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Copyright © by Luiz Costa Lima, 1979 Capa: Isabel Carballo CIP - Brasil. Catalogagao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. L755 ‘A Literatura ¢ 0 leitor: texcos de estética da recepgio Hans Robert Jauss... et al; coordenacio e tradugao de Luiz Costa Lima. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Bibliografia ISBN 85-219-0410-X 1. Literatura - Estética I. Jauss, Hans Robert : Il, Lima, Luiz Costa IIL. Titulo: Textos de estética da recepsao IV. Série 79-0344 CDD-801.93 CDU - 82.01 EDITORA PAZ. E TERRA S/A Rua do Triunfo, 177 Santa Ifigénia, Sao Paulo, SP — CEP 01212-010 Tel: (011) 3337-8399 Rua General Venancio Flores, 305 — Sala 904 Rio de Janeiro, RJ — CEP 2441-090 Telus (021) 2512-8744 E-mail: vendas@pazeterra.com.br Home Page: www:pazeterra.com.br 2002 Impresso no Brasil/ Printed in Brazil II O JOGO DO TEXTO WOLFGANG ISER FE. sensato pressupor que 0 autor, o texto ¢ o leitor séo intimamente in- terconectados em uma relagao a ser concebida como um processo em anda- mento que produz algo que antes inexistia. Esta concepgdo do texto est4 em conflito direto com a nogao tradicional de representagao, 4 medida que a mi- mesis envolve a referéncia a uma “realidade” pré-dada, que se pretende estar re- presentada. No sentido aristotélico, a fungao da representagao é dupla: tornar perceptiveis as formas constitutivas da natureza; completar o que a natureza deixara incompleto. Em nenhum dos casos, a mimesis, embora de importan- cia fundamental, nao se pode restringir 4 mera imitagao do que é, pois os pro- cessos de elucidagao e de complementaco exigem uma atividade perfomativa se as auséncias aparentes hao de se transformar em presenga. Desde o advento do mundo moderno h4 uma tendéncia clara em privilegiar-se o aspecto per- formativo da relagao autor-texto-leitor, pelo qual o pré-dado nao € mais visto como um objeto de representagao, mas sim como o material a partir do qual algo novo é modelado. O novo produto, entretanto, nao é predeterminado pe- los tragos, fungSes e estruturas do material referido ¢ contido no texto. Razées histéricas explicam a mudanga em foco, Sistemas fechados, co- mo 0 cosmos do pensamento grego ou da imagem de mundo medieval, prio- tizavam a representago como mimesis por considerarem que todo o existen- le — mesmo que se esquivasse 4 percep¢ao — deveria ser traduzido em algo tangfvel. Quando, no entanto, o sistema fechado € perfurado e substitufdo por um sistema aberto, o componente mimético da representagdo declina e 0 aspecto performativo assume o primeiro plano. O processo entdo nao mais 105 implica vir aquém das aparéncias para captar um mundo inteligfvel, no sen« tido platénico, mas se converte em um “modo de criaggo de mundo” (“way of world-making’). Se aquilo que o texto realiza tivesse de ser equiparado com a feitura de mundo, surgiria a questo se ainda se poderia continuar a falar em “representagao”. O conceito podia ser mantido apenas se os prdprios “modos de criagao de mundo” se tornassem o objeto referencial para a representagio, Neste caso, 0 componente performativo teria de ser concebido como o pré- dado do ato performativo. Independente de se isso poderia ou no ser consi- derado tautolégico, permanece o fato de que provocaria uma quantidade de problemas de que este ensaio nao pretende tratar. H4, contudo, uma inferén- cia altamente relevante para a minha discussdo: o que tem sido chamado 0 “fim da representagao”! pode, afinal de contas, ser menos a descrigao do es- tado histérico das artes do que a articulagdo de duividas quanto & habilidade da representago como conceito capaz de capturar o que, de fato, sucede na arte ou na literatura. Isso nfo equivale a negar que a relagao autor-texto-leitor contém um am- plo ntimero de elementos extratextuais que entram no processo, mas s4o ape- nas componentes materiais do que sucede no texto e nao representados um a um, Parece portanto justo dizer que a tepresentacao, no sentido em que vie- mos a compreendé-la, nfo pode abarcar a operagao performativa do texto co- mo uma forma de evento. Com efeito, ¢ importante notar que nao hd teorias definidas da representagao que de fato fixem as condig6es necessdrias para a producao da mimesis. Entre as raras excegdes est a idéia de representagao de Gombrich: ele fragmentou a nogio recebida em fases claramente distintas de um processo, que comega com a interacio entre o pintor ¢ os esquemas herdados, seguido pela correcao destes na pintura ¢ culmina com a atividade de deciframento pe- lo espectador, cuja leitura dos esquemas corrigidos leva o objeto da representa- go a fruicio.