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Introdução
Está na natureza das religiões oferecer respostas a questões transcendentes como a natureza
do mundo e da vida, decorrendo disso sua condição de formadoras da visão de mundo de
indivíduos e sociedades. Talvez daí, sua tendência para abranger a totalidade da vida do
indivíduo e da sociedade – e de perceberem umas às outras como concorrentes.
Entretanto, no mundo contemporâneo tem sido urgente que as religiões (re)elaborem suas
relações inter-religiosas visando a preservação tanto de suas identidades e existência, quanto
do próprio tecido e paz social. O Cristianismo, religião de um terço da humanidade, não tem
ficado imune a esta pressão.
O problema que se apresenta, então, é como articular a tolerância religiosa sem abrir mão dos
fundamentos cristãos nem comprometer sua identidade histórica própria.
Nos primeiros séculos do Cristianismo, os cristãos eram objeto da intolerância religiosa, com
as perseguições promovidas pelo Estado romano. Entretanto, com a união entre a Igreja e o
Estado a partir do Imperador Constantino, no início do 4º século, a igreja cristã passou a
sujeito da intolerância contra indivíduos e grupos considerados heréticos. Inicialmente,
impunha-se o banimento, a prisão e o confisco de bens dos hereges; posteriormente, a punição
incluiu a execução pública. As primeiras pessoas a serem executadas por heresia na história
do cristianismo foram o bispo espanhol Prisciliano e seis simpatizantes, decapitados por
ordem do imperador Teodósio I no ano 385. Poucas décadas mais tarde, Agostinho, que
1
Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) da Universidade Presbiteriana Mackenzie, aluno
do stricto sensu do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião do Centro de Educação, Filosofia e
Teologia (CEFT) da mesma instituição. Bolsista do Instituto Presbiteriano Mackenzie. Endereço eletrônico:
alceujmc@hotmail.com
inicialmente defendeu a conversão dos cismáticos por meio de evangelização, apoiou o uso da
coerção estatal contra o movimento donatista, no norte da África. Durante a Idade Média,
intensificaram-se as perseguições da igreja com o apoio estatal contra indivíduos e grupos
considerados heterodoxos. A partir do século XII, foi criado um tribunal eclesiástico especial
para julgar heresias – a inquisição – que tinha autoridade para receber e averiguar denúncias,
para obter confissões, inclusive pela tortura, e determinar a necessidade de punição pública, a
cargo das autoridades civis. Entre as vítimas estavam praticantes de alguma forma de religião
pagã ou sincretismo (acusadas de bruxaria) e judeus (acusados de falsa conversão) (MATOS,
2012).
Na Grã-Bretanha, após o rompimento de Rei Henrique VIII com o papado por ver recusado
seu pedido para divorciar-se de Catarina de Aragão (porque esta não lhe dera herdeiro homem
após dezoito anos de casamento), uma igreja nacional surgira em 1534. Independente de
Roma, a Igreja Anglicana era conduzida pelos bispos, sob o comando supremo do rei.
Durante o reinado de Maria Tudor, “a Sanguinária” (1553-1558), houve uma tentativa de
restaurar o catolicismo romano, com a execução de centenas de protestantes. Sob Elizabete I
(1558-1603) o anglicanismo foi oficialmente restabelecido; porém, sofria pela tensão interna
entre diferentes grupos: anglicanos, católicos, congregacionais e presbiterianos. A partir de
1661, no reinado de Charles II, alguns ministros que desejavam uma igreja nos moldes da
Reforma Protestante, denominados de “puritanos”, passaram a sofrer perseguição, sendo
impedidos de pregar, expulsos de suas paróquias e até exilados. Mais de dois mil clérigos
perderam seus cargos e cinco mil pessoas foram presas (CLOUSE; PIERARD; YAMAUCHI,
2003, p. 271).
Nos Países Baixos, o calvinismo da Igreja Reformada Holandesa foi desafiado por um
professor de Teologia, Jacó Armínio, que iniciou uma controvérsia ao ensinar e defender que
o decreto divino de salvação e o sacrifício de Jesus na cruz visam todos os seres humanos, que
cada um pode resistir ou aceitar a graça salvadora e, portanto, pode perder a graça uma vez
desfrutada. Mesmo após sua morte, seus seguidores continuaram defendendo suas ideias, e foi
convocado em 1618 o Sínodo de Dort para debate-las; o sínodo as rejeitou por meio de cinco
cânones que reafirmavam a doutrina calvinista ortodoxa (conhecidos até hoje como “Cinco
pontos do calvinismo”, ou pelo acróstico em inglês TULIP). Os treze ministros arminianos
foram proibidos de pastorear e ensinar, e quando se recusaram a assinar sua carta de
demissão, foram exilados. Clouse, Pierard e Yamauchi (2003, p. 274) demonstram que a
punição dos arminianos tinha uma dimensão de interesse político, conforme o Príncipe
Maurício de Nassau pode se livrar de adversários políticos que apoiavam os arminianos;
quando Maurício morreu, os arminianos puderam restabelecer suas igrejas nas províncias
holandesas.
