Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também
sem/ Principalmente aquela lá do Jorge Ben”. (...)
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
2. Gênesis (intro)
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Deus fez o mar, as árvores, as criança, o amor Te oferece dinheiro, conversa com calma
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem Contamina seu caráter, rouba sua alma
As arma, as bebida, as puta Depois te joga na merda, sozinho
Eu? Transforma um preto tipo A num neguinho
Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática Minha palavra alivia a sua dor, ilumina minha alma
Um sentimento de revolta Louvado seja o meu Senhor
E tô tentando sobreviver no inferno” Que não deixa o mano aqui desandar
Comentário: O título e o primeiro verso retomam o relato bíblico da E nem sentar o dedo em nenhum pilantra
criação do mundo por Deus. Em oposição a Deus, que criou apenas Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei
coisas boas e perfeitas, os homens são os responsáveis pelas coisas
Racionais, capítulo 4, versículo 3
negativas e destrutivas. São essas coisas que constituem o “inferno” ao
qual se refere as letras dos Racionais. (...)
O eu-lírico sente revolta porque almeja a bondade das coisas criadas por Dinheiro... Não tive pai, não sou herdeiro
Deus, mas vive no “inferno”, o mundo imperfeito e maldoso dos homens. Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Para sobreviver nesse inferno, ele carrega consigo uma Bíblia e uma

1
Por menos de um real minha chance era pouca Eu não consigo ver quem me chama
Mas se eu fosse aquele moleque de touca É tipo a voz do Guina
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca Não, não, não, o Guina tá em cana
Mas não... (...)
Permaneço vivo, prossigo a mística Aí, mano, o Guina mandou isso pra você!
Vinte e sete anos contrariando a estatística Depois do quarto tiro eu não vi mais nada
Seu comercial de TV não me engana Sinto a roupa grudada no corpo
Eu não preciso de status nem fama Eu não quero, não posso estar morto
(...) Mas seu eu sair daqui eu vou mudar
Eu sou apenas um rapaz latino-americano Eu tô ouvindo alguém me chamar”
Apoiado por mais de cinquenta mil manos Comentário: Nesta música, um jovem de periferia conta que entrou na
Efeito colateral que o seu sistema fez vida do crime por causa da admiração que tinha pelo assaltante Guina
(“Aquele mano era foda/ Só moto nervosa/ Só mina da hora/Só roupa da
Racionais, capítulo 4, versículo 3”.
moda”). Guina se tornou seu mestre e o convidou a participar de assaltos.
Comentário: Essa letra é uma espécie de manifesto em que os Racionais Nesses assaltos, o narrador acabou matando duas pessoas (uma delas
mostram o problema e declaram a sua atitude e posição. O problema é era um rapaz de dezesseis anos). Arrependido, o narrador quis mudar de
enunciado nas estatísticas que abrem a música: a violência policial contra vida. O Guina foi preso. Seus companheiros achavam que ele tinha sido
os jovens de periferia, principalmente os jovens negros, numa sociedade delatado pelo narrador. Vieram, então, procurar o narrador e atiraram
em que os negros têm pouco acesso à universidade. nele.