* 1 CE Michel Foucaule, The Order of things. An arcaeology of the human sciences, Londres, Tavistock, 1970, p. 217-49 ¢ Jacques Derrida, Whiting and difference, tad. de Alan Bass, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1978, especialmente o ensaio sobre Artaud. Para uma exploragio mi= nuciosa da questio, of, Gabrielle Schwab, Sarmuel Beckett Endspiel mit der Subjetivitit: Enoourf’ einer Psychoittheeile des modernein Theaters, Seuttgact, J. B. Metzler, 1981, p. 14-34. 2B. H. Gombrich, Art and illusion: A study in the psychology of pictorial representation, Londres, Phaidon Press, 1962, especialmente p. 154-244, 106 O presente ensaio é uma tentativa de dispor 0 conceito de jogo sobre a representagiio, enquanto conceit capaz de cobrir todas as opetagées levadas a cabo no processo textual. Ele apresenta duas vantagens heuristicas: 1. 0 jo- go nao se ocupa do que poderia significar; 2. 0 jogo nao tem de retratar nada fora de si préprio. Ele permite que a inter-telagao autor-texto-leitor seja con- cebida como uma dindmica que conduz a um resultado final. Os autores jogam com os leitores* ¢ 0 texto ¢ 0 campo do jogo. O pré- ptio texto é 0 resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere ¢ in- tervém em um mundo existente, mas, conquanto 0 ato seja intencional, visa a algo que ainda nao é acesstvel & consciéncia, Assim 0 texto é composto por um mundo que ainda hé de ser identificado e que é esbogado de modo a incitar 0 leitor a imagind-lo e, por fim, a interpreté-lo. Essa dupla operagio de imaginar ¢ interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possiveis do mundo identificdvel, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto comega a softer modificagdes. Pois nfo importa que novas formas 0 leitor traz 4 vida: todas elas transgridem — e, daf,‘modificam —o mundo referencial contido no texto, Ora, como o texto é ficcional, auto- maticamente invoca a convencao de um contrato entre autor e leitor, indicador de que o mundo textual hd de ser concebido, nao como realidade, mas como se fosse realidade. Assim o que quer que seja repetido no texto nao visa a denotar © mundo mas apenas um mundo encenado, Este pode repetir uma realidade identificdvel, mas contém uma diferenga decisiva: o que sucede dentro dele nao tem as conseqiiéncias inerentes a0 mundo real referido. Assim, ao se expor a si mesma a ficcionalidade, assinala que tudo € tao-sé de ser considerado como se fosse o que parece ser; noutras palavras, ser tomado como jogo. O mundo repetido no texto é obviamente diferente daquele a que sc re- fere, quando nada porque, como repeticao, deve diferir de sua existéncia extra- textual — 0 que vale para todos os tipos de discurso, textual ou nao — por- quanto nenhuma descricao pode ser aquilo que descreve. Ha, por conseguinte, varios niveis de diferenga que ocorrem simultaneamente no texto: 1, Extratextualmente: a. Entre o autor e o mundo em que ele interyém. 3 Peter Hutchinson, Games authors play, Londres, Methuen, 1983, fornece um caté- logo dlos varios jogos executados em textos literdtios. 107 b. Entre o texto ¢ um mundo extratextual, assim como entre 0 tex- to € outros textos. 2, Intratextualmente: a. Entre os itens selecionados a partir de sistemas extratextuais, b, Entre constelagdes semnticas construfdas no texto. 3. Entre texto e leitor: a. Entre as atitudes naturais do leitor (postas agora entre parénte- ses) e aquelas que se lhe exige ado: b. Entre o que é denotado pelo mundo repetido no texto e o que essa denotagdo — agora a servir como um andlogo que guia — pretende transgredir. Os niveis de diferenga sao bastante distintos mas todos eles constituem 0 espago vazio do texto, que pe o jogo em movimento. O movimento € 0 do jogo por trés diferentes aspectos: Em cada nivel, posigées diferencidveis sio confrontadas entre si, A confrontagao provoca um movimento de ida e vinda que é bdsi- co para o jogo e a diferenca resultante precisa ser erradicada para que alcance um resultado. 