Nos Estados Unidos, após uma tentativa de estabelecer uma “comunidade santa” em
Massachusets, houve uma crescente tolerância religiosa e separação entre estado e igreja.
Walzer (1999, p. 88) avalia que a liberdade religiosa norte-americana se deve a um processo
de “protestantização”, no qual cada religião adquiriu todo o direito de manter crenças e fiéis,
desde que sua associação fosse livre e a coexistência com as outras religiões fosse pacífica.
A História demonstra cabalmente que, conforme uma religião consegue cooptar para si o
poder político, ele será usado para reprimir ou oprimir as religiões rivais. Como constata com
tristeza Chelikani (1999, p. 51), a verdade é que, “frequentemente, as religiões praticam duas
interpretações opostas da tolerância – uma em que são majoritárias e uma outra em que são
minoritárias”. Daí, que “a finalidade da separação entre Igreja e Estado nos regimes modernos
é negar poder político a todas as autoridades religiosas, partindo da suposição realista de que
todas são pelo menos potencialmente intolerantes. Quando esta negação é eficaz, elas podem
aprender a tolerância; melhor dizendo, aprendem a viver como se possuíssem essa virtude.”
(WALZER, 1999, p. 105).
Outro nome-chave desta época é Friedrich Schlaiermacher, que no início do século XIX
começou a questionar o exclusivismo do cristianismo. Para o teólogo luterano, a religião é um
profundo sentimento de dependência de Deus, e todas as religiões são manifestações desta
consciência religiosa universal, da qual o cristianismo seria apenas a forma mais desenvolvida
e livre de superstições (CAMPOS, 1997, p. 37). Rejeitando os aspectos sobrenaturais da fé
cristã, como a encarnação divina em Cristo, os milagres e a revelação escrita, Schlaiermacher
foi o mais influente teólogo do século 19, considerado o fundador da moderna teologia
protestante (CONSTANZA, 2005, p. 89).
A tolerância religiosa foi sendo instituída aos poucos e hesitantemente na Europa pós-
Reforma, não pela misericórdia dos religiosos, mas pela conveniência dos governantes, por
razões de estado. Inadvertidamente, serviu de pano de fundo para o secularismo que
predominaria nas sociedades contemporâneas. Os historiadores Fernandez-Armesto e Wilson
(1997, p. 322, 326-327) chegam à conclusão que a tolerância promovida oficialmente
incentivou as pessoas a confundir secularismo político (a afirmação de que todas as
convicções religiosas são de igual valor perante a lei) com secularismo filosófico (a negação
de que elas tenham qualquer valor). Adiante, afirmam: “A tolerância secular abandona a
verdade objetiva e adota o relativismo; nega o absolutismo moral e afirma a liberdade de
escolha; depõe Deus para coroar o indivíduo” (FERNADEZ-ARMESTO; WILSON, 1997, p.
392). Berger e Luckmann (2005, p. 47-49), por outro lado, questionam a bem estabelecida
“teoria da secularização” como explicação suficiente para a perda de credibilidade da
interpretação religiosa na consciência das pessoas. Estes sociólogos afirmam que, com raras e
notáveis exceções, o indivíduo moderno comum ainda carece de “instituições medianeiras” de
sentido, e destacam que a religião continua entre as principais.
Segundo Peter Berger (1985, p. 60-62) é essencial para a manutenção do tecido social aquilo
que ele denomina “estruturas de plausibilidade” – estruturas de pensamento aceitas de
maneira abrangente e inquestionada por determinada cultura. Entretanto, em sociedades de
grande diversidade cultural (como a nossa) os indivíduos mantêm poucas instâncias em
comum. Em decorrência, estas tendem a ser sustentadas com maior tenacidade, como se
fossem percebidas como inegociáveis e essenciais para a manutenção daquela sociedade.
