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Solus christus: exclusivismo cristão e tolerância religiosa

Alceu Lourenço de Souza Junior1

Introdução

Está na natureza das religiões oferecer respostas a questões transcendentes como a natureza
do mundo e da vida, decorrendo disso sua condição de formadoras da visão de mundo de
indivíduos e sociedades. Talvez daí, sua tendência para abranger a totalidade da vida do
indivíduo e da sociedade – e de perceberem umas às outras como concorrentes.

Entretanto, no mundo contemporâneo tem sido urgente que as religiões (re)elaborem suas
relações inter-religiosas visando a preservação tanto de suas identidades e existência, quanto
do próprio tecido e paz social. O Cristianismo, religião de um terço da humanidade, não tem
ficado imune a esta pressão.

O problema que se apresenta, então, é como articular a tolerância religiosa sem abrir mão dos
fundamentos cristãos nem comprometer sua identidade histórica própria.

Este trabalho investiga a intolerância religiosa na Igreja Cristã, materializada em inúmeros e


conhecidos episódios da História Eclesiástica. Analisa o exclusivismo do Cristianismo no seu
discurso fundante conforme sustentado pelo seu ramo fundamentalista – o ensino claramente
exclusivista de Jesus de Nazaré e seus apóstolos – e sua relação com a intolerância religiosa, e
propõe uma base para a tolerância religiosa a partir do próprio exclusivismo do Cristo
sustentado ainda hoje pelas alas fundamentalistas do Cristianismo.

Cristianismo, poder, intolerância e secularismo

Nos primeiros séculos do Cristianismo, os cristãos eram objeto da intolerância religiosa, com
as perseguições promovidas pelo Estado romano. Entretanto, com a união entre a Igreja e o
Estado a partir do Imperador Constantino, no início do 4º século, a igreja cristã passou a
sujeito da intolerância contra indivíduos e grupos considerados heréticos. Inicialmente,
impunha-se o banimento, a prisão e o confisco de bens dos hereges; posteriormente, a punição
incluiu a execução pública. As primeiras pessoas a serem executadas por heresia na história
do cristianismo foram o bispo espanhol Prisciliano e seis simpatizantes, decapitados por
ordem do imperador Teodósio I no ano 385. Poucas décadas mais tarde, Agostinho, que

1
Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aluno
do stricto sensu do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião do Centro de Educação, Filosofia e
Teologia (CEFT) da mesma instituição. Bolsista do Instituto Presbiteriano Mackenzie. Endereço eletrônico:
alceujmc@hotmail.com
inicialmente defendeu a conversão dos cismáticos por meio de evangelização, apoiou o uso da
coerção estatal contra o movimento donatista, no norte da África. Durante a Idade Média,
intensificaram-se as perseguições da igreja com o apoio estatal contra indivíduos e grupos
considerados heterodoxos. A partir do século XII, foi criado um tribunal eclesiástico especial
para julgar heresias – a inquisição – que tinha autoridade para receber e averiguar denúncias,
para obter confissões, inclusive pela tortura, e determinar a necessidade de punição pública, a
cargo das autoridades civis. Entre as vítimas estavam praticantes de alguma forma de religião
pagã ou sincretismo (acusadas de bruxaria) e judeus (acusados de falsa conversão) (MATOS,
2012).

Na Europa durante os anos de polêmica entre católicos e protestantes, a tolerância religiosa