3. © movimento continuo entre as posigdes revela seus aspectos mui to diferentes e como cada um traspassa o outro, de tal modo que as préprias varias posigdes sao por fim transformadas. Cada uma dessas diferengas abre espago para o jogo e, daf, para a transforma- Go, que, mesmo no estégio preliminar de meu argumento, pare- ceria descreditar a nogao tradicional de representagao. Sie Os jogos visam a resultados e, se as diferengas nao sGo transpostas ou mesmo removidas, 0 jogo chega ao fim. O resultado do jogo textual, no en- tanto, pode ser altamente redutivo, pois os lances do jogo fragmentam as po- sigdes em uma multiplicidade de aspectos. Se consideramos set 0 significado 0 resultado do jogo textual, entao este sé pode provir da suspensio do movi- mento do jogo que, com alta freqiiéncia, envolve a tomada de decis6es. Mas qualquer decisao eclipsard inimeros aspectos provocados pela mudanga e in- teragao constantes e, daf, pela reiteragao variada de posigdes do jogo, de mo do que este, por si mesmo, se contrapée a chegar ao fim. 108 Ressalta-se assim a dualidade do jogo. Ele se dirige a ganhar alguma coi- sa, daf a se encerrar, ao mesmo tempo que remove a diferenga. Mas também se contrapée a remogio da diferenga e supera seus feitos de maneira a resta- belecer sua prépria liberdade como um movimento sempre descentrante. Em suma, 0 jogo preserva a diferenga que procura erradicar, Estes tragos mutuamente excludentes se entremesclam ¢ assim conver- tem o significado do texto em uma espécie de “suplemento”, A multiplicidade de diferengas que ocasionam o jogo e que também resultam dele nunca pode ser totalmente removida mas pode, de fato, aumentar com as tentativas de er- radicé-la. Em conseqiiéncia, o “suplemento” deriva nao sé do ganhar no jogo (isto é, do estabelecimento do significado) mas também, ¢ ao mesmo tempo, a partir do jogo livre — pois o proprio jogo livre permaneceria inapreenstvel se no tivesse alguma forma de manifestagio. Se o “suplemento” é o produto desses tracos contrapostos, podemos extrair duas conclusdes: 1. O “suplemen- to”, como 0 significado do texto, ¢ engendrado através do jogo e, portanto, nao hd um significado prévio ao jogo. 2. A geracdo do “suplemento” através do jo- go admite diferentes desempenhos por diferentes leitores no ato de recep¢ao — ¢ isso mesmo na medida que pode ser jogado ou para que se alcance a vi- téria (0 estabelecimento do significado) ou para que se mantenha o jogo livre (a conservacao em aberto do significado). Esta dualidade do jogo — remover e manter a diferenca — desafia uma conceitualizacdéo mais avangada. Ela no pode ser fenomenologicamente re- duzida por reconduzi-la a uma causa subjacente. Mesmo teorias unilaterais do jogo como a de Huizinga afirmam que o jogo precede todas as suas posstveis explicagées.4 Por isso 0 jogo do texto s6 pode ser avaliado em termos de suas possibilidades, por meio das estratégias empregadas no jogo e pelos jogos de fato realizados no texto. Como o espaco entre autor ¢ leitor, o texto literdrio pode ser descrito em trés niveis diversos: o estrutural, o funcional, o interpretativo.Uma descrigéo estrutural visaré mapear o espaco; a funcional procurard explicar sua meta ¢ a interpretativa perguntar-se-4 por que jogamos e por que precisamos jogar. Uma resposta 2 tiltima questao sé pode ser interpretativa pois que 0 jogo, apa- 4 Johan Huizinga, Homo hudens. Yom Unsprung der Kidtur im Spiel, Hamburgo, Ro- wohl, 1956, p. 9-14. 