Donald Carson (2012, p. 2) sugere que o conceito de tolerância adquiriu tal status na
sociedade ocidental pós-moderna: numa sociedade tão fragmentada e multicultural, a
tolerância é vista como elemento imprescindível à sobrevivência social e individual.
Rao Chelikani (1999, p. 59-60) traz uma contribuição interessante para o fomento da
tolerância como atitude individual; ele propõe três atitudes de tolerância: 1) Dúvida: o
questionamento de suas próprias crenças ou, pelo menos, do modo como elas foram
assimiladas pessoalmente; e também o diálogo com o outro para garantir minha compreensão
acerca da sua posição e para encoraja-lo a se questionar também. 2) Segurança: convicto de
que há um engano na posição do outro, busco convencê-lo de seu erro ou, ao menos, de que
minha posição deve igualmente ser tolerada por ele. 3) Indiferença: permaneço discordando
do outro, sem que isso implique juízo de valor a ele enquanto pessoa nem animosidade. Mas
quanto ao papel das religiões na busca da tolerância, Chelikani erra ao combater
especialmente o proselitismo: “Em um mundo superpovoado é desnecessário empreender uma
corrida para a conversão religiosa. A liberdade de converter-se e a liberdade de converter os
outros são duas coisas diferentes” (CHELIKANI, 1999, p. 72). Mesmo adeptos de religiões
não exclusivistas podem justificar seu proselitismo, pois, como vimos, na sociedade pluralista
a religião é uma escolha pessoal, significando uma decisão pelo que se considera a melhor
opção. Portanto, a “liberdade de converter” está ligada à “liberdade de converter-se” como
partes da liberdade religiosa. Chelikani parece ignorar algo da própria natureza das religiões,
como formadoras e organizadoras de sentido, pois o fiel não busca meramente trazer
crescimento à sua agremiação religiosa, mas trazer o infiel para a verdade – que ele já
conhece e deseja compartilhar. Assim, por mais que o pluralismo implique tolerância, não
resulta necessariamente eliminação das diferenças:
A História Eclesiástica nos ensina sobre a tendência da Igreja à intolerância, quando aliada ao
poder do Estado ou simplesmente em maioria numérica; mas também nos ensina sobre o
perigo da perda de identidade religiosa, quando abre mão de suas doutrinas para poder
estreitar laços com outras tradições religiosas. Em ambos os casos, a Igreja se torna menos
que cristã.
3
Cf. João 14.6; 17.3; Mateus 11.27.
4
Cf. 1Timóteo 2.5 e Atos 4.12.
5
Cf. Romanos 10.13-14
O fundamentalismo (no sentido histórico inicial: ortodoxia) deve ceder vez à Teologia
Liberal, como única perspectiva cristã apta aos novos tempos de tolerância obrigatória? Dizer
“Só Jesus salva” significa necessariamente ser intolerante e incapaz de convívio com o Estado
secularizado e a sociedade pluralizada?
Em primeiro lugar, na direção horizontal, que já abordamos, “Só Jesus salva” é uma
declaração axiológica dirigida ao outro, e significa que somente têm salvação aqueles que
creram em Cristo como seu único mediador para com Deus. Neste sentido horizontal, tem
função querigmática (como proclamação ao descrente), portando em si mesma a separação da
humanidade em duas famílias distintas: cristãos e não cristãos – e impondo sobre os últimos a
negação e a expectativa de mudança. É neste aspecto que “Só Jesus salva” tem sido fonte e
justificativa para atitudes intolerantes por parte dos cristãos em relação a indivíduos, religiões
e culturas não cristãs.
Entretanto, “Só Jesus salva” guarda outro sentido, que alcunhamos vertical, pois dirigido a
Deus, com papel doxológico (como louvor a Deus). Aqui, “Só Jesus salva” manifesta o
reconhecimento do cristão de que ele, por si mesmo, nunca poderia produzir um novo cristão;
a ortodoxia cristã insiste que a retórica mais refinada, o argumento mais lógico, as explicações
mais claras jamais conseguiriam uma conversão. Por um motivo simples: “Só Jesus salva!” É
a própria Bíblia, única autoridade para a fé fundamentalista, que deixa claro que a obra de
revelar Deus, abrir o coração do incrédulo e convencer do pecado é prerrogativa
exclusivamente divina. 6 O evangélico J.I. Packer, falando acerca da evangelização, expõe a
incapacidade humana para converter incrédulos:
Mais uma vez, em última análise, existe um só agente da evangelização: é o Senhor Jesus
Cristo. É Cristo mesmo que, por meio do seu Espírito Santo, capacita os seus servos a
explicar a verdade do evangelho e aplicá-la de forma poderosa e eficaz; da mesma forma,
como é o próprio Cristo que, por meio do seu Espírito Santo, abre o entendimento e os
6
Cf. Atos 16.14; João 16.8; Lucas 10.22.
corações dos seres humanos, para que recebam o evangelho, atraindo-os assim
salvadoramente para si mesmo (PACKER, 2002, p. 78).