Os Racionais assumem a missão de denunciar essa situação de maneira Obs.: Algumas das letras dos Racionais tem a forma de depoimentos de
contundente e agressiva ("Meu estilo é pesado e faz tremer o chão/ Minha pessoas que se envolveram com a violência (seja como autores, seja
palavra vale um tiro, eu tenho muita munição"). No entanto, essa como vítimas delas). Essas letras evitam oposições maniqueístas. O
agressividade não faz uso das armas e violência, mas defende a paz e narrador não é uma vítima inocente do sistema (ele quis entrar no crime
procura mudar a maneira de pensar e os valores dos ouvintes ("De verso e cometeu dois homicídios), mas ele não é simplesmente um monstro que
violentamente pacífico, verídico/ Vim pra sabotar seu raciocínio"). mereça morrer (ele tem consciência moral e sofre com o que fez). A
posição dos Racionais, expressa em outras letras, é clara: “a vida bandida
Os Racionais não querem julgar e condenar as pessoas de maneira não tem futuro”. No entanto, é importante não ser precipitar na hora de
precipitada. Muita gente se envolve com atitudes erradas ou perigosas na julgar e condenar as pessoas: “Veja bem, ninguém é mais que ninguém/
periferia, mas é preciso entender por qual razão isso acontece: "Veja bem, Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também".
ninguém é mais que ninguém/ Veja bem, veja bem, e eles são nossos
irmãos também". 5. Rapaz comum
O fato é que o mundo está cheio de apelos tentadores que vem pelos
meios de comunicação. As promessas de dinheiro, status e bens de “Parece que alguém está me carregando perto do chão
consumo corrompem a alma das pessoas: "Irmão, o demônio fode tudo Parece um sonho, parece uma ilusão
ao seu redor". Nesse meio, é como se a mensagem dos Racionais fosse A agonia, o desespero toma conta de mim
uma extensão da mensagem bíblica (daí a expressão-título “Racionais, Algo no ar diz que é muito ruim.
capítulo 4, versículo 3") e, por isso, não deve ser ignorada pelos ouvintes. Meu sangue quente, não sinto dor
Meu raciocínio fica meio devagar
Os Racionais não querem ser como aqueles que se humilham pedindo Quem me fodeu? Eu tô tentando me lembrar
dinheiro nos semáforos, nem como aqueles que assaltam e matam, nem (...)
como os que se deixam levar pela sedução do consumo. É possível Não quero admitir que sou mais um
sobreviver na periferia evitando tudo isso: “Permaneço vivo, prossigo a
Infelizmente é assim, aqui é comum
mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística”.
O sistema social corrompe, humilha e destrói quem vive na periferia. Os Um corpo a mais no necrotério, é sério
Racionais assumem sua condição de moradores de periferia, mas estão Um preto a mais no cemitério, é sério
fortalecidos pelo movimento dos rappers ("apoiados por mais de
(...)
cinquenta mil manos"). Esse movimento, que proclama a força e a
dignidade dos jovens negros de periferia, surgiu como reação ao sistema Não sou o último, nem muito menos o primeiro
social. É um efeito colateral desse sistema. A lei da selva é uma merda e você é o herdeiro.”
Comentário: Nessa música, o narrador conta que foi baleado na porta de
4. Tô ouvindo alguém me chamar sua casa por razões que ele não compreendia. Ele, que era apenas uma
“Tô ouvindo alguém gritar meu nome pessoa comum, foi vítima da brutalidade que se tornou regra na periferia
Parece um mano meu, é voz de homem. (“a lei da selva”).

2
Obs.: Assim como a letra anterior, essa letra tem a forma de um não tem santo”), mas de mostrar que cada um deles tem, atrás de si, uma
depoimento. Em ambos os casos, o depoimento tem a mesma estrutura: trajetória de “abandono, miséria, ódio, sofrimento/ desprezo, desilusão,
um narrador que foi baleado e morto relembra a sua vida na periferia ação do tempo”. Por outro lado, a violência do massacre é denunciada
(flashback). Nessas letras são os mortos que estão contando a sua como uma oportunidade, concedida à polícia pelo governador, para
história. eliminar os indesejáveis: “Era a brecha que o sistema queria/ Avise o IML,
chegou o grande dia”.
6. Faixa instrumental Obs.: A onomatopeia “ratatá”, repetida várias vezes ao longo da letra,
refere-se ao som das metralhadoras usadas pela polícia.

