CURSO DE FILOSOFIA
Trabalho apresentado à
Disciplina de História da
Filosofia Moderna, do Curso
de Filosofia da Universidade
Federal do Maranhão.
Professora: Zilmara Carvalho
Aluno: Hiago Christian
Cordeiro
São Luís, MA
2018
O martelo de Nietzsche; críticas ao sujeito moderno
O caminho do pensamento moderno está arraigado num pensamento filosófico que
tem no Sujeito a sua constituição principal. O Sujeito passa, então, a ser a referência de
todas as coisas: desde a fundamentação do conhecimento científico até as
sistematizações morais dos povos, tudo isso terá como referência mediata ou imediata a
figura do Sujeito. Essa noção só começa a perder força em meados do século XIX e
principalmente no século XX, onde irrompem variadas críticas ao sujeito como
substância, principalmente dentre aqueles filósofos conhecidos como mestres da
suspeita1. Sigmund Freud com a sua psicanálise irá apresentar uma dimensão obscura da
psique humana, uma dimensão estranha e em alguns casos diretamente oposta à noção
de consciência e liberdade de julgamento, uma dimensão movida apenas por pulsões e
instintos inconscientes e que alarmantemente regem boa parte das ações humanas 2. Karl
Marx também irá fazer um ataque a noção de sujeito livre e autônomo colocando o ser
humano em uma categoria de ser social cuja consciência é amplamente determinada e
condicionada historicamente pela produção material da vida, produção essa que envolve
tanto produção de bens materiais quanto de bens imateriais, produção de objetividade e
subjetividade3.
Mas talvez seja em Friedrich Nietzsche que a metafísica do sujeito irá encontrar o
seu pior e mais implacável adversário, pois boa parte de sua filosofia é dedicada, como
poderosos golpes de martelo (ou seriam de machado?), a arrancar pela raiz essa árvore
deveras apodrecida que chamamos até aqui de modernidade. Seguindo essa linha de
raciocínio, a crítica de Nietzsche “se dirige àquela concepção que compreende o sujeito
como uma unidade autônoma, capaz de conhecer a si mesmo e o mundo ao seu redor e
de tomar decisões e agir livremente nesse mundo”4. Nesse sentido podemos destacar
aqui pelos menos duas de suas críticas que consideramos centrais para o
enfraquecimento do conceito de sujeito moderno: 1) a crítica a um sujeito do
conhecimento; possuidor de uma neutralidade científica, despido de vontade e, portanto,
capaz de uma “observação desinteressada” do mundo, e 2) a crítica a um “sujeito da
ação”, autônomo e inteiramente livre, entendido como requisito para toda e qualquer
elaboração moral do ocidente. Separamos essas críticas aqui em duas apenas por
questões metodológicas, pois elas mobilizam outras noções nietzschianas que se
interconectam de maneira bastante fragmentada pela multiplicidade de perspectivas
existentes no conjunto da obra de Nietzsche.
1
A denominação "mestres da suspeita" foi cunhada pelo filósofo francês Paul Ricoeur e se
refere aos pensadores como Nietzsche, Marx e Freud, pela importância que tiveram em
questionar a cultura ocidental, elaborando considerações que abalariam consideravelmente
noções já bem estabelecidas na tradição.
2
FREUD, S. O inconsciente (1915). Escritos sobre a psicologia do inconsciente (1915-1920).
Coordenação-geral da tradução Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 13-74.
(Obras psicológicas de Sigmund Freud, 2).
3
“Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que
determina a sua consciência”. MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. tradução
e introdução de Florestan Fernandes – 2.ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2008., pág. 47.
4
PASCHOAL. Antônio Edmilson. Da crítica de Nietzsche ao sujeito ao sujeito de sua crítica.
Extraído de: Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v.39, n.1, janeiro/abril, 2018., pág. 97.
1) Sobre esse sujeito puramente intelectivo, onde vimos que é a partir do cogito
cartesiano que ele cresce e se desenvolve, Nietzsche decerto, foi um dos primeiros a
perceber que não era possível a colocação do status de verdade imediata. Em sua visão a
problemática central se estabelece precisamente com a predicação linear do ato de
pensar para um sujeito.
“Repetirei mil vezes, porém, que ‘certeza imediata’, assim como ‘conhecimento
absoluto’ e ‘coisa em si’, envolve uma contradictio in adjecto: deveríamos nos
livrar, de uma vez por todas, da sedução das palavras! [...] se decomponho o
processo que está expresso na proposição ‘eu penso’, obtenho uma série de
afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível – por
exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que
pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que
existe um ‘Eu’, e finalmente que já está estabelecido o que designa como pensar
– que eu sei o que é pensar.” 5
Nietzsche percebe escondido na concepção de cogito um determinado número de
valores e conceitos que orbitam, através de um certo disfarce, o pressuposto cartesiano;
como o de necessidade, identidade, ou mesmo o de causalidade. Para Nietzsche tais
conceitos não passam na verdade de pré-conceitos que estariam sendo transportados e
velados no pensamento humano através do que o autor chama de uma sedução das
palavras. Em que consiste essa sedução? Seria justamente o equívoco de, através das
imposições normativas da sintaxe gramatical, pensar que a realidade corresponda as
exigências estruturantes da língua, ou seja, que a validade formal da inferência produza
uma verdade de fato. Essa sedução presente na língua de acordo com Neto e Dourado,
“nos induzem, portanto, a pensar sempre de acordo com suas determinações e, nesse
sentido, nos obrigam a ver, entender e falar o mundo a partir delas. Em outras palavras,
mesmo as nossas mais primárias inferências seriam sempre direcionadas, de forma
inconsciente, pela estrutura sintática de nossa linguagem” 6.