109 tentemente, é fiundado em nossa constituigdo antropolégica e pode, com efei to, nos ajudar a captar © que somos. Devemos agora detalhar melhor os trés diversos nfveis. Primeiro, o da estrutura. Focaliza-se aqui o contramovimento como o trago bisico do jogo. O modo operacional do contramovimento converte 0 texto de um ato mi- mético em um ato performativo. Ele se manifesta por criar 0 que poderfamos chamar os espagos do texto, que, deve ser lembrado, tanto repete como inclui os mundos extratextuais cujo retorno ¢ indicative de uma diferenga. Nas pa- lavras de Gregory Bateson, é “uma diferenga que faz diferenga”> — pois gran- des diferencas derivam da diferenga inicial entre os componentes do texto. A diferenga, como vimos, provoca 0 movimento para diante e para trds, que abre os espacos do jogo entre as posigdes que separa. O menor espaco de jogo ¢ produzido pelo significante fraturado, que perde sua fungao designante de modo a poder ser usado figurativamente, por efeito da indicagao ficcional do texto, segundo a qual o que € dito ha de ser tomado como se pretendesse o que disse. O significante, portanto, denota al- go mas, a0 mesmo tempo, nega seu uso denotativo, sem que abandone o que designava na primeira instancia. Se o significante significa algo ¢ simultane manete indica que néo significa aquilo, funciona como um andlogo para a figuragao de algo mais que ajuda a esbogar. Se 0 que é denotado é transfor- mado em andlogo tanto do ocasionar como do formar uma atividade-que- mostra, entéo algo ausente ¢ dotado de presenca, embora aquilo que esta au- sente nao possa ser idéntico ao andlogo que favorecia ser concebido. Assim © significante fraturado — simultaneamente denotativo e figurative — in- voca alguma coisa que nao é pré-dada pelo texto mas engendrado por ele, que habilita o leitor a doté-lo de uma forma tangivel. Assim 0 movimento do jogo converte o significante fraturado em uma ma- triz pata o duplo significado, que se manifesta no andlogo como interpenetragio muitua das fungGes denotativa e figurativa. Em termos do texto, o andlogo é um “Suplemento”; em termos do receptor, é a pauta que o habilita a conceber o que © texto esboca. Mas, no momento em que isso se torna concebtvel, o receptor ten- ta atribuir significagao ao “suplemento” e todas as vezes que isso suceda o texto é uaduzido nos termos 2 disposigao do leitor individual, que encerra o jogo do sig- > Gregory Bateson, Steps to an ecology of the-mind, San Francisco, Chandler, 197: p. 315. 110 nificante fraturado ao bloqued-lo com um significado. Se o significado do texto, no entanto, nfo € inerente mas é atribuido e alcangado apenas por meio do mo- vimento de jogo, entio o significado é um meta-enunciado acerca de enunciados ou mesmo uma metacomunicaco acerca do que se supée ser comunicado (isto é, uma experiéncia por meio do texto). Outro espago de jogo basico no texto é aberto pelo esquema. Um es- quema, como Piaget afirma em sua teoria do jogo, € 0 produto de nosso cons- tante empenho em nos adaptarmos ao mundo em que estamos.° Sob este as- pecto, ele nao é dessemelhante da imitag4o, porquanto ¢ motivado pelo desejo de sobrepujar a diferenga que marca nossa relagio com o mundo. An- tes de tudo, é a percepgao que tem de exercitar esses esquemas de adaptacio. Uma vez que estes esquemas tenham sido formados, o primeiro passo yital para eles estd em serem internalizados, de modo que possam funcionar subconscientemente. Isso significa que tendem a se tornat titualizados de um. modo ou de outro e, quando isso sucede, separam-se dos prdprios objetos que deram origem a sua formagio. As convengées da arte no sdo senao conjun- tos de tais esquemas, que facilmente se prestam a novos usos, sobretudo quan- do tenham sido separados do mundo de objetos. Em vez de facilitar a adaptacao ao mundo fisico, os esquemas podem ser usados para moldar coisas doutro modo inapreensiveis ou de que queremos dispor dentro de nossas condigGes. Assim como os esquemas nos capacitam a nos acomodarmos a objetos, assim também nos concedem assimilar objetos de acordo com nossas préprias inclinagdes. Quando ocorre essa inversao, abre-se 0 espaco do jogo. O esquema € dissociado de sua fungao de acomo- dacio ¢, ao se tornar subserviente a funcao assimilativa, permite que tudo que éretido de nés venha a ser encenado como presente ¢ manejavel. Esse proces- so se mostra imediatamente evidente no jogo da crianca. O movimento do jogo sucede quando o esquema deixa de funcionar como uma forma de aco- modacdo ¢, em vez de tomar sua forma do objeto a ser imitado, impée uma forma sobre aquilo que esté ausente. Noutras palavras, o esquema de acomo- dacdo copia 0 objeto, ao passo que o esquema de assimilacdo modela o obje- to de acordo com as necessidades individuais. O