7. Diário de um detento 8. Periferia é periferia

“Cada detento, uma mãe, uma crença “Este lugar é um pesadelo periférico
Cada crime, uma sentença Fica no pico numérico da população
Cada sentença, um motivo, uma história De dia, a pivetada a caminho da escola
De lágrima, sangue, vidas e glórias À noite vão dormir enquanto os mano decola
Abandono, miséria, ódio, sofrimento Na farinha, na pedra
Desprezo, desilusão, ação do tempo Usando droga de monte, que merda
Misture bem essa química (...)
Pronto: eis um novo detento Muita pobreza, estoura a violência
Lamentos no corredor, na cela, no pátio Nossa raça está morrendo mais cedo
Ao redor do campo, em todos os cantos Não me diga que está tudo bem
Mas eu conheço o sistema, meu irmão (...)
Aqui não tem santo. A revolta deixa o homem de paz imprevisível
(...) E sangue no olho, impiedoso e muito mais
A vida bandida é sem futuro Com sede de vingança e muito mais
(...) (...)
Ratatá, sangue jorra como água Todo mundo sente medo de sair de madrugada e tal
Do ouvido, da boca e nariz Ultimamente andam os doidos pela rua
O Senhor é meu pastor, perdoe o que seu filho fez Louco na fissura, te estranham na loucura
Morreu de bruços no Salmo 23 Pedir dinheiro é mais fácil que roubar, mano
(...) Roubar é mais fácil que trampar, mano
Ratatá, Fleury e sua gangue É complicado, o vício tem dois lado
Vão nadar numa piscina de sangue Depende disso ou daquilo, ou não, tá tudo errado
Mas quem vai acreditar no meu depoimento? Eu não vou ficar do lado de ninguém porque:
Dia três de outubro, diário de um detento. Quem vende a droga pra quem?
Comentário: No dia 2 de outubro de 1992, a tropa de choque da Polícia Vem pra cá de avião ou pelo porto, cais
Militar de São Paulo recebeu ordem do governador Luiz Antônio Fleury Não conheço pobre dono de aeroporto e mais
Filho para entrar no presídio do Carandiru (o maior do Brasil na época) e
Fico triste por saber e ver
reprimir uma rebelião que havia começado por causa de um acerto de
conta entre os detentos. A atuação da polícia resultou na morte de 111 Que quem morre no dia a dia é igual a eu e você
presos (segundo os números oficiais), a maioria deles era de réus (...)
primários. O “massacre do Carandiru” foi o mais grave episódio de Periferia é periferia
violência policial no sistema carcerário brasileiro. Jocenir, um dos
sobreviventes, escreveu um relato a rotina do presídio no dia que Deixe o crack de lado, escute o meu recado”
antecedeu a invasão. Esse relato foi transformado em rap pelos Comentário: Na periferia, a pobreza e as drogas (a cocaína e o crack, “a
Racionais. farinha” e “a pedra”) conduzem a um ciclo de violência. Jovens começam
A música “Diário de um Detento” tem uma posição central em a consumir drogas enquanto os pais estão no trabalho; jovens viciados
“Sobrevivendo no Inferno” porque mostra as consequências extremas da roubam trabalhadores para comprar drogas; trabalhadores revoltados
marginalização da periferia e da violência policial. Como acontece em compram armas para se vingar e matam jovens viciados. O resultado é a
outras letras dos Racionais, não se trata de inocentar os detentos (“Aqui morte de jovens, pobres, de origem negra: “Nossa raça está morrendo

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mais cedo”. Como acontece em outras músicas, os Racionais Não existia droga, nem fome e nem polícia
reconhecem que a questão é complexa e não querem fazer julgamentos (...)
maniqueístas: “É complicado, o vício tem dois lado/ Depende disso ou
Ninguém liga pro moleque tendo um ataque
daquilo, ou não, tá tudo errado”. No entanto, eles declaram que a droga
não chega sozinha na periferia. Ela depende de um sistema internacional Foda-se quem morrer dessa porra de crack
de tráfico ilegal, dominado por gente rica e poderosa: “Quem vende a Relaciona os fatos com seu sonho
droga pra quem?/ Vem pra cá de avião ou pelo porto, cais/ Não conheço
Poderia ser eu no seu lugar?
pobre dono de aeroporto”. Na outra extremidade do processo, estão os
pobres que morrem, sejam eles viciados ou trabalhadores mortos por Das duas, uma: eu não quero desandar
viciados. No entanto, todos compartilham a mesma condição de pobreza Por aqueles mano que trouxeram essa porra pra cá
e exclusão social: “Fico triste por saber e ver/ Que quem morrer no dia a
Matando os outros em troca de dinheiro e fama
dia é igual a eu e a você”. Esse sentimento de que, na periferia, todos
(viciados, bandidos, trabalhadores) estão na mesma situação é uma das Grana suja, como vem, vai, não me engana
mensagens fundamentais de “Sobrevivendo no Inferno”. Mas o Queria que Deus ouvisse a minha voz
reconhecimento das condições de vida na periferia não é vista com E transformasse aqui no mundo mágico de Oz.
resignação. Os Racionais não querem que as pessoas aceitem essa
situação como inevitável. Eles não querem que a situação seja aceita (...)
como rotina normal (“Não diga que está tudo bem”). Os Racionais Às vezes eu fico pensando se Deus existe memo, morô?
acreditam na força das palavras. Eles acreditam que é possível mudar a Porque meu povo já sofreu demais e continua sofrendo até hoje
situação pela sua mensagem: “Deixe o crack de lado, escute o meu
Só que eu aí vejo os moleques nos farol na rua
recado”.
Muito louco de cola, de pedra
9. Qual mentira vou acreditar E eu penso que poderia ser um filho meu, morô?
Mas aí
“São apenas dez e meia, tem a noite inteira
Eu tenho fé
Dormir é embaçado numa sexta-feira
Em Deus”
Sei lá, vou pruma festa
Comentário: A letra retoma a questão da ligação entre a droga (o crack),
Se os cara não colar, volto às três da manhã a pobreza e a violência na periferia. O “mundo mágico de Oz” representa
(...) aqui a utopia de uma vida inocente, pacífica, harmoniosa e cheia de
Tem que saber curtir, tem que saber lidar fartura (como Pasárgada no poema de Manuel Bandeira). Diante da
situação das crianças viciadas, a sensação oscila entre o desespero (“Às
Qual mentira vou acreditar vezes eu fico pensando se Deus existe memo, morô?”) e a esperança
A noite é assim memo, então, deixa rolar (“Mas aí/ eu tenho fé/ em Deus”).
Qual mentira vou acreditar
(...) 11. Fórmula mágica da paz