Portanto, não precisamos ir mais longe do que a própria ortodoxia cristã fundamentalista para
encontrar a base para a tolerância que a sociedade pluralista contemporânea requer das
instituições religiosas que convivem em seu seio. O desenvolvimento histórico ocidental já se
encarregou de minar a arrogância das religiões de fazerem uso do poder estatal e político para
suprimir suas concorrentes. Entretanto, isso não seria necessário se a convicção cristã
ortodoxa de que a conversão é um milagre de Deus equivalente a um novo nascimento 7
tivesse moldado as interações inter-religiosas da Igreja Cristã. A própria Bíblia teria minado a
arrogância do Cristianismo de forçar por seus próprios meios o Reino de Cristo nos corações,
hábitos e culturas daqueles que não conhecem ou reconhecem o Rei.
Considerações finais
A História da Igreja Cristã nos mostra como a sedução do poder substituiu a proclamação da
fé. Quando possuidora da maioria numérica ou de laços com o poder, o Cristianismo se
afastou profundamente da simplicidade do ministério de Jesus de Nazaré e seus apóstolos,
todos perseguidos por sua fé. Entretanto, os novos tempos no mundo ocidental parecem não
mais oportunizar tais rompantes de intolerância religiosa, quer pelo Cristianismo, quer por
outras religiões.
Por outro lado, ainda que o pluralismo moderno requeira que as religiões contribuam
decisivamente com a formação de sentido dos indivíduos na sociedade, também exige delas a
convivência pacífica e tolerante, que garanta a manutenção das escolhas religiosas pessoais e
livres destes indivíduos. Isso não significa que o Cristianismo tenha de sobreviver à custa de
abrir mão de sua identidade, já que neste caso não lhe restaria sequer sua função social de
apresentar um esquema de sentido coeso. Na verdade, o melhor caminho para uma tolerância
cristã pautada pela boa vontade está no coração da teologia cristã histórica: a salvação é dom
do Deus soberano. Alienados do movimento ecumênico em virtude de seu apego à ortodoxia,
os fundamentalistas devem buscar na ortodoxia a base para uma tolerância religiosa coerente
com sua identidade religiosa e promotora de um exclusivismo cristão tolerante.
O mesmo trajeto poderá ser percorrido por outras doutrinas sustentadas pela ortodoxia
fundamentalista, mas que geralmente não tem produzido maior tolerância na Igreja Cristã.
Outros trabalhos poderão explorar e expor aspectos doutrinários como, por exemplo, a ética
7
Cf. Efésios 2.4-5; João 3.5; 2Coríntios 5.17.
pacifista de Jesus ou a imagem de Deus no homem, verificando como apoiam ou alimentam
uma atitude mais tolerante naquela que ainda é a maior religião do mundo.
Referências
BERGER, Peter L.. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulinas, 1985.
CARSON, Donald A. The gagging of God: christianity confronts pluralism. Grand Rapids:
Zondervan, 1996.
CLOUSE, R. G.; PIERARD, R. V.; YAMAUCHI, E. M. Dois reinos. São Paulo: Cultura
Cristã, 2003.
LOPES, Augustus Nicodemus. Fundamentalismo, ontem e hoje. In: LOPES, Edson Pereira
(Org.). Questões teológicas de ontem e hoje. São Paulo: Reflexão, 2010.
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Ultimato, Viçosa, n. 337, Jul - Ago de 2012. Disponível em
<http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/337>. Acesso em 05 ago. 2013.
MATOS, Alderi Souza de. Para que sejam um: breve panorama do movimento ecumênico.
Ultimato, Viçosa, n. 300, Maio - Jun de 2006. Disponível em
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NOGUEIRA, Luiz Eustáquio dos Santos. O cristão desafiado pelas religiões. Horizonte, Belo
Horizonte, v. 1, n. 2, Jan-Jun de 1997, p. 44-56.
SILVA, Antônio Ozaí da. Monoteísmo e intolerância religiosa e política. Espaço Acadêmico.
n. 113, out. de 2010, p. 153-162.