jogo, portanto, comega quando a assimilagio desloca a acomodagao no uso dos equemas e quando o § Jean Piaget, Nachabmung. Spiel und Traum, Gesammelte Werke, n® 5, (lrad, Leo Moptada, Stuttgart, Emst Klers, 1975, p. 178-216. ala ak esquema se converte em uma projecao de maneira a incorporar 0 mundo em um livro e cartografa-lo de acordo com as condigées humanas. Um trago notdvel do uso assimilativo dos esquemas estd em que eles se tornam sujeitos & desfiguracao. Isso realga a mudanga em sua fungdo, bem co- mo a diferenca em sua aplicacao. FE, uma dualidade inerente a todos os esque- mas textuais, em que a fungio original do esquema passa a segundo plano, embora mantenha sua forma e, em vez de imitar algo, serve para representar 0 irrepresentavel. A este respeito, o esquema invertido apresenta uma estreita semelhanga com 0 significante fraturado. Ambos formam espaco de jogo do texto e poem 0 jogo em movimento. E, em ambos os casos, uma fungio bdsica ¢ transfor- mada em meio para algo mais: com o significante, a fungao denotativa se transforma no meio para a figuragio e, com o esquema, a fungao de acomo- daciio se torna o meio para a modelagem do sem tragos. As fungées originais, contudo, nunca sao totalmente suspensas hd, assim, uma oscilaggo continua entre denotacao e figuracio, e entre acomodacio e assimilagio. Essa oscilagao ou movimento de ida e vinda é basico para 0 jogo e permite a coexisténcia do mutuamente exclusivo. ‘Também. converte o texto em uma matriz geradora para a produgio de algo novo. Forca o leitor a realizar os jogos do texto ¢ ter- minar 0 jogo ao alcangar o que considera ser seu significado. Na andlise final, a oscilacdo ¢ uma modelagem do jogo livre — que pode ser um trago da na- tureza ou mesmo da natureza humana mas que nao o € do texto. A oscilagdo, no entanto, também pode restringir o jogo livre. Isso é evidente quando ve- mos como as estratégias do texto reestruturam a maneira como € executada a dualidade respectiva do significante fraturado e do esquema invertido. Hi quatro estratégias fundamentais, cada uma das quais permite um ti- po diferente de jogo. Sao eles agon, alea, mimicry (mimetismo) ¢ ilins. A mes- cla de termos gregos ¢ latino pode ser irritante, mas as express6es se tornaram termos padrdes na teoria dos jogos desde Caillois.” Explico primeiramente os termos e os tipos de jogos que abrangem de modo a verificar os padrdes de jogo que organizam: 7 Roger Caillois, Man, play, and games, tad. de Meyer Barash, New York, Free Play of Glencoe, 1966, p. vii. 112 1. Agon é uma luta ou debate e é 0 padrao comum de jogo quando o texto se centra em normas e valores conflitivos. O debate envolve uma decisio a ser tomada pelo leitor em relagao a estes valores con- trarios, que se mostram internamente em colisao. 2, Alea é um padrao de jogo baseado na sorte e na imprevisibilidade. Sua proposta bdsica é a desfamiliarizacao, que é alcangada pela es- tocagem ¢ condensagao de diferentes textos, assim despojando de significado os seus segmentos respectivos € identificdveis. Pela sub- versio da semantica familiar, cle atinge o até entao inconcebivel ¢ fruscra as expectativas guiadas pela convengio do leitor. 3, Mimicry® é um padrio de jogo designado para engendrar ilusio. O que quer que seja denotado pelo significante ou prenunciado pelos esquemas deveria ser tomado como se fosse o que diz. Ha duas raz6es para isso: (a) quanto mais perfeita ¢ a ilusfo, tanto mais real parece o mundo que pinta; (b) se, no entanto, a ilusao é perfurada e assim se revela o que é, 0 mundo que ele pinta se con- verte em um espelho que permite que o mundo referencial fora do texto seja observado. 