Tem de andar é esperto, mano “Essa porra é um campo minado


Eu não confio nem na minha própria sombra, quando eu saio Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui?
Vou dar um rolê... Mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho
Mas tem que saber curtir, tem que saber lidar, morô? A minha vida é aqui e eu não consigo sair
Comentário: A letra fala das tentações, seduções e riscos que surgem É muito fácil fugir, mas eu não vou
quando se sai à noite para circular fora da favela.
Não vou trair quem eu fui, quem eu sou

10. Mágico de Oz Eu gosto de onde eu tô e de onde eu vim


O ensinamento da favela foi muito bom pra mim
“Comecei a usar para esquecer dos problema (...)
Fugi de casa Então, como eu estava dizendo, sangue bom
Meu pai chegava bêbado e me batia muito Isso não é sermão, ouve aí, tem o dom?
Eu queria sair dessa vida Eu sei como é que é
Meu sonho? É foda, parceiro
É estudar, ter uma casa, uma família É... a maldade na cabeça o dia inteiro
Se eu fosse mágico? Nada de roupa, nada de carro, sem emprego

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Não tem ibope, não tem rolê, sem dinheiro Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo
(...) Que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade
Ninguém é mais que ninguém, absolutamente Um homem chamado Jesus
Aqui quem fala é mais um sobrevivente Só ele sabe a minha hora”
(...) Comentário: “Sobrevivendo no Inferno” chega ao final com uma
Hoje eu posso compreender saudação de despedida aos bairros de periferia de São Paulo e de outras
capitais. As palavras finais são um desafio àqueles que desejam a
Que malandragem de verdade é viver
violência e uma declaração de fé em Jesus, apresentado com os traços
(...) de homem negro e pobre, que acreditava na igualdade.
Você não bota uma fé, mas eu vou atrás
Da minha fórmula mágica da paz (II) Aspectos Principais