por muitas vezes foi mera “ferramenta de estratégia política prática” (FERNANDEZ-
ARMESTO; WILSON, 1997, p. 320) – usada como argumento pela facção alijada do poder
político num dado momento, mas descartada quando de posse desse poder. Encontramos
inúmeras ilustrações disso na História Eclesiástica, sendo um dos episódios mais brutais o
massacre do Dia de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, na França. O casamento da
princesa Margarete de Valois, filha de Catarina de Médicis, com o príncipe protestante
Henrique de Navarra fez com que toda a elite dos huguenotes (protestantes franceses) se
ajuntasse em Paris para a celebração, na expectativa de um protestante na linha sucessória do
trono francês. Mas a elite católica, com o apoio da rainha Catarina, tramaram o assassinato da
liderança huguenote na calada da noite. Entretanto, seu ataque serviu de estopim a uma
multidão descontrolada de extremistas que multiplicaram sua ferocidade nos dias que se
seguiram por grande parte da França, até as províncias. Uma estimativa contemporânea
calculou o saldo de mortos em cerca de trinta mil (ARMESTO-WILSON, 1997, p. 317). Os
conflitos continuaram intermitentemente por mais dezesseis anos, até que o príncipe
protestante subisse ao trono, abrindo mão de seu protestantismo e convertendo-se ao
catolicismo em favor da paz civil. Seu Édito de Nantes, de 1598, resultado de anos de
negociação com as lideranças religiosas adversárias, concedia direitos religiosos à minoria
huguenote, deixando-os praticar sua religião particularmente, em lugares previamente
designados. A tolerância só foi alcançada por meio da separação geográfica (CLOUSE-
PIERARD-YAMAUCHI, 2003, p. 257).

Na Grã-Bretanha, após o rompimento de Rei Henrique VIII com o papado por ver recusado
seu pedido para divorciar-se de Catarina de Aragão (porque esta não lhe dera herdeiro homem
após dezoito anos de casamento), uma igreja nacional surgira em 1534. Independente de
Roma, a Igreja Anglicana era conduzida pelos bispos, sob o comando supremo do rei.
Durante o reinado de Maria Tudor, “a Sanguinária” (1553-1558), houve uma tentativa de
restaurar o catolicismo romano, com a execução de centenas de protestantes. Sob Elizabete I
(1558-1603) o anglicanismo foi oficialmente restabelecido; porém, sofria pela tensão interna
entre diferentes grupos: anglicanos, católicos, congregacionais e presbiterianos. A partir de
1661, no reinado de Charles II, alguns ministros que desejavam uma igreja nos moldes da
Reforma Protestante, denominados de “puritanos”, passaram a sofrer perseguição, sendo
impedidos de pregar, expulsos de suas paróquias e até exilados. Mais de dois mil clérigos
perderam seus cargos e cinco mil pessoas foram presas (CLOUSE; PIERARD; YAMAUCHI,
2003, p. 271).

Nos Países Baixos, o calvinismo da Igreja Reformada Holandesa foi desafiado por um
professor de Teologia, Jacó Armínio, que iniciou uma controvérsia ao ensinar e defender que
o decreto divino de salvação e o sacrifício de Jesus na cruz visam todos os seres humanos, que
cada um pode resistir ou aceitar a graça salvadora e, portanto, pode perder a graça uma vez
desfrutada. Mesmo após sua morte, seus seguidores continuaram defendendo suas ideias, e foi
convocado em 1618 o Sínodo de Dort para debate-las; o sínodo as rejeitou por meio de cinco
cânones que reafirmavam a doutrina calvinista ortodoxa (conhecidos até hoje como “Cinco
pontos do calvinismo”, ou pelo acróstico em inglês TULIP). Os treze ministros arminianos
foram proibidos de pastorear e ensinar, e quando se recusaram a assinar sua carta de
demissão, foram exilados. Clouse, Pierard e Yamauchi (2003, p. 274) demonstram que a
punição dos arminianos tinha uma dimensão de interesse político, conforme o Príncipe
Maurício de Nassau pode se livrar de adversários políticos que apoiavam os arminianos;
quando Maurício morreu, os arminianos puderam restabelecer suas igrejas nas províncias
holandesas.

Nos Estados Unidos, após uma tentativa de estabelecer uma “comunidade santa” em
Massachusets, houve uma crescente tolerância religiosa e separação entre estado e igreja.
Walzer (1999, p. 88) avalia que a liberdade religiosa norte-americana se deve a um processo
de “protestantização”, no qual cada religião adquiriu todo o direito de manter crenças e fiéis,
desde que sua associação fosse livre e a coexistência com as outras religiões fosse pacífica.