4, _Ilinx é um padrao de jogo em que as varias posigGes sao subyerti- das, recortadas, canceladas ou mesmo carnavalizadas, como se fos- sem langadas umas contra as outras. Visa fazer ressaltar 0 ponto de vista dos fundos das posigdes assumidas no jogo. Embora essas estratégias admitam a realizagio de jogos diversos, é fre- qiiente que se liguem como modos mistos. Por exemplo, se ilinx joga contra ou é combinado com agon, pode haver dois tipos possiveis de jogo: ilinx do- mina, neste caso 0 debate entre normas ¢ valores se torna ilusério ou domina agon ¢ ento 0 debate s¢ torna mais diferenciado. Essas estratégias podem ser mesmo invertidas, jogando contra suas intengdes subjacentes. Por exemplo, agon parece se dirigir 4 vitéria no jogo, mas, na literatura pés-moderna, € fre- qiientemente usado para um jogo em que se perde. Isso pode implicar que to- ® Como o préprio Caillois explicava, “mimicry [...] nomeia em inglés © mimetismo, sobretudo dos insetos, a fim de sublinhar a narureza fundamental ¢ elementar, quase orginica, da impulséo que suscita estas manifestagées’, Roger Caillois, Les Jens et les hommes, Patis, Gal- limard, 1958 (ed. revista ¢ ampliada em 1967), p. G1 (N.T) 113 dos os conflitos de normas e valores sejam deliberamente marcados como col sas do passado, assim expondo a natureza fechada dos sistemas que deram a eles funcdo e validade. Pode também mostrar que todas as formas de signifi: cado no passam de mecanismos de defesa destinados a conseguir 0 fecha: mento em um mundo em que reina a abertura, a falta de conclusio. Essas quatro estratégias de jogo podem ser combinadas dos mais varia: dos modos e todas as vezes que so combinadas cada uma assume um papel particular. Todos os papéis — como temos de nos lembrar — se caracterizam por uma duplicidade intrinseca: representam algo que visam projetar e, con- tudo, simultanemanente carecem de controle total sobre a meta intenciona- da. Deste modo sempre hd um elemento no papel de jogo que escapa do do- minio do jogador.? Isso se aplica igualmente aos padrées de jogo acima esbogados quando se tornam papeis. Assim 0 jogo pode ser realizado seja pa- ra ampliar, seja para restringir o grau de incontrolabilidade. Ora, qualquer tipo de jogo que resulta em aceitar-se a duplicidade do papel de jogo serd sempre governado por dois diferentes conjuntos de regras. Na teoria dos jogos, so chamadas vegras conservadoras © regras dissipativas.” Com telago ao texto, podem ser chamadas regiladoras (que funcionam de acordo com as convensoes estabilizadas) e aleatdrias (que liberam o que tenha sido restringido pelas. convengdes) As regras aleatérias se aplicami ao que nao pode ser controlado pelo papel em questo, enquanto as reguladoras organi- zam 0 que o papel representa em termos de relages hierdrquicas, causais, sub- servientes ou de apoio. As regras aletdrias liberam o que as regras reguladoras amarraram e, assim, dao acesso ao jogo livre dentro de um jogo doutro mo- do restrito. Resumo a descrigéo estrutural apresentada até aqui: o significante fratura- do ¢ os esquemas invertidos abrem 0 espago do jogo do texto. O movimento para trds ¢ para diante é dirigido por quatro estratégias bdsicas de jogo: agon, alea, mimicry é ilinec, Essas, de sua parte, podem ser submetidas a intimeras combinagGes, que, dai, se convertem em papéis. Os papéis sao bifaces, com uma representacio inevitavelmente escapando por sombreamentos incontroliveis. 9 Irving Goffman, The Presentantion of elf in everyday life, Garden City, New York, Doubleday, 1959, p. 8 ss, 141-66. 28 Manfred Figen e Ruthhild Winkler, Das Spiel. Navurgeseze stenern den Zufell, Mu- nique, R. Piper, 1985, p. 87-121. 114 (s jogos resultantes de papéis podem ser produzidos de acordo com regras re- i:uladoras, que fazem o jogo basicamente conservador, ou de acordo com regras ileatérias, que o fazem basicamente inovador. Todos estes tracos estruturais fornecem uma atmagao para 0 jogo. Assi- alam tanto os limites ¢ as areas livres de jogo, assim representando as pré- condig6es para “suplementos” — na forma de significado —, assim como pa- 1a que esses “suplementos” sejam ludicamnente desfeitos. Ha assim um movimento de contrabalango em que o jogo se empenha por um resultado € © jogo livre rompe com qualquer resultado alcangado. Os tragos estruturais, contudo, assumem significaco apenas em relac4o 1 fungao que se pretendeu ser realizada pelo jogo do texto. Em virtude de que © jogo se empenha por algo, mas também desfaz 0 que alcanca, continuamen- tc 0 jogo produz diferenga. A diferenga, de sua parte, pode-se manifestar ta0- 36 pelo jogo, pois que t&o-sd 0 jogo torna concebivel a alteridade ausente que jaz do outro lado de todas as posigdes. Assim 0 jogo do texto nao é nem ga- nho, nem perda, mas sim um processo de transformagdo das posigdes, que da uma presenga dinamica & auséncia ¢ alteridade da diferenca. Em conseqiién- cia, aquilo que 0 texto atinge nao € algo pré-dado, mas uma transformagdo do material pré-dado que contém. Se o texto acentua a transformagio, € ele obrigado a ter uma estrutura de jogo, pois doutro modo a transformagao te- tia de ser subsumida a uma armacio cognitiva, com a destruicao de sua pr- pria natureza. Se a nogio de representagao tivesse de ser mantida, ter-se-ia de dizer que 0 texto “representa” o jogo, & medida que explica 0 processo indivi- dual de transformagao como est4 em curso no texto. Este processo de transformagao € comum ao texto literdrio ¢ se desdo- bra por todas as fases interconectadas que esbocamos até agora — do signifi- cante fraturado, através dos esquemas invertidos ¢ os papéis estratégicos de agon, dled, mimicry ¢ ilinx, até a interferéncia muitua das regras reguladoras e aleatérias. Ainda que, por motivos analfticos, tenha separado estas fases, de fa- to elas se superpéem e inter-relacionam e por elas podemos observar a trans- formacdo, por assim dizer, em cdmera lenta, tornando perceptivel um proces- so de outro modo seria intangivel. Mas a transformacao chega a plena fruicao pela participacao imaginativa do receptor nos jogos realizados, pois a transformagao € apenas um meio para um fim e néo um fim em si mesmo. Quanto mais 0 leitor € atraido pelos pro- cedimenitos a jogar os jogos do texto, tanto mais € ele também jogado pelo tex- 115 to. Assim novos tragos de jogo emergem — ele assegura certos papéis ao leitor e, para fazé-lo, deve ter claramente a presenga potencial do receptor como umit de suas partes componentes. © jogo do texto, portanto, é uma performance pi ra um suposto auditério e, como tal, nao € idéntico a um jogo cumprido na vida comum, mas, na verdade, um jogo que se encena para o leitor, a quem ¢ dado um papel que o habilita a realizar o cendrio apresentado, O jogo encenado do texto nao se desdobra, portanto, como um espeti: culo que o leitor meramente observa, mas € tanto um evento em processo co» mo um acontecimento para o leitor, provocando scu envolvimento direto nos procedimentos e na encenacao. Pois o jogo do texto pode ser cumprido indi« vidualmente por cada leitor, que, ao realizd-lo de seu modo, produz, um. “sue plemento” individual, que considera ser o significado do texto. O significado éum “suplemento” porque prende o processo ininterrupto de transformagao ¢ éadicional ao texto, sem jamais ser autenticado por ele. Dentro desta ordem de consideragio, algo importante ha de ser revelado pelo jogo textual, Como um meio de transformagio, 0 jogo no s6 socava a posi¢ao apresentada no texto; faz 0 mesmo com o status daquilo que a trans- formagio converteu de auséncia em 1 2senga, isto é, 0 “suplemento” que o lei- tor acrescentou ao texto. Mas a escavaciio, mesmo que pareca negativa, é de fa- to altamente produtiva, pois ocasiona a transformagao e gera “suplementos”. Donde essa operacao, movida pela negatividade, é basicamente uma estrutura capacitadora. A negatividade estd, portanto, longe do negativo em seus efeitos, pois metamorfoseia a auséncia em presenga, mas, por continuamente subver- ter aquela presenga, a converte em condutora para a auséncia de que, de outra maneira, nada saberfamos. Através dessas mudangas constantes, 0 jogo do tex- to usa a negatividade de um modo que sintetiza a inter-relagao entre auséncia ¢ presenga, E aqui est4 a unicidade do jogo — ele produz ¢, ao mesmo tempo, possibilita que o processo de produgio seja observado. O leitor é, entdo, apa- nhado em uma duplicidade inexordvel: est4 envolto em uma ilusio ¢, simulta- neamente, est4 consciente de que ¢ uma ilusio. E por essa oscilagao incessante entre a ilusio fechada ¢ a ilusdo seccionada que a transformacio efetivada pe- lo jogo do texto se faz a si mesmo sentir pelo leitor. A trasformagao, de sua parte, parece encaminhar a alguma meta a ser cumprida pelo leitor e, assim, 0 jogo do texto pode ser concluido de varios modos: um deles ¢ em termos de semantica. Neste caso, ¢é dominante nossa necessidade de compreensio € nossa preméncia de nos apropriarmos das ex- 116 periéncias que nos sao dadas. Isso poderia mesmo indicar um mecanismo de ilefesa em operagao dentro de néds mesmos, como a busca de significado po- ile ser nosso meio de nos desviarmos do nao-familiar. Outro modo como podemos jogar o texto consiste na obtengao de ex- periéncia. Entéo nos abrimos para 0 ndo-familiar e nos preparamos para que nossos proprios valores sejam influenciados ou mesmo modificados por ele. Um terceiro modo de jogo é 0 do prazer. Damos entio precedéncia ao deleite derivado do exercfcio incomum de nossas faculdades, que nos capacita a nos tornarmos presentes a nés mesmos. Cada uma dessas opgoes representa uma tendéncia de acordo com a qual o jogo do texto pode ser realizado. Chego agora ao ponto final: que € 0 jogo € por que jogamos? Qualquer resposta a esta questo fundamental ser4 uma interpretacao de natureza hipo- tética. Em termos filogenéticos, 0 jogo, no reino animal, comega quando se expande o espago do habitat. A prinefpio, parece ser uma atividade que tem seu fim em si mesma, explorando os limites do possfvel, em vista do fato de que tudo ¢ agora possivel. Mas também podemos vé-lo como uma suposta agdo ou como uma experiéncia que prepara 0 animal para enfrentar o impre- visivel por vit. Quanto mais se expande o territério do animal, tanto mais im- portante e, certas vezes, mais deliberado se torna o jogo como um meio de preparacao para a sobrevivéncia. Em termos ontogenéticos, hé de se observar uma distingio, no jogo da crianca, entre percepgao ¢ significado. Quando uma crianga monta em um cavalo-de-pau, sua agdo mental é bastante distinta daquilo que de fato perce- be, Naturalmente, nao percebe um cavalo real ¢, assim, 0 jogo consiste em de- compor 0 objeto (cavalo) ¢ 0 significado daquele objeto no mundo real. Sua ago é, portanto, uma ag4o em que um significado desfamiliarizado € repre- sentado em uma situacdo real. Estes dois exemplos de jogo tem em comum uma forma de encenagao. Mas em nenhum dos casos a encenacao ¢ levada a cabo para seu préprio fim. No reino animal, ela serve para antecipar e preparar futuras ag6es; no jogo in- fantil, permite que limitagGes reais sejam ultrapassadas. A encenagdo, portan- 10, é basicamente um meio de transpor fronteiras ¢ isso ¢ igualmente verdadei- ro para o jogo do texto, que encena uma transformacdo ¢, ao mesmo tempo, revela como se faz.a encenasio. Essa dualidade deriva amplamente do fato de que, aqui, a transformagao nao tem uma meta pragmitica: ndo converte uma 117 coisa em outra. Ela é antes uma finalidade que sé pode ser propriamente cum» prida se se exibem seus preparativos. Qual a natureza dessa finalidade? A transformagdo é um caminho de aces so para o inacessivel, mas a transformacdo encenada nfo sé torna acessivel o ina- cessfvel. Seu alcance talvez seja mais prazenteiro. Concede-nos ter coisas de dois modos: por tornar aquilo que ¢ inacessivel tanto presente como ausente. A pre« senga acontece por meio da transformacao encenada e a auséncia pelo fato de que a transformagiio encenada é to-s6 jogo. Daf que cada auséncia apresenta- da € qualificada pelo aviso de que é apenas encenada na forma do faz-de-conta, pelo qual podemos conceber 0 que doutro modo escaparia de nossa apreensio. Afesté a faganha extraordindria do jogo, pois parece satisfazer necessidades tan- to epistemoldgicas como antropolégicas, Epistemologicamente falando, im- pregna a presenga com uma auséncia esbogada pela negacao de qualquer auten- ticidade quanto aos resultados possiveis do jogo. Antropologicamente falando, nos concede conceber aquilo que nos’é recusado. E interessante notar que as perspectivas epistemoldgica e antropoldgica nao entram em conflito, mesmo se parecam caminhar uma contra a ou.tra. Se houyesse um choque, o jogo se des- faria, mas como nao hd a irreconciliaariidade de fato revela-se algo de nossa pré- pria constituigao humana. Por nos conceder ter a auséncia como presenga, 0 jo- go se converte em um meio pelo qual podemos nos estender a nés mesmos. Essa extenso é um trago bdsico ¢ sempre fascinante da literatura. Inevitavel- mente, se pée a questo por que dela necessitamos. A resposta a esta pergunta poderia ser o ponto de partida para uma antropologia literaria, 118

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