Eu vou procurar, sei que vou encontrar


1. A periferia como problema
(...)
A vida na periferia das grandes cidades brasileiras é marcada pela
Respeito mútuo é a chave, é o que eu sempre quis
pobreza, violência, consumo de drogas e pela marginalização dos jovens
(...) negros, que são os principais envolvidos na violência, seja como autores,
Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá seja como vítimas. Os Racionais denunciam essa violência, indicando
que ela está enraizada em fatores mais amplos e profundos (a
Minha ideologia enfraqueceu
desigualdade social, a exclusão dos negros, o tráfico internacional de
Preto, branco, polícia, ladrão ou eu? drogas). O Estado só se faz presente para vigiar e reprimir por meio da
Quem é mais filha da puta, eu não sei polícia. O “inferno” da periferia é a prova do fracasso catastrófico dos
projetos de desenvolvimento e integração nacional que se sucederam no
(...)
Brasil desde a década de 1930.
Não se acostume com esse cotidiano violento
Que essa não é a sua vida” 2. A periferia como identidade
Comentário: A letra começa com uma afirmação de que a favela não é A periferia não é apenas o “inferno”, a “vida loka” (isto é, marcada pelos
apenas uma fonte de sofrimento, mas também de pertencimento,
riscos e incertezas), mas é também fonte de pertencimento e identidade
ensinamento e identidade. Os Racionais rejeitam o evasionismo (“É muito
fácil fugir, mas eu não vou/Não vou trair quem eu fui, que eu sou/ O coletiva. Os Racionais propõem ser a voz da periferia, uma voz orgulhosa,
ensinamento da favela foi bom pra mim”). Eles convidam os manos de enérgica e cheia de sabedoria para sobreviver. Uma voz que usa um
“sangue bom” a ouvirem os seus conselhos e reflexões (“isso não é discurso agressivo para alcançar a paz: “um verso violentamente pacífico,
sermão, ouve aí, tem o dom?”). Trata-se de encontrar um modo limpo de verídico”.
sobreviver (“fórmula mágica da paz”), isto é, um jeito de fazer com que o Um dos grandes méritos dos Racionais é ter rompido com a imagem
cotidiano de violência possa ser superado e se aproximar da utopia pitoresca e turística da comunidade negra da periferia, que era sempre
mencionada em “O mundo mágico de Oz”. A proposta é reconhecer que,
associada ao samba, futebol, cerveja e rituais de sincretismo religioso. Os
na favela, ninguém é superior já que todos compartilham as mesmas
dificuldades (“ninguém é mais que ninguém”). A verdadeira malandragem Racionais não negam que esses aspectos existam, mas eles são
(no sentido de esperteza) é conseguir viver. É preciso ter respeito mútuo. secundários e mencionados apenas de passagem. O que é importante na
Diante das adversidades e sofrimentos (como a perda de pessoas identidade da comunidade negra da periferia é a força com que ela
queridas por causa da violência), é preciso não se deixar levar pela precisa se afirmar contra as forças de exclusão e de repressão do Estado
vingança nem pelos julgamentos simplistas (“Preto, branco, polícia, (ver as estatísticas no início da música “Capítulo 4, versículo 3”)
ladrão ou eu?/ Quem é mais filha da puta, eu não sei”). Por fim, é preciso
não se resignar nem aceitar como normal a “vida loka” (incerta e violenta)
3. Desespero x Esperança
da favela.
Juntamente com “Capítulo 4, versículo 3”, “Diário de um detento”, As letras de “Sobrevivendo no Inferno” oscilam entre o desespero e a
“Periferia é Periferia”, a música “Fórmula mágica da paz” é uma das mais
esperança. O desespero vem da constatação da brutalidade cotidiana a
importantes de “Sobrevivendo no Inferno” e resume a mensagem
“violentamente pacífica” dos Racionais. que é submetida a população da periferia: a exploração do trabalho, o
desemprego, a falta de oportunidades, o preconceito racial, a circulação
12. Salve de drogas e armas, as mortes violentas. A esperança vem da crença na
possibilidade de sobreviver e do desejo de construir relações pacíficas de
“Todos os DJs, todos os MCs fraternidade e igualdade (“o mundo mágico de Oz”, “a fórmula mágica da
Que fazem do rap a trilha sonora do gueto paz”).

(...)
4. Aspecto religioso
E pros filhos da puta que querem jogar minha cabeça pros porco:
Nessa esperança há um forte ingrediente religioso (basicamente cristão
Aí, tenta a sorte, mano
e evangélico, mas com algumas referências afro-brasileiras). Essa