A História demonstra cabalmente que, conforme uma religião consegue cooptar para si o
poder político, ele será usado para reprimir ou oprimir as religiões rivais. Como constata com
tristeza Chelikani (1999, p. 51), a verdade é que, “frequentemente, as religiões praticam duas
interpretações opostas da tolerância – uma em que são majoritárias e uma outra em que são
minoritárias”. Daí, que “a finalidade da separação entre Igreja e Estado nos regimes modernos
é negar poder político a todas as autoridades religiosas, partindo da suposição realista de que
todas são pelo menos potencialmente intolerantes. Quando esta negação é eficaz, elas podem
aprender a tolerância; melhor dizendo, aprendem a viver como se possuíssem essa virtude.”
(WALZER, 1999, p. 105).

Assim, a sociedade moderna obriga instituições religiosas concorrentes a se entenderem bem


ou mal, já “que não podem esperar que o poder do Estado obrigue as pessoas à frequência ao
culto, também não podem esperar que o Estado elimine as rivais” (BERGER; LUCKMANN,
2005, p. 61).

Cristianismo, tolerância e inclusivismo

O século 17 viu o surgimento de um dos mais importantes movimentos intelectuais da


História: o Iluminismo. Começando na França, os ideais iluministas se espalharam pela
Alemanha, Áustria, Rússia, Grã-Bretanha, Itália, Espanha e, tardiamente, nos Estados Unidos.
Seus escritores propalavam a completa transformação da sociedade pelo primado da Razão, e
por isso, voltaram-se especialmente contra alguns aspectos da religião institucionalizada. Sua
influência racionalista alcançou muitos pensadores cristãos, moldando novas perspectivas
religiosas. O Deísmo, por exemplo, entendia que a igreja cristã de sua época representava uma
corrupção do cristianismo puro. Os deístas rejeitavam a Bíblia como fruto da superstição
primitiva e enfatizavam a revelação natural de Deus nas leis da natureza e da consciência
humana; defendiam uma religião minimalista, composta da convicção na existência do
Criador e na fraternidade de todos os homens, despida de rituais, clero, milagres ou dogmas.
Diante das descobertas de civilizações inteiras que desconheciam completamente Jesus Cristo
(na China e Índia, por exemplo), eles concluíram que o cristianismo era apenas uma dentre
inúmeras religiões igualmente válidas – ainda que, possivelmente, a mais evoluída.
Naturalmente, o Deísmo pregava uma irrestrita tolerância religiosa, liberdade cara aos líderes
fundadores dos Estados Unidos, identificados, na maioria, como deístas (CLOUSE;
PIERARD; YAMAUCHI, 2003, p. 360-362).

Outro nome-chave desta época é Friedrich Schlaiermacher, que no início do século XIX
começou a questionar o exclusivismo do cristianismo. Para o teólogo luterano, a religião é um
profundo sentimento de dependência de Deus, e todas as religiões são manifestações desta
consciência religiosa universal, da qual o cristianismo seria apenas a forma mais desenvolvida
e livre de superstições (CAMPOS, 1997, p. 37). Rejeitando os aspectos sobrenaturais da fé
cristã, como a encarnação divina em Cristo, os milagres e a revelação escrita, Schlaiermacher
foi o mais influente teólogo do século 19, considerado o fundador da moderna teologia
protestante (CONSTANZA, 2005, p. 89).