Para Nietzsche são justamente esses hábitos gramaticais que nos levam a entender
que o “pensar é uma atividade e que toda atividade requer um agente,” 7 logo, “o ‘eu’ é
condição, e o ‘penso’ é predicado e condicionado – pensar é uma atividade para a qual
um sujeito tem que ser pensado como causa.” 8 Da mesma forma que antigamente se
acreditava em alma, modernamente se acreditará no sujeito gramatical. Portanto, de
acordo com essa elucidação, podemos considerar que na perspectiva nietzschiana o
cogito cartesiano não passaria de uma ilusão gerada por um jogo de palavras, uma
ficção gramatical.
5
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005., seção 16, pág. 21.
6
NETO. João Evangelista T. Melo. DOURADO. Isabela Gonçalves. A Crítica nietzschiana a
noção de sujeito e o problema da falência da moral ocidental. Em: Ágora Filosófica. Vol. 1, N
1. Recife (PE): UNICAP, 2018., pág. 123.
7
Ibidem., seção 17, pág. 22.
8
Ibidem., seção 54, pag. 53.
2) Agora a respeito da segunda crítica, ao sujeito entendido como requisito para a
ação, ganha luz as características da liberdade e autonomia desse sujeito para decidir
acerca do seu agir, como podemos conferir nesse fragmento:
Nessa crítica, podemos perceber que ainda estão presentes as noções que
comentamos acima; sobre a sedução das palavras e a sua implicação de preconceitos no
pensamento, como o de causalidade. Contudo, para além de uma crítica ao aspecto
intelectivo do sujeito, do sujeito entendido como causa do pensamento, esse raciocínio
se estende a um campo de conotação moral, onde esse sujeito é também entendido como
causa de toda ação. É ele que contêm o poder de decisão de agir dessa ou daquela
forma, ou mesmo não agir, de exteriorizar esse ou aquele efeito, ou mesmo não
exteriorizar se assim decidir. Esse pensamento está inserido em uma seção onde
Nietzsche discute sobre o problema do ressentimento na moral; uma inversão de valores
realizada pelos fracos em uma tentativa de vingarem-se dos fortes; igualando a força
com a crueldade e a maldade, e regalando aos fracos a bondade com a sua moral
ascética. Assim se consolida um cenário “onde o forte tenha toda a liberdade de ser
fraco e que a ave de rapina de ser cordeiro: desse modo se atribuem o direito de imputar
à ave de rapina a responsabilidade de ser ave de rapina” 10. Apenas aos fracos, na visão
de Nietzsche, convém acreditar nesse tipo de sujeito, pois assim a sua fraqueza deixa de
parecer uma injustiça do mundo e se torna algo de arbitrário e voluntarioso, tornando-os
inclusive, dignos de uma boa recompensa.11
9
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Trad. de Antônio Carlos Braga. São Paulo:
Escala, 2013., seção 13, pág. 65.
10
Ibidem., pág. 66.
11
Mateus 5:3 “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos Céus”. 5:4
“Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados...”
condição, bem entendido, de que a própria vida seja vontade de potência”. Esse conceito
é muito bem explicado por T. Melo Neto e Dourado, que nos dizem que:
É importante ressaltar que essa vontade não é a mesma vontade do sentido clássico
da tradição filosófica. A vontade de potência não pode ser confundida com o simples
querer, com o simples desejo de dominação, nem a aspiração ao poder, pois esse tipo de
compreensão pressupõe que possa dividir à vontade, colocando o desejo de um lado,
intrinsicamente ligada a um sujeito que deseja, e o objeto que é desejado do outro,
implicando também que existam objetos puros apreendidos por um sujeito. Ou seja,
cria-se assim um dualismo de sujeito-objeto que Nietzsche rejeita 13. Essa concepção
clássica de vontade como o desejo daquilo que não se tem, traduz para Nietzsche uma
forma de fraqueza e de falta, já a vontade de potência está mais para um processo
intensificador do poder que já se é; o agir é tudo. O ser humano como parte integrante
desse cosmo constitui-se também nesse turbilhão de forças contraditórias, sendo cada
uma de suas ações podendo ser entendida como um resultado dessa relação de forças e
não como uma simples exteriorização de um sujeito interior e deliberante.
Como vimos, as duas críticas que esboçamos aqui se complementam e formam um
panorama um pouco mais claro que nos ajuda a entender melhor a posição nietzschiana
a respeito da noção de sujeito moderno. Tanto o sujeito pensado como substrato
intelectivo quanto substrato para ação escondem uma concepção mecânica que anula o
ambiente de atrito das forças responsável por produz a multiplicidade de fenômenos que
chamamos de mundo ou cosmo, anulam a vontade de potência.
12
NETO. João Evangelista T. Melo. DOURADO. Isabela Gonçalves. A Crítica nietzschiana a
noção de sujeito e o problema da falência da moral ocidental. Em: Ágora Filosófica. Vol. 1, N
1. Recife (PE): UNICAP, 2018., pág. 126.
13
Um pouco disto pode ser visto no seguinte trecho: “Mas agora observem o que é mais
estranho na vontade – nessa coisa tão múltipla, para o qual o povo tem uma só palavra: na
medida em que, no caso pressente, somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que
obedece, e como parte que obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão,
resistência, movimento, que normalmente têm início logo após o ato da vontade; na medida em
que, por outro lado, temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do
sintético conceito do “eu”, toda uma cadeia de conclusões erradas e, em consequência, de falsas
valorações da vontade mesma, veio a se agregar ao querer – de tal modo que o querente
acredita, de boa-fé, que o querer basta para agir.” NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do
mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., seção 19, pág.
23.
Referências:
- NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Trad. de Antônio Carlos Braga. São Paulo:
Escala, 2013.
- NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.