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religiosidade não é a crença de uma vida melhor após a morte, nem numa
intervenção divina que irá punir os maus e recompensar os bons. O que
os Racionais buscam na religião é orientação, força e proteção diante das
adversidades e perigos da vida na periferia. Esse é o sentido dos
versículos dos Salmos que servem de epígrafe, da invocação de São
Jorge e dos versos finais da música “Salve”. Essa relação com a religião
não está isenta de dúvidas e hesitações: “Às vezes eu fico pensando se
Deus existe mesmo”, mas a fé acaba prevalecendo: “Eu tenho fé”,
“Agradeço a Deus e aos orixás”.
Esse aspecto religioso é extremamente marcante em “Sobrevivendo no
Inferno”. Ele está presente na capa do álbum: na frente, a imagem da
cruz, como a capa de uma Bíblia; atrás, a imagem de alguém que segura
uma arma. Trata-se de uma representação visual dos versos “Eu tenho
uma Bíblia velha, uma pistola automática/ Um sentimento de revolta/E tô
tentando sobreviver no inferno”.
O aspecto religioso está presente também na estrutura do álbum, que se
assemelha a um culto religioso, em que há pregação de inspiração bíblica
A obra Sobrevivendo no inferno do grupo Racionais Mc’s é composta
como em “Gênesis (intro)” e “Capítulo 4, versículo 3”, depoimentos de
pelas canções e pelo projeto editorial da capa e contracapa do CD. Nesse
vítimas da violência, análises das tentações do demônio (“Irmão, o
projeto editorial, encontram-se elementos visuais e verbais que
demônio fode tudo ao seu redor/ Pelo rádio, jornal, revista e outdoor”),
estabelecem um jogo de formas e sentidos. Com base na afirmação de
aconselhamento final (“Você pode encontrar a sua paz, o seu paraíso/
Antonio Candido, é correto afirmar que a organização desses elementos
Você pode encontrar o seu inferno/ Eu prefiro a paz”) e despedida e
benção (“Salve”). a) produz uma simetria entre som e sentido, sendo que tal simetria indica
De modo semelhante aos sermões feitos por pastores e padres (como o que os símbolos religiosos são uma resposta à violência.
padre Vieira), os Racionais buscam convencer seus ouvintes e levá-los a
refletir sobre suas atitudes com o intuito de mudá-las. Daí que seja tão b) configura um sistema de oposições, uma vez que imagens e palavras
comum nas letras a presença de um interlocutor a quem os Racionais se estabelecem tensões materiais e espirituais, constitutivas do sentido das
dirigem para persuadi-lo e aconselhá-lo: “Vim pra sabotar seu raciocínio”, canções.
“A lei da selva é uma merda e você é o herdeiro”, “Não se acostume com
esse cotidiano violento”. c) configura uma sintaxe poética de ordem espiritual. Essa sintaxe
5. Pluralidade de vozes (polifonia) espelha o caos e as injustiças vividos na periferia das grandes cidades.

Quando padres e pastores fazem sermões, eles se colocam como alguém d) produz uma lógica poética racional. Essa lógica se explicita na vitória
que conhece a verdade e procuram incuti-la nos fiéis. Trata-se de uma do crime sobre a visão de mundo presente nos versículos bíblicos
relação vertical de autoridade em que o padre/pastor é o único que fala. transcritos.
Embora procurem mudar o comportamento de seus ouvintes, os
Racionais evitam monopolizar o discurso. Nesse aspecto seu discurso se GABARITO
afasta dos padres e pastores (“Isso não é sermão, ouve aí, tem o dom?”).
Ao invés disso, eles estabelecem uma relação horizontal de igualdade Questão 1 alternativa B
(“Ninguém é mais que ninguém/ Aqui quem fala é mais um sobrevivente”), Há uma oposição entre a cruz e as citações da Bíblia (a religião) e a
em que os envolvidos na violência (como autores e/ou vítimas) podem dar pistola (violência). Isso indica as tensões entre a situação material
seus depoimentos. Há, assim, uma pluralidade de vozes (polifonia). (pobreza e violência) e o aspecto espiritual (busca de esperança) a que
Segundo o crítico Acauam Silvério de Oliveira: “Longe de tornar o se referem as letras de Sobrevivendo no Inferno.
conjunto incoerente, a multiplicidade de vozes e olhares oferece uma
percepção mais densa da realidade periférica aos conferir à dispersão
das experiências particulares fragmentárias um sentido geral de
coletividade”.

Questões
Questão 1 (Unicamp 2020)

"As palavras organizadas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca
porque obedece a certa ordem. Quando recebemos o impacto de uma
produção literária, oral ou escrita, ele é devido à fusão inextricável da
mensagem com a sua organização. Em palavras usuais: o conteúdo de
uma obra literária só atua por causa da forma" (Adaptado de Antonio
Candido, “O direito à literatura”, em Vários escritos)

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