No final do século XIX, houve um movimento crescente entre os pensadores protestantes,


denominado “liberalismo teológico”, que pretendia conciliar a fé cristã com as modernas
descobertas científicas, especialmente o darwinismo. Este movimento causou grande
polêmica, pois defendia uma completa reinterpretação da Bíblia e dos dogmas cristãos
históricos de modo a rejeitar os aspectos sobrenaturais da doutrina cristã. No auge da
controvérsia modernista nos Estados Unidos, J. Gresham Machen, teólogo presbiteriano,
expõe as discrepâncias entre o ensino do cristianismo histórico e os conceitos racionalistas e
naturalistas defendidos pelos teólogos comprometidos com o liberalismo. Machen (2001, p.
109) demonstra que o resultado de submeter a fé cristã aos critérios do cientificismo da época
foi um ataque aos próprios fundamentos do cristianismo; visto que são duas religiões
diferentes, e não apenas tradições diferentes do cristianismo (como se dá entre diferentes
denominações cristãs), a implicação lógica conduzida por Machem é de que os liberais
deveriam apartar-se das igrejas confessionais (MACHEN, 2001, p. 159).

A reação conservadora originou o movimento denominado “fundamentalismo” com a


publicação de uma série de estudos reafirmando2 doutrinas históricas do cristianismo em
contraposição às novas interpretações modernistas. O fundamentalismo protestante norte-
americano se mostrou crescentemente intolerante. Por exemplo, Augustus N. Lopes, após
delinear histórica e teologicamente o movimento, alista entre seus pontos negativos
exatamente a intolerância que os fundamentalistas em geral mantêm em relação às demais
tradições cristãs – inclusive aquelas conservadoras – até mesmo quando divergem em
questões menores, que não afetam os pontos fundamentais da fé. Ele descreve uma
“mentalidade de censura e apego a itens periféricos como se fossem o cerne do evangelho e
critério da ortodoxia” (LOPES, 2010, p. 39).

No extremo oposto do espectro da tolerância religiosa, estava o liberalismo teológico.


Segundo sumariza Vasconcelos (2008, p. 24), os liberais mantinham uma ênfase quase
exclusiva no Deus que é um Pai amoroso, em completo detrimento de aspectos de julgamento
de pecados. Tinham uma visão positiva da humanidade, na qual todos, inclusive pagãos, são
filhos de Deus. Viam Jesus Cristo como o homem perfeito, um modelo a ser imitado e um
mestre a ser seguido, mas não o Homem-Deus que morreu para salvar seus eleitos. Para
2
The fundamentals foi recentemente publicado no Brasil:
manter tais perspectivas inovadoras, os teólogos liberais adotaram uma visão da Bíblia como
um livro histórico comum, que testificava da religiosidade israelita e cristã primitiva – sem,
contudo, autoridade normativa para o cristianismo moderno. Destes aspectos, já se pode
deduzir a natureza essencialmente tolerante e ecumênica do liberalismo teológico: Se ser
cristão era imitar Cristo, amar ao próximo e fazer o bem, segue-se que não há diferença
essencial entre o Cristianismo e as demais religiões, já que quase todas ensinam que devemos
amar o próximo e fazer o bem.

De fato, tanto o “evangelho social” quanto o ecumenismo floresceram no século XX a partir


de líderes comprometidos com o liberalismo teológico, em maior ou menor grau. Ao diminuir
a importância do dogma bíblico-teológico, o protestantismo liberal procurou enfatizar o
ensino ético e o exemplo de Jesus, elevado a aspecto decisivo e peculiar da identidade cristã.
Obviamente, como lembra Pe. Nogueira (1997, p. 50), a preocupação com os pobres e com a
justiça, a acolhida do próximo e do estrangeiro não são exclusividade dos cristãos. O
movimento ecumênico moderno tem conseguido agregar diversas tradições religiosas cristãs,
e se apresentado como abertura ao diálogo inter-religioso mundial; mas tem se mostrado
infrutífero em conquistar o apoio e adesão das alas fundamentalistas do protestantismo que o
gerou. E o motivo não é outro, senão a própria decisão em prol da práxis em detrimento do
dogma. Para um fundamentalista, não faz sentido algum proclamar o estilo de vida
exemplificado em Jesus sem referência à identidade e missão únicas do Cristo.

O pluralismo religioso que provém da linhagem teológica do deísmo e do liberalismo se


manifesta no cristianismo da seguinte forma: “Nós devemos afirmar que Jesus Cristo é
Salvador, mas não podemos afirmar que ele é a única forma de o homem alcançar salvação.
Ele é uma dentre as muitas outras formas de o Deus infinito revelar-se” (CAMPOS, 1997, p.
40). Campos conclui que no pluralismo religioso não há uma religião verdadeira – e podemos
questionar se há alguma religião falsa.

Cristianismo, contemporaneidade e tolerância

A tolerância religiosa foi sendo instituída aos poucos e hesitantemente na Europa pós-
Reforma, não pela misericórdia dos religiosos, mas pela conveniência dos governantes, por
razões de estado. Inadvertidamente, serviu de pano de fundo para o secularismo que
predominaria nas sociedades contemporâneas. Os historiadores Fernandez-Armesto e Wilson
(1997, p. 322, 326-327) chegam à conclusão que a tolerância promovida oficialmente
incentivou as pessoas a confundir secularismo político (a afirmação de que todas as
convicções religiosas são de igual valor perante a lei) com secularismo filosófico (a negação
de que elas tenham qualquer valor). Adiante, afirmam: “A tolerância secular abandona a
verdade objetiva e adota o relativismo; nega o absolutismo moral e afirma a liberdade de
escolha; depõe Deus para coroar o indivíduo” (FERNADEZ-ARMESTO; WILSON, 1997, p.
392). Berger e Luckmann (2005, p. 47-49), por outro lado, questionam a bem estabelecida
“teoria da secularização” como explicação suficiente para a perda de credibilidade da
interpretação religiosa na consciência das pessoas. Estes sociólogos afirmam que, com raras e
notáveis exceções, o indivíduo moderno comum ainda carece de “instituições medianeiras” de
sentido, e destacam que a religião continua entre as principais.

Segundo Peter Berger (1985, p. 60-62) é essencial para a manutenção do tecido social aquilo
que ele denomina “estruturas de plausibilidade” – estruturas de pensamento aceitas de
maneira abrangente e inquestionada por determinada cultura. Entretanto, em sociedades de
grande diversidade cultural (como a nossa) os indivíduos mantêm poucas instâncias em
comum. Em decorrência, estas tendem a ser sustentadas com maior tenacidade, como se
fossem percebidas como inegociáveis e essenciais para a manutenção daquela sociedade.
Donald Carson (2012, p. 2) sugere que o conceito de tolerância adquiriu tal status na
sociedade ocidental pós-moderna: numa sociedade tão fragmentada e multicultural, a
tolerância é vista como elemento imprescindível à sobrevivência social e individual.

Entretanto, em razão do próprio pluralismo dominante em nossa sociedade, as pessoas


deparam com uma pluralidade de esquemas de sentidos e, mesmo que adotem um deles como
verdadeiro, tendem a vê-lo como resultado de escolha pessoal, não como absoluto. Portanto:
está aberta a possibilidade de que outros discordem da escolha uns dos outros, como está
aberta a possiblidade de que cada um venha a escolher diferentemente no futuro (BERGER;
LUCKMANN, 2005, p. 60-61). Portanto, a sociedade pluralista requer do Estado laicidade e
secularismo, e igualmente requer das religiões tolerância, mesmo que seja forçada e
antipática.

Rao Chelikani (1999, p. 59-60) traz uma contribuição interessante para o fomento da
tolerância como atitude individual; ele propõe três atitudes de tolerância: 1) Dúvida: o
questionamento de suas próprias crenças ou, pelo menos, do modo como elas foram
assimiladas pessoalmente; e também o diálogo com o outro para garantir minha compreensão
acerca da sua posição e para encoraja-lo a se questionar também. 2) Segurança: convicto de
que há um engano na posição do outro, busco convencê-lo de seu erro ou, ao menos, de que
minha posição deve igualmente ser tolerada por ele. 3) Indiferença: permaneço discordando
do outro, sem que isso implique juízo de valor a ele enquanto pessoa nem animosidade. Mas
quanto ao papel das religiões na busca da tolerância, Chelikani erra ao combater
especialmente o proselitismo: “Em um mundo superpovoado é desnecessário empreender uma
corrida para a conversão religiosa. A liberdade de converter-se e a liberdade de converter os
outros são duas coisas diferentes” (CHELIKANI, 1999, p. 72). Mesmo adeptos de religiões
não exclusivistas podem justificar seu proselitismo, pois, como vimos, na sociedade pluralista
a religião é uma escolha pessoal, significando uma decisão pelo que se considera a melhor
opção. Portanto, a “liberdade de converter” está ligada à “liberdade de converter-se” como
partes da liberdade religiosa. Chelikani parece ignorar algo da própria natureza das religiões,
como formadoras e organizadoras de sentido, pois o fiel não busca meramente trazer
crescimento à sua agremiação religiosa, mas trazer o infiel para a verdade – que ele já
conhece e deseja compartilhar. Assim, por mais que o pluralismo implique tolerância, não
resulta necessariamente eliminação das diferenças:

O homem globalizado é, em geral, pluralista. Ele tenta harmonizar propostas divergentes,


considerando-as igualmente válidas. A ferramenta básica dessa linha é o “inclusivismo”. A
religiosidade geral dos nossos dias deixou para trás os ideais dos sincretistas, que pensavam
em unir todas as religiões do mundo em uma só irmandade de fé. Afinal, diziam e ainda
dizem os sincretistas remanescentes: “Todos os caminhos levam a Deus; caminhemos,
então, irmanados, juntos”. O pluralista fala um pouco diferente: “Todos os caminhos levam
a Deus; caminhemos, mas separados”; cada um com a “sua verdade” (ARANTES, 2005, p.
69).

Cristianismo, evangelho e exclusivismo

Podemos inicialmente concordar com a tese de que o monoteísmo tende à intolerância de


outras religiões, necessariamente vistas como falsidades religiosas, já que há um único Deus
verdadeiro. E mesmo quando prevalecem sobre outras formas religiosas, as religiões
monoteístas passam a disputar externamente e internamente. Como lembra Silva (2010, p.
153), embora o Deus de ambos seja o mesmo, o cristianismo rapidamente se tornou
adversário do judaísmo; e depois sofreu inúmeras cisões com respeito às várias formas de
conceber Deus e aos interesses políticos e religiosos em jogo em cada época, acirrando
disputas internas e multiplicando externas.

Além do aspecto geral de intolerância inerente aos monoteísmos, a fé cristã é exclusivista


também em relação ao meio pelo qual alguém se achega à divindade. Não foi o próprio Jesus
quem se definiu como único caminho até Deus? Que afirmou que a vida eterna de alguém
depende de seu conhecimento e reconhecimento dele mesmo como o enviado de Deus? Que
se autoproclamou o único capaz de revelar o Pai, a quem desejasse fazê-lo?3 Seus seguidores
imediatos o apresentaram como o caminho definitivo, exclusivo e suficiente para Deus, na
qualidade de único mediador salvífico entre o Pai e os homens. 4 Mais que isso, afirmaram que
a salvação dos homens dependia de conhecerem a mensagem que proclamavam. 5 Estavam
dispostos a se sujeitar a todo tipo de perseguição religiosa para levar o evangelho. Poderiam
seus seguidores posteriores rejeitar estas afirmações categóricas sem perder o direito de serem
chamados seus discípulos? Pode-se contestar a afirmação de Machen de que o liberalismo
representava outra religião, que não o cristianismo, mas não há como negar que mudanças em
aspectos básicos da fé cristã, como o ensino sobre Deus, Jesus Cristo, a humanidade e a
salvação comprometem seriamente a continuidade entre a igreja cristã e Jesus de Nazaré.

A História Eclesiástica nos ensina sobre a tendência da Igreja à intolerância, quando aliada ao
poder do Estado ou simplesmente em maioria numérica; mas também nos ensina sobre o
perigo da perda de identidade religiosa, quando abre mão de suas doutrinas para poder
estreitar laços com outras tradições religiosas. Em ambos os casos, a Igreja se torna menos
que cristã.

Cristianismo, salvação e tolerância

É sabido que o termo “fundamentalismo” deixou seu contexto histórico da controvérsia


modernista norte-americana do início do século XX para se globalizar. Hoje, tem sido
utilizado no sentido mais abrangente para designar quaisquer religiosidades conservadoras e
intolerantes. As caraterísticas mais destacadas do fundamentalismo nesta acepção são: a) “a
defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da modernidade” e b) a
militância política para viabilizar as pretensões do grupo no âmbito da sociedade
(VASCONCELOS, 2008, p. 38-39).

Conforme o escopo deste trabalho, manteremos o uso de “fundamentalismo” próximo de seu


significado histórico inicial, de apego às doutrinas históricas do cristianismo como
fundamentos inegociáveis da fé cristã verdadeira. Afinal, conforme vimos, as formas de
intolerância (interna e externa) manifestadas no fundamentalismo, enquanto movimento, na
verdade apenas revivem uma tendência observável no Cristianismo por toda a História
Eclesiástica. Esta constatação nos leva a perguntar: será que a adaptação do cristianismo à
sociedade plural somente poderá ocorrer por meio de abrir mão de suas doutrinas históricas?

3
Cf. João 14.6; 17.3; Mateus 11.27.
4
Cf. 1Timóteo 2.5 e Atos 4.12.
5
Cf. Romanos 10.13-14
O fundamentalismo (no sentido histórico inicial: ortodoxia) deve ceder vez à Teologia
Liberal, como única perspectiva cristã apta aos novos tempos de tolerância obrigatória? Dizer
“Só Jesus salva” significa necessariamente ser intolerante e incapaz de convívio com o Estado
secularizado e a sociedade pluralizada?

Para chegarmos a outra possibilidade de resolução do dilema entre fundamentalismo e


intolerância, retomemos a máxima tão cara ao fundamentalismo – “Só Jesus salva”. Desta
vez, porém fazendo uma distinção entre duas maneiras de compreender esta afirmação
fundamental à ortodoxia cristã, ambas aceitas e reconhecidas dentro da estrutura de crença e
pensamento fundamentalista e ortodoxa. Vamos considera-la, por assim dizer, no sentido
vertical e no sentido horizontal.

Em primeiro lugar, na direção horizontal, que já abordamos, “Só Jesus salva” é uma
declaração axiológica dirigida ao outro, e significa que somente têm salvação aqueles que
creram em Cristo como seu único mediador para com Deus. Neste sentido horizontal, tem
função querigmática (como proclamação ao descrente), portando em si mesma a separação da
humanidade em duas famílias distintas: cristãos e não cristãos – e impondo sobre os últimos a
negação e a expectativa de mudança. É neste aspecto que “Só Jesus salva” tem sido fonte e
justificativa para atitudes intolerantes por parte dos cristãos em relação a indivíduos, religiões
e culturas não cristãs.

Entretanto, “Só Jesus salva” guarda outro sentido, que alcunhamos vertical, pois dirigido a
Deus, com papel doxológico (como louvor a Deus). Aqui, “Só Jesus salva” manifesta o
reconhecimento do cristão de que ele, por si mesmo, nunca poderia produzir um novo cristão;
a ortodoxia cristã insiste que a retórica mais refinada, o argumento mais lógico, as explicações
mais claras jamais conseguiriam uma conversão. Por um motivo simples: “Só Jesus salva!” É
a própria Bíblia, única autoridade para a fé fundamentalista, que deixa claro que a obra de
revelar Deus, abrir o coração do incrédulo e convencer do pecado é prerrogativa
exclusivamente divina. 6 O evangélico J.I. Packer, falando acerca da evangelização, expõe a
incapacidade humana para converter incrédulos:

Mais uma vez, em última análise, existe um só agente da evangelização: é o Senhor Jesus
Cristo. É Cristo mesmo que, por meio do seu Espírito Santo, capacita os seus servos a
explicar a verdade do evangelho e aplicá-la de forma poderosa e eficaz; da mesma forma,
como é o próprio Cristo que, por meio do seu Espírito Santo, abre o entendimento e os

6
Cf. Atos 16.14; João 16.8; Lucas 10.22.
corações dos seres humanos, para que recebam o evangelho, atraindo-os assim
salvadoramente para si mesmo (PACKER, 2002, p. 78).

Portanto, não precisamos ir mais longe do que a própria ortodoxia cristã fundamentalista para
encontrar a base para a tolerância que a sociedade pluralista contemporânea requer das
instituições religiosas que convivem em seu seio. O desenvolvimento histórico ocidental já se
encarregou de minar a arrogância das religiões de fazerem uso do poder estatal e político para
suprimir suas concorrentes. Entretanto, isso não seria necessário se a convicção cristã
ortodoxa de que a conversão é um milagre de Deus equivalente a um novo nascimento 7
tivesse moldado as interações inter-religiosas da Igreja Cristã. A própria Bíblia teria minado a
arrogância do Cristianismo de forçar por seus próprios meios o Reino de Cristo nos corações,
hábitos e culturas daqueles que não conhecem ou reconhecem o Rei.

Considerações finais

A História da Igreja Cristã nos mostra como a sedução do poder substituiu a proclamação da
fé. Quando possuidora da maioria numérica ou de laços com o poder, o Cristianismo se
afastou profundamente da simplicidade do ministério de Jesus de Nazaré e seus apóstolos,
todos perseguidos por sua fé. Entretanto, os novos tempos no mundo ocidental parecem não
mais oportunizar tais rompantes de intolerância religiosa, quer pelo Cristianismo, quer por
outras religiões.

Por outro lado, ainda que o pluralismo moderno requeira que as religiões contribuam
decisivamente com a formação de sentido dos indivíduos na sociedade, também exige delas a
convivência pacífica e tolerante, que garanta a manutenção das escolhas religiosas pessoais e
livres destes indivíduos. Isso não significa que o Cristianismo tenha de sobreviver à custa de
abrir mão de sua identidade, já que neste caso não lhe restaria sequer sua função social de
apresentar um esquema de sentido coeso. Na verdade, o melhor caminho para uma tolerância
cristã pautada pela boa vontade está no coração da teologia cristã histórica: a salvação é dom
do Deus soberano. Alienados do movimento ecumênico em virtude de seu apego à ortodoxia,
os fundamentalistas devem buscar na ortodoxia a base para uma tolerância religiosa coerente
com sua identidade religiosa e promotora de um exclusivismo cristão tolerante.

O mesmo trajeto poderá ser percorrido por outras doutrinas sustentadas pela ortodoxia
fundamentalista, mas que geralmente não tem produzido maior tolerância na Igreja Cristã.
Outros trabalhos poderão explorar e expor aspectos doutrinários como, por exemplo, a ética

7
Cf. Efésios 2.4-5; João 3.5; 2Coríntios 5.17.
pacifista de Jesus ou a imagem de Deus no homem, verificando como apoiam ou alimentam
uma atitude mais tolerante naquela que ainda é a maior religião do mundo.

Referências

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vida e o testemunho cristãos. Fides Reformata. São Paulo, v. 10, n. 2, Jul-Ago de 2005. p. 61-
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BERGER, Peter L.. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
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CHELIKANI, Rao V. B. J. Reflexões sobre a tolerância. Rio de Janeiro: Edições